UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS DEPARTAMENTO DE DIREITO CURSO DE DIREITO Julia da Silveira Rocha MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL: POR UMA HERMENÊUTICA JURÍDICA DEMOCRATICAMENTE ADEQUADA. Florianópolis 2011 Julia da Silveira Rocha Mutação Constitucional: por uma hermenêutica jurídica democraticamente adequada. Trabalho de Conclusão apresentado ao Curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito à obtenção do título de bacharel. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa Florianópolis Dezembro de 2011 Autor: Julia da Silveira Rocha Título: Mutação Constitucional: por uma hermenêutica jurídica democraticamente adequada. Trabalho de Conclusão apresentado ao Curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito à obtenção do título de bacharel, aprovado com nota 10. Florianópolis (SC), 09 de dezembro de 2011. ___________________________________________ Prof. Dr. Alexandre de Morais da Rosa Orientador ___________________________________________ Profª. Juliana Wulfing Coordenadora do Curso Autor: Julia da Silveira Rocha Título: Mutação Constitucional: por uma hermenêutica jurídica democraticamente adequada. Trabalho de Conclusão apresentado ao Curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito à obtenção do título de bacharel, aprovado com nota 10. Florianópolis (SC), 09 de dezembro de 2011. ___________________________________________ Prof. Dr. Alexandre de Morais da Rosa (Orientador) Universidade Federal de Santa Catarina ___________________________________________ Prof. Rodrigo Steinmann Bayer Universidade Federal de Santa Catarina ___________________________________________ Leilane Serratine Grubba Universidade Federal de Santa Catarina AGRADECIMENTOS Aos membros da banca, em especial ao professor Alexandre Morais da Rosa, por ter dedicado uma parte de seu tão disputado tempo à orientação desse trabalho, pela atenção dispensada em diversos momentos da escolha e posterior delimitação do tema, pelos conselhos, pelas respostas aos não sei quantos e-mails com o mesmo assunto: TCC. Por sua visão prática e seu jeito tranquilo, que tornaram essa pesquisa muito mais leve. Por não ter permitido que eu enlouquecesse. Ao professor e amigo Rodrigo Steinmann Bayer, por seu papel decisivo num dos momentos mais difíceis dessa monografia: a escolha do tema. Pelas sugestões dadas com tanto carinho na hora certa. Aos companheiros de aventura, por terem tornado quase agradáveis os sábados de BU, as tardes de TJ, os feriados de estudo, o carregar de livros pra lá e pra cá, enfim, o “Tececer”. Por terem compartilhado suas dúvidas sobre formatação, seus conhecimentos sobre o Word, o número de capítulos, páginas ou palavras, seus temas, seus medos, seus humores. Por terem feito esse momento parecer normal. Aos amigos que fizeram do CCJ um lugar habitável. Aos que me acompanharam no “correr atrás” do tempo perdido no intercâmbio. Às duplas, trios e quartetos que compartilharam as melhores baias do EMAJ. Aos cadernos e às tequilas. Aos amigos que nunca pisaram no CCJ, às meninas de Joinville que realizaram juntas o sonho de sair de lá e às que vieram visitar, por terem deixado a vida em Floripa ainda melhor. Ao meu supervisor de estágio e às colegas do gabinete, pela compreensão. Àqueles que fizeram parte da minha loucura nesses últimos meses, pelo apoio, pela força. Por terem escutado atentamente os meus tantos temas. Por terem suportado e entendido meus surtos. Pelos “abracinhos”, pelo carinho, pela paciência. Ao meu irmão, por ser “o melhor amigo que eu vou ter na vida”. Aos meus pais, por tudo aquilo que a gente não pode colocar numa folha de papel. Por terem estado ao meu lado, sempre, transbordando um amor incondicional. Por não terem me deixado desistir. Seus lindos. - Aonde você vai? - Se der sorte, em frente. Trecho do filme Ratatouille RESUMO Este estudo tem o objetivo de ressaltar a importância da flexibilização da hermenêutica na aplicação efetiva da Constituição. Em princípio, faz-se uma análise das concepções de Constituição como norma suprema e fundamental de um Estado e das implicações da Teoria da Rigidez constitucional. Demonstra-se a necessidade de adaptação da Constituição, vista como organismo vivo, à evolução da realidade circundante, a partir da relação entre o Direito e a sociedade. Analisa-se o Poder de Reforma da Constituição, por meio de breve estudo sobre a revisão e a emenda constitucional. Passa-se, então, ao desenvolvimento da Teoria da Mutação Constitucional, responsável pela compreensão do fenômeno, seus fundamentos e seus processos na dinâmica do sistema jurídico. Enumera-se, exemplificativamente, alguns processos que permitem o desenvolvimento constitucional, por meio do dinamismo social, destacando-se aspectos da interpretação da Constituição. Ressalta-se a função do Supremo Tribunal Federal na guarda e defesa da Constituição e a importância da hermenêutica judicial na configuração da mutação impulsionada pela sociedade. Para trazer o estudo à nossa realidade, faz-se uma análise do caso da união homossexual, discutido recentemente no STF, após breve síntese histórica de alguns aspectos do conceito de família e do princípio da igualdade, no contexto da evolução do Direito Constitucional brasileiro. Finalmente, ressalta-se o papel do Supremo Tribunal Federal na efetivação da mutação provocada por uma percepção constitucionalmente adequada do Direito ao tempo de Democracia pelo qual passa nosso país. Palavras-chave: Constituição. Rigidez. Reforma. Mutação. Interpretação. Supremo Tribunal Federal. União homossexual. ADI 4277. ADPF 132. SUMÁRIO RESUMO.....................................................................................................................................................7 SUMÁRIO....................................................................................................................................................8 INTRODUÇÃO..............................................................................................................................................9 1.2 Constituição e sociedade....................................................................................................................18 9 INTRODUÇÃO Assim como o Direito e o Estado, a Constituição, compreendida como organismo vivo, configura uma estrutura dinâmica, em constante mutação, que deve sempre acompanhar o compasso da sociedade. A hermenêutica constitucional e as possibilidades formais de alteração do texto da Constituição – revisão e emenda – são, há muito tempo, temas amplamente estudados pela doutrina constitucional. O fenômeno da mutação, por sua vez, embora sempre presente na vida constitucional dos Estados, não foi tratado de forma exaustiva e ainda não recebe, na maioria das doutrinas, a atenção merecida. A mutação constitucional é a mudança informal do significado, do sentido ou do alcance de uma norma constitucional, sem alteração de seu texto, por meio da ação de um Poder Constituinte Difuso, legitimado e limitado pelo espírito da Constituição. Seu fundamento é encontrado na discrepância percebida entre a interpretação que se faz da norma, em determinado período, e a realidade circundante ou, na tradução das palavras de Jürgen Habermas, na tensão existente entre a validade das normas e a facticidade social. A percepção desse fenômeno levou a doutrina alemã a distinguir a verfassungsänderung (reforma constitucional) da verfassungswandlung (mutação constitucional) e o tema passou a ser objeto de estudo em diversos países. No Brasil, o assunto tomou maiores proporções a partir de 2007, quando da interposição da Reclamação Constitucional n. 4335-5/AC pela Defensoria Pública do Estado do Acre em face de decisão do Juiz da Vara de Execuções Penais da comarca de Rio Branco/AC, que indeferiu pedido de progressão de regime em favor de condenados pela prática de crimes hediondos. A Defensoria alegou o descumprimento da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no HC 82.959 (Relator Ministro Marco Aurélio), que considerou inconstitucional o art. 2º, parágrafo 1º, da Lei n. 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), afastando a vedação de progressão de regime aos condenados por prática de crime hediondo. O Juiz entendeu que a decisão, proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade, teria valor inter partes e não vinculante, defendendo a necessidade de expedição, por parte do Senado Federal, de resolução que viesse suspender a eficácia do dispositivo declarado inconstitucional, 10 conforme o disposto no art. 52, inciso X, da Constituição. O Relator, Ministro Gilmar Mendes, analisando a evolução do controle de constitucionalidade difuso no Brasil, extrai do referido dispositivo um novo sentido, alegando ter o Senado Federal a função de dar, simplesmente, publicidade à decisão do STF, que, por si só, já seria capaz de produzir efeitos erga omnes, como ocorre no controle concentrado. Julga procedente a reclamação, com base no que chamou de mutação constitucional do art. 52, inciso X, da Constituição. Em voto-vista, o Ministro Eros Grau acompanha o entendimento do relator. Ao defender, igualmente, a ocorrência de mutação constitucional, propõe uma mudança na leitura do texto do inciso citado. Os Ministros parecem entender que a mutação constitucional é uma alteração (na leitura) da letra da Constituição, ou seja, a produção de novo texto sem que haja mudança formal. Cabe alertar que o caso apresentado foi usado, apenas, para exposição introdutória do tema e que não analisaremos, nesse estudo, o mérito da questão. O que nos interessa, aqui, é a discussão que se fez, a partir dos votos citados, em torno do conceito, dos limites e das possibilidades do fenômeno da mutação constitucional, principalmente no Direito Constitucional brasileiro. Por meio da análise histórica de alguns institutos constitucionais e do estudo de diversas compreensões doutrinárias a respeito do assunto, percebemos a mutação como uma nova interpretação que se extrai da norma em virtude de mudança nas circunstâncias de fato da sociedade ou de uma nova percepção do Direito. Nesse sentido, ela deve caber no texto constitucional, sem alterá-lo, servindo apenas como flexibilização da norma. O objetivo não é reparar ou corrigir a Constituição, como queriam os Ministros no caso exposto, mas buscar a efetivação de seus dispositivos no mundo fático, permitindo seu desenvolvimento sem desrespeitar seu espírito e sua letra. O objetivo desse trabalho é demonstrar que, apesar de ser classificada como rígida, a Constituição brasileira não pretende ser imutável. A mutação constitucional entra como importante recurso de adaptação da Constituição, sempre que não houver necessidade de se recorrer aos meios formais de alteração de seu texto. Na busca da concretização das normas, o desenvolvimento constitucional – termo sugerido por Brun- 11 Otto Bryde – aproxima a Norma Suprema da realidade social de seu Estado. A mutação permite o que resolvemos chamar de fluidez constitucional, na procura constante do equilíbrio entre a identidade reflexiva da Constituição e a elasticidade de suas normas, entre rigidez e dinamismo. A mutação constitucional também serve de instrumento para a legitimidade democrática da Constituição numa sociedade aberta de intérpretes, aproveitando a expressão de Peter Habërle, formadora daquilo que Burdeau denominou Poder Constituinte Difuso. Assim como a sociedade, os Poderes estatais também são responsáveis pela adaptação da Constituição à realidade social cambiante. A função entregue ao Supremo Tribunal Federal de guarda e defesa da Constituição dá ao Poder Judiciário um papel de destaque na efetivação dessas mudanças. Ao final desse trabalho, analisaremos a recente discussão levada ao STF a respeito da possibilidade de proteção às famílias formadas pela união de pessoas do mesmo sexo. Após a exposição que se faz de alguns conceitos no âmbito da Teoria Constitucional, a partir de uma orientação sociológica do Direito, nosso estudo pretende demonstrar como a Teoria da Mutação surge na forma de um novo paradigma da hermenêutica judicial e da jurisdição constitucional, tomando importantes proporções, principalmente, quando de seu exercício pelos guardiões da Constituição. 12 1 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO 1.1 O lugar da Constituição na Democracia A Constituição é conceituada, por grande parte da doutrina, como a reunião de fatores que retratam o modo de ser de um Estado, a organização de seus elementos essenciais, considerada, por isso, sua norma fundamental1. Essa estrutura normativa, por envolver um conjunto de valores advindos dos elementos constitutivos de um Estado, vinculados à sua realidade social, pode ser concebida em diferentes sentidos. Encontramos, na história da Teoria Constitucional, três concepções distintas de Constituição: a jurídica, política e a sociológica. A Constituição jurídica, sentido adotado por Hans Kelsen, seria lei pura, a norma positiva suprema de um Estado2. Para Carl Schmitt, a Constituição é considerada uma decisão política fundamental sobre o modo de vida e a forma do Estado3. Ferdinand Lassalle entende a Constituição, a partir de um sentido sociológico, como a soma dos fatores reais dos poderes que regem um país4. Acontece que uma Constituição engloba, na verdade, todos esses sentidos em conexão. Atualmente, a maioria dos autores busca entender a Constituição como uma estrutura complexa, “mediante a qual se processa a integração dialética dos vários conteúdos da vida coletiva na unidade de uma ordenação fundamental e suprema”5. O legislador constituinte retira da forma de vida da sociedade os elementos essenciais que constituem o Estado e os reúne em um conjunto normativo fundamental. Nesse sentido, José Afonso da Silva extrai sua conclusão: A constituição é algo que tem, como forma, um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta humana motivada pelas relações sociais (econômicas, políticas, religiosas etc.); como fim, a realização dos valores que apontam para o existir da comunidade; e, finalmente, como causa 1 2 3 4 5 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado, São Paulo: Martins Fontes, 2006. SCHIMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 1992. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2002. FERREIRA, Luiz Pinto. Da Constituição. 2 ed. Rio de Janeiro: José Konfino,1956, p. 24. 13 criadora e recriadora, o poder que emana do povo. Não pode ser compreendida e interpretada, se não se tiver em mente essa estrutura, considerada como uma conexão de sentido, como é tudo aquilo que integra um conjunto de valores6. O objeto desse complexo é estabelecer a estrutura do Estado e sua forma de governo, sua organização e suas instituições, fixar o modo de aquisição e exercício do poder e os limites de atuação, assegurar os direitos fundamentais do homem e suas respectivas garantias, regulando princípios básicos de convivência social. Por isso, a Constituição é considerada norma suprema e fundamental, figurando, no topo do sistema jurídico, como critério de validade de todas as outras normas do ordenamento e fundamento de toda autoridade do Estado. A competência e atuação dos poderes governamentais são sempre limitadas pelas normas constitucionais. As outras normas que integram o ordenamento jurídico, para que sejam válidas, devem estar em conformidade com a norma suprema. A distinção que se faz entre normas ordinárias e normas constitucionais nasce de uma acepção formal de supremacia da Constituição7. A supremacia formal, por sua vez, nasce da regra da rigidez constitucional, sendo seu principal corolário. A regra da rigidez, presente na Constituição brasileira de 1988, decorre da maior dificuldade encontrada para alteração do texto constitucional do que para elaboração da legislação infraconstitucional. Termo que põe em evidência a supremacia da Constituição, a legislação infraconstitucional envolve tanto o produto da atividade do Poder Legislativo como os atos normativos do Poder Executivo. Pode-se verificar que essa distinção de categorias de normas sempre esteve relacionada, no decorrer da história constitucional, com uma forma de rigidez. De fato, vimos que em Aristóteles já se encontra a distinção entre a politéia (normas fundamentais de organização política) e os nómoi (normas ordinárias, fundadas nas primeiras); e que em Roma as normas fundamentais somente podiam ser modificadas por magistrados especiais; que em França as “leis fundamentais” do reino não podiam ser modificadas pelo soberano, mas apenas pelos Estados Gerais; que durante a revolução chefiada por Cromwell, na Inglaterra, em pleno século XVII, aparecia, pela primeira vez, a clara formulação científica da rigidez constitucional e de suas vantagens […]. E ainda pouco antes da Revolução Francesa, Vattel […] e Rousseau […] e antes deles Bodin, Huber, e outros, haviam insistido na distinção formal entre leis fundamentais e 6 7 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 39. BURDEAU, Georges. Droit Constitutionnel et institutions politiques. Paris: Librarie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1966, p. 67. 14 as demais leis e regras jurídicas.8 Em decorrência dessas distinções, encontramos na doutrina uma verdadeira Teoria da Rigidez Constitucional, responsável pelo estudo dos efeitos advindos da rigidez. Tem-se, como consequência, a diferenciação entre Constituições rígidas e flexíveis - expressões cunhadas por Bryce9 -, muitas vezes relacionadas às suas formas, escritas e não escritas. Trata-se de uma classificação feita em virtude da maior ou menor estabilidade que se pretende dar ao texto constitucional, guardando importante vínculo com o procedimento previsto para suas modificações. Nas Constituições rígidas, das quais podemos citar, além da brasileira, a da França e a dos Estados Unidos, os meios de reforma de seu texto são mais rigorosos do que aqueles estipulados para a elaboração das demais leis do Estado. As flexíveis, como a Carta inglesa, podem ser modificadas da mesma maneira adotada para edição de legislação infraconstitucional. Há, ainda, as chamadas semi-rígidas, a exemplo da Constituição Imperial brasileira, de 1824, que estabelecem processo especial somente para alteração de alguns artigos, enquanto parte do texto pode ser alterado de forma menos dificultosa. O professor Canotilho entende que a rigidez de uma Constituição não é caracterizada, propriamente, pelo processo de reforma dotado de exigências específicas. Explica que esse processo agravado é o instrumento utilizado pelo legislador para garantir a relativa estabilidade da Constituição10, sem possuir a utópica pretensão de que seu texto seja imutável. O fundamento da rigidez está, então, na escolha feita pelo legislador constituinte originário em atender o desenvolvimento constitucional através da possibilidade de atualização da Constituição, sem deixar prejudicada sua identidade. “É neste ponto que o conceito de Constituição rígida, ou melhor, de rigidez constitucional, apresenta-se como técnica capaz de atender a ambas as exigências: de estabilidade e de evolução constitucional”11. 8 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 109. 9 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. 10 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1059. 11 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 108. 15 Essa escolha acaba por aumentar a força legal da Constituição, colocando-a no vértice de um ordenamento jurídico. Dela decorrem algumas consequências importantes para a compreensão do Sistema Constitucional do Estado. Teixeira enumera as noções fundamentais advindas da regra de rigidez, que denomina de corolários da rigidez constitucional. Entre eles, estão a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos, a supremacia da Constituição e a hierarquia das normas, a noção de inconstitucionalidade de leis e de atos do Poder Público e os sistemas de guarda ou defesa da Constituição. A diferença das normas constitucionais para as outras normas do ordenamento é percebida, principalmente, na forma de sua elaboração, incluindo as fontes de poder das quais se originam. A norma constitucional é elaborada por um Poder Constituinte, chamado, pela maioria da doutrina, Poder Constituinte Originário, no momento de criação da Constituição, e Poder Constituinte Derivado, nos momentos seguintes. A primeira manifestação do poder político advindo da estrutura de uma sociedade é exercida, no Brasil, por uma Assembleia Constituinte, representante do povo, titular desse poder. O Poder Constituinte é, “como diz Hauriou, o 'Poder Legislativo fundador', exercendo uma atividade normativa em grau primeiro, fundamental, supremo, ao fixar os fundamentos do Estado e da ordem jurídica e social, numa Constituição escrita”12. Os poderes constituídos são aqueles criados pelo Poder Constituinte e encontram na Constituição, além de sua origem, sua legitimidade, sua forma, seus limites e suas finalidades. Assim, o Poder Executivo, o Poder Judiciário e o Poder Legislativo devem ser exercidos em conformidade com os dispositivos constitucionais. O Poder Judiciário é considerado o intérprete máximo e final da Constituição. O Poder Legislativo cria as leis ordinárias e complementares. Outra parte da legislação infraconstitucional advém da atividade do Poder Executivo, por meio da edição de atos administrativos. Por óbvio, volta-se à questão da supremacia constitucional. Orientadora do exercício de todos os poderes estatais, a Constituição é a lei das leis, o limite das 12 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 116. 16 competências administrativa, jurisdicional e legislativa. Daí advém a ideia de hierarquia das normas, que se organizam em graus de dependência e limitação dentro de uma unidade denominada ordenamento jurídico. A Constituição, razão de ser desta unidade, serve como fundamento de validade de todas as outras normas do Estado. Vale advertir que a supremacia constitucional não faz do Poder Constituinte um poder arbitrário. Os direitos fundamentais do homem atuam como limite supraestatal de qualquer ação, inclusive da positivação dos próprios preceitos fundamentais. A supremacia está, na verdade, guiada pela segurança de direitos essenciais à dignidade da pessoa humana, colocados como limites extrajurídicos ao próprio Poder Constituinte Originário. Trata-se de uma limitação natural a qualquer poder, inclusive ao exercício da soberania, tendo natureza ética, como as regras morais, os grandes princípios de convivência social que regem em determinado período histórico, bem como ideais de justiça e bem comum, concepções que podem variar com o tempo. Esses direitos, quando positivados na Constituição, tornam-se limites jurídicos a todos os outros poderes do Estado, ganhando, então, um valor formal. Desse entendimento decorre a noção de inconstitucionalidade das leis infraconstitucionais e dos atos do Poder Público. Sempre que se colocarem em choque com os preceitos constitucionais, as manifestações dos poderes constituídos serão inconstitucionais13. Dessa maneira, fica óbvia a limitação imposta ao legislador ordinário e à administração pública pelas normas fundamentais do Estado, positivadas em uma Constituição rígida. Isso porque a Constituição rígida é qualificada de uma supralegalidade que se coloca como uma proteção em favor do indivíduo contra o arbítrio dos poderes constituídos. Para que se verifique a (in)constitucionalidade das normas do ordenamento, é preciso que se construa um sistema de defesa da Constituição, chamado de controle de constitucionalidade. Dessa forma, as violações que pode sofrer a Norma Suprema são verificadas através de um sistema de garantia de sua supremacia e, consequentemente, das liberdades fundamentais nela positivadas. A legitimidade 13 do controle de constitucionalidade advém de uma TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. 17 interpretação democraticamente adequada da Constituição, que possibilite o respeito e a garantia das liberdades fundamentais do indivíduo. Para que se faça uma interpretação adequada da Constituição, é preciso localizá-la, é preciso saber inseri-la no lugar e no tempo nos quais vivem a sociedade por ela organizada e seus intérpretes. Atualmente, o paradigma que nos guia no estudo de uma Teoria da Constituição constitucionalmente adequada14 é o do Estado Democrático de Direito, que, fundado da soberania popular e na limitação do poder, visa assegurar o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo numa sociedade de livres e iguais. É nesse sentido que o estudo e a interpretação da Constituição, nos dias de hoje, devem buscar sempre compatibilizá-la com o atual período de Democracia pelo qual passamos para tornar efetivos seus principais objetivos. A Constituição de um Estado tem duas funções principais. Em primeiro lugar, compete a ela veicular consensos mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático [...]