Relato de caso: Tamponamento cardíaco no renal crônico

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J Bras Nefrol 2000;22(4):236-40
Relato de caso: Tamponamento cardíaco no renal crônico –
apresentação longe da clássica
Janine R Barnett, Terezinha Mazzeo, José R Boselli Jr., Sérgio S Hayashi, Vinicius DA
Delfino, Anuar M Matni e Altair J Mocelin
Resumo
Pericardite urêmica ocorre em torno de 10% a 20% dos pacientes em diálise,
sendo que metade desses desenvolverão tamponamento cardíaco. Sendo um
quadro potencialmente grave e não tão incomum, foi feito um estudo
retrospectivo de 1993 a 1998, com o objetivo de verificar a apresentação
clínica e a evolução do tamponamento cardíaco em pacientes urêmicos. Foram
encontrados 6 pacientes que nesse período apresentaram tamponamento
cardíaco. A apresentação clínica fugiu da clássica, predominando dispnéia, tosse
seca e hipotensão. Os dados clínicos e laboratoriais dos acometidos, tratamento
cirúrgico e evolução dos mesmos são discutidos. Revisão bibliográfica sobre
tratamento clínico e cirúrgico da pericardite urêmica é apresentada.
)>IJH=?J
Hospital Evangélico de Londrina,
Uremic pericarditis occurs in about 10% to 20% of patients on dialysis, of which
Londrina, PR
Endereço para correspondência:
Janine R Barnett
Av. Bandeirantes, 804, Centro
86010-010 Londrina, PR
Fax: (0xx43) 321-1824
half will develop cardiac tamponade. Due to the fact that it is a potentially life-
Tamponamento cardíaco. Insuficiência
renal crônica. Diagnóstico. Tratamento.
Cardiac tamponade. Chronic renal
failure. Diagnosis. Treatment.
threatening condition and not so uncommon, a retrospective study was carried out
from 1993 to 1998 with the aim of verifying the cardiac tamponade clinical
presentation and outcome in uremic patients. Six patients developed cardiac
tamponade. The clinical presentation was not classical, with the main symptoms
being dyspnea, dry cough and hypotension. The clinical presentation, laboratory
findings, surgical treatment and outcome of these patients are discussed. A literature
review regarding the surgical and non-surgical treatment is also presented.
Introdução
Pericardite urêmica pode ocorrer tanto na insuficiência renal aguda (IRA) quanto na crônica (IRC), sendo que no período anterior à diálise, acometia cerca
de 20% dos agudos e 50% dos renais crônicos. Nesta
última situação, sua instalação prenunciava a morte do
paciente.1 Atualmente, estima-se que a prevalência de
pericardite em crônicos renais seja de 10% a 20% , sen-
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do que cerca de metade dos acometidos pode apresentar-se com tamponamento cardíaco (TC), o qual se
constitui em uma emergência médica.2
Relata-se a seguir uma série de 6 tamponamentos
cardíacos verificados em pacientes renais crônicos. Dados referentes à apresentação clínica e laboratorial, possíveis fatores desencadeantes, tratamento instituído e evolução são apresentados com o intuito de chamar a atenção
para o problema e orientar os profissionais envolvidos
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Tabela 1
Características demográficas, doença de base, tempo e modalidade de diálise de 6 pacientes renais crônicos com tamponamento cardíaco
Casos
Idade (anos)
1
2
3
4
5
6
M = masculino
F = feminino
BR = branco
36
47
43
52
57
26
Sexo
M
M
M
F
M
M
Cor
De outubro de 1993 a julho de 1998, seis pacientes
renais crônicos acompanhados pelos serviços de nefrologia do Hospital Evangélico de Londrina (HEL) e
unidade satélite de diálise, os quais mantêm cerca de
200 pacientes em tratamento dialítico, sendo um quinto em diálise peritonial ambulatorial contínua (DPAC),
apresentaram pericardite com tamponamento cardíaco. A idade dos pacientes quando do tamponamento
cardíaco variou entre 26 a 57 anos. Cinco eram do sexo
masculino, três brancos e três não brancos. Glomerulonefrite crônica foi a provável causa da insuficiência
renal crônica em 4 dos acometidos. A duração da terapia de reposição renal antes do aparecimento do tamponamento cardíaco variou de 0 a 132 meses, sendo
que quando do tamponamento 5 dos 6 pacientes faziam hemodiálise. A apresentação clínica de tamponamento cardíaco foi bastante variável. Todos os pacientes, menos um, apresentaram-se com hipotensão. Três
apresentaram-se com tosse seca associada à dispnéia.
