1 BREVE ANÁLISE – “O CASO DOS EXPLORADORES DE

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BREVE ANÁLISE – “O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNAS”
Prof. Pablo Antonio Lago
O célebre livro de Lon Fuller, “O Caso dos Exploradores de Cavernas”, é
frequentemente estudado nas aulas de Introdução ao Estudo do Direito. Mas além de
constituir uma interessante introdução ao universo jurídico, ele contém elementos que
nos permitem tratar diretamente da questão das controvérsias jurídicas e morais no
âmbito argumentativo – o que nos leva a uma análise mais aprofundada dos temas
levantados através da Filosofia do Direito na contemporaneidade1. Logo, nunca é
demais retomar sua leitura como forma de esclarecer e sedimentar algumas distinções
filosóficas fundamentais.
“O Caso dos Exploradores de Cavernas” consiste no julgamento hipotético
daquilo que poderíamos denominar um “hard case”, utilizando a terminologia
dworkiniana. Ele é um caso difícil na medida em que as divergências apresentadas pelos
juízes não estão em fatos ou em outras constatações empíricas (i.e., o fato de que um
homicídio ocorreu e que há, realmente, uma norma expressa que o proíba). As
divergências apresentadas constituem, na realidade, divergências teóricas. Estas
divergências levam em consideração a concepção que cada juiz tem sobre o seu papel
enquanto agente público que deve aplicar o Direito – as diferenças surgem quando
percebemos que cada juiz daria uma resposta diferente para a questão mais fundamental
do “o que é o Direito?”. Consequentemente, o que se percebe é que os juízes estão
“falando sobre a mesma coisa”, mas cada um possui visões distintas sobre ela. A coisa
em questão é, justamente, o conceito de Direito, e as diferentes visões de cada juiz sobre
o fenômeno jurídico constituem as diferentes concepções.
O caso levantado também é hipotético. Em síntese, cinco indivíduos
aventuravam-se na exploração de uma caverna quando um desmoronamento de terra
bloqueou sua única saída. Equipes de resgate foram encaminhadas ao local, mas a
desobstrução da caverna demoraria inúmeros dias e os indivíduos não possuíam
mantimentos suficientes para sobreviver até o término dos trabalhos. Através de um
rádio comunicador, questionaram sobre a possibilidade de se evitar a morte por
1
A questão das controvérsias jurídicas é particularmente importante quando buscamos compreender o
debate contemporâneo conceitual sobre o Direito, particularmente o que decorre das divergências entre
autores como Dworkin e positivistas que seguem o pensamento hartiano, como Jules Coleman, Andrei
Marmor, dentre outros.
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inanição, caso consumissem a carne de um deles. Com a resposta afirmativa, decidiram
pela sorte, através de dados, quem deveria morrer e servir de alimento aos demais. Um
dos exploradores foi, então, morto, e possibilitou a sobrevivência dos outros quatro até a
desobstrução da caverna. Após a recuperação em um hospital, os quatro exploradores
sobreviventes foram levados a julgamento e condenados à morte em primeira instância.
Apresentaram, então, um recurso para a Suprema Corte. É aí que inicia o embate
argumentativo entre os diferentes magistrados.
O presidente do tribunal, Truepenny, votou pela manutenção da sentença
condenatória. Em sua justificativa, sustenta que o dispositivo legal aplicável à espécie 2
não admite nenhuma exceção, e este era o único caminho aberto ao júri e ao juiz de
primeira instância. Entretanto, acredita que nesta hipótese é aplicável a clemência
executiva, razão pela qual era mais simples manter a condenação e aguardar a provável
clemência através do chefe do Poder Executivo.
O juiz Foster, por sua vez, votou pela inocência dos réus e reforma da sentença.
Ele fundamenta sua decisão através de duas premissas diferentes:
a) O direito positivo seria inaplicável para este caso, uma vez que os homens em
questão se encontravam no que os antigos chamavam de “lei da natureza”. Se o
interesse da lei positiva era possibilitar a coexistência dos indivíduos, uma
situação que torne esta coexistência impossível implica no afastamento da
norma positivada e de suas sanções. Em analogia com o princípio da
territorialidade, argumenta que da mesma maneira que nossas leis não são
aplicáveis em países diferentes, os réus se encontravam tão distantes da ordem
jurídica positiva do país que esta não lhes seria exigida. Se não bastasse, este
“estado de natureza” em que se encontravam fez com que eles tivessem que
elaborar suas próprias regras: e o acordo em questão foi uma espécie de
“contrato” exigível pelas circunstâncias. Ainda, tem-se que dez operários
morreram nos esforços de resgate – assim, “a que título diremos ter sido injusto
que estes exploradores executassem um acordo para salvar quatro vidas em
detrimento de uma?”.
b) Por outro lado, pressupondo-se que a primeira premissa é equivocada, a
interpretação racional do direito positivo implica não apenas em considerar “a
letra da lei”, mas sim os seus propósitos. Em analogia com a legítima defesa,
2
O texto da norma em questão é o seguinte: “Quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida
será punido com a morte”
2
percebe-se que o direito não pode se afastar dos critérios básicos de
racionalidade
que
motivam
os
homens
a
protegerem
suas
vidas,
independentemente de normas jurídicas – “um homem cuja vida é ameaçada
repelirá seu agressor não importa o que diga a lei”3.