. Esses consensos elementares, embora possam variar em função das circunstâncias políticas, sociais e históricas de cada país, envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a organização dos Poderes constituídos e a fixação de determinados fins de natureza política ou valorativa. Em segundo lugar, cabe à Constituição garantir o espaço próprio do pluralismo jurídico, assegurando o funcionamento adequado dos mecanismos democráticos.15 Segundo Bonavides, a estrutura constitucional da Democracia é composta, basicamente, pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da soberania popular, da soberania nacional e da unidade da Constituição. O primeiro seria o espírito da Constituição, o valor dos valores numa sociedade democrática, fundamentando a positivação dos direitos humanos como direitos fundamentais do homem. A soberania popular, fonte de todo poder constituinte, seria “a carta de navegação da cidadania rumo às conquistas democráticas, tanto para esta como para as futuras gerações”16. O princípio da soberania nacional, na concepção de Bonavides, afirmaria a independência do Estado perante a esfera jurídica internacional. Por último, o princípio da unidade da Constituição destaca-se como importante elemento hermenêutico para compreensão da essência e da hierarquia constitucionais. 14 15 16 CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 89. BONAVIDES, Paulo. A Constituição e a Democracia participativa. In: SCALOPPE, Luiz Alberto Esteves (org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá : Fundação Escola, 2003, p. 38. 18 Os quatro princípios acima expendidos e declinados somente hão de prosperar numa sociedade aberta, onde os instrumentos e mecanismos de governo não sejam obrepticiamente monopolizados e controlados por uma casta política cujos membros à revelia do povo se alternam e se permeiam no exercício da autoridade civil e governativa; sempre a serviço de interesses que concentram egoísmos e que esteiam a força do capital.17 O constitucionalismo e a Democracia são fenômenos que devem se complementar mutuamente18. A Constituição, filtro de todo direito infraconstitucional, coloca-se como limitação dos poderes do Estado. A Democracia representa a soberania popular dentro de uma sociedade participativa e plurisubjetiva. Deveras, os dois fenômenos servem a garantir os direitos fundamentais do indivíduo e o respeito aos princípios essenciais da convivência social. Sempre que interpretada de forma adequada, a Constituição será o principal instrumento de defesa das garantias do Estado Democrático contemporâneo. Nessa perspectiva, a Constituição deve ser estudada não apenas a partir de seus fatores internos e das consequências que provoca na estrutura do ordenamento jurídico de um Estado, mas também a partir da influência que sofre da própria sociedade que organiza. Para encontrarmos o verdadeiro lugar da Constituição na Democracia é preciso analisá-la em constante diálogo com tantos outros fatores reais19 da sociedade democrática em que se insere essa Norma Suprema. 1.2 Constituição e sociedade O Direito é uma forma de organização da sociedade, o enquadramento jurídico dos fenômenos políticos20 e sociais ou, nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, “o direito é o princípio de adequação do homem à vida social”21. Nesse sentido, as normas positivadas no ordenamento jurídico de determinado Estado são um reflexo 17 18 19 20 21 BONAVIDES, Paulo. A Constituição e a Democracia participativa. In: SCALOPPE, Luiz Alberto Esteves (org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá : Fundação Escola, 2003, p. 39. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2002. HAURIOU, André; GICQUEL, Jean; GÉLARD, Patrice. Droit constitutionnel et institutions politiques. 6 ed. Paris: Montchrestien, 1975, p. 9. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 5. (grifo no original) 19 da vida dos cidadãos que nele vivem. “Com efeito, a vida social, em todos os lugares onde ela existe de uma maneira durável, tende, inevitavelmente, a tomar forma definida e a se organizar, e o direito nada mais é do que essa própria organização”22. Por isso, para serem efetivamente eficazes, as normas de um Estado devem corresponder a fatores reais da sociedade circundante, mantendo com essa um permanente vínculo dialético. Vale dizer, se o direito existe em decorrência da sociedade que pretende regular, deve evoluir e mudar, sempre que evolua e mude a sociedade. Como leciona a sociologia jurídica, “as regras jurídicas, para o sociólogo, não possuem caráter estável e perpétuo”23, o Direito escrito tem caráter essencialmente provisório e relativo. “Ora, é um dos postulados da sociologia jurídica que o direito, longe de apresentar algo de imutável, está sujeito a transformações”24. Afinal, a sociedade é um organismo vivo em constante mutação e o Direito, apenas um de seus elementos. Nesse sentido, Meirelles Teixeira afirma que “o direito é movimento e vida, síntese dialética entre as forças de transformação da sociedade e as tendências do conservantismo, devendo reajustar constantemente as necessidades do processo com as tradições da história”. Assim sendo, a Constituição, texto supremo da organização jurídica de um Estado, não pode pretender ser perpétua na forma como foi elaborada. Devemos entendê-la e interpretá-la como um organismo vivo, que evolui junto aos fatores reais da sociedade. Conforme Burdeau, “uma Constituição não se conserva como um monumento histórico. É explorando as possibilidades que ela oferece aos governantes de agir regularmente que se pode mantê-la entre as regras vivas”25. Como já visto, Lassalle adota uma visão sociológica da Constituição, diferenciando a Constituição real e efetiva da Constituição escrita. A Constituição efetiva é a soma dos fatores reais de poder de uma sociedade. Esses fatores são erigidos em 22 23 24 25 DURKHEIM, Émile. De la division du travil social. Paris: Presses Universitaires de France, 1960, p. 29 (tradução nossa). LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologie du Droit. Paris: Presses Universitaires de France, 1981, p. 31 (tradução nossa). CARBONNIER, Jean. Flexible Droit - Textes pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1979, p. 7 (tradução nossa). BURDEAU, Georges. Traité de science politique. 2 ed. Paris: Librarie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1969, p. 211 (tradução nossa). 20 Direito e em instituições políticas, escritos numa folha de papel, formando a Constituição escrita, que, para ser boa e duradoura, deve exprimir a realidade fática. Sua constante renovação impede que ela venha a se tornar uma mera folha de papel, sem concretização no meio social a que suas normas se destinam, porque, para Lassalle, de nada serve aquilo que se escreve no papel, se não se ajusta à realidade ou àquilo que chama de fatores reais e efetivos de poder26. Hesse, em diálogo com a Teoria de Lassalle, opõe aos fatores reais do poder a força normativa da constituição, tendo como pressuposto central a vontade de constituição, caracterizada, principalmente, “pela atuação interpretativa dos tribunais e pela estabilidade constitucional (garantida tanto por sua rigidez, que dificulte o processo de reformas, como pela práxis jurisprudencial, que amolde Constituição formal e realidade social)”27. O autor vê a Constituição num sentido mais amplo, acreditando que o plano jurídico e o plano sociológico não precisam estar, necessariamente, em contraposição. Para Hesse, “a força vital e a eficácia da Constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva”28. Heller também critica a unilateralidade da Teoria de Lassalle, configurando o fenômeno constitucional na integração entre norma e realidade. Inclui em sua Teoria a Constituição normada (conjunto de normas jurídicas e extrajurídicas) e a não normada (os fatos sociais, a realidade). Nesse sentido mais completo, a Constituição deve ser entendida a partir do fluxo dialético entre seu vetor normado e não normado, que se influenciam constante e mutuamente29. Nota-se que as Teorias do Direito Constitucional buscam sempre separar a realidade da norma. Ainda que pretendam analisá-las em conjunto, o estudo se faz através de uma ponte30 necessária a superação do hiato colocado entre o Direito 26 27 28 29 30 LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2002. BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição: Participação popular e eficácia constitucional. Curitiba: Juruá, 1999, p. 59. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 18. HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 295 a 327. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. 21 legítimo e os fatores políticos, sociais, econômicos e morais de um Estado. Essa dualidade entre o ideal e o real, chamada por Cattoni de teoria dos dois mundos, é o que deve ser superado para que se consiga a máxima realização dos objetivos de uma Constituição. Separar a Constituição formal da Constituição real é distanciar Direito e realidade, ignorar aquilo que Jürgen Habermas chama de tensão31 entre facticidade e validade. (...) a perspectiva da teoria do Direito e da Constituição que privilegia o aspecto normativo deverá passar por um giro reconstrutivo, se quiser levar a sério a tensão presente no Direito entre facticidade e validade, assim como o papel desempenhado pelo Direito nos processos de integração social. E ao se falar em tensão e não em hiato, oposição, contradição ou até mesmo dialética, entre norma ou ideal e fato ou realidade, estar-se-á abandonando a chamada teoria dos dois mundos (...).32 A partir desse entendimento, pode-se estudar e interpretar a Constituição da maneira que mais a aproxima de uma sociedade democrática. Daí advém o verdadeiro respeito à sua supremacia e a possibilidade de realização de seus fins, de modo a conferir-lhe a maior eficácia possível. A palavra eficácia assume diversos sentidos na doutrina constitucional. Conforme Maués, ela pode ser tratada sob o ponto de vista formal ou material, sendo essa diferenciação de grande importância para esse estudo33. Os autores que estudam a eficácia das normas, apesar de costumarem explicá-la sob seus dois aspectos, não chegaram a um consenso quanto à denominação usada para que se faça a diferenciação. Persiste, portanto, o uso da mesma palavra para a compreensão de dois conceitos distintos. A eficácia entendida em seu sentido técnico ou formal é a possibilidade que a norma tem de produzir efeitos na ordem jurídica, o que entendemos como uma eficácia em potencial, que envolve também a validade da norma. “Eficaz é o ato idôneo para atingir a finalidade para a qual foi gerado”34. José Afonso da Silva entende que todas as 31 32 33 34 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 1, p. 23. CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 37. MAUÉS, Antonio G. Moreira. Reflexões Sobre a Eficácia dos Direitos Fundamentais. In: SCALOPPE, Luiz Alberto Esteves (org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá : Fundação Escola, 2003. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro : Renovar, 2002, p. 83. 22 normas constitucionais possuem essa eficácia jurídica, ou seja, todas as disposições da Constituição teriam capacidade de produzir efeitos. A nosso ver, esse seria um entendimento mais aproximado do conceito de validade. Uma norma válida é aquela que cumpriu todos seus requisitos, emitida por agente competente, formalmente e materialmente adequada ao ordenamento em que passar a viger. Para ser eficaz, uma norma deve ser válida, mas a recíproca não é verdadeira. Muitas das normas da nossa Carta de 1988 não são realizáveis, não possuem capacidade de se concretizar no mundo sensível. A eficácia material, chamada de efetividade por parte da doutrina, é a real aplicação dos efeitos dessa norma, sua concretização no mundo dos fatos. Kelsen distinguindo vigência e efetividade da norma, disse ser essa última “o fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos”35. Denominada também de eficácia social – expressão utilizada por Barroso em contraposição à eficácia jurídica – ela é a realização do Direito, “a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”36. Essa aproximação, que depende de uma prévia eficácia jurídica, se faz através do efetivo cumprimento da norma, do reconhecimento por parte de seus destinatários, que lhe dão força operativa. “Esse segundo conceito nos permite relacionar direito positivo e sociedade, já que uma norma eficaz no sentido social, uma norma efetiva, não é apenas aquela que tem possibilidade de gerar efeitos, mas aquela que realmente os gera”37. É evidente que o objetivo de um ordenamento jurídico não é ter normas meramente válidas ou potencialmente eficazes. Destarte, é de se esperar que a Constituição, contendo o condão de influenciar todas as outras normas do ordenamento, possua um texto aplicável. E para que sejam efetivas, as normas constitucionais não podem subestimar os aspectos culturais, econômicos, sociais e políticos do período pelo qual passa o Estado. Uma norma que tenta ignorar esses 35 36 37 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 29. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro : Renovar, 2002, p. 85. MAUÉS, Antonio G. Moreira. Reflexões Sobre a Eficácia dos Direitos Fundamentais. In: SCALOPPE, Luiz Alberto (org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá : Fundação Escola, 2003, p. 51. 23 fatores, ainda que seja válida, tende a ser transgredida constantemente ou cai em desuso, perdendo sua eficácia. Ora, se as Constituições, para serem eficazes, isto é, realmente observadas, cumpridas, devem corresponder, ao menos em sua essência, a esses fatores reais de poder, e se esses fatores variam, evoluem, modificam-se com a evolução social, através das transformações e do progresso da técnica, das ciências, da economia e dos próprios valores morais e espirituais de cada sociedade, é evidente que as Constituições, como instrumentos de progresso e de justiça social, devem também acompanhar essa evolução, modificar-se ao ritmo das transformações sociais e até mesmo abrir caminho às reformas julgadas necessárias. Preparando-se e propiciando assim, mediante a transformação das instituições e do ordenamento jurídico, a evolução política e social.38 É a constante renovação da Constituição que assegura também sua soberania, vez que só assim suas normas serão concretizadas e poderão exercer sua influência sobre a legislação infraconstitucional. Destarte, o poder de adaptação de que são dotadas as normas constitucionais deve ser exercido sem ignorar o espírito da Constituição, sem ferir a essência de seus fundamentos. Trata-se de uma questão de respeito ao poder que primeiro constituiu a norma para salvaguardar a superioridade da Constituição em relação a todo o resto do ordenamento. O que esse respeito devido pelos poderes de adaptação à Norma Suprema deve exprimir precisa ser compreendido como uma garantia de sua identidade reflexiva. Essa identidade, que teve base em fatores reais da sociedade ao tempo de criação da norma, é o que faz com que a norma suprema possa influenciar a validade e aplicação da legislação infraconstitucional. Sendo assim, garantir a constante reflexividade do texto constitucional, através das mudanças que se fizerem necessárias ao longo do tempo, é reforçar sua identidade, o que “significa dotar a constituição de capacidade de prestação em face da sociedade e dos cidadãos”39. Como explica o professor Gomes Canotilho: “A identidade da Constituição não significa a continuidade ou permanência do ‘sempre igual’, pois num mundo sempre dinâmico a abertura à evolução é um elemento estabilizador da própria identidade”40. 38 39 40 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 107. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1073. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1073. 24 A importância da mutabilidade da Constituição está no enquadramento do problema concreto na dimensão valorativa da experiência dos fatos, sempre analisados em um dado período histórico41. O respeito à supremacia de uma norma é muito mais efetivo quando esta é concretizável, e isso só acontece quando a Constituição pode acompanhar o dinamismo mutacional da sociedade a que se dirige. “Embora passe muitas vezes desapercebido, o perigo do divórcio entre o Direito Constitucional e a realidade ameaça um elenco de princípios basilares da Lei Fundamental, particularmente o postulado da liberdade”42. A superioridade da Constituição em relação ao resto do ordenamento jurídico não significa, portanto, cláusula de inalterabilidade. Assim, a adequação sociológica da Constituição, ao tornar mais efetivas suas normas, age em favor da própria supremacia constitucional. Deveras, uma Constituição em desuso não pode ser instrumento de controle de aplicação de outras normas, do mesmo modo como não pode fazer valer seus próprios objetivos. Essa Constituição não passaria de uma mera “folha de papel”, como afirma Lassalle. Comparato expressou bem esse sentimento ao diferenciar o corpo e o espírito da Constituição em artigo publicado na Folha de São Paulo. O autor explica que existiam duas penas capitais cominadas pelas Ordenações Filipinas: uma era a morte natural, outra era a execução da alma do excomungado, a morte espiritual. E faz o paralelo: Algo semelhante aconteceu com nossa Carta. Ela continua a existir materialmente, seus exemplares podem ser adquiridos nas livrarias (na seção das obras de ficção, naturalmente), suas disposições são invocadas pelos profissionais do Direito no característico estilo “boca de foro”. Mas é um corpo sem alma. Hitler, afinal, não precisou revogar a Constituição de Weimar para instaurar na civilizada Alemanha a barbárie nazista: simplesmente relegou às traças aquele “pedaço de papel”.43 Diante dos abusos dos poderes estatais, esse é o sentimento que predomina na sociedade atual. Aqueles que começam a estudar a nossa Constituição esbarram em normas esquecidas pelos responsáveis por sua efetivação, disposições consideradas, atualmente, até mesmo utópicas. A discrepância entre o que se vê escrito 41 42 43 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 29. COMPARATO, Fábio Konder. Uma morte espiritual. Folha de São Paulo, caderno 1, 14 de maio de 1998, p. 3. 25 e o que se tem, hoje em dia, no mundo real, leva à sensação de impotência que faz crer imprestável uma norma que deveria ser fundamental. No entanto, uma postura derrotista não pode levar à solução do problema. Essa postura desesperada deveria, num giro paradigmático, levantar-se do leito mortuário e ir à luta, tendo como armas uma nova concepção do Direito Constitucional, perpassando pelas tensões entre facticidade social e autocompreensão normativa do constitucionalismo democrático (...). A Constituição da República de 1988, mais do que derrogada, reformada ou distorcida, deve ser interpretada, aplicada e vivenciada de modo adequado, deve ser levada a sério e defendida, se quisermos contribuir, como juristas, e construir, como cidadãos, uma sociedade livre, justa e solidária no Brasil.44 Nós dispomos de diversos meios para adaptar a norma constitucional às necessidades reais da sociedade. É preciso, então, assumir uma postura renovadora, utilizar-se desses instrumentos para defender e tornar efetiva a Norma Suprema. Através da adoção de medidas construtivas e eficazes que compactuem com o desenvolvimento de uma interpretação jurídica constitucionalmente adequada ao Estado de Democrático de Direito, é possível fazer valer seus principais objetivos, quais sejam a garantia dos direitos fundamentais do indivíduo e a efetivação de uma ordem constitucional participativa. 1.3 Poder de reforma da Constituição É certo que uma Constituição não pode pretender ser imutável, em virtude de seu objetivo maior e da constante tensão entre o Direito e a sociedade. Foi nesse sentido que Brun-Otto Bryde sugeriu o termo desenvolvimento constitucional45 para identificar o fenômeno de adaptação de uma Constituição à realidade cambiante ao longo do tempo. O termo engloba todo o conjunto de formas de evolução da Constituição, seja através de modificações de sua letra seja através de novas compreensões. Fora o influxo sofrido por fatores sociológicos, culturais, políticos, morais e econômicos, também acabam surgindo problemas que nascem da própria aplicação da 44 45 CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 132-133. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000. 26 Lei Maior46, ou ainda, de sua elaboração. O legislador constituinte, por opção consciente ou não, nos lança inúmeros vocábulos de significações variáveis ou disposições em aberto, haja vista ser a Constituição a estrutura do ornamento jurídico, contendo, portanto, normas extremamente genéricas. Assim averbou o professor Barroso, a partir das lições de Maximiliano e Duverger: “a amplitude de seu conteúdo, que menos se presta a ser enfaixado em um texto, e a complexidade de erigir-se sobre elementos políticos, essencialmente instáveis, conduzem o Direito Constitucional a certos impasses, ainda insuficientemente equacionados”47. Outrossim, esse legislador não está livre de cometer erros, máxime quando nossa vigente Constituição nasceu fruto de um jejum de 25 anos de Democracia e participação social, deixando constar do texto constitucional obscuridades, vícios de redação, defeitos e incongruências. Para entender o perigo real dos vícios advindos do Poder Constituinte, vale tentar entender um pouco sobre a formação da Carta de 1988: A Assembléia Nacional Constituinte, que iria elaborar a nova Constituição da República, marcou o ingresso do Brasil no rol dos Países democráticos, após vinte e cinco anos de regime militar e quase doze de abertura “lenta, segura e gradual”. Não prevaleceu a idéia, que teve amplo apoio na sociedade civil, de eleição de uma constituinte exclusiva, que se dissolveria quando da conclusão dos trabalhos. Ao revés, optou-se pela fórmula insatisfatória de delegação dos poderes constituintes ao Congresso Nacional, a funcionar, temporariamente, como constituinte (...).48 Temos, ainda, que uma Constituição corresponde a fatores de organização e funcionamento das instituições de um Estado, sendo considerada uma ordem-quadro49, The Frame of the Government (A Moldura do Governo), como denominou Willian Penn a Constituição da colônia da Pensilvânia, em 1682. Sendo, portanto, uma ordem fundamental, estrutural e principiológica, não deve ser transformada em um código exaustivo, na tentativa de prever e regulamentar todas as situações que podem surgir entre os indivíduos de uma sociedade. Aliás, essa tarefa foge aos poderes do legislador constituinte originário, que vive num determinado período histórico. No entanto, ao pretender representar as diversas concepções encontradas em uma sociedade 46 47 48 49 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 2 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1988. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro : Renovar, 2002, p. 80. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro : Renovar, 2002, p. 41 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000. 27 plurisubjetiva, uma ordem sucinta e objetiva acaba por deixar lacunas, que devem ser preenchidas, ao longo do tempo, de acordo com a necessidade e evolução da estrutura social que normatiza. Há que reconhecer, porém, que a constituição é sempre um processo público que se desenvolve hoje numa sociedade aberta ao pluralismo social (...). Sendo assim, a ordem-quadro fixada pela constituição é necessariamente uma ordem parcial e fragmentária carecida uma actualização concretizante quer através do “legislador” (interno, europeu e internacional) quer através de esquemas de regulação “informais”, “neocorporativos”, “concertativos”, ou “processualizados” desenvolvidos a nível de vários subsistemas sociais (económico, escolar, profissional, desportivo).50 Considerada por muitos autores um estatuto jurídico do político51, a Constituição apresenta uma gama de visões que podem se chocar em alguns momentos. Esse problema se mostra ainda mais evidente na Carta brasileira de 1988, devido ao processo utilizado em sua formação. Ainda que pretenda ser um plano geral normativo, a nossa Constituição, classificada como analítica52 ou dirigente53, em oposição às Constituições sintéticas, apresenta um texto extenso e minucioso, denunciando a falta de objetividade em sua configuração. A metodologia de trabalho escolhida não incluiu uma etapa onde pudessem ser dirimidos os problemas advindos da heterogeneidade de concepções políticas, na qual se chegasse a um consenso para elaboração de um texto final mais sucinto. Dessa forma, a norma constitucional, embora fragmentária e incompleta, é extremamente ampla e prolixa, com disposições ou vocábulos que se contradizem ou que acabam por perder a razão de ser ao longo do tempo. Dividida, inicialmente, em 24 subcomissões e, posteriormente, em 8 comissões, cada uma delas elaborou um anteprojeto parcial, encaminhado à Comissão de Sistematização. Em 25 de junho do mesmo ano, o relator desta Comissão, Deputado Bernardo Cabral, apresentou um trabalho em que reuniu todos estes anteprojetos em uma peça de 551 artigos! A falta de coordenação entre as diversas comissões, e a abrangência desmesurada com que cada uma cuidou de seu tema, foram responsáveis por uma das maiores vicissitudes da Constituição de 1988: as superposições e o detalhismo minucioso, prolixo, casuístico, inteiramente impróprio para um documento dessa natureza.54 50 51 52 53 54 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1436. SCHIMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 1992. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Atlas S.A., 2009, p. 11. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 6. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e 28 Ainda que as diversas visões políticas presentes em uma Constituição possam ser compatíveis ou que se extraia do todo, através de uma interpretação sistemática, o que se deve adotar para determinado caso concreto, há que se considerar o tempo da análise. Os interesses constantes na norma constitucional não devem ser analisados só em relações internas de compatibilidade, mas também em sua relação ao meio e ao período em que se inserem. O ponto de vista de quem cria uma norma está contaminado por fatores e anseios sociais, econômicos, religiosos, morais e políticos de seu tempo. Assim, mesmo que se obtenha um consenso sobre determinado dispositivo que regula uma situação de fato, essa concepção pode vir a mudar ao longo tempo, uma vez que os indivíduos protagonistas da situação fazem parte de uma sociedade que está em constante mutação. Constituições, quando concebidas e adotadas, tendem a refletir as crenças e os interesses dominantes, ou algum compromisso entre crenças e interesses conflitantes, característicos da sociedade naquele momento. Ademais, eles não refletem, necessariamente, apenas convicções e interesses políticos ou jurídicos. Eles podem incorporar conclusões ou compromissos sobre questões econômicas e sociais que a estrutura da Constituição quis garantir ou proclamar. Uma Constituição é, na verdade, o resultado de um paralelograma de forças - políticas, econômicas e sociais - que operam ao tempo de sua adoção.55 A partir dessa compreensão, resta claro que nenhuma Constituição pode se exaurir no momento de sua criação, mostrando-se essencial a possibilidade de renovação, seja para correção ou complementação de seu texto, seja para adaptá-lo a fatos surgidos após a sua elaboração, afinal, também não se pode prever, da elaboração de uma norma, todas as possibilidades de casos concretos da vida a serem regulamentados. Diante dessa necessidade, já do preparo da Norma Suprema, o legislador prevê possíveis modificações para o futuro, abrindo a possibilidade de adaptação a fatos que ocorram após a sua criação. São os meios formais de transformação de sua letra, que podem ocorrer de forma ampla (revisão) ou específica e pontual (emenda). Do gênero56 reforma, a Constituição brasileira prevê duas espécies: a revisão e a emenda. Essa última designa o processo de alteração pontual, caracterizado por 55 56 Possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro : Renovar, 2002, p. 42. WHEARE, Karl C. Modern Constitutions. Londres: Oxford University Press, 1956, p. 98 (grifo nosso). BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.36. 29 supressões, acréscimos ou simples alterações de uma parte específica do texto constitucional. A revisão é uma modalidade de reforma extensa, provocando alterações mais profundas na Constituição. Para sua identificação leva-se em conta o fator quantitativo - o número de artigos modificados - e o qualitativo - a relevância afeta à reforma57. Como vimos no começo desse estudo, a Constituição brasileira de 1988 é classificada como rígida, ou seja, estabelece uma possibilidade de alteração de seu texto, exigindo, para tanto, determinados requisitos que compõem um processo formal e dificultoso. “Permitem-se emendas, reformas ou revisões constitucionais, necessárias à adaptação das Constituições às novas necessidades políticas e sociais, mas as próprias Constituições, ao estabelecerem o processo de sua emenda ou reforma, fazem-no cautelosamente, de modo a tornar tais reformas mais difíceis, mais demoradas, e por isso mesmo mais ponderadas, mais amadurecidas que a elaboração de uma simples lei ordinária”58. A revisão constitucional está prevista no artigo terceiro do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988, que assim dispõe: “A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”. Apesar de ser uma reforma mais ampla, seus requisitos são menos específicos do que aqueles exigidos para a emenda. “O singular no constitucionalismo pátrio de 1988 é que a revisão aparece solitária e transitoriamente à margem da parte fixa da Constituição e com rigidez inferior à da emenda”59. A emenda, conforme elencado no artigo 60 da Constituição de 1988, só pode ser proposta pelo Presidente da República, por um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal ou por mais da metade das Assembléias Legislativas, tendo cada uma delas se manifestado pela maioria relativa de seus membros. A proposta, depois de discutida e votada em dois turnos, só será aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional. 57 58 59 SEGADO, Francisco Fernández. El sistema constitucional español. Madrid: Dykinson, 1992, p. 86. TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 108. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 211. 30 Além desses requisitos formais, o artigo 60 também impõe limitações circunstanciais60 à possibilidade de emenda do texto constitucional quando dispõe, em seu parágrafo primeiro, que a Constituição não pode ser emendada na vigência de estado de defesa, estado de sítio ou intervenção federal. No que tange ao objeto da reforma, alguns conteúdos do texto constitucional são considerados cláusulas pétreas, matéria imutável, ao ver do legislador constituinte originário. As vedações materiais ao exercício do poder de reforma da Constituição de 1988 estão elencadas no parágrafo 4º do artigo 60. Uma emenda constitucional não pode abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Tem-se feito, todavia, diversos questionamentos a respeito das limitações impostas ao poder de reforma da Constituição. “O poder de reforma constitucional exercitado por um poder constituinte derivado, sobre ser um poder sujeito a limitações expressas do gênero daquelas acima expostas, é também um poder circunscrito a limitações tácitas, decorrentes dos princípios e do espírito da Constituição” 61. Tanto as limitações expressas, escolhidas pelo criador da Constituição, como as tácitas, advindas de sua identidade, são postas numa discussão que tem como principal vetor a relação entre aquele que cria esses limites e os que estão sujeitos a eles. Encontramos, na doutrina constitucional, diversas maneiras de tratar a diferença existente entre Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado. O primeiro é aquele exercido por uma Assembléia Nacional Constituinte, que formula as regras constitucionais, dentre elas, as que prescrevem os meios formais de alteração de seu texto. O segundo seria o legitimado para reformar ou emendar o texto da Constituição, por força de delegação. Parte da doutrina, tendo Sieyés como um de seus precursores, entende que este seria um poder constituído, assim como os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, haja vista retirar sua legitimidade da própria Constituição, não podendo, portanto, ser denominado constituinte62. “Alguns autores, como Carl Schmitt e Luis Recasens Siches, sustentam ponto de vista de que somente o 60 61 62 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 65. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 202. SYEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa – Que é o Terceiro Estado?. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1988, p. 13. 31 originário é poder constituinte, pois somente ele tem caráter inicial e ilimitado, ao passo que o poder reformador retira sua força própria da Constituição, estando limitado pelo direito”63. Resta claro que esses autores entendem ser o legislador constituinte originário dotado de um poder ilimitado. Acontece que, como vimos anteriormente, ao criar a Norma Suprema, esse poder esbarra em limites extrajurídicos, em princípios morais da sociedade que se constituem antes da criação dessa norma. Esses princípios não devem reger desordenadamente um Estado, mas também não podem estar completamente desassociados do ordenamento jurídico. Muitos deles acabam por ser positivados, passando a ser usados no controle de constitucionalidade da legislação infraconstitucional, outros continuam a servir como limites não jurídicos dos poderes de alteração da Constituição. Nesse sentido, alguns autores já não distinguem mais esses poderes, considerando haver um único Poder Constituinte dividido em duas etapas, conforme terminologia utilizada por Viamonte: a de primogeneidade, momento de criação do texto constitucional, e a de continuidade, etapa posterior de alterações formais64. “Trata-se, portanto, e na realidade, do mesmo Poder Constituinte originário, agindo aí numa segunda etapa ou, na expressão de Sanchez Viamonte, ‘em etapa de continuidade’ ”65. Canotilho afirma existir uma superioridade do poder constituinte (em fase de criação da Constituição) em relação à função de revisão, fundamentando sua idéia nas exigências que podem ser feitas pelo primeiro como requisitos do exercício do poder reformador. No entanto, adverte que “a ideia de superioridade do poder constituinte não pode terminar na idéia de constituição ideal, alheia ao seu ‘plebiscito cotidiano’, à alteração dos mecanismos constitucionais derivados das mutações políticas e sociais”66. Explica sua posição afirmando que aquilo que o constituinte inicial pode exigir dos poderes de atualização da Constituição é uma solidariedade em relação a seus princípios fundamentais. Deveras, se o fundamento da reforma é a adaptação do texto 63 64 65 66 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.30. VIAMONTE, Carlos S. El Poder Constituyente. Buenos Aires: Bibliográfica Argentina, 1957, p. 213. TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 141. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1060. 32 positivado à realidade social para que se possa concretizar a norma, tornando eficaz a Constituição, ela não pode pretender desrespeitar o seu espírito. Portanto, é uma questão lógica que os poderes reformadores queiram dar continuidade ao trabalho do texto inicial, afinal, “o poder de revisão da constituição baseia-se na própria constituição; se ele a negasse como tal, para substituí-la por outra, transformar-se-ia em inimigo da constituição e não poderia invocá-la como base de validade”67. Todavia, se existe apenas um Poder Constituinte, não se pode querer dotar de uma hierarquia interna suas etapas de primogeneidade e de continuidade. Assim como não se pode colocar o produto da emenda ou da revisão constitucional abaixo da Constituição na pirâmide hierárquica do ordenamento jurídico, não se pode hierarquizar os poderes que os criam. Esse produto é anexado ao texto constitucional, integrando e fazendo parte da Norma Suprema, sem que haja qualquer dependência ou superioridade formal entre eles. “É verdade que as emendas ou reformas constitucionais devem processar-se com as formalidades prescritas pela própria Constituição, mas isso não basta para colocá-las abaixo dos demais dispositivos constitucionais, na hierarquia das normas”.68 Da mesma forma, o chamado Poder Constituinte Derivado não pode ser propriamente colocado abaixo do Poder Constituinte Originário. Tanto a criação da Constituição como a sua atualização são processos de gênese das normas constitucionais, igualmente necessários e importantes. Possuindo os mesmos limites extrajurídicos, um poder não pode ser considerado superior ao outro. Evidentemente, os poderes de reforma dependem da pré-existência de um Poder Constituinte primogênito, assim denominado por motivos tão somente cronológicos. Em sua etapa de continuidade, bem como na etapa inicial, o Poder Constituinte cria a norma constitucional, ou seu novo sentido, para exprimir a organização de uma sociedade em determinado período histórico. A partir desse entendimento, começa-se a questionar a eficácia das 67 68 ZAGREBELSKY, Gustavo. Il sistema costituzionale delle fonti del diritto. Torino: EGES, 1984, p. 101 (tradução nossa). TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 123. 33 limitações impostas pelo legislador constituinte ao exercício do poder reforma69. Segundo Laferrière, esses impedimentos, por serem manifestações políticas, não possuem força jurídica obrigatória, já que o “poder constituinte exercitado num determinado momento não é superior ao poder constituinte que se exercerá no futuro e não pode pretender restringi-lo, ainda que seja num determinado ponto”70. Vale lembrar que, em qualquer etapa, o Poder Constituinte é limitado por questões extrajurídicas, por princípios de natureza moral que se encontram acima da Constituição, positivados ou não. Surgem, por isso, outras formas de adaptação do texto constitucional às novas necessidades de uma sociedade mutante, através de processos informais que buscam manter, de forma mais efetiva, a estrutura dinâmica da Constituição. 2 TEORIA DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL 2.1 O Fenômeno da Mutação Constitucional As Constituições classificadas como rígidas não pretendem, como já vimos, ser eternas na forma como nasceram. Possuem uma perspectiva de mudança, mas demandam, para tanto, processo complexo que impõe certas dificuldades ao poder reformador, como limites expressos e tácitos e requisitos específicos. Dos requisitos exigidos para emenda, elencados no art. 60 da Carta de 1988, verifica-se o freio colado pelo legislador constituinte ao poder de reforma. “E, quanto mais difíceis se apresentam as técnicas de reforma, mais fortemente aparecerão os meios difusos de modificação constitucional, para a adaptação do Texto Maior às exigências prementes da sociedade”71. Seria errôneo, entretanto, e mesmo ingênuo, pensar-se que as Constituições rígidas somente pudessem sofrer alterações através de técnicas jurídicas 69 70 71 DUEZ, Paul; BARTHÉLEMY, Joseph. Traité Élémentaire de Droit Constitutionnel. Paris: Dalloz, 1926. LAFERRIÈRE, Julien. Manuel de Droit Constitutionnel. Paris: Domat-Montchrestien, 1947, p. 289. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, prefácio, p. XVIII. 34 expressa e previamente estabelecidas, e que o impacto da evolução política e social somente pudesse atuar sobre elas através desses canais, e que a vida deveria necessariamente acomodar-se, em seu eterno fluxo de progresso, dobrando-se com docilidade ao sabor dessas fórmulas e apenas ao juízo de políticos e legisladores.72 Nesse sentido, além das possibilidades previstas pelo Poder Constituinte no momento de criação da Constituição, outras práticas acabam por propiciar o redimensionamento da realidade normativa constitucional, através dos chamados processos informais ou indiretos de modificação73. “Com base nesse fundamento, as Constituições, embora rígidas, transformam-se espontânea e continuamente, ainda que de modo lento e imperceptível”74. Esse meio difuso de se buscar o equilíbrio, sempre dinâmico, da norma escrita no tempo e no meio em que se insere assume diversos nomes na doutrina, a exemplo de revisão informal ou transição constitucional75, processo não formal76, vicissitude constitucional tácita77, mudanças constitucionais difusas78, processos de fato79, mudança material80. Observa-se, destarte, que as denominações não fogem de um conceito de natureza informal. Hoje em dia, temos esses processos reunidos, para estudo doutrinário, sob a denominação de mutação constitucional. Falamos, aqui, de uma mudança informal do sentido, do significado e do alcance de uma norma constitucional, sem alteração de sua letra, que pode acontecer por diversos meios, mas sempre em virtude da discrepância entre realidade fática e norma escrita, partindo de uma concepção de Constituição viva. “Una teoría jurídica de la mutacióm constitucional y de sus límites sólo hubiera sido posible mediante el sacrificio de uno de los presupuestos metódicos básicos del positivismo: la estricta separación entre ‘Derecho’ y ‘realidad’ ”81. 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Apostilas de Direito Constitucional. São Paulo: FADUSP, 1961, p. 72. FRIEDRICH, Carl J. Teoría y realidad de la organización constitucional democrática (em Europa y América). Tradução de Vicente Herrero. México: Fondo de Cultura Económica, 1946. FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição – Mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1986, p. 11. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1228. TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Apostilas de Direito Constitucional. São Paulo: FADUSP, 1961, p. 60 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 2 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1988. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, prefácio, p. XVII. CHIERCHIA, Pietro Merola. L’interpretazione sistemática della constituzione. Padova: Cedam, 1978, p. 128. FERREIRA, Luiz Pinto. Da Constituição. 2 ed. Rio de Janeiro: José Konfino,1956, p. 102. HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Tradução de Pedro Cruz Villalón. Madrid: Centro 35 Doutrinadores alemães no final do século XIX, ao constatar abismais disparidades entre o texto constitucional formal e a realidade circundante, passaram a distinguir a mutação constitucional (verfassungswandlung) da reforma constitucional (verfassungsänderung). Conforme lição de Pinto Ferreira, a Constituição pode sofrer mudanças formais em seu texto, chamadas de reforma constitucional, ou materiais no conteúdo de suas normas, entendidas como mutação constitucional82. A mutação constitucional é um processo de natureza informal, não prevista expressamente pelo legislador, um conjunto de circunstâncias que fazem com que as normas tenham seu sentido modificado segundo uma necessidade social. Várias são as diferenças encontradas entre a reforma, alteração formal da Constituição, e a mutação, alteração informal. A que nos parece mais evidente é quanto ao lugar onde percebemos essas mudanças. Laband detectou o fenômeno da mutação ao examinar as mudanças ocorridas na Constituição Alemã de 1871, caracterizando-o como a alteração ocorrida no sentido da norma, sem que houvesse a modificação de seu texto. Seu conceito de mutação foi traduzido para o espanhol por Urritia: “la esencia real del derecho del Estado plasmada en la Constitución puede experimentar una modificación radical y significativa sin que el texto constitucional vea alterada su expresión escrita”83. No caso de reforma, a mudança ocorre no próprio texto constitucional, enquanto a mutação se perfaz somente no mundo sensível. “Sem qualquer alteração no texto, as Constituições vão se modificando, assumindo significados novos, de forma tal que é difícil conhecer de modo adequado a estrutura fundamental de um Estado, as relações de governo, o funcionamento de órgãos constitucionais, pela simples leitura da Lei Maior”84. A mutação altera o sentido e a abrangência do comando constitucional, “consiste em uma alteração do significado de determinada norma da Constituição, sem observância do mecanismo constitucionalmente previsto para emendas e, além disso, sem que tenha havido 82 83 84 de Estudios Constitucionales, 1983, p. 97. FERREIRA, Luiz Pinto. Da Constituição. 2 ed. Rio de Janeiro: José Konfino,1956. URRUTIA, Anna Victoria Sanchez. Mutación constitucional y fuerza normativa de la Constitución – Una aproximación al origen del concepto. Revista Española de Derecho Constitucional, vol. 20, janeiro-abril de 2000, p. 108. FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição – Mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1986, p. 3. 36 qualquer modificação de seu texto”85. Essa característica, a possibilidade de alteração da letra da norma, é uma diferença encontrada entre esses dois meios de mudança constitucional que se faz de grande importância para a aplicação do Direito, vez que permite a metamorfose da Carta Suprema, sem que se tenha que transformá-la em uma colcha de retalhos. Mesmo porque, assim como o texto original, aquele modificado por reforma também pode vir a sofrer transformações. Jellinek aponta outro critério para diferenciar a reforma e a mutação constitucional, além da alteração ou não do texto da norma: a intenção de mudar. A reforma, segundo ele, advém de um ato de vontade do legislador, enquanto a mutação se dá devido a fatos que não pretendem mudar o texto constitucional, mas acabam por exigir uma mudança do sentido da norma para que a mesma não se torne obsoleta em razão da mutação da própria sociedade. Em suas palavras, traduzidas para o espanhol por Christian Förster: Por reforma de la Constitución entiendo la modoficación de los textos constitucionales producida por acciones voluntarias e intencionadas. Y por mutación de la Constitución, entiendo la modificación que deja indemne su texto sin cambiarlo formalmente que se produce por hechos que no tienen que ir acompañados por la intención, o consciencia, de tal mutación.86 Heller aprofunda o conceito, atentando para os elementos não jurídicos que fazem da mutação constitucional um mecanismo informal87. Os métodos formais são assim chamados não só porque alteram o texto da norma ou porque dependem da vontade do legislador, mas também por estarem previstos no próprio texto constitucional, possuindo, assim, procedimento próprio e, portanto, formal. Já as mudanças difusas são legítimas a partir de uma visão material de Constituição. Isso não quer dizer que elas sejam formalmente opostas à Constituição, pelo contrário, nascem dos próprios princípios constitucionais, da ideia de ordenamento jurídico vivo, mutável. Algumas possibilidades de mutação encontram, inclusive, legitimidade 85 86 87 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 125 JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Tradução de Christian Förster. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pág. 7. HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968. 37 expressa no texto constitucional, a exemplo da evolutiva função de interpretação autônoma entregue ao Supremo Tribunal Federal pelo legislador constituinte. Outras possibilidades surgem da necessidade de evolução e adaptação da norma às novas exigências da sociedade ou da mudança de perspectiva que se tem de determinados dispositivos. Para Smend, essa transformação informal se deve a um processo de integração advindo de uma concepção de Constituição como movimento88. Assim sendo, a mutação é uma consequência da própria Constituição, que, evidentemente, não pode “prever todas as possíveis combinações de casos concretos, que a experiência cotidiana possa proporcionar”89. Así como por lo general la aplicación jurisprudencial de los textos legales vigentes está sujeta las necessidades y opiniones variables de los hombres, lo mismo ocurre com el legislador, cuando interpreta mediante leyes ordinarias la Conctituición. Lo que parece em un tiempo inconstitucional emerge más tarde conforme la Constituición y así la Constituición sufre, mediante el cambio de su interpretación, uma mutación. No sólo el legislador puede provocar semejantes mutaciones, también pueden producirse de modo efectivo mediante la práctica parlamentaria, la administrativa o gubernamental y la de los tribunales.90 Hsü Dau-Lin levanta a lentidão do processo como mais uma característica da verfassungswandlung, que, por não sofrer interferência do poder reformador, mas de um poder difuso, advindo de fatores cotidianos da vida em sociedade, acontece de forma imprevisível e, muitas vezes, quase imperceptível91. O fator tempo mostra-se fundamental na compreensão da mutação, não como requisito desta, mas para sua percepção. Por ser um processo lento, a mudança só seria constatada quando comparados momentos diferentes e afastados da realidade constitucional. “A afirmação da ocorrência da mutação informal, portanto, pressupõe uma comparação temporal que conclua pela diversidade de compreensão de um mesmo enunciado normativo”92. Na prática, referida lentidão corresponde ao lapso de tempo entre a consolidação da mutação no mundo sensível e sua consequente assimilação pela novel interpretação do texto constitucional. 