Hipofonese de bulhas cardíacas foi achada em apenas
um paciente. Somente um apresentou dor torácica (dor
em região infra-escapular à direita). Em um caso, o TC
coincidiu com o quadro infeccioso. Três faziam uso de
minoxidil para tratamento da hipertensão arterial.
Em todos os acometidos à radiografia de tórax,
houve aumento global da área cardíaca e, nos eletrocardiogramas, amplitudes normais dos complexos QRS,
sendo o diagnóstico confirmado por ecocardiografia,
com documentação de volumes variáveis de derrame
pericárdico.
O tratamento instituído foi pericardiectomia com
janela, tendo o dreno pericárdico permanecido por
três a sete dias.
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Tempo de diálise
BR
Pielonefrite crônica
BR
Glomerulonefrite crônica
NE
Glomerulonefrite crônica
AM
Glomerulonefrite crônica
BR
Nefroesclerose hipertensiva
NE
Glomerulonefrite crônica
HD = hemodiálise
DPAC = diálise peritonial ambulatorial crônica
TX = transplante
no manejo de pacientes com a mesma condição.
Pacientes e métodos
Doença de base
HD 8 meses, DPAC 76 meses
HD 132 meses
HD 1 mês
Tx 120 meses, DAPC 4 meses, HD 1 mês
1 sessão de HD
HD 17 meses
NE = negro
AM = amarelo
Com relação à evolução clínica, dois pacientes foram a óbito por razões não relacionadas ao tamponamento cardíaco. Três tiveram boa evolução. Entre eles,
um desenvolveu novo episódio de pericardite vinte
meses após o TC, mas sem recidiva do quadro de tamponamento. Somente um paciente apresentou recidiva
do tamponamento cardíaco necessitando de pericardiectomia total.
Na Tabela 1, apresentam-se as características demográficas, a doença de base, o tempo e a modalidade
de diálise de 6 pacientes renais crônicos com tamponamento cardíaco, enquanto que, na Tabela 2, podem
ser encontrados os dados clínicos, os exames complementares cardiológicos, o volume drenado cirurgicamente e a evolução destes mesmos pacientes.
Discussão
Inflamação dos folhetos pericárdicos pode aparecer no contexto de um grande número de condições,
particularmente infecções (virais, bacterianas, tuberculose),3,4 e fase pós-infarto agudo do miocárdio, febre
reumática, doenças do tecido conectivo,5,6 trauma torácico, neoplasias (carcinoma brônquico e de mama, linfoma de Hodgkin, leucemia e melanoma) e uremia.7
Pericardite urêmica é uma complicação da insuficiência renal crônica que, segundo Frame Jr.,2 foi descrita inicialmente por Bright em 1836. Diálise inadequada, infecções – incluindo-se tuberculose, 3
anticoagulação sistêmica, hiperparatiroidismo secundário, uso de minoxidil8 e doenças coronarianas – têm
sido implicadas como fatores desencadeantes para o
surgimento de pericardite com tamponamento cardíaco renal crônico.2,3,8
A apresentação clássica do tamponamento cardía-
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Tabela 2
Dados clínicos, exames complementares cardiológicos, volume drenado cirurgicamente e evolução de 6 pacientes renais crônicos com tamponamento cardíaco
CASO
DADOS CLÍNICOS
ECG
RX DE TÓRAX
ECO
VOLUME DRENADO
EVOLUÇAO
1
Dor torácica,
dispnéia,
tosse seca,
hipotensão
Hipertrofia
VE;
amplitude
normal dos
complexos
Aumento
global de
área
cardíaca
Volumoso
derrame
pericárdico
3.500 ml
Septicemia e
óbito 3 semanas
após (peritonite
DPAC). ECO:
discreto derrame
pericárdico
2
Dispnéia,
hipotensão,
atrito
pericárdico
presente 9 dias
antes
Amplitude
normal dos
complexos
Aumento
global da
área
cardíaca
Derrame
pericárdico
de grande
volume
500 ml
20 meses após
novo quadro de
pericardite.