Foster conclui seu voto afirmando que sua fundamentação não o coloca em
confronto com a questão de fidelidade ao Direito, pois a correção de erros e equívocos
legislativos óbvios não importa em suplantar a vontade do legislador, mas sim em tornar
a aplicação da norma mais efetiva.
O juiz Tatting, por sua vez, levantou inúmeras questões que colocam em dúvida
a fundamentação do juiz Foster. Em primeiro lugar, em qual momento os exploradores
teriam ingressado na égide desta “lei da natureza”? Quando a entrada da caverna
fechou? Ou quando a ameaça de morte atingiu um grau indefinido de intensidade?
Tanto ele quanto o juiz Foster são magistrados com o dever-poder de aplicar as leis do
país, e não leis hipotéticas da natureza. Estas leis não corresponderiam a um código
ordenado de normas reguladoras, e se fossem aplicadas a todos os casos, levariam a
resultados absurdos. Ademais, não seria possível identificar um único propósito para as
normas jurídicas, e sim os mais variados propósitos possíveis. Diante de todas estas
dúvidas que lança sobre o voto de seu colega, e do absurdo que considera ser a
condenação dos exploradores à morte, Tatting recusou-se a participar do julgamento.
O juiz Keen votou pela condenação dos réus. Em seus argumentos,
primeiramente lança mão da ideia de separação dos poderes para desaprovar o voto do
juiz presidente, o qual vê como instruções indevidas ao chefe do Poder Executivo. A
segunda e mais relevante questão diz respeito à desnecessidade de se apreciar se o que
os exploradores fizeram foi “justo” ou “injusto”, “bom” ou “mau”. Como juiz, teria se
comprometido a aplicar não suas concepções de moralidade, mas sim o Direito
nacional. Assim, a condenação se sustenta diante da clareza existente no texto legal,
ainda que a decisão fosse rigorosa e não causasse simpatia popular – afinal, a
responsabilidade seria do povo com relação à lei que, em última instância, é sua própria
criação. Se não bastasse, a analogia com a legítima defesa seria inadequada pois as
situações onde ela tem sido aplicada é clara: resistência a uma ameaça agressiva à
própria vida do indivíduo. Ele vê sua função de aplicar o Direito como algo exigido
3
Curiosamente, esta posição vai de encontro à visão do próprio Lon Fuller sobre o Direito. Para ele, é
fundamental compreendermos o Direito à luz das suas finalidades e propósitos. Isso faz com que muitos
autores o categorizem como um jusnaturalista. Suas principais teorias substantivas sobre o fenômeno
jurídico podem ser encontrados na obra “A Moralidade do Direito”.
3
historicamente, considerando a revolução que deu origem à supremacia do Legislativo;
não lhe compete, portanto, questionar se a proibição de revisão judicial das leis é certa
ou errada – trata-se de uma premissa tácita que jurou aplicar.
O último voto é o do juiz Handy, pela inocência dos réus. Ele acredita que as
teorizações feitas por seus colegas são muito abstratas e distantes da sabedoria prática
que, quando aplicada ao caso, torna-o simples de decidir. Para ele, o Judiciário corre o
risco de se afastar do homem comum quando se vale de mecanismos conceituais
abstratos para a tomada de decisão. Uma forma simples de se decidir o caso consistiria
em verificar o que a opinião pública pensa a respeito: no caso, noventa por cento da
população expressa a opinião de que os réus deveriam ser perdoados. A decisão pela
opinião pública, neste caso, preservaria a harmonia entre o Judiciário e a população. Se
não bastasse, o argumento de que a opinião pública é “emocional e caprichosa”, de
modo a não ser levada em conta pelo Judiciário, desconsidera o fato de que os demais
campos decisórios possíveis para a questão (e.g., a decisão do Ministério Público em
instaurar ou não o processo, uma eventual absolvição ou condenação pelo júri, um
indulto ou não pelo Executivo) estão longe de se pautar em estruturas rígidas e formais,
de garantir todas as formalidades legais e de excluir os fatores emocionais. Assim, se o
casso efetivamente fosse julgado pelo júri, todos estariam certos de que ocorreria a
absolvição. Quanto ao voto do presidente, o juiz Handy o considera irreal porque parte
da ideia de que o Judiciário deveria condená-los para, somente então, outro Poder venha
a absolvê-los. Ademais, inexiste certeza alguma de que o chefe do Executivo perdoará
os acusados – pelo contrário, tudo indica que ele manteria a decisão da Suprema Corte.
Têm-se, então, dois votos pela condenação, dois pela absolvição e uma
abstenção. Ocorrendo um empate, a sentença foi mantida e os réus condenados à morte.
BIBLIOGRAFIA
FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Trad. Plauto Faraco de
Azevedo. Porto Alegre: Fabris, 1976.
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