88 89 90 91 92 SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional. Tradução de José Maria Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 66. JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Tradução de Christian Förster. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 15-16. DAU-LIN, Hsü. Mutación de la Constitución. Tradução de Christian Föster. Oñati: IVAP, 1998. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 83. 38 No entanto, o decorrer de certo período de tempo, a partir da criação de uma Constituição, não é necessário para que ocorram as mutações, afinal, embora lentas, elas podem ser muito mais frequêntes que as reformas93, justamente por serem métodos informais e pelo seu próprio fundamento. Nem mesmo os métodos formais de mudança podem pretender determinar certo tempo para possibilidade de sua ocorrência. O fato é que a facilidade ou a frequência com que uma Constituição é alterada depende não só das disposições legais que prescrevem o método de mudança, mas também dos grupos políticos e sociais predominantes na comunidade e na medida em que eles estão satisfeitos ou concordam com a organização e distribuição de política que a Constituição prescreve.94 Por evidente, as palavras de Wheare não se aplicam somente ao processo de reforma, como também à mutação constitucional. Nesse sentido, Hesse adverte para imprevisibilidade do fenômeno, considerando que o lapso temporal entre a entrada em vigor da Constituição e suas mutações não pode ser determinado 95, posto que depende do influxo das exigências da evolução social. “O ritmo, mais ou menos acelerado dessas modificações constitucionais indiretas, há de variar portanto, em cada época e em cada lugar, de acordo com os fatores históricos atuantes, entre os quais, evidentemente, em primeiro lugar, o próprio ritmo das transformações sociais e políticas”96. Por se tratar de processo formal, vimos que a revisão e a emenda devem ser feitas por agentes a tanto legitimados. A mutação, por sua vez, acontece por meios informais, através de um Poder Constituinte difuso - aproveitando a expressão utilizada por Burdeau - amplo e espontâneo, que não se encontra subjugado a nenhum tipo de delegação. “Se o poder constituinte é uma força que faz ou transforma as constituições, é necessário admitir que sua ação não é limitada às modalidades juridicamente organizadas de seu exercício”97. Trata-se de um poder material, “elemento componente 93 94 95 96 97 LOEWESNSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. 4 ed. Barcelona: Ariel, 1986, p. 165. WHEARE, Karl C. Modern Constitutions. Londres: Oxford University Press, 1956, p. 23 (tradução nossa). HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Tradução de Pedro Cruz Villalón. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983. TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 143. BURDEAU, Georges. Traité de science politique. Tomo IV. 2 ed. Paris: Librarie Générale de Droit et de 39 de toda a dinâmica constitucional e, por sem dúvida, aquele que mais significativamente explica certas variações ou mudanças profundas de sentido que tomam os textos constitucionais”98. Esse poder, por não encontrar legitimidade formalmente determinada pelo poder constituinte originário, ou o poder constituinte em fase de primogeneidade, difere do Poder Constituinte reformador. É nesse sentido que nos parece interessante a classificação de Viamonte, para que possamos diferenciá-los sem distanciá-los, afinal, os dois são poderes constituintes que atuam em momento posterior ao nascimento da Constituição. “Destina-se a função constituinte difusa a completar a Constituição, a preencher vazios constitucionais, a continuar a obra do constituinte”99. Temos, portanto, um poder de criação inicial da Constituição e dois poderes constituintes de continuidade: um poder reformador e um poder de mutação. O Poder Constituinte difuso também decorre diretamente da Constituição, sendo, portanto, tão legitimado pelo legislador constituinte originário quanto o é o poder de reforma. Seu fundamento, a complementação e adaptação do texto constitucional, decorre da própria Lei Fundamental, que nasce para ser aplicada, mas precisa, para tanto, acompanhar a evolução do meio que pretende organizar. Trata-se, portanto, de uma decorrência lógica, advinda da necessidade de meios que garantam a eficácia da norma constitucional, sua possibilidade de concretização no mundo do ser. A Constituição que quer ser efetivada exige um Poder Constituinte em constante atuação, em exercício cotidiano, um poder que não cessa jamais de agir100. Existe, outrossim, uma previsão expressa da legitimidade desse poder, ainda que posta de forma desorganizada na estrutura constitucional. Verifica-se essa expressão através do texto do parágrafo único de seu primeiro artigo, que prevê a legitimidade do povo como agente de mutação, através do princípio da soberania popular, reiterado como norma positiva: “Todo poder emana do povo, que o exerce por Jrurisprudence, 1969, p. 246 (tradução nossa). BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 159. 99 FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição – Mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1986, p. 10. 100 BURDEAU, Georges. Traité de science politique. Tomo IV. 2 ed. Paris: Librarie Générale de Droit et de Jrurisprudence, 1969, p. 246. 98 40 meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Há, ainda, a referência encontrada no preâmbulo da Carta de 1988 – “Nós, representantes do povo brasileiro” -, a exemplo da Constituição dos Estados Unidos, de 1787 (“We the people”). Resta saber, para melhor compreensão da mutação constitucional, quem são os titulares desse Poder Constituinte difuso. Vale observar, para tanto, a lição de Paulo Bonavides: Poder-se-ia argumentar, em meio a abundantes exemplos colhidos no costume ou na jurisprudência, com o caso da Suprema Corte dos Estados Unidos, vista por Wilson como uma “convenção constituinte em sessão permanente”, ou seja, um tribunal que, à margem do poder constituinte formal, exercita materialmente atos configurativos de verdadeira atividade constituinte.101 Deveras, os juízes e tribunais exercem esse papel, mas se analisarmos mais a fundo o processo, veremos que, assim como no caso do controle de constitucionalidade difuso, o Poder Constituinte difuso é exercido pelo povo, em seu sentido mais amplo. É exercido por cada cidadão, através da construção de uma realidade que faz adaptar o sentido da norma constitucional para sua aplicação ao caso concreto. Esse exercício pode acontecer diretamente, através da interpretação da própria norma constitucional, ou indiretamente, por meio da aplicação de outras normas, ordinárias ou complementares, que devem, outrossim, respeitar a Constituição. "Em conclusão: só o povo real - concebido como comunidade aberta de sujeitos constituintes que entre si ‘contratualizam’, ‘pactuam’ e consentem o modo de governo da cidade -, tem o poder de disposição e conformação da ordem político-social.102" Vale dizer que o conceito de povo, entendido como grandeza pluralística103, compreende cada cidadão, cada indivíduo a quem se dirigem as normas de determinado Estado. A visão normativa de povo é tão somente o corpo eleitoral de um Estado, o povo que vota. Esse povo-eleitor é entendido como o titular dos poderes constituintes de primogeneidade e de reforma, exercidos mediante representação. Não 101 102 103 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 159 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 76 (grifo no original). HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1977. 41 se pode confundir o eleitor, o titular do direito de sufrágio, com o cidadão. Não se pode olvidar, ainda, que tanto o povo majoritário como o minoritário fazem parte desse poder difuso. As decisões políticas, no âmbito de determinado Estado, são, geralmente, tomadas pela maioria, valendo como decisões do povo. No entanto, também aqueles que votam contra, as chamadas minorias, estão englobados no conceito de povo aqui contemplado. “Para que seja legítima, a Constituição precisa ter lastro democrático, isto é, deve corresponder a uma demanda social efetiva por parte da coletividade, estando respaldada, portanto, pela soberania popular”104. Com efeito, participantes dos litígios concretos da vida, cada cidadão, maioria ou minoria, eleitor ou não, acessa a Justiça através de um devido processo legal, onde lhe é concedido o direito de argumentação. “O ‘processo’ é um procedimento no qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a produzir efeitos: em contraditório, e de modo que o autor do ato final não possa desconsiderar a atividade deles”105. Cada cidadão pode, então, demonstrar a sua interpretação da lei, ou da Constituição, em um processo dialético, ajudando na construção de uma sentença e na consequente aplicação da norma ou princípio ao caso concreto. Deveras, a essência dessa construção “está na ‘simétrica paridade’ da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos”106. Esse procedimento pode, portanto, alterar o sentido de uma norma constitucional por exercício de um Poder Constituinte difuso, o que nos leva a entender que cada partícipe da sociedade faz parte desse poder, sendo, portanto, sujeito constituinte. Nessa esteira, a mutação constitucional é um procedimento constituinte informal e difuso, exercido pelo povo, em toda sua plurisubjetividade. E se mostra de extrema importância no atual panorama constitucional brasileiro, “já que o momento privilegiado em que a cidadania pode afirmar seus direitos, impondo a sua vontade sobre a vontade dos governantes, é o momento constituinte”107. Ainda que não se 104 105 106 107 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 126. FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. Padova: Cedam, 1994, p. 82 (tradução nossa). GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 115. MAUÉS, Antonio G. Moreira. Reflexões Sobre a Eficácia dos Direitos Fundamentais. In: SCALOPPE, 42 constitua novo texto ou nova norma, constitui-se novo sentido, significado ou alcance para que a Constituição corresponda, efetivamente, ao dinamismo da sociedade. 2.2 O fundamento da mutação: fluidez constitucional Como já vimos, foram os juristas alemãs que detectaram a existência de mudanças informais inevitáveis, sem que houvesse previsão ou procedimento próprio para tanto. No entanto, a doutrina tradicional europeia, originada da teoria constitucional francesa, acreditava que as Constituições deveriam ser preservadas o máximo possível, por isso, os procedimentos de reforma previstos em seu texto eram os únicos meios de mudança constitucional admitidos. A Constituição francesa de 1791, pretendendo ser eterna, instituía processos excessivamente rígidos para modificação de seu texto, “tendo sido tragada pela dinâmica revolucionária”108. Após ter tido dois de seus decretos vetados pelo Rei, a “Assembléia Legislativa toma todos os poderes, com ajuda de um “Conselho Executivo Provisório”, e convoca uma assembléia especialmente encarregada de redigir ou revisar uma Constituição”109. A nova Carta francesa, votada em 1793, suprimiu a Monarquia, consagrando o sistema republicano de governo. Inspirada na Declaração de Direito do Homem e do Cidadão, admitiu a impotência de uma norma suprema granítica, proclamando em seu artigo 28: “Um povo tem sempre o direito de rever, reformar e mudar sua Constituição. Uma geração não pode submeter a suas leis gerações futuras”110. Embora tenha durado muito pouco, essa Constituição, que veio declarar a tomada do poder por um governo revolucionário, deixou legados de grande valor. Hoje, a doutrina francesa já reconhece a importância das mudanças informais da Constituição, principalmente no que tange ao papel da coutume constitutionnelle (costume constitucional). 108 109 110 Luiz Alberto Esteves (org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá : Fundação Escola, 2003, p. 54. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 122. HAURIOU, André; GICQUEL, Jean; GÉLARD, Patrice. Droit constitutionnel et institutions politiques. 6 ed. Paris: Montchrétien, 1975, p. 795 (tradução nossa). Constituição Francesa de 1793 (tradução nossa). Texto original : “Art. 28 Un peuple a toujours le droit de revoir, de réformer et de changer sa Constitution. Une génération ne peut assujettir à ses lois les générations futures”. 43 A existência de tais práticas não pode ser contestada. Para se ater à França, pode-se dizer que grande parte de nossa vida política, sob o reinado das leis constitucionais de 1875, era regulamentada pelo costume, por exemplo, tudo que dizia respeito ao papel do Presidente do Conselho, cujo título não foi sequer dado pela Constituição. Da mesma forma, pelo não-uso, por parte do Presidente da República, de seu direito de dissolução, concluiu-se que esse direito havia sido revogado por força do costume.111 Nos Estados Unidos, a partir do sistema da common law, a Suprema Corte desempenha forte papel na mudança do sentido das normas constitucionais. A Constituição norte-americana, mais sintética que a brasileira, é composta por apenas sete artigos, possuindo normas abertas e genéricas, de sentido amplo. A construção jurisprudencial, nesse caso, demonstra mais claramente uma contínua mutação constitucional, uma alteração do significado e do alcance dos dizeres da lei, através de um processo informal. Apesar de pretender ser rígida, a Lei Fundamental norteamericana teve suas principais modificações advindas da atuação de juízes e tribunais, tendo sido a Suprema Corte um importante agente na evolução de seus conceitos. Essa mutabilidade é, sem dúvida, uma das razões da longevidade da Constituição dos Estados Unidos, que vigora desde 1787. Para ilustrar, aproveitamos o exemplo utilizado por Barroso: (...) a decisão proferida pela Suprema Corte no caso Brown v. Board of Education, julgado em 1954, que impôs a integração racial nas escolas públicas. Até então, prevalecia o entendimento constitucional, firmado em Plessy v. Ferguson, julgado em 1896, que legitimava a doutrina do “iguais mas separados” no tratamento entre brancos e negros.112 Apesar de parecer que a rigidez constitucional, por dificultar a adaptação da norma ao estabelecer processo de reforma solene e específico, é base para que ocorram os processos informais, também as Constituições ditas flexíveis, como a da Inglaterra, percebem a ocorrência da mutação. “Vale dizer: o fenômeno da mutação constitucional não é exclusivo das constituições rígidas”113. Isso porque o fundamento da mutação não é a regra da rigidez, mas a busca do equilíbrio entre a estabilidade que se pretende dar a uma Constituição e a elasticidade que permite a adaptação de suas normas à realidade circundante. 111 112 113 BURDEAU, Georges. Droit constitutionnel et institutions politiques. Paris: Librarie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1966, p. 59. (tradução nossa). BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 124. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 85. 44 As Cartas flexíveis possuem certa rigidez sociológica advinda de sua própria natureza, na procura de uma perfeita adequação à conjuntura sócio-política de seu tempo114. Essa é a autêntica estabilidade constitucional, criada artificialmente pelas Constituições rígidas, por meio da consagração de processos solenes de reforma. A mutação constitucional sempre acontece, seja a rigidez jurídica ou sociológica, afinal, tanto as Cartas rígidas como as flexíveis estão sujeitas ao influxo de mudanças, adquirindo novos sentidos, através do lento trabalho dos costumes ou da consolidação jurisprudencial. Nesse sentido, Wheare alerta para as desvantagens desse sistema de classificação, constatando que os termos escolhidos tendem a ser mal interpretados: Eles nos levam a pensar que uma Constituição que contém uma série de obstáculos legais para sua reforma será mais difícil de alterar e será, portanto, alterada com menos frequência do que uma que contenha menos obstáculos ou que não cotenha obstáculo específico. É verdade que esta é uma má interpretação do que a distinção entre "rígida" e "flexível" pretendia significar. Ela refere-se apenas a certos requisitos formais no processo legal de reforma.115 Como vimos, o legislador, ao estabelecer os critérios de reforma, pretendendo tornar rígida a Constituição, não tem poderes para prever todas as necessidades futuras de uma sociedade. Assim como não se pode querer tornar a Constituição imutável, a história também revela a impossibilidade de limitar sua alteração aos processos formais. O legislador constituinte pode, tão somente, prever mecanismos para impedir abusos que levem à destruição de sua identidade. Identidade esta, que por ser reflexiva116, deve acompanhar o dinamismo da sociedade, mantendo a estabilidade de seu espírito. Na verdade, nem a rigidez nem a flexibilidade podem ser concebidas sem ressalvas. Mesmo as Constituições que pretendem maior rigidez precisam se adaptar à dinâmica da sociedade e as que se dizem mais flexíveis acabam por construir certa estabilidade sociológica em normas centrais, que passam a sofrer processos de mutação. Uma Constituição pétrea não poderia ter eficácia em uma sociedade mutante. O tempo seria seu grande inimigo e acabaria por transformá-la em uma mera folha de 114 115 116 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 112. WHEARE, Karl C. Modern Constitutions. Londres: Oxford University Press, 1956, p. 23 (tradução nossa). CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1073. 45 papel117, na expressão utilizada por Lassalle. Por isso, o câmbio social obriga a adaptação das normas constitucionais em prol da utilidade da própria Constituição. “Por ser fundamental, o estatuto orgânico do Estado não teria a pretensão de ser absolutamente imutável”118, pelo contrário, a mudança, por vias formais ou informais, se faz sempre necessária. “Para entender-se o intrincado problema das mudanças constitucionais difusas, é mister visualizar o direito na sua perspectiva dialética, ao lado da realidade social que o circunscreve, em perpétuo movimento, adaptando-se às necessidades da vida e fluindo do contexto cultural”119. Se o Direito, como foi dito, acompanha a evolução da sociedade, a Constituição, representante máxime do ordenamento jurídico de um Estado, não pode deixar de adaptar-se no mesmo passo. Afinal, a Constituição nasce vocacionada a ser aquilo que a sociedade que a gerou espera que ela seja, vez que o Direito não domina a sociedade, ele a exprime120. Aliás, o ser Constituição, como organismo vivo que é, configura uma estrutura dinâmica, prospectiva, em permanente progresso; seria irrisória a tentativa de pretender-se escravizá-la ou cristalizá-la nesta ou naquela fórmula, em instituições ou normas graníticas (imodificáveis), sem levar em conta a interação de causas e efeitos próprios da vida em sociedade.121 O que se pretende evidenciar aqui, portanto, não é a diferença entre rigidez e flexibilidade, mas entre dinamismo e estabilidade. O primeiro fator está inevitavelmente presente na sociedade e, como consequência, na ordem jurídica de um Estado. Sendo a Constituição a norma suprema de um ordenamento jurídico, suas normas também devem acompanhar esse dinamismo. Através dele, a realidade normativa é redimensionada, assume novos significados, renovando-se no tempo através dos mais variados processos. Por outro lado, as normas basilares do Estado pretendem um patamar seguro, mínimo de estabilidade, tanto em Constituições rígidas como nas flexíveis, procurando salvaguardar os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. 117 118 119 120 121 LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2002. BURDEAU, Georges. Traité de science politique. Tomo IV. 2 ed. Paris: Librarie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1969, p. 84 (tradução nossa). BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, prefácio, p. XX. CRUET, Jean. De l'impuissance des lois. Paris: Flammarion, 1912. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, prefácio, p. XVIII. 46 (...) não se podem considerar completamente separados o dinâmico e o estático, tampouco podem sê-lo normalidade e normatividade, o ser e o dever ser no conceito da Constituição. (…) como forma e ordenação concretas, a Constituição só é possível porque os partícipes consideram essa ordenação e essa forma já realizadas ou por realizar-se no futuro, como algo que deve ser e o atualizam.122 O elemento estático que reveste a Carta Magna deve estar em constante tensão com as forças mutacionais da sociedade, afinal, “la transformación está estrechamente vinculada a la esencia de la constituición”123. Assim sendo, estabilidade não pode significar inalterabilidade. O equilíbrio entre a norma escrita e a evolução da sociedade se encontra na adaptação do sentido e do alcance do texto constitucional. Deveras, se a Constituição, como aqui entendemos, deve corresponder a fatores reais da sociedade, deve seguir o ritmo das mudanças políticas, econômicas e morais de um Estado para ser socialmente eficaz. Nessa esteira, os processos difusos de alteração constitucional tornam-se imprescindíveis para que se respeite a dinamicidade da realidade social e jurídica. Mesmo porque, nossa Constituição é repleta de disposições em aberto, seja através da previsão de leis complementares ulteriores, de silêncios ou de generalidades conscientes, vocábulos de significações variáveis, caracterizando uma elasticidade, uma exigência de adaptação por parte da própria redação da norma. A mutação constitucional é o meio mais eficaz de se encontrar o equilíbrio entre a estabilidade pretendida e o dinamismo necessário em uma Constituição. 2.3 Processos que provocam mutação A determinação do sentido e do alcance de um dispositivo Constitucional pode se dar diretamente, através da concretização de pretensões fundadas no próprio dispositivo constitucional, ou indiretamente, sempre que houver aplicação de norma infraconstitucional, sendo que “nesse caso, a Constituição figurará como parâmetro de 122 123 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 296. PELAYO, Manuel Garcia. Derecho constitucional comparado. Madrid: Revista de Occidente, 1951, p. 126. 47 validade da norma a ser aplicada”124. Devido a sua natureza informal, a mutação não tem um rol taxativo de possibilidades, como acontece com os meios de reforma, sendo impossível enumerar os meios pelos quais ocorre125. No entanto, podemos estudar os mecanismos que se mostram mais atuantes na história constitucional e as circunstâncias que os provocam. Vimos que a legitimidade da mutação constitucional deve ser buscada no ponto de equilíbrio entre a rigidez e supremacia da Constituição e a elasticidade e efetividade de suas normas. Enquanto procura-se preservar a estabilidade do texto, a mutação tende a adaptá-lo às novas demandas surgidas com o tempo, sem que se recorra aos processos formais de reforma. Para que seja legítimo, o processo de mutação precisa corresponder a uma demanda social efetiva, precisa ter como base um fato ocorrido na sociedade ou uma mudança de interpretação advinda da realidade. Dessa forma, duas são as razões que podem provocar um processo mutacional: uma nova percepção do Direito ou uma alteração na realidade de fato126. A primeira ocorre em função de conceitos jurídicos indeterminados, disposições que podem sofrer diversas interpretações ou variações ao longo do tempo, como é o caso das normas gerais e dos enunciados de princípios, comuns no texto constitucional. A mutação constitucional em razão de uma mudança na percepção do Direito ocorrerá sempre que houver uma releitura de valores sociais que alterem as ideias do justo, do ético, do bem, do certo ou de tantos outros conceitos abertos que variam conforme as novas necessidades e circunstâncias de uma sociedade. A alteração na realidade fática também pode influenciar o sentido, o alcance ou mesmo a validade de uma norma. Os impactos decorrentes de mudanças dentro de uma sociedade acabam por determinar a compatibilidade de uma norma infraconstitucional com a Constituição ou, ainda, de uma norma constitucional com as circunstâncias de certo período histórico. As maiores implicações desse fenômeno 124 125 126 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 129. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 65-66 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 126. 