ECO: pericárdio
espessado
3
Hipotensão
associado à
pneumonia
bacteriana e
à tuberculose
pulmonar
Amplitude
normal dos
complexos
Aumento
global da
área
cardíaca
Derrame
pericárdico
estimado
em
1.000 ml
2.600 ml
4
Hipotensão,
dispnéia,
tosse seca,
associado à
peritonite
DPAC
Amplitude
normal dos
complexos
Aumento
global da
área
cardíaca
Derrame
pericárdico
severo
750 ml
5
Hipotensão
hipofonese de
bulhas cardíacas.
Hepatomegalia
Amplitude
normal dos
complexos
Aumento
global da
área
cardíaca
Derrame
pericárdico
volumoso
1.000 ml
Cura completa
6
Tosse seca,
dispnéia,
hepatomegalia
Amplitude
normal dos
complexos
Aumento
global da
área
cardíaca
Derrame
pericárdico
de grande
volume
1.000 ml
21 dias após alta,
retamponamento
cardíaco.
Pericardiectomia
total (volume
drenado: 1.500 ml)
Cura completa
Óbito após 30 dias
por endocardite e
tromboembolismo
pulmonar
DPAC = diálise peritonial ambulatorial crônica; VE = ventrículo esquerdo; ECO = ecocardiograma
co inclui: dor torácica que varia com o movimento,
postura e respiração, desaparecimento de atrito pericárdico previamente reconhecido, hipofonese de bulhas cardíacas, pulso paradoxal, hepatomegalia dolorosa e aumento da pressão venosa jugular e hipotensão
arterial.9 No eletrocardiograma, observa-se diminuição da amplitude dos complexos QRS, podendo ocorrer alterações periódicas na amplitude e/ou morfologia das ondas do traçado, que se fazem sentir a cada
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dois ciclos, achado considerado pouco sensível, mas
bastante específico.10 Na radiografia de tórax, observa-se área cardíaca globalmente aumentada, sendo que
as veias pulmonares encontram-se, tipicamente, não
distendidas.7
O diagnóstico é confirmado por ecocardiografia que
estima o volume do derrame e determina o grau de
restrição diastólica do ventrículo esquerdo.
A apresentação clínica do TC nos seis pacientes
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urêmicos apresentados desviou-se, em vários aspectos, da apresentação tida como clássica. Embora a maioria dos afetados tenha apresentado hipotensão, um
cursou com crise hipertensiva (200-120 mm Hg). Somente um se apresentou com hipofonese de bulhas
cardíacas, enquanto que nenhum com alterações eletrocardiográficas que pudessem sugerir tamponamento pericárdico. Apenas dois pacientes tiveram hepatomegalia dolorosa. Somente um teve dor torácica, mas
atípica. Não se observou relação entre volume do derrame e achados clínicos.
Metade dos urêmicos com TC teve como queixa
inicial dispnéia e tosse seca, achados não descritos na
apresentação clássica, mas já previamente descritos em
pacientes urêmicos com pericardite.11 Digno de registro é o fato de que estes últimos sintomas possam ser
apenas reflexo da irritação pericárdica, pois, recentemente, observaram-se, Hospital Evangélico de Londrina, dois pacientes com pericardite urêmica, sem tamponamento cardíaco e por isto não incluídos nesta série,
que apresentaram como queixas iniciais do processo
tosse seca persistente e dispnéia.
Na série de casos, 3 dos 6 pacientes com TC faziam
uso de minoxidil, podendo sugerir associação. Embora
a literatura registre efusão pericárdica durante terapia
com minoxidil,8 esta é uma droga usada com relativa
freqüência para o controle de pressão arterial do renal
crônico (obviamente não na metade dos casos) e este
estudo não pode ir além da sugestão.
Nos pacientes com insuficiência renal crônica que
não se encontram em regime de diálise, o aparecimento de pericardite constitui indicação para seu início,
sendo o tratamento efetivo para a pericardite. O tratamento de pericardite em pacientes em programa regular de diálise é bem menos estabelecido. Preconiza-se
a intensificação da diálise, embora a literatura não forneça dados que justifiquem tal conduta. Segundo Peraino, 10 de 12 pacientes com derrame pericárdico grande (definido como líquido envolvendo todos os planos
do coração) tiveram de ser submetidos a procedimento cirúrgico, apesar da intensificação da diálise.12
Também tem sido sugerida a administração de antiinflamatórios não-esteróides, como a indometacina,
ou o uso de corticosteróides. Com relação à indometacina, Spector et al fizeram um estudo prospectivo, duplo-cego e randomizado para determinar o impacto do
antiinflamatório na pericardite urêmica e concluíram
que o único benefício da indometacina foi o desaparecimento da febre. Outros sintomas de pericardite – dor
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torácica, atrito pericárdico, volume de derrame pericárdico – não regrediram mais precocemente, quando
comparado com placebo.13
Embora freqüentemente utilizados no tratamento
da pericardite urêmica, não conseguiu-se encontrar
ensaios clínicos avaliando o uso de corticosteróides
nessa situação.
Sugere-se que tratamento cirúrgico deve ser feito
precocemente quando os pacientes com pericardite
urêmica apresentam instabilidade hemodinâmica, restrição diastólica de moderada para severa do ventrículo esquerdo e aumento ou ausência de melhora do
derrame pericárdico após 7 a 10 dias de tratamento
clínico.2,12,14,15
Leehey et al concluíram, após revisão de sua experiência clínica, que pacientes urêmicos com efusões
pericárdicas acima de 250 ml necessitam de intervenção cirúrgica e que a indicação precoce do procedimento diminui a morbidade.16
O tratamento cirúrgico de escolha é a criação de
uma janela no pericárdio por meio de toracotomia anterior à esquerda.2 Com relação à pericardiocentese,
Frame observou que todos os nove pacientes submetidos à pericardiocentese para tratamento de tamponamento cardíaco em renais crônicos foram, posteriormente, submetidos à pericardiectomia com janela.2 A
pericardiocentese no tratamento do tamponamento
cardíaco do urêmico deve, portanto, ser reservada para
pacientes com emergência clínica (instabilidade hemodinâmica), momentaneamente incapazes de tolerar uma
cirurgia maior. Todos os pacientes foram submetidos à
pericardiectomia com janela. Houve recidiva em apenas um paciente, sendo, então, submetido à pericardiectomia total.
Conclusão
No tamponamento pericárdico secundário à pericardite urêmica, os sintomas e os sinais da apresentação clássica podem estar ausentes, obrigando
um grau elevado de suspeição clínica por parte do
médico assistente para a feitura do diagnóstico. Nos
casos apresentados, tosse seca, dispnéia e hipotensão arterial foram freqüentemente encontrados. O
tratamento de escolha para tamponamento cardíaco
urêmico é pericardiectomia com janela, deixando a
pericardiocentese para emergências médicas com
choque cardiogênico.
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Última versão recebida em 4/8/2000. Aceito em 10/8/2000.
Fonte de financiamento e conflito de interesse inexistentes.
08/01/01, 17:28
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