48 incidem no plano do controle de constitucionalidade das leis127. Dessas mudanças, decorrem diversos processos que implicam em mutação. Podemos destacar, dentre eles, a influência dos grupos de pressão, os usos e costumes sociais, as práticas governamentais, legislativas e judiciárias, a construção constitucional (jurisprudência constitucional) e a interpretação, além das transformações ocorridas na Constituição através do controle de constitucionalidade de legislação infraconstitucional e da complementação legislativa advinda de leis complementares. Os grupos de pressão são as associações, sindicatos, entidades de classe, grupos artísticos, religiosos, filosóficos, organizações civis, militares, partidos políticos, dentre tantos outros que se unem em favor de causas comuns. Esses grupamentos são importante fator de mutação na medida em que “influenciam as relações reais de poder numa sociedade, várias vezes de forma determinante, embora quase nunca de maneira institucionalizada”128. No sistema democrático, dentro de uma sociedade pluralística, a formação desses grupos aparece como elemento ineliminável129 do processo político, afinal, a união, ao fortalecer a legitimidade da pretensão, aumenta a possibilidade de êxito do movimento. Os usos e costumes servem de substrato para uma interpretação mais adequada da norma. Como nos ensina Carbonnier, “o direito é maior que as fontes formais do direito”130 e, ao mesmo tempo, “menor que o conjunto de relações entre os homens”131. Por isso, pode-se considerar que a maior fonte de desenvolvimento do direito não deve ser procurada nem na legislação, nem na doutrina, nem na jurisprudência, mas na própria sociedade. O costume constitucional é o conjunto de práticas observadas reiteradamente e socialmente aceitas, seja por agentes públicos seja por cidadãos. Cria-se um padrão de conduta que passa a ser aceito como válido ou, ainda, como obrigatório e pode ser incorporado ao sentido de determinada norma 127 128 129 130 131 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1022. BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição: Participação popular e eficácia constitucional. Curitiba: Juruá, 1999, p. 61. PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 6 ed. Brasília: UnB, 1994, p. 570. CARBONNIER, Jean. Flexible Droit - Textes pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1979, p. 16 (tradução nossa). CARBONNIER, Jean. Flexible Droit - Textes pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1979, p. 18 (tradução nossa). 49 ou mudar-lhe o alcance. Assim como os comportamentos sociais, as práticas levadas a efeito por órgãos e agente públicos resultam em adaptações da Constituição a novas realidades. Os três poderes estatais são responsáveis, junto aos indivíduos da sociedade 132, pela interpretação e pela construção constitucional, mas a exercem de formas distintas. O poder Legislativo manifesta sua interpretação da realidade e das normas constitucionais efetivamente aplicadas numa sociedade ao criar o direito positivo. Já aos poderes Executivo e Judiciário compete sua aplicação133. Interpretação e construção constitucional são conceitos bem próximos que possuem certa dependência. A interpretação acaba por ser uma etapa intrínseca ao processo de construção de uma sentença. Sem a construção jurisprudencial, a interpretação não teria sentido, ela serve para extrair o significado da norma, e isso só tem uma conseqüência eficaz se formos, em etapa posterior, aplicar a norma ao caso concreto, através da construção de uma sentença. A jurisprudência constitucional, como meio de mutação, deve ser constantemente renovada. A jurisprudência deve ser entendida como o costume interno dos tribunais134, servindo de exemplo e ajudando na fundamentação de uma nova sentença, sem que, para tanto, permaneça imutável. Cada resultado deve corresponder à conclusão advinda da construção dialética do processo, caso contrário, agiria como um óbice ao processo mutacional. É nesse sentido que cada juiz interpreta a norma no momento de sua aplicação ao caso concreto. Certamente, não lhes é proibido de se referir expressamente a uma jurisprudência constante na jurisdição superior [...]. No entando, isso não pode passar de um argumento acrescentativo. Eles devem, antes de mais nada, reproduzir, em seu próprio julgamento, a corrente lógica de motivação que, no escalão superior, havia levado à conclusão que pretendem retomar por conta própria.135 132 133 134 135 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1977. FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 3. CARBONNIER, Jean. Flexible Droit - Textes pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1979, p. 87 (tradução nossa). CARBONNIER, Jean. Flexible Droit - Textes pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1979, p. 87 (tradução nossa). 50 A interpretação, um dos meios que leva à alteração informal do sentido das normas constitucionais, é fruto da necessidade de aplicação da norma em um caso concreto ou, ainda, da simples tentativa de extração do sentido das palavras contidas no texto normativo, feita por doutrinadores, por juízes, por legisladores, por administradores, por cidadãos. Segundo Barroso, a função integrativa do intérprete da norma pode gerar três grandes consequências, que se exprimem nas categorias da interpretação construtiva, da interpretação evolutiva e da mutação constitucional. A primeira ocorre quando uma situação que poderia ter sido prevista pelo legislador, mas não foi, é alcançada pela ampliação do sentido de uma norma. Desse modo, o intérprete cria uma nova hipótese de incidência, que não fora nem expressa nem excluída pelo legislador. Foi o que aconteceu com o artigo 5º, inciso LXIII da Constituição de 1988, que, de forma expressa, dá ao preso o direito de permanecer calado. Na prática, através de construção jurisprudencial, ampliou-se o sentido do direito, que passou a ser direito a não auto-incriminação, e o alcance da norma, que já não se dirige apenas ao preso, mas a qualquer acusado, inclusive àquele que presta depoimento em Comissão Parlamentar de Inquérito136. “Foi também por interpretação construtiva que se desenvolveu no Brasil as teses de proteção da concubina e do reconhecimento de efeitos jurídicos às relações homoafetivas estáveis”137. A interpretação evolutiva, por sua vez, ocorre com situações que não poderiam ser previstas pelo legislador. Presume-se que, caso determinado fato já ocorresse ao tempo de elaboração de determinada norma, ele teria sido contemplado pelo legislador. Através da ação do intérprete, a norma passa, então, a amparar a nova situação, sempre que esta puder ser enquadrada no espírito do texto. Foi o que aconteceu com os artigos 221 e 222, que regem, de forma expressa, as emissoras que 136 137 “A condição de indiciado ou testemunha não afasta a garantia constitucional do direito ao silêncio (CF, art. 5º, LXIII: ‘o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendolhe assegurada a assistência da família e de advogado’). Com esse entendimento, o Tribunal, embora salientando o dever do paciente de comparecer à CPI e depor na eventualidade de convocação, deferiu habeas corpus para assegurar ao mesmo o direito de recusar-se a responder perguntas quando impliquem a possibilidade de auto-incriminação” (HC 79.812/SP, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Celso de Mello, j. 8/11/2000). BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 129 e 130. 51 se utilizam de radiodifusão, único meio de transmissão de sons e imagens cogitado da elaboração da Carta de 1988. Com o advento de novas tecnologias, essas normas passaram a ser aplicadas também a outras formas de emissão, como o satélite e o cabo. Verifica-se o mesmo fenômeno em relação às normas de liberdade de expressão e sigilo de correspondência no âmbito da internet. A mutação constitucional, ainda que ocorra pela via interpretativa, só se concretiza quando são percebidos dois sentidos diferentes da mesma norma no decorrer do tempo. Assim, seja por uma mudança na realidade fática ou no modo como se percebem determinados valores, a interpretação preexistente é superada por novo entendimento. Uma simples disparidade verificada entre jurisprudências não caracteriza, necessariamente, a mutação. Não basta que se extraia o conteúdo do texto em função do ponto de vista do intérprete, é necessário que se extraia de mudanças ocorridas no âmbito da sociedade o novo sentido ou alcance da norma. Como exemplo, o habeas corpus - expressão do latim que significa “que tenhas o teu corpo” -, antigo remédio processual penal, é utilizado, atualmente, como garantia geral de direitos, apesar de sua etimologia. Trazido ao Brasil em 1821 e incluído no texto da Constituição de 1891, o instrumento garantia apenas a liberdade de locomoção. Com a necessidade de solução de conflitos surgidos em outras situações que restringiam direitos fundamentais do indivíduo, o referido remédio teve seu âmbito de aplicação ampliado, passando a assegurar, além do direito de ir e vir, a posse em cargos públicos, a liberdade de imprensa, o direito de greve, entre tantos outros138, através de reiteradas interpretações que provocaram o processo de mutação. A elasticidade da garantia constitucional foi uma conquista das gerações do século passado, que a adaptaram a novas exigências da sociedade. A garantia de inviolabilidade do asilo também teve seu âmbito ampliado, através de uma nova interpretação da palavra casa, que ocorreu em virtude de circunstâncias de fato. A casa é constitucionalmente considerada asilo inviolável do indivíduo desde 1824139. Anteriormente, considerava-se inviolável somente o local de residência de uma 138 139 MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Direito Processual Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 142-143. Constituição Política do Império do Brasil de 1824. Art. 179, inciso VII: “Todo o Cidadão tem em sua casa um asylo inviolavel. De noite não se poderá entrar nella, senão por seu consentimento, ou para o 52 pessoa, com ânimo definitivo. O Código Penal, de 1940, engloba no conceito de casa o local onde alguém exerce profissão ou atividade, pois, da edição dessa Lei, também esses espaços careciam de proteção, para que se pudesse respeitar, ao máximo, a privacidade do indivíduo. O Código Civil de 2002 inclui na definição de domicílio, “quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida”140. Uma interpretação ampla do artigo 5º, inciso XI, da Constituição de 1988, fez com que a palavra casa passasse a significar o lugar onde alguém vive ou trabalha, “o home, o chez soi, a habitação particular, o local reservado à vida íntima do indivíduo, seja ou não coincidente com o domicílio civil”141. Hoje, o conceito engloba, portanto, o escritório de um advogado, o consultório de um médico, bem como pátios, jardins, garagens, quintais, dentre outros complementos de uma casa, sendo todos considerados asilos invioláveis. A mutação por via interpretativa pode se dar de diversos modos. Sintetizando uma classificação quanto ao fundamento da interpretação da norma, Bulos relaciona três categorias de contextos que exigem participação do intérprete para aplicação da norma: o técnico-linguístico, o antinômico e o lacunoso142. No contexto técnicolinguístico, o intérprete atua de forma a integrar e delinear conceitos vagos, como democracia, interesse público, reputação ilibada, honra, justiça social, bem comum. O mesmo acontece com os princípios positivados. No contexto antinômico, a interpretação é utilizada para que se descubra a norma a ser aplicada em determinado caso concreto, sempre que houver normas incompatíveis num mesmo ordenamento jurídico. No contexto lacunoso, a ação interpretativa visa sanar a incompletude de uma norma, podendo o intérprete se utilizar da analogia, dos costumes, dos princípios gerais de direito ou da equidade. Por estarem esses instrumentos previstos na Lei de Introdução ao Código Civil, a doutrina não é unânime a respeito da existência de lacunas no nosso ordenamento. Muitos autores entendem que todas as situações de fato estão 140 141 142 defender de incendio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada nos casos, e pela maneira, que a Lei determinar”. O Código Civil de 1916 previa em seu artigo 31: “O domicílio civil da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com animo definitivo”. O Código Civil de 2002 manteve o mesmo texto em seu artigo 70, acrescentando, no entanto, o texto do art. 72: “É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida”. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 119. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. 53 amparadas pelo direito positivo, seja através de uma norma expressa seja através da possibilidade que se dá ao intérprete, nos artigos 4º e 5º da LICC, de se utilizar dos recursos citados. Concebendo o sistema em sua dimensão dinâmica, incompleta, sujeita ao influxo de fatores exógenos, promanados das relações intersubjetivas, em perpétuo movimento, de maneira que os legisladores constituintes não possam prever a heterogeneidade da experiência jurídica, pertine falarmos em lacunas, pois há casos que ultrapassam a capacidade de previsão legiferante.143. Quanto a seu agente, a interpretação pode ser orgânica ou inorgânica. A interpretação inorgânica pode ser feita pela doutrina ou pela sociedade, vez que a adaptação da Constituição não se deve exclusivamente a ações estatais, mas também ao comportamento dos cidadãos. Segundo Häberle, defensor de uma hermenêutica pluralística, fazemos parte de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição144. Essa interpretação se faz no dia-a-dia, nas práticas que desenvolvem os costumes ou quando um indivíduo acessa a Justiça para proteger seu interesse. A mutação, nesses casos, se faz mais evidente quando do controle de constitucionalidade difuso. Qualquer cidadão pode pedir que um juiz ou Tribunal declare uma lei inconstitucional, para efeitos inter partes, na solução de determinado caso concreto145. Destaca-se que às partes, quando da discussão de um litígio no âmbito judicial, é assegurado o direito de argumentação através do contraditório e da ampla defesa, respeitando-se o princípio do devido processo legal. Portanto, ao defender e fundamentar determinado ponto de vista, o indivíduo interpreta a lei a sua maneira e ampara o juiz na construção de uma sentença ao final de um processo dialético. Ao tomar suas decisões, também, é preciso lembrar que o juiz não está sozinho no exercício das suas atribuições. Afinal, do procedimento que prepara a decisão jurisdicional, devem, em princípio, diretamente participar, em contraditório, em simétrica paridade, os destinatários desse provimento jurisdicional.146 Dessa forma, sempre que houver mutação de um dispositivo constitucional 143 144 145 146 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 126. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1977. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 20. CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 93. 54 por um novo entendimento verificado na sentença de um processo argumentativo, as partes que contribuíram para a nova interpretação também são responsáveis pela alteração constitucional, no exercício legítimo de um poder constituinte difuso. A interpretação orgânica é aquela desenvolvida pelos órgãos e agentes do Estado. Podemos dizer que todos os atos dos poderes públicos estão contaminados pela interpretação de seus agentes. No entanto, não basta haver interpretação para que se configure mutação. Como vimos anteriormente, ocorrerá mutação sempre que a nova interpretação resultar em aplicação diversa de determinada norma, por alteração de seu sentido ou alcance. O Poder Legislativo pode provocar mutação sempre que editar Lei que altere entendimento prévio a respeito de determinado dispositivo constitucional. O mesmo acontece com o Poder Executivo na edição de atos administrativos, como os decretos e as resoluções. A interpretação feita pelo Poder Judiciário se faz de grande importância, no âmbito constitucional, seja para provocar a mutação por novos entendimentos dos próprios juízes e Tribunais, seja na (in)validação da interpretação feita pelos outros poderes. Analisaremos mais especificamente, no decorrer desse estudo, o papel desse Poder na guarda e defesa da Constituição. Por fim, vale alertar sobre a possibilidade de inconstitucionalidade dos processos que provocam mutação147. O simples fato de não estar expressamente prevista na Lei Fundamental como processo de alteração de seu texto não faz da mutação um fenômeno contra constitutionis. No entanto, ela será inconstitucional sempre que contrariar o espírito da Constituição, seja através de seu texto, de seus princípios, de seu objetivo ou de sua aplicação. É evidente que a Constituição impõe limites expressos ao poder reformador formal, elencando vários requisitos para seu exercício. No entanto, valores naturais nas sociedades, como a liberdade e dignidade do homem, hoje positivados, pré-existem a uma Constituição escrita. Isso faz com que o Poder Constituinte, mesmo em fase de primogeneidade, não seja ilimitado. Como já vimos, o legislador constituinte, tanto originário como reformador, encontra limites extrajurídicos no exercício de seu poder, condicionados a fatores ideológicos, institucionais, sociológicos e substanciais de um 147 CUNHA, Anna Candida da. Processos informações de mudança da Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 213. 55 Estado ou até mesmo da comunidade internacional. A mutação constitucional encontra os mesmo tipos de limites148, que também se modificam ao passo em que o próprio Estado vê esses fatores modificados. Nesse sentido, “quer o poder constituinte formal, quer o poder constituinte material são limitados pelas estruturas políticas, sociais, econômicas e culturais dominantes da sociedade, bem como pelos valores ideológicos de que são portadores”149. A verificação da (in)constitucionalidade de uma mutação se faz a nível da efetividade das normas constitucionais, devendo-se levar em conta, para identificação, a distância deixada entre a Constituição e a realidade social. Se uma Constituição nasce para ser cumprida e aplicada, buscamos sempre a eficácia (efetividade) de suas normas e o respeito à soberania de seus princípios. A mutação, quando constitucional, supera o distanciamento entre a norma e a realidade circundante, tornando possível a concretização de preceitos constitucionais que, sem alteração em seu sentido ou alcance, não poderiam ser aplicados. A mutação inconstitucional, por sua vez, ao romper com o espírito da Constituição, acaba por distanciá-la ainda mais das circunstâncias reais da sociedade a que se dedica. Os abusos de poder, as omissões e o mau uso das ferramentas de interpretação dissolvem o verdadeiro papel de uma norma fundamental, rompendo com sua supremacia e retirando sua eficácia. Embora tenhamos diversos mecanismos de mutação constitucional, com vista a adaptar a norma ao tempo e ao meio em que é aplicada, nossa Constituição encontra-se cada vez mais desvalorizada por ações dos próprios legitimados para salvaguardá-la. “Não sejamos ridículos. A Constituição de 1988 não está mais em vigor. (...) A Constituição é hoje o que a Presidência quer que ela seja, sabendo-se que todas as vontades do Planalto são confirmadas pelo Judiciário”150. Esse sentimento, amplamente presente na sociedade atual, se deve, em grande parte, à pouca atenção dispensada pelos três poderes estatais no efetivo 148 149 150 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 131. SOUSA, Marcelo Rebelo de. Direito Constitucional – Introdução à Teoria da Constituição. Braga: Livraria Cruz, 1979, p. 62. COMPARATO, Fábio Konder. Uma morte espiritual. Folha de São Paulo, caderno 1, 14 de maio de 1998, p. 3. 56 cumprimento da norma constitucional. Os guardiões da Constituição não levam mais em consideração que não basta “ter uma Constituição promulgada e formalmente vigente, impende atuá-la, completando-lhe a eficácia para que seja totalmente cumprida”151. Essa falta de comprometimento do Executivo, do Legislativo e do Judiciário leva a uma descrença na Constituição por parte da sociedade, fazendo com que ela tenha seu brilho empalidecido152. Essa ordem normativa supõe, portanto, a um só tempo, uma ordem ideal de valores, a ser realizada, e uma ordem concreta aberta e receptiva, a ser efetivamente cumprida e praticada. Sem a confluência dos dois fatores, a Constituição é letra morta, perece, deixa de merecer o respeito do povo porque não traduz, de modo real, a idéia de direito dominante no seio da sociedade.153 A inatividade dos poderes do Estado configura o que a doutrina chama de inércia154 constitucional, caracterizada pelo não cumprimento intencional e prolongado das disposições da Constituição. Na medida em que paralisam a aplicação da norma fundamental, os agentes incumbidos de lhe dar execução desvirtuam sua finalidade, alterando o sentido e o alcance de seu texto, de forma a distanciá-lo da realidade circundante. Essa alteração, que torna ineficazes os comandos constitucionais, é uma forma de mutação inconstitucional. Seu fundamento está no descomprometimento ou nos abusos verificados por parte dos poderes constituídos, que agem para impedir a adaptação da Constituição às necessidades dos cidadãos. Há casos em que a inércia não caracteriza mutação inconstitucional, quando as disposições que se deixa de aplicar não estão de acordo com a finalidade da Constituição, entendida em seu conjunto, ou ainda, quando são tão complexas que se tornam inexeqüíveis na prática. Essa inércia se faz necessária pelas mesmas razões que fundamentam as mutações constitucionais. Acontece que o que vemos mais frequentemente, em nosso país, é uma inércia que ocorre em virtude de interesses da corrente política dominante, que vê o cumprimento de determinado dispositivo constitucional como inoportuno ou indesejado, 151 152 153 154 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 212. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. 2 ed. Barcelona: Ariel, 1976. CUNHA, Anna Candida da. Processos informações de mudança da Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 232. CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. 57 contribuindo para que ocorra o que Loewestein chamou de erosão da consciência constitucional155. Conforme lição de Milton Campos: “Muitos textos existem na Lei Fundamental que, por fantasiosos e inúteis, são esquecidos. Outros, por muito severos ou inconciliáveis com as condições do meio, são relegados e jazem inoperantes. Outros, ainda, são frustrados pela inércia ou pela solércia dos executores”156. Para Comparato, a “única razão de ser de uma Constituição é proteger a pessoa humana contra o abuso de poder dos governantes”157. Infelizmente, nos faltam recursos para um controle efetivo da inércia e do abuso dos Poderes estatais, mas eles se mostram enfraquecidos nos “países onde há opinião pública forte e bem estruturada, onde a educação, particularmente no campo político, é suficientemente desenvolvida, onde existe imprensa responsável e efetivamente atuante, onde os sistemas de representação são adequados e realmente democráticos”158. No Brasil, a sociedade ainda carece de um espaço mais acessível para que possa agir em prol da efetivação dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. 155 156 157 158 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. 4 ed. Barcelona: Ariel, 1986. CAMPOS, Milton. Constituição e realidade. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1960, p.21. COMPARATO, Fábio Konder. Uma morte espiritual. Folha de São Paulo, caderno 1, 14 de maio de 1998, p. 3. FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição – Mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1986, p. 230. 58 3 O FENÔMENO DA MUTAÇÃO NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO 3.1 O guardião da Constituição O Supremo Tribunal Federal, mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro, exerce a defesa dos valores da Constituição, através da jurisdição constitucional. É composto de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos de notório saber jurídico e reputação ilibada, com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da maioria absoluta do Senado Federal159. Responsável pela guarda da Constituição, além de exercer funções de Suprema Corte, também possui competências típicas de uma Corte Constitucional. José Afonso da Silva distingue, para um estudo didático, três grupos de jurisdição exercidas pelo STF: jurisdição constitucional com controle de constitucionalidade, jurisdição constitucional de liberdade e jurisdição constitucional sem controle de constitucionalidade160. As matérias de sua competência lhe são atribuídas de três formas pela Constituição: originariamente, em recurso ordinário ou em recurso extraordinário. A Constituição de 1988 prevê a competência originária desse Tribunal, como Juízo único e definitivo, em seu artigo 102, inciso I. Atua, em algumas questões, como um Tribunal da Federação, compondo litígios de natureza constitucional, sem entrar no campo do controle de constitucionalidade. Outras vezes, seja originariamente seja em sede recursal, exerce jurisdição constitucional de liberdade, provocada por “remédios constitucionais destinados à defesa dos direitos fundamentais”161. O parágrafo 1º do artigo 102 prevê, ainda, a apreciação, pelo Supremo Tribunal Federal, da arguição de descumprimento de preceito fundamental, instrumento que alarga sua missão de defesa 159 160 161 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 101 e parágrafo único. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 560. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 561. 59 das garantias constitucionais162. Na qualidade de Tribunal de última instância, é competente para julgar, em recurso ordinário, além do crime político, o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção sempre que denegatória a decisão de outros Tribunais Superiores. Exerce, ainda, no âmbito de sua competência originária ou em recurso extraordinário, o controle de constitucionalidade da legislação infraconstitucional. O Brasil não possui uma Corte Constitucional, como se vê em alguns países, cabendo, portanto, ao STF aferir a compatibilidade do Direito federal ou estadual com a Constituição. A discussão na Constituinte sobre a instituição de uma Corte Constitucional, que deveria ocupar-se fundamentalmente, do controle de constitucionalidade, acabou por permitir que o Supremo Tribunal Federal não só mantivesse a sua competência tradicional, com algumas restrições, bem como adquirisse novas esignificativas atribuições. A Constituição de 1988 ampliou significativamente a competência originária do Supremo Tribunal Federal, sobretudo em relação ao controle abstrato de normas (...).163 Esse Tribunal é originariamente competente para processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, bem como os pedidos de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade. Em sede recursal, o STF aprecia, via recurso extraordinário164, decisões proferidas em única ou última instância que contrariem dispositivo constitucional, declarem inconstitucional tratado ou lei federal ou julguem válida legislação contestada em face da Constituição. Nesse sentido, seja pelo exercício de suas funções de última instância do Poder Judiciário seja por sua atuação como Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal Federal é considerado, pela própria Constituição, seu legítimo guardião. Efetivamente, se a Constituição é suprema na hierarquia das normas, [...] é bem de ver-se a necessidade imprescindível, em que se encontra a própria Constituição, de organizar um sistema ou processo adequado de sua própria 162 163 164 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 40. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 955. 60 defesa, em face dos atentados que possa sofrer.165 Assim, afirma Calil: “Para garantir essa função basilar e orientadora, ou seja, para assegurar que essa norma seja respeitada, surge o Sistema de Controle de Constitucionalidade”166. Esse instrumento de defesa da Constituição pode ser exercido de três maneiras: por controle concentrado (ou político), por controle difuso (ou judicial) ou por controle misto167. O primeiro, predominante na Europa, entrega a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade a um poder de natureza política. Nesse sistema, as Cortes Constitucionais, a partir de um critério de controle concentrado, são os únicos tribunais competentes para julgar conflitos constitucionais. No segundo, utilizado nos Estados Unidos, a verificação da compatibilidade entre a Constituição e a legislação infraconstitucional cabe à jurisdição ordinária, de forma difusa. Esse sistema norte-americano adota um critério de natureza técnicojurídica, fazendo com que o Poder Judiciário aprecie a Constituição em função do caso concreto e não, necessariamente, em função da guarda de seus valores políticos e ideológicos168. O controle misto169, adotado pela Constituição brasileira, combina o critério difuso com o critério concentrado. O controle de constitucionalidade difuso é exercido por todos os componentes do Poder Judiciário, ou seja, qualquer juiz ou Tribunal pode exercer jurisdição constitucional através da não aplicação, no caso concreto, de lei ou ato considerado inconstitucional. A decisão terá, a princípio, valor inter partes, dando-se primazia à solução de um caso concreto. Assim, no País, nosso controle de constitucionalidade pode dar-se como preliminar de mérito em qualquer processo, cível ou penal, de tal forma que todo cidadão tem o direito de se opor ou de argüir uma inconstitucionalidade e todo 165 166 167 168 169 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 372. SIMÃO, Calil. Elementos do sistema de controle de constitucionalidade. 1 ed. São Paulo: SRS, 2010, p. 2. PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Resumo de direito constitucional descomplicado. 2 ed. São Paulo: Editora Método, 2009, p. 302-303. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Apontamentos sobre o controle de constitucionalidade. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo: Centro de Estudos, n.34, 1990, p. 28-29. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1061. 61 juiz ou tribunal, da primeira à última instância, não só pode mas deve, como atividade típica e função intrínseca à jurisdição brasileira, apreciar a constitucionalidade de lei ou ato normativo de qualquer espécie, negando a aplicação de “comando” eivado de inconstitucionalidade. Nesse sentido é que José Luiz Quadros de Magalhães firma: “No Brasil, toda jurisdição é jurisdição constitucional”, no que tem toda razão.170 Já o controle de constitucionalidade concentrado é de competência do Supremo Tribunal Federal. Nesses casos, suas decisões serão vinculantes e terão valor erga omnes, evidenciando, aí, a importância que se dá à guarda de valores constitucionais. Cabe frisar, no entanto, que essa função não faz do STF uma Corte Constitucional. Primeiro porque o controle de constitucionalidade não cabe exclusivamente a esse Tribunal. Quando exercida de forma difusa, cabe a todos os juízes e Tribunais brasileiros, bem como a qualquer cidadão, afinal, como bem expôs Cattoni: “A cidadania não precisa de tutores”171. Segundo, o STF não atua somente em questões de controle, possuindo, como já vimos, outras competências em matéria de jurisdição constitucional. Sendo assim, também os casos concretos que envolvem questões constitucionais são levadas a seu conhecimento e julgamento. O STF pode participar, igualmente, da forma difusa de controle, como Tribunal de última instância, apreciando questões concretas que chegam a seu conhecimento através de recurso extraordinário. Nessas situações, José Afonso da Silva entende que o Supremo Tribunal Federal costuma examinar a questão baseandose em critério técnico-jurídico, dando primazia à solução do caso concreto, sempre que houver a possibilidade de julgar o litígio sem declarar a inconstitucionalidade da lei ou do ato. É certo que o art. 102 diz que a ele compete, precipuamente, a guarda da Constituição. Mas não será fácil conciliar uma função típica de guarda dos valores constitucionais (pois, guardar a forma ou apenas tecnicamente é falsear a realidade constitucional) com sua função de julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância (base do critério de controle difuso), quando ocorrer umas das questões constitucionais enumeradas nas alíneas do inc. III do art. 102, que o mantém como Tribunal de julgamento do caso concreto que sempre conduz a preferência pela decisão da lide, e não pelos valores da Constituição, como nossa história comprova172. 170 171 172 CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 123. CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 123. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 559. 62 Acontece que também a solução do caso concreto em jurisdição constitucional envolve a guarda dos valores da Constituição, afinal, o controle difuso é, igualmente, controle de constitucionalidade. Deveras, não basta que a forma ou o texto sejam preservados, se sua aplicação não puder ser efetiva. É através da apreciação da incidência da norma constitucional nas circunstâncias de fato que se verifica sua eficácia. E não deixar se tornarem ineficazes suas normas é preservar e defender a Constituição. Nessa esteira, não há que se falar num choque entre o julgamento do caso concreto e a guarda de valores constitucionais. Muito pelo contrário, sempre que respeitar os limites impostos pela Norma Suprema, a decisão de um conflito que envolva seus preceitos vem ampliar sua aplicação de forma a concretizar seus valores no mundo dos fatos. Sendo esse o objetivo da nossa Carta, o controle difuso de constitucionalidade vem somar forças ao controle concentrado e dar ao STF um instrumento de ampliação da sua missão de guardião. Aliás, o controle difuso173, também denominado aberto, indireto ou por via de exceção, nos parece ainda mais eficaz na real conservação de preceitos constitucionais. Isso porque deve ser baseado em diversos fatores da sociedade, enquanto o poder concentrado sofre maior influência de caráter político. Assim, quando aplicados às circunstâncias de fato de uma sociedade, os dispositivos constitucionais tornam-se concretos e a Constituição é efetivamente defendida. Se concluímos que a mutação constitucional é a implicação de novos sentidos ao texto constitucional, advindos justamente do mundo fático, através de um poder constituinte difuso, temos que admitir que o papel exercido pelo STF na jurisdição constitucional, principalmente no que tange o controle de constitucionalidade difuso, é um de seus grandes vetores174. A forma mais visível de mutação do significado ou alcance de um conceito previsto pela Constituição é justamente a interpretação utilizada pelo Supremo Tribunal Federal em suas decisões175. A mutação da Constituição, para que sirva à sua função de concretização da norma, através da adaptação do Direito 173 174 175 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.137-153. NEVES, Carmen Nasaré Lopes. Mutação constitucional em face da hermenêutica judicial no controle por via de exceção. Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Brasília, ano 12, edição especial, abril de 2004, p. 7-50. STRECK, Lenio. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 468. 63 escrito à realidade social, deve ser válida, deve ser constitucional. Quando não é dado pelo próprio STF, o novo sentido acaba passando, de qualquer forma, pelo crivo desse Tribunal, numa espécie de controle de constitucionalidade. Segundo o professor Luís Roberto Barroso, “A última palavra sobre a validade ou não de uma mutação constitucional será sempre do Supremo Tribunal Federal”176. Para que se possa entender melhor a importância do Poder Judiciário na mutação provocada por interpretação orgânica, elencaremos, aqui, alguns exemplos: a) Mutação por interpretação judicial: O artigo 102, inciso I, alínea a, da Constituição da República, confere ao Presidente da República, ao Vice-Presidente, ao Procurador-Geral da República, aos membros do Congresso Nacional e a seus Ministros o chamado foro por prerrogativa de função. Compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, as infrações penais por eles cometidas. Por muito tempo, entendeu-se que o foro privilegiado estava associado ao ato praticado pelo agente, subsistindo, por isso, à cessação do exercício da função. Era o que afirmava o verbete n. 394 da Súmula do STF. Através de decisão proferida no inquérito 687177, em 1999, o STF cancelou o enunciado da Súmula, demonstrando o entendimento de que sua competência estava vinculada ao exercício do cargo pelo agente condenado. Nota-se que o dispositivo constitucional sofre mudanças em sua aplicação, sem necessidade de alteração de sua letra, plenamente compatível com a nova interpretação dada pelo Poder Judiciário. b) Mutação por interpretação administrativa: A prática constante observada no âmbito da estrutura do Poder Judiciário de contratar parentes de magistrados para cargos que não dependiam de concurso foi considerada costume contra constitutionis178, ensejando a Resolução n. 7, de 14 de novembro de 2005, do Conselho Nacional de Justiça. Declarado constitucional pelo STF179, o ato administrativo fez com que o nepotismo deixasse de ser socialmente tolerado, provocando uma mutação nos valores 176 177 178 179 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 133. Inq 687 QO/SP, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Sydney Sanchez, j. 25/08/1999. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. ADC 12/DF, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Carlos Britto, j. 20/08/2008. 64 dos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade, que adquiriram novo alcance através de interpretação administrativa, confirmada pelo Poder Judiciário. c) Mutação por interpretação legislativa: O professor Barroso nos traz um exemplo hipotético, depois de alertar para o fato de não bastar simples elaboração de lei nova para que se configure mutação por atuação do legislativo. A mutação terá lugar se, vigendo um determinado entendimento, a lei vier a alterá-lo. Suponha-se, por exemplo, que o § 3º do art. 226 da Constituição - que reconhece a união estável entre homem e mulher como entidade familiar viesse a ser interpretado no sentido de considerar vedada a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Se a lei ordinária vier a disciplinar esta última possibilidade, chancelando as uniões homoafetivas, terá modificado o sentido que se vinha dando à norma constitucional”180. O que se percebe desses exemplos é que a validade de uma mutação constitucional acaba sempre passando pelo crivo do Supremo Tribunal Federal. No exercício de seu papel de guardião da Constituição, declarou constitucional o ato administrativo do primeiro exemplo, cuidou da interpretação judicial no segundo e, certamente, daria a última palavra a respeito da mutação provocada pela lei do terceiro caso, quando de sua sujeição ao controle de constitucionalidade. Aliás, no caso tomado como exemplo de interpretação judicial, o Congresso aprovou a Lei n. 10.628, em 2002, restabelecendo o antigo entendimento sobre a fixação de competência por prerrogativa de função, desfazendo, através de atuação legislativa, a mutação constitucional provoca pelo Judiciário. O STF declarou a Lei inconstitucional, em 2005, restabelecendo a validade da mutação181. As maiores implicações do reconhecimento, pelo intérprete, da influência de determinado fato na aplicação da norma ao caso concreto incidem no plano do controle de constitucionalidade das leis. O Supremo Tribunal Federal pode invocar, nesses casos, diversos instrumentos constitucionais desenvolvidos pela jurisprudência para fundamentar suas decisões no controle abstrato de normas182. Gilmar Mendes elenca cinco categorias de possibilidades que tem o STF ao julgar a constitucionalidade de uma norma: a declaração de nulidade da lei, a interpretação conforme à Constituição, a 180 181 182 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 132 - 133. ADI 2.797/DF e ADI 2.806/DF, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, j. 15/09/2005. ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 115 65 declaração de constitucionalidade das leis, a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade e a declaração de inconstitucionalidade de caráter restritivo ou limitativo183. Não é o objetivo desse trabalho se aprofundar em cada uma das possibilidades de que dispõe o Poder Judiciário na análise da adequação das normas infraconstitucionais à Constituição. Vale alertar, no entanto, para a importância de alguns instrumentos na compreensão do fundamento do processo de mutação. Da verificação da constitucionalidade, o STF pode declarar uma Lei como sendo ainda constitucional184, ou seja, a Lei será constitucional até o advento de certa condição. Foi o que aconteceu em decisão proferida no HC 70.514, de 23 de março de 1994, quando da análise da constitucionalidade da Lei que concedia prazo em dobro para os recursos da Defensoria Pública nos processos judiciais. O parágrafo 5º do artigo 5º da Lei n. 7.871, de 8 de novembro de 1989, haveria de ser inconstitucional por conceder prazo à Defensoria Pública superior àquele estipulado para o Ministério Público. No entanto, entendeu o STF no sentido de que a disparidade atendia a realidade das estruturas desses órgãos, já que o Ministério Público é instituição bem mais antiga do que a Defensoria. Assim pronunciou-se o Ministro Moreira Alves: A única justificativa que encontro para esse tratamento desigual em favor da Defensoria Pública em face do Ministério Público é a de caráter temporário: a circunstância de as Defensorias Públicas ainda não estarem, por sua recente implantação, devidamente aparelhadas com se acha o Ministério Público. [...] Assim, a lei em causa será constitucional enquanto a Defensoria Pública, concretamente, não estiver organizada com a estrutura que lhe possibilite atuar em posição de igualdade com o Ministério Público, tornando-se inconstitucional, porém, quando essa circunstância de fato não mais se verificar.185 Não pretendemos entrar, aqui, no mérito da questão. O exemplo foi utilizado tão somente para a demonstração da possibilidade do reconhecimento da influência de circunstâncias de fato na interpretação e aplicação de uma norma. Como vimos, a mutação pode dar-se tanto por uma mudança na percepção do direito como na alteração fática da realidade circundante. O recurso à declaração de lei ainda 183 184 185 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1257. HC 70.514/RS, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Sydney Sanches, j. 23/03/1994. 66 constitucional é construção da doutrina alemã, constituindo “exemplo clássico do processo de inconstitucionalização (Verfassungswidrigweden) em virtude de uma mudança nas relações fáticas”186, o que pode gerar uma mutação no sentido ou no alcance do dispositivo constitucional a que Lei ainda se adéqua187. Trata-se a este propósito de que as relações fácticas ou usos que o legislador histórico tinha perante si e em conformidade aos quais projectou a sua regulação, para os quais a tinha pensado, variaram de tal modo que a norma dada deixou de se “ajustar” às novas relações. É o factor temporal que se faz notar aqui. Qualquer lei está, como facto histórico, em relação actuante com o seu tempo. Mas o tempo também não está em quietude [...]. Existe, a princípio, ao invés, uma relação de tensão que só impele a uma solução – por via de uma interpretação modificada ou de um desenvolvimento judicial do Direito – quando a insuficiência do entendimento anterior da lei passou a ser “evidente”.188 A declaração de nulidade parcial da lei sem redução de seu texto é outro efeito da sentença em controle de constitucionalidade que pode gerar mutação. O Supremo Tribunal Federal tem a possibilidade de, apreciando a aplicabilidade da norma a determinado caso concreto, declarar sua inconstitucionalidade parcial, sem modificar seu texto, limitando-se a considerar inconstitucional apena determinada hipótese de aplicação189. Essa técnica, advinda da jurisprudência alemã, pode aparecer como resultado de uma interpretação conforme à Constituição190, embora não exclusivamente. Enquanto a interpretação conforme à Constituição pode ser feita por qualquer juiz ou Tribunal, muito utilizada na jurisdição constitucional sem controle de constitucionalidade ou no controle difuso, a declaração de nulidade – parcial ou não, com ou sem alteração do texto – só pode ser proferida pelo STF191. A interpretação conforme à Constituição é um recurso que leva em consideração a percepção da norma, outra causa de mutação já estudada aqui. O 186 187 188 189 190 191 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 298. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1022. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 495. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 344. COELHO, Inocêncio Mártires. Declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto, mediante interpretação conforme: um caso exemplar na jurisprudência do STF. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas. São Paulo, n. 23, 1998, p. 169-188. SILVA, Virgílio Afonso da Silva. Interpretação conforme a Constituição: entre a trivialidade e a centralização judicial. Revista Direito GV 3, janeiro-junho de 2006, p. 201. 67 intérprete da norma, sempre que em seu texto caibam interpretações diferentes, deve sempre preferir aquela que está de acordo com a Constituição, devido a uma presunção que se estipulou de que o legislador sempre quer positivar uma norma que seja constitucional192. O instrumento é muito utilizado na solução de casos concretos, vinculando apenas as partes envolvidas. Mas também serve às decisões no âmbito do controle de constitucionalidade, sendo que a norma pode ser declarada constitucional, desde que interpretada da forma que a torne compatível com a Constituição193. Conforme Gilmar Mendes, “a interpretação conforme à Constituição não deve ser vista como um simples princípio de interpretação, mas sim como uma modalidade de decisão do controle de normas, equiparável a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto”194. Muitas vezes, e como ocorreu na questão trazida pela ADI 4277195, a norma é interpretada, majoritariamente, em desconformidade com a Constituição. Faz-se necessário, então, o recurso ao STF para que esse órgão dite o sentido ou o alcance que deve ser utilizado por todos os outros juízes e Tribunais. A norma, apesar de sempre ter sido constitucional (vez que assume interpretação compatível com a Constituição), poderia estar sendo aplicada de forma a ferir dispositivos da Norma Suprema. A partir da decisão do órgão responsável pelo controle de constitucionalidade, ela passa a ser utilizada de forma adequada. Aspecto interessante desse recurso é que, muitas vezes, ele provoca, igualmente, mutação do preceito constitucional que, antes, a norma violava. A jurisprudência brasileira também tem sido elemento de mutação constitucional. Expressiva, a este propósito, é a denominada interpretação conforme a Constituição, pela qual, havendo mais de uma interpretação plausível do texto de norma infraconstitucional, adota-se aquela que seja compatível com a Constituição. Ao promover a interpretação conforme a Constituição, o Supremo Tribunal Federal acaba por operar mudança na Constituição, pois não se limita apenas a pronunciar ou não a 192 193 194 195 BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 93. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1251. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 346. ADI n. 4277/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011. 68 inconstitucionalidade, mas até mesmo diz o que o texto constitucional não diz.196 Isso acontece porque, normalmente, quando a norma é aplicada de forma inconstitucional, o preceito com o qual estava em desconformidade também pode assumir mais de uma interpretação. Afinal, se os juízes e Tribunais a interpretavam de tal forma, é porque ela parecia ser compatível com o texto da Constituição. Nem sempre, isso se deve a uma má interpretação da norma em si. O dispositivo constitucional que ela viola também pode estar sendo lido de maneira inadequada, seja por falta de uma compreensão sistemática da Constituição como um todo, seja por uma evolução da sociedade e dos fatos que trouxe a necessidade de novas visões. Nesse momento, o Poder Judiciário tem o papel de extrair não só o melhor sentido da norma infraconstitucional, mas da própria Constituição. Como veremos na análise do caso da união homossexual, tanto a lei ordinária como a Constituição tiveram que ser interpretadas conforme os princípios constitucionais. 3.2 Elementos de pré-compreensão para análise de caso A mutação constitucional, apesar de ser pouco explorada pela doutrina, não é um fenômeno recente. Normalmente, as mudanças se sedimentam no decorrer de diferentes gerações, fazendo com que a geração que a gerou, muitas vezes, não veja seu resultado prático. Novas gerações costumam adotar acepções dos dispositivos constitucionais diferentes daquelas pretendidas pelo legislador constituinte originário. Na maioria das vezes, isso acontece sem que se conheça as raízes do dispositivo e suas antigas interpretações. As gerações de hoje encontram diversas interpretações tão sedimentadas que nem mesmo cogitam as hipóteses de aplicação da antiga compreensão que se tinha do texto. Costuma-se conhecer a evolução histórica dessa aplicação somente num estudo mais aprofundado do dispositivo. Quem nasceu no século XXI, por exemplo, já não encontrará as mesmas discriminações superadas pela antiga sociedade. E, ainda que determinado preconceito não esteja totalmente superado, a discussão que se faz em torno de sua previsão constitucional certamente 196 CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição, Direito Constitucional Positivo. 15 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 330-331. 69 adquiriu outro enfoque e tomará novos rumos. Ao longo da história constitucional brasileira, diversos dispositivos foram dotados de nova interpretação ou aplicação. Mesmo as previsões mais evidentes tomam novas acepções. Alguns dos conceitos que parecem, à primeira vista, óbvios e bem delimitados, envolvem, na verdade, tantos fatores que se tornam passíveis de mudanças tão amplas quanto aquelas que ocorrem com os princípios. Conceitos mais abertos ou gerais – como ordem pública, interesse social, bem comum, dano moral, abuso de poder, segurança jurídica – e enunciados de princípios positivados – como dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, razoabilidade, moralidade, liberdade, igualdade –, que precisam ser integrados ao tempo de sua concretização, costumam mudar mais rapidamente, de acordo com as novas percepções e exigências da sociedade. Estudaremos, aqui, algumas mudanças percebidas na compreensão e aplicação do Direito Constitucional brasileiro, para que se possa entender melhor o caso que será analisado ao final desse trabalho. Destacamos, no entanto, que o objetivo do nosso estudo não é conhecer, especificamente, as origens e os movimentos históricos e sociais que culminaram na mudança de percepção e interpretação dos conceitos analisados, mas tão somente compreendê-los de maneira a tornar mais clara a análise da mutação constitucional verificada na interpretação feita pelo Supremo Tribunal Federal na decisão de um caso concreto. Faremos, portanto, uma breve síntese da trajetória que percorreu o conceito de família na história constitucional brasileira. A família, antes patriarcal, só poderia ser formada, até os anos 60, através do casamento. Essa perspectiva é reflexo da realidade da polis grega, onde se fazia necessário o casamento para a configuração do status de bom cidadão197. Nessa sociedade – e na concepção de muitos, ainda hoje, inclusive –, o objetivo maior da união de duas pessoas, ou melhor, do sexo, era a procriação. Somente os filhos havidos na constância de um casamento eram legítimos, já que essa era a única forma de união socialmente aceita. No entanto, não é de hoje que se sabe que o casamento não é a única forma real de união e que as pessoas não 197 FOUCAULT, Michael. História da Sexualidade. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 70 se unem exclusivamente na intenção de procriar. Aliás, o que também não é novidade, mesmo as pessoas casadas se unem com outras pessoas, de tantas outras maneiras, por tantos outros motivos. O Código Civil de 1916 estigmatizava o concubinato como família ilegítima, sem proteção legal. Com o passar do tempo, os dissídios referentes aos bens de quem possuía uma concubina (não se falava juridicamente no concubino) passaram a ser resolvidos sob a égide do Direito das Obrigações. O concubinato era tanto a relação da pessoa casada com uma amante – utilizando, aqui, a conotação usual da palavra – como a união não formalizada pelo casamento civil, reprimida, durante muito tempo, pela lei e pela convenção social. No entanto, convencionou-se diferenciar os termos concubino e companheiro, na intenção de distanciar a poligamia – ainda repudiada pelo Direito – da união estável, quando esta última passou a ter proteção legal198. Num primeiro momento, a proteção da companheira começa com o direito a indenização por serviços domésticos; mais tarde, passa-se a reconhecer a existência de uma sociedade de fato. Em 1964, o STF editou a Súmula 380, consolidando jurisprudência que tratava a relação do concubinato como sociedade de fato e substituía o entendimento de prestação de serviços domésticos pela assistência mútua: “Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos é cabível a sua dissolução judicial com partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. A doutrina destaca a importância que se dava à prova da contribuição mútua na construção do patrimônio do casal para caracterização da sociedade e possibilidade de partilha199. A Constituição de 1967 ainda dispunha em seu artigo 167: “A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos”. Face ao desenvolvimento cultural ocorrido na sociedade daquela época, começou-se a construção de uma jurisprudência que reconhecia efeitos jurídicos à união de pessoas 198 199 “Companheira e concubina. Distinção. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. [...] A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato. [...] A titularidade da pensão decorrente do falecimento de servidor público pressupõe vínculo agasalhado pelo ordenamento jurídico, mostrando-se impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da família, a concubina”. (RE 590.779/ES, Primeira Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio, j. 10/2/2009) FONTANELLA, Patrícia. União Estável: a eficácia temporal das leis regulamentadoras. 2 ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 37. 71 que não haviam se casado, passando a ser considerada união de fato. O companheiro ou a companheira passaram a ser admitidos, pela legislação previdenciária, como beneficiários do segurado. A questão ainda era tratada somente no plano patrimonial, com efeitos assistenciais, locatícios, previdenciários. Mas, já se notava uma efetiva mutação naquilo que se entendia por família. A família antes considerada ilegítima passa a estar legalmente amparada: Com a evolução jurisprudencial, alguns direitos dos concubinos passaram a ter guarida em legislações esparsas. O reconhecimento do filho havido fora do casamento foi previsto no Decreto-Lei 4.737/42, mas exigia a separação legal do casal. Todavia, com a regulamentação posterior (Lei 883/49) acrescentou-se a possibilidade de reconhecimento em mais duas hipóteses: morte ou anulação do casamento. Com a Lei do Divórcio (Lei 6.515/77) tornou-se possível o reconhecimento do filho adulterino na constância do casamento, desde que fosse feito em testamento cerrado. Com a Súmula 447, do STF, foi legitimada a validade de disposição testamentária em benefício do filho com sua concubina200. A Constituição de 1988, recepcionando expressamente a mutação na figura da união estável, afastou a hierarquia que existia entre ela e o casamento, através do disposto no parágrafo 3º de seu artigo 226, verbis: “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. A Constituição Federal, que buscou retratar a sociedade por uma ótica de modernidade, deu nova dimensão ao conceito de família. Introduziu um termo generalizante – entidade familiar – a englobar, além da relação decorrente do casamento, também a união estável entre um homem e uma mulher (art. 226, & 3º) com o que emprestou juridicidade ao relacionamento até então marginalizado pela lei.201 A norma constitucional tratou também de outra forma de família, a chamada monoparental, formada por apenas um dos pais e seus filhos. Dessa forma, a nova ordem veio conferir status de entidade familiar à união estável e às famílias chamadas monoparentais, rompendo com o conceito de que família é somente a união decorrente do casamento202. O Ministro Marco Aurélio, ao proferir voto no julgamento da ADI 4277, discorre nesse sentido: “O processo evolutivo encontrou ápice na promulgação da Carta 200 201 202 FONTANELLA, Patrícia. União Estável: a eficácia temporal das leis regulamentadoras. 2 ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 39. DIAS, Maria Berenice. O concubinato Legal. Porto Alegre: Jurisplenum, 1997. CD ROM. BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias Homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 79. 72 de 1988. O Diploma é o marco divisor: antes dele, família era só a matrimonial, com ele, veio a democratização – o reconhecimento jurídico de outras formas familiares”203. A Lei 8.971, de 1994, veio regulamentar o artigo 226 da Constituição, reconhecendo aos companheiros, em união estável, o direito a alimentos, sucessão e meação. Estabelecia, no entanto, que os companheiros deveriam possuir, para reconhecimento desses direitos, cinco anos de convivência ou filho em comum e que entre eles não poderia haver os impedimentos legais previstos para o casamento. A Lei 9.278, editada em 1996, ficou conhecida como a Lei da União Estável, estabelecendo, em seu artigo 1º: “É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Em seus artigos seguintes, a lei estabelecia os direitos e deveres dos companheiros, quais sejam: presunção de aqüestos, direitos a alimentos e da habitação em relação ao imóvel destinado à residência familiar; a conversão da união estável em casamento por simples requerimento ao oficial do Registro Civil (ignorando-se assim os impedimentos previstos no Código Civil). Ainda, previa a competência das Varas da Família para resolver os litígios advindos da união estável.204 Em 2002, entra em vigor o novo Código Civil, que incorpora as mudanças na legislação referente à família. “A inserção do título ‘União Estável’ no Livro de Família do novo Código Civil brasileiro, talvez tenha sido a grande mudança feita neste novo diploma legal”205. Em seu artigo 1.723, reconhece a união estável nos moldes do disposto na Lei 9.278/96, sem estipular um tempo determinado para sua configuração. Pode ser que uma relação entre homem e mulher, com 30 anos de duração, seja apenas um namoro. Pode ser que uma relação de apenas um ou dois anos constituía uma família. Ou seja, não é o tempo com determinação de x ou y meses, ou anos, que deverá caracterizar ou descaracterizar uma relação como união estável.206 No entanto, as novas disposições, trazidas de forma expressa na Carta de 1988, e a proteção que se deu à união estável não fizeram sedimentar o entendimento 203 204 205 206 ADI n. 4277/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011. FONTANELLA, Patrícia. União Estável: a eficácia temporal das leis regulamentadoras. 2 ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 47. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Da União Estável. In: ____ (Coord.) Direito de Família e o NCC. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 226. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Da União Estável. In: ____ (Coord.). Direito de Família e o NCC. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 228. 73 que se tem de família. Ainda hoje, discute-se a possibilidade de proteção de outras formas de união. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina acaba de julgar, em novembro de 2011, um caso que repercutiu na mídia como o “quadrilátero amoroso” 207. A decisão determinou a divisão da pensão de um funcionário público, após a morte da viúva, entre duas mulheres que provaram terem nutrido com ele relacionamento amoroso duradouro208. Outra grande discussão se faz em torno das uniões homossexuais, levada, também esse ano, ao Supremo Tribunal Federal, conforme veremos adiante. Também o conceito de igualdade, que tanto mudou até os tempos atuais, continua em pleno debate e carrega sempre novas acepções. Diversas discriminações que, hoje, são repudiadas, já foram aceitas por gerações passadas. Antigamente, toleravam-se discriminações em razão de idade, crença, cor, sexo e orientação sexual. Apesar de se considerar superados vários desses preconceitos, muitos resquícios ainda são encontrados no atual panorama constitucional brasileiro. Além disso, novos contextos exigem novas visões dessas mesmas discriminações. Positivado na primeira Constituição brasileira, o princípio da isonomia, no Brasil Império, convivia com a legitimação da escravatura. A Carta de 1824 previa que a lei deveria ser igual para todos, mas fazia distinções em virtude de méritos e virtudes pessoais209, estando os negros proibidos de frequentar escolas. Em 1891, com o advento da República, os privilégios de classes saíram do texto constitucional, mas não da cultura da época. A Constituição de 1934 traz de forma expressa a abolição dos privilégios por motivos de “nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”210. O legislador de 1937 207 208 209 210 Viúva Morre, e Justiça divide pensão de marido entre amantes em SC. Revista Folha.com. Disponível em: http://folha.com/no1008782. Acesso em: 20 de novembro de 2011. “Embora seja predominante, no âmbito do direito de família, o entendimento da inadmissibilidade de se reconhecer a dualidade de uniões estáveis concomitantes, é de se dar proteção jurídica a ambas as companheiras em comprovado o estado de recíproca putatividade quanto ao duplo convívio com o mesmo varão, mostrando-se justa a solução que alvitra a divisão da pensão derivada do falecimento dele e da terceira mulher com quem fora casado” (AC n. 2009.041434-7/SC, Quarta Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Eládio Torret Rocha, j. em 10/11/2011). Constituição Política do Império do Brasil de 1984. Art. 179, inciso XIII: “A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Art. 179, inciso XIV: “Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes”. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Art. 113, 1: “Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”. 74 retirou do dispositivo que previa a igualdade perante a lei os elementos de distinção citados pela antiga norma. A Consolidação das Leis do Trabalho tornou defesa, a partir de 1943, a diferenciação de rendimentos com base na idade, nacionalidade ou sexo. A Constituição de 1946 veio proibir a propaganda que envolvesse preconceito de cor ou classe. A punição legal do racismo foi constitucionalizada em 1967. Nem por isso, a discriminação pela cor da pele de uma pessoa deixou de existir. Finalmente, a atual Constituição vem eleger, em seu preâmbulo, a igualdade como um dos valores supremos de “uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Apesar disso, mesmo depois de 1988, a sociedade vem enfrentando diversos preconceitos de cor, idade, orientação sexual, nacionalidade, crença, gênero, entre tantos outros. Seria impossível fazer, nesse breve estudo, uma análise dos motivos e consequências de cada uma dessas discriminações. Vamos, apenas, de forma bem sintética, exemplificar alguns momentos que fizeram mudar a percepção do princípio da isonomia em nosso ordenamento. A luta de sexos, notável na história mundial, fez amadurecer o conceito de igualdade entre homens e mulheres. No século XIX, surgiu, nos Estados Unidos e na Europa, o movimento feminista, no intuito de combater padrões opressores baseados em normas de gênero211. Sua primeira grande onda212 teve lugar numa sociedade patriarcal e veio combater casamentos arranjados e a propriedade das mulheres, que passava dos pais aos maridos. Ao adquirir cunho político, resultou na conquista do direito ao exercício de sufrágio pelas mulheres nos Estados Unidos, com a aprovação da 19ª Emenda em 1919. Até então, só os homens podiam votar e participar da vida política dos Estados. O movimento também ganhou força na luta por direitos sexuais, trabalhistas e econômicos. Nos anos 60, mulheres ativistas colocaram no chão, em praça pública, diversos utensílios femininos para simbolizar a libertação da opressão masculina, em episódio que ficou conhecido como a “queima dos sutiãs” (bra-burning). 211 212 CORNELL, Drucilla. At the heart of freedom: feminism, sex, and equality. Princeton: Princeton University Press, 1998. HUMM, Maggie. The dictionary of feminist theory. Columbus: Ohio State University Press, 1990, p. 278. 75 No Brasil, a Carta de 1891 não proibia expressamente o voto feminino, pois os constituintes da época entendiam que as mulheres não possuíam direitos políticos. O artigo 70 da Constituição da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil assim previa: "São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei". Em 1928, a advogada, adepta do movimento feminista no Brasil, Maria Ernestina Carneiro Santiago de Souza (conhecida como Mietta Santiago 213) impetrou Mandado de Segurança alegando que a proibição do voto feminino contrariava a Constituição em vigor214. A sentença lhe concedeu o direito de exercício do voto, bem como o direito a ser votada como candidata a deputada federal. O episódio inspirou o poeta Carlos Drummond de Andrade a escrever o poema Mulher Eleitora: “Mietta Santiago / loura poeta bacharel / conquista, por sentença de Juiz, / direito de votar e ser votada”. Com as mudanças advindas da luta pela igualdade política entre homens e mulheres, o dispositivo fora interpretado e aplicado de forma diversa do que pretendiam os constituintes originários, sem que seu texto sofresse alteração. Em 1932, o Decreto nº 21.076, que instituiu o primeiro Código Eleitoral Brasileiro, positivou a mutação em seu artigo 2º: “É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código”. A Constituição de 1934 trouxe expressa a ampliação constitucional do direito de voto para as mulheres. A sociedade de hoje vê superado o problema do sufrágio feminino, mas não o debate de questões de gênero. Atualmente, é discutida, por exemplo, a possibilidade de requisitos de sexo para acesso a cargos públicos215. Di Pietro considera que os agentes penitenciários devem ser do mesmo sexo dos presos, assim não “se poderia conceber que, para o cargo de guarda de presídio masculino, fossem admitidas candidatas do sexo feminino”216. Os autores que defendem a legitimidade da restrição baseiam-se, sobretudo, no princípio da eficiência da administração pública, no direito dos presos à intimidade e na segurança dos agentes. No entanto, a Constituição, 213 214 215 216 COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de. Enciclopédia de Literatura Brasileira. Minas Gerais: Global Editora e Distribuidora Ltda., 2001, p. 1074. COELHO, Nellly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras. Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda, São Paulo, 2002, p. 489-491. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curdo de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 277. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 445. 76 proíbe, em seu artigo 7º, inciso XXX, a diferença de critério de admissão em postos de trabalho por motivo de sexo, o que nem mesmo se faria necessário se levada a sério a positivação do princípio da igualdade, sem distinção de qualquer natureza. Em seu artigo 37, a Carta de 1988 prevê como requisito de investidura em cargo público somente a prévia aprovação em concurso. A discussão é fundada no entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de ser possível a vedação da participação em concurso público, desde que as restrições sejam consideradas fundamentais e indispensáveis para realização da atividade inerente ao cargo em disputa217. O que se quer evidenciar aqui, é que as alterações na interpretação dos dispositivos constitucionais não se estancam em uma ou outra decisão. Com o passar do tempo e as mudanças que se verificam na sociedade, novas questões surgem e, com elas, novas possibilidades de interpretação e aplicação dos preceitos da Constituição, sem necessidade de alteração de sua letra. Outras relativizações do conceito de igualdade estão em latente discussão na sociedade de hoje. A discriminação por motivo de orientação sexual ainda é exercida por alguns e tolerada por muitos. Diante dessa discriminação, volta-se à discussão em torno do conceito de família. A homossexualidade sempre esteve presente na história, mesmo dos povos mais remotos. No entanto, nunca foi plenamente aceita pela sociedade, devido, principalmente, à influência da Igreja na vida dos Estados. Reza a Bíblia: “Com o homem não te deitarás, como se mulher fosse: é abominação”218. Na Grécia antiga, no entanto, as relações homossexuais eram constantes e aceitas pela sociedade, em virtude da valorização que se dava ao belo, sem discriminação de sexo, como nos 217 218 “Concurso público: indeferimento de inscrição fundada em imposição legal de limite de idade, que configura, nas circunstâncias do caso, discriminação inconstitucional (CF, arts. 5º e 7º, XXX): segurança concedida. A vedação constitucional de diferença de critério de admissão por motivo de idade (CF, art. 7º, XXX) é corolário, na esfera das relações de trabalho, do princípio fundamental de igualdade (CF, art. 5º, caput), que se estende, à falta de exclusão constitucional inequívoca (como ocorre em relação aos militares – CF, art. 42º, § 11), a todo o sistema de pessoa civil. É ponderável, não obstante, a ressalva das hipóteses em que a limitação de idade se possa legitimar como imposição da natureza do cargo a preencher. Esse não é o caso, porém, quando, como se dá na espécie, a lei dispensa do limite os que já sejam servidores públicos, a evidenciar que não se cuida de discriminação ditada por exigências etárias das funções do cargo considerado” (RMS 21.046/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, j. 14/12/1990). BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1990, Lv 18:22. 77 explica Foucault: Podemos falar de sua “bissexualidade” ao pensarmos na livre escolha que eles davam entre os dois sexos, mas essa possibilidade não era referida por eles a uma estrutura dupla, ambivalente e “bissexual” do desejo – seus olhos, o que fazia com que se pudesse desejar um homem ou uma mulher era unicamente o apetite que a natureza tinha implantado no coração do homem para aqueles que são “belos”, qualquer que seja o sei sexo.219 A Igreja não demorou a atuar, tratando com rigor, através de dois Editos, nos anos 538 e 544, a questão da homossexualidade no Império romano220. “A partir daí Roma assume, expressamente, posicionamento contrário às práticas homossexuais. E será esta a orientação a ser seguida durante as Idades Média e Moderna”221. A repressão não fez parar o envolvimento entre pessoas do mesmo sexo, que, com o tempo, foi encontrando espaço na sociedade e ganhou maior visibilidade, principalmente no meio cultural, através do desenvolvimento do princípio da liberdade, com as idéias advindas da Revolução Francesa. Depois, perto do final do século XIX, quando a questão da homossexualidade emergiu com alguma hesitação, principalmente entre os homens, o destino dos extraviados tornou-se mais doloroso. Em vez de tornar suas vidas mais fáceis, a incerta liberdade recém conquistada só fez complicá-la ainda mais. A nova atenção produzia hostilidade, criava escândalos, suscitava chantagem, arruinava carreiras e levou alguns ao suicídio.222 O panorama levou à mobilização dos homossexuais ao redor do mundo, na busca de reconhecimento, na tentativa de fazer valer princípios como da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade, ignorados pela parte opressora da sociedade, mais ou menos como aconteceu com movimento feminista. A rebelião de travestis, denominada Motim de Stonewall, em 28 de junho de 1969, no Greenwich Village, em Nova Iorque – na qual, durante uma semana, ocorreram protestos e brigas de homossexuais com a polícia – ensejou a institucionalização dessa data como o Dia do Orgulho Gay.223 A discriminação se faz presente até hoje. Juízes e tribunais brasileiros não 219 220 221 222 223 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II – o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 168. VIDAL, Marciano; FERNANDEZ, Javier Gafo; FERNANDEZ, José Maria. Homossexualidade – Ciência e consciência. São Paulo: Loyola, 1998, p. 97. BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias Homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 34-35. GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud – A paixão terna. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 177. DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito & a injustiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 29 78 admitiam, até pouquíssimo tempo, o casamento ou a união entre pessoas do mesmo sexo. Insistiam em interpretar de forma restritiva as tantas normas que usam as palavras homem e mulher para caracterizar a formação de uma família, apesar do evidente choque de tal interpretação com diversos princípios constitucionais. Até que a questão, na busca de maior segurança jurídica no reconhecimento de uniões homossexuais, foi levada à apreciação dos guardiões da Constituição. 3.3 O Caso da união homossexual No dia 5 de maio de 2011, os Ministros do Supremo Tribunal Federal reconheceram como entidade familiar a união formada por duas pessoas do mesmo sexo. A decisão foi tomada no julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277224 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132225, ajuizadas pela Procuradoria Geral da República e pelo Estado do Rio de Janeiro, respectivamente, com pedido de interpretação conforme à Constituição Federal do artigo 1.723 do Código Civil226. A pretensão era de estender a proteção aos casais homossexuais, em respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), da igualdade (artigo 5º, caput), da vedação da discriminação (artigo 3º, inciso V), da liberdade (artigo 5º, caput) e da segurança jurídica (artigo 5º, caput), todos positivados na Constituição da República. Já vimos que a Constituição, norma suprema, é critério de validade de todas as outras normas do ordenamento jurídico. Se o Código Civil possui dispositivo que fere princípios constitucionais, basta que passe por um controle de constitucionalidade, como acontece com qualquer norma infraconstitucional. Vale relembrar, no entanto, que também a Constituição prevê, em seu artigo 226, parágrafo 3º: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. O que se pretendia, na verdade, era uma interpretação da própria 224 225 226 ADI n. 4277/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011. ADPF n. 132/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011. “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. 79 Constituição conforme os princípios de nosso Estado Democrático, uma mudança no alcance da norma em função da nova percepção do Direito, devida aos fatores presentes na sociedade. Como vimos, a união de pessoas do mesmo sexo já existia antes mesmo de existir Constituição, portanto, a extensão do alcance dessa norma, como objetivavam a ADI 4277 e a ADPF 132, já deveria estar, há muito tempo, consolidada, com base na realidade dos fatos. As normas que mencionam em seu texto as palavras homem e mulher não excluem a possibilidade da união de pessoas do mesmo sexo. Independentemente do que pretendia o legislador ao positivá-las dessa maneira, o intérprete de hoje pode ampliar seu alcance sem modificar sua letra. O que se queria mesmo, nos parece, era que houvesse uma mutação expressa da interpretação constitucional feita pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Isso porque a visão dos cidadãos ou de poucos juízes não é suficiente para garantir o que se pode extrair da norma constitucional e trazer o mínimo se segurança aos interessados nessa proteção. Infelizmente, a sociedade em que vivemos ainda não reconhece que fazem parte dela indivíduos livres e essencialmente iguais. A questão da homossexualidade é encarada com preconceito e o sistema jurídico brasileiro ainda abre portas a essa discriminação. Passados 23 anos de vigência da atual Constituição e 187 da positivação do princípio da igualdade, as uniões homossexuais ainda não são reconhecidas como família por muitos juízes do mundo todo. O entendimento, que hoje se percebe em grande parte da sociedade, de que não há qualquer diferença entre a família formada por um homem e uma mulher e aquela formada pela união de pessoas do mesmo sexo, sempre coube no texto constitucional. No entanto, outra parte da sociedade, nela incluindo doutrinadores e aplicadores da lei, entende inconcebível a união homossexual, ora tentando justificar a discriminação através da letra dos artigos citados, ora simplesmente repudiando essa possibilidade, sem considerar qualquer aspecto jurídico, como se extrai das palavras de Orlando Gomes: O casamento entre pessoas do mesmo sexo é inconcebível. A exigência da diversidade de sexo constitui entretanto, uma condição natural, tendo-se em 80 vista a conformação física de certas pessoas, dado que repugna cogitar da hipótese de casamento entre dois homens ou entre duas mulheres, fato que pertence aos domínios da insânia.227 Em 1808, surge, na Alemanha, a teoria do casamento inexistente228, assim entendido o casamento que não reunia os elementos exigidos para sua configuração. Diversos magistrados passaram a se utilizar dessa teoria para caracterizar como inexistente o casamento homossexual, como se percebe em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em 1982: “Tratando de casamento realizado entre duas pessoas do mesmo sexo, o caso não é de nulidade e sim de declaração de casamento inexistente. Existiu o ato, mas não existiu o casamento, e o ato é nulo porque inexistiu o casamento”229. Parte da doutrina adotou o mesmo entendimento, desconsiderando, completamente, princípios constitucionais fundamentais, como se extrai das alegações de Maria Helena Diniz: O casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexo dos nubentes, embora não haja nenhuma referência legislativa a respeito, ante a sua evidência essa condição impõe-se por si mesma. Se duas pessoas do mesmo sexo, como acontece com Nerus e Sporus, convolarem núpcias, ter-seá casamento inexistente, uma farsa. Absurdo seria admitir-se que o matrimônio de duas mulheres ou de dois homens tivesse qualquer efeito jurídico. Se, porventura, o magistrado se deparar com caso dessa espécie, deverá tão somente pronunciar sua inexistência, negando a tal união o caráter matrimonial.230 É verdade que a legislação não faz referência específica à união civil entre pessoas do mesmo sexo. A Comissão Revisora e Elaboradora do Anteprojeto do Código Civil de 2002 recebeu críticas acerca dessa omissão. Miguel Reale esclarece: “Essa matéria não é de Direito Civil, mas sim de Direito Constitucional, porque a Constituição criou a união estável entre um homem e uma mulher. De maneira que para cunhar-se aquilo que estão querendo, a união estável dos homossexuais, em primeiro lugar seria preciso mudar a Constituição231”. 227 228 229 230 231 GOMES, Orlando. Direito de Família. 11 ed. rev. e atual. por Humberto Theodoro Junior. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 79 (grifo nosso). PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume V. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 84. AC n. 56.899/MG, Primeira Câmara Cível. Rel. Des. Paulo Tinoco. Acórdão, j. 16.11.82. RT. 572/189. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Volume V. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 40. REALE, Miguel. O projeto do Novo Código Civil (Situação após a aprovação pelo Senado Federal). 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 14. 81 A nosso ver, tanto as críticas como a justificação de Reale apontam em sentido equivocado. Na verdade, não se trata de uma omissão. Não há que se falar em normas de casamento heterossexual e normas de casamento homossexual. Os tão famosos direitos dos homossexuais são os mesmo direitos conferidos na Constituição a todo e qualquer cidadão, independente de sexo ou orientação sexual. Afinal, “a discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual constitui precisamente uma hipótese (constitucionalmente vedada) de discriminação sexual”232. A deputada federal Marta Suplicy já havia tentado regulamentar a união de pessoas do mesmo sexo, apresentando, em 1995, um projeto de lei com esse objetivo. “O referido texto foi bastante criticado por diversos segmentos da sociedade brasileira, inclusive por homossexuais”233. Uma previsão específica para a união de pessoas do mesmo sexo, caso fosse diferente da legislação que regula o casamento heterossexual, seria inconstitucional, caso fosse igual, seria pura redundância. O casamento gay é amparado pelos princípios constitucionais já elencados. Inadmissível seria qualquer interpretação contrária a esses princípios e desnecessária se faz, portanto, alteração do texto da Constituição ou edição de legislação específica. Nem mesmo o legislador constituinte poderia, se assim pretendesse, proibir a união homossexual, vez que, como vimos anteriormente, o próprio Poder Constituinte Originário é limitado por princípios extrajurídicos, de que fazem parte as normas morais da sociedade, como é caso da igualdade. É certo; nem sempre a vida é entendível. E pode-se tocar a vida sem se entender; pode-se não adotar a mesma escolha do outro; só não se pode deixar de aceitar essa escolha, especialmente porque a vida é do outro e a forma escolhida para se viver não esbarra nos limites do Direito. Principalmente, porque o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito.234 No entanto, diante da reação social contrária aos entendimentos que ignoravam esses preceitos maiores e negavam aos homossexuais o direito de ter protegida legalmente a família formada por sua união235, ou, nas palavras do Ministro 232 233 234 235 RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a homossexualidade. Revista de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, Brasília, 1998, p. 6-29. BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias Homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, introdução, p. 13. Voto da Ministra Carmén Lúcia no julgamento da ADI 4277. “Ação declaratória. Parceria civil. Relacionamento homossexual. Inexistência de união estável. 1. A 82 Ayres Britto, “da incompatibilidade material entre os citados preceitos fundamentais da nossa Constituição e as decisões administrativas e judiciais que espocam em diversos Estados sobre o tema aqui versado”236, surge a necessidade de concretização de uma hermenêutica democraticamente adequada do texto constitucional e da legislação infraconstitucional, para que se pudesse superar, ao menos no âmbito jurídico, interpretações prejudiciais à igualdade e à dignidade dos indivíduos. Isso fez com que fosse levada a discussão ao Supremo Tribunal Federal, para que, então, esse órgão pudesse dar a última palavra237 sobre o assunto. Ao apreciar a questão, assim entendeu o Ministro Marco Aurélio: Se o reconhecimento da entidade familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de vida comum para promover a dignidade dos partícipes, regida pelo afeto existente entre eles, então não parece haver dúvida de que a Constituição Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva admitida como tal. Vale ressaltar que nem todos os Ministros tiveram a mesma percepção. O Ministro Ricardo Lewandowski chegou a fazer ressalvas à proteção jurídica dada à união homossexual, entendendo ser instituto diverso da união heterossexual. Defende a elaboração de normas específicas para casais gays, num discurso que, dando azo à discriminação, se mostra incompatível com a Carta Constitucional. Da conclusão de seu voto: Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem jus, que fundamenta o emprego da analogia no âmbito jurídico. Isso posto, pelo meu voto, julgo procedente as presentes ações diretas de inconstitucionalidade para que sejam aplicadas às uniões homoafetivas, caracterizadas como entidades familiares, as prescrições legais relativas às uniões estáveis heterossexuais, excluídas aquelas que exijam a diversidade de sexo para o 236 237 união estável para ser reconhecida como entidade familiar, exige a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família, inclusive com a possibilidade de sua conversão em casamento, o que não ocorre na espécie. 2. Não havendo sequer situação fática assemelhada a uma união estável ou casamento, embora tenha havido a relação homossexual, esta relação não evidenciou o propósito de constituir uma vida em comum, não havendo como reconhecer a parceria civil nem sociedade de fato. Recurso provido, por maioria”. (AC 70034750901/RS, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 23/06/2010) Voto do Ministro Ayres Britto no julgamento da ADI 4277. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 133. 83 seu exercício, até que sobrevenham disposições normativas específicas que regulem tais relações. (grifo nosso) Felizmente, esse entendimento não foi predominante. A maioria dos Ministros, por um motivo ou por outro, fez valer a interpretação constitucionalmente adequada dos preceitos em discussão, como se verifica na redação do Ministro Celso de Mello: Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, julgo procedente a presente ação constitucional, para, com efeito vinculante, declarar a obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo, desde que atendidos os mesmos requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher, além de também reconhecer, com idêntica eficácia vinculante, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros na união entre pessoas do mesmo sexo. No mesmo sentido se posicionou o relator, o Ministro Ayres Britto, na conclusão de seu voto: No mérito, julgo procedentes as duas ações em causa. Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. Como vimos, além do artigo 1.723 do Código Civil, também a interpretação do artigo 226 da Constituição deve ser feita conforme à Constituição, para “que não se faça uso da letra da Constituição para matar o seu espírito […] pois esse tipo acanhado ou reducionista de interpretação jurídica seria o modo mais eficaz de tornar a Constituição ineficaz”238. Portanto, a conclusão do julgamento consolidou uma mutação desse dispositivo, que, apesar de mantido seu texto, passa a valer somente quando interpretado de forma ampla, tornando-se realmente efetivo nas atuais circunstâncias pelas quais passam nossa sociedade. Após a referida decisão do STF, juízes e Tribunais de todo Brasil passaram a reconhecer proteção jurídica à família 238 Voto do Ministro Ayres Britto no julgamento da ADI 4277. (grifo no original) 84 formada pelo casamento e pela união estável homossexual239/240/241. Conflito negativo de competência. Ação de reconhecimento de união homoafetiva. Efeito vinculante do julgamento da ADI nº 4.277 e da ADPF n° 132, pelo STF, que reconheceu como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo. Com o julgamento conjunto das referidas ações, considerandose seus respectivos efeitos vinculantes, não resta dúvida de que, em existindo na comarca juízo especializado em matéria de família, a ele compete o processamento e julgamento dos feitos que envolvam o reconhecimento de união estável homoafetiva. Conflito prejudicado. (Conflito de Competência 0033554-38.2011.8.19.0000/RJ, Décima Primeira Câmara Cível, Rel. Des. Fernando Cerqueira, j. 15/09/2011) Não é função deste estudo analisar, propriamente, os fundamentos utilizados pelos Ministros do STF em seus votos ou pelos juízes e Tribunais em decisões posteriores. Queremos demonstrar, aqui, o papel da hermenêutica judicial – principalmente do Supremo Tribunal Federal – na mutação constitucional provocada por 239 240 241 “CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA Ação de dissolução de união homoafetiva c.c. partilha de bens Equiparação analógica ao regime da união estável para fins de fixação de competência Recente pronunciamento do STF a respeito da matéria, entendendo não se conceber subtrair das Varas da Família e das Sucessões litígios a tanto concernentes - Conflito procedente Competência do Juízo suscitante”. (0065527-16.2011.8.26.0000/SP, Câmara Especial, Rel. Des. Martins Pinto, j. 19/09/2011) “Pedido de reconhecimento e dissolução de união estável entre homoafetivos. Sentença de extinção, sem exame de mérito, declarando o pedido juridicamente impossível. - 2. A despeito da CF e do CC somente reconhecer tal instituto entre um homem e uma mulher, de há muito vem o Judiciário reconhecendo, ao menos, a união homoafetiva entre pessoas do mesmo sexo e admitindo a sua dissolução. Antecedentes jurisprudenciais. - 3. Se tal não bastasse, recente decisão do Colendo STF veio a inaugurar uma nova era a respeito do tema. - 4. Sentença cassada. Recurso provido, com aplicação do art. 557, § 1º-A, do CPC”. (Apelação 0003994-94.2011.8.19.0212/RJ, Quarta Câmara Civil, Rel. Des. Paulo Maurício Pereira, j. 21/06/2011) “Incidente suscitado pela E. 2ª Câmara Cível por considerar a constitucionalidade do art. 1.723, do Código Civil, como questão prejudicial à análise do mérito em julgamento de recurso de apelação. Sentença que julgou procedente o pedido e determinou ao prestador de serviço réu incluir companheiro homoafeto do demandante como dependente em seu plano de saúde. - O art. 1.723, do Código Civil, reproduz o texto do art. 226, § 3º da CRFB/88. Norma constitucional originária, insuscetível de submissão a controle de constitucionalidade, quer pelo sistema difuso ou pelo concentrado. - A tese da hierarquia entre normas constitucionais originárias, que dá azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras, é incompatível com o sistema de constituição rígida. - Vigora entre nós o princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição, ou seja, impossível que se fiscalize o Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio incluiu no texto da mesma Constituição. Ademais, não se vislumbra que a resolução do mérito na demanda originária dependa da análise da suposta inconstitucionalidade do art. 1.723 do Código Civil. - O dispositivo objeto da presente arguição não veda ou proíbe, em nenhum momento, o reconhecimento de união estável de pessoas do mesmo sexo. - Havendo uma situação de fato a reclamar tratamento jurídico, o juiz deve exercer a analogia, consoante o teor do art. 4º, da LICC. - Por fim, relevante assinalar que o Plenário da Corte Constitucional reconheceu, no julgamento da ADI Nº 4277, por unanimidade, a união estável para casais do mesmo sexo, estabelecendo que companheiros em relação homoafetiva duradoura e pública terão os mesmos diretos e deveres das famílias formadas por homens e mulheres. - NÃO CONHECIMENTO da argüição”. (Arguição de Inconstitucionalidade 0005764-79.2011.8.19.0000/RJ, Órgão Especial, Rel. Des. Sidney Hartung, j. 30/05/2011) 85 uma nova percepção do Direito, quando se faz necessária, também, uma mudança no pensamento do Judiciário, para que a aplicação da norma seja compatível com a realidade social. Certamente, esse tipo de discussão acontece porque a lei não é interpretada em conformidade com as circunstâncias de fato. Isso faz com que a sociedade busque, de diversas maneiras, evidenciar a realidade por qual passa, clamando a atenção dos intérpretes da lei, para que a apliquem de maneira a cumprir o objetivo real do Direito. [...] a função primordial do Direito moderno, presente no Direito Constitucional de modo ímpar: a função de integração social, numa sociedade em que tal problema só pode ser enfrentado e solucionado pelos próprios membros, na medida em que instauram um processo em que se engajam na busca cooperativa de condições recorrentemente mais justas de vida [...].242 Quando uma lei é usada no caso concreto, não se aplica, necessariamente, o sentido dado pelo legislador. Às vezes, nem mesmo se pode dizer o que legislador pretendia, outras vezes, aquilo que ele pretendia já não cabe mais na realidade do nosso tempo. Não cabe, portanto, entrar nessa discussão, como fizeram, com visões distintas, o Ministro Ayres Britto243 e a Ministra Carmén Lúcia244. O sentido utilizado no momento da aplicação da norma será fruto da interpretação de quem aplica. Já vimos que os mesmos princípios que limitam qualquer legislador e intérprete são também parâmetros para a mutação e que a nova visão tem que caber no texto da norma, uma vez que ele não será alterado. Sendo assim, a interpretação que se tem hoje de certa norma sempre fez parte das possibilidades de sentido que ela possuía, que poderia não ter sido compatível com período histórico anterior. Mas se a realidade muda, também a mente de quem nela está inserido se abre a novas concepções. E se a mutação é a 242 243 244 CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p 41. “Donde a necessidade de se aclarar: II. 1 - que essa referência à dualidade básica homem/mulher tem uma lógica inicial: dar imediata seqüência àquela vertente constitucional de incentivo ao casamento como forma de reverência à tradição sócio-cultural-religiosa do mundo ocidental de que o Brasil faz parte […]. II. 2 - que a normação desse novo tipo de união, agora expressamente referida à dualidade do homem e da mulher, também se deve ao propósito constitucional de não perder a menor oportunidade de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano […] para atuar como estratégia de reforço normativo a um mais eficiente combate àquela renitência patriarcal dos nossos costumes”. Voto do Ministro Ayres Britto no julgamento da ADI 4277. “Contrariamente ao que foi afirmado na tribuna, não é exato que a referência à mulher, no § 3º do art. 226 da Constituição, pretendesse significar a superação de anterior estado de diferenciação inferiozante de cada uma de nós. O histórico das discussões na Assembléia Constituinte demonstram que assim não foi.” Voto da Ministra Carmén Lúcia no julgamento da ADI 4277. 86 alteração do sentido por uma nova visão que se tem da norma, ela acontece, na verdade, na cabeça de quem interpreta. Portanto, se a interpretação de hoje não é a mesma de ontem, é porque, ontem, a cabeça do intérprete ainda não pensava assim. Nós partimos dessa fatalidade de que os caminhos do pensamento desembocam inevitavelmente na imemorial interrogação: em nome de que podemos viver? Quer dizer, por que viver? Sim, por quê? Não está ao alcance de nenhuma sociedade dispensar o “por quê?”, abolir essa marca do humano. E, no entanto... O desfalecimento do questionamento nesse Ocidente tão seguro de si mesmo é tão impressionante quanto suas vitórias científicas e técnicas. O medo de pensar fora das instruções fez da liberdade, conquistada a tanto custo, uma prisão do discurso sobre o homem e da sociedade, uma linguagem de chumbo. O que está acontecendo?245 (tradução nossa) Deveras, a nossa visão sobre uma norma muda quando muda a realidade dos fatos que nos cercam ou, simplesmente, a percepção que temos do mundo e do Direito, a partir do momento em que paramos para questionar se aquilo que se tem como válido é, de fato, eficaz. Nesse último caso, não é necessário que haja uma mudança nas circunstâncias, mas apenas no modo como nós as enxergamos. Para que haja uma mutação efetiva, é preciso que os aplicadores da norma percebam as novas visões encontradas na sociedade e participem dessa interpretação difusa. Mais especificamente, pelos exemplos vistos, é preciso que a nova forma de pensar a lei entre nas cabeças dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. CONCLUSÃO A Constituição, topo do ordenamento jurídico do Estado, norma fundamental e suprema, é a máxima garantia dos direitos do indivíduo. A rigidez a que se submetem suas normas visa a evitar uma relativização desses direitos fundamentais em função dos sabores daqueles que detêm o poder de aplicá-las. No entanto, ao tempo em que se pretende a estabilidade da identidade da Constituição, não se pode querer 245 LEGENDRE, Pierre. La frabirque de l’homme accidental. Paris: 1001 Nuits, 2002, p. 11. 87 inflexibilizá-la frente ao influxo das evoluções sociais, sob pena de torná-la letra morta. Apesar de ser analítica, contendo texto prolixo e minucioso, a Constituição brasileira não deixa de ser uma ordem-quadro, que carece de constante atualização para que se concretize no meio social, devendo ser integrada pela ação difusa do Poder Constituinte em fase de continuidade, exercido por uma sociedade aberta ao pluralismo democrático. Esse poder visa garantir a reflexibilidade da identidade da Constituição, dotando a norma de capacidade de prestação efetiva frente à sociedade. Nesse sentido, a regra da rigidez não tem o condão de tornar imutável a Constituição. Seria utópico pretender uma norma fundamental granítica, sem desenvolvimento frente à constante evolução social. Antes de ser aplicada, a norma passa por um processo de interpretação, pelo qual se extrai o sentido a ser utilizado no caso concreto. Nesse processo, não se pode desconsiderar o meio e o tempo em que está inserido o intérprete. Sua visão estará, certamente, contaminada por diversos fatores presentes na sociedade que o entorna. Concebida, portanto, como organismo vivo, inserida em um sistema jurídico dinâmico, a Constituição deve ser adaptada às exigências da realidade circundante para que se mantenha efetiva e concretizável. A Teoria da Mutação surge como um novo paradigma da hermenêutica constitucional, que visa superar a diferenciação existente na doutrina entre os conceitos de Constituição escrita ou normada e Constituição real ou não normada. Para manter a Constituição entre as regras vivas do Direito, é preciso estudá-la desconsiderando a existência de um hiato entre a validade de suas normas e a facticidade social. A chamada Teoria dos dois mundos, que separa norma e realidade, afasta a Constituição dos fatores reais da sociedade, de modo a deixar esquecidos seus principais objetivos, tornando-a um corpo sem alma, um pedaço de papel. O paradigma da mutação pode surgir como o giro reconstrutivo de que necessitamos para fazer com que a força vital da Constituição corresponda, efetivamente, às exigências de uma sociedade plurisubjetiva e democrática. A mutação constitucional é a alteração da interpretação que se faz de uma norma, no decorrer do tempo, sendo, portanto, uma realidade transformadora do sentido, do significado e do alcance das normas constitucionais, devido a uma alteração 88 no mundo fático ou a uma nova percepção do Direito, na busca do equilíbrio entre a estabilidade da qual se pretende dotar a Constituição e a elasticidade que devem possuir suas normas. Essa fluidez constitucional é o meio que garante o dinamismo do ordenamento jurídico, possibilitando a confluência da ordem ideal de valores trazida na norma e a ordem concreta encontrada na realidade circundante, sem transformar a Constituição em uma imensa colcha de retalhos. Para que sirva aos objetivos de garantia de direitos fundamentais dos indivíduos de um Estado, a mutação deve respeitar o texto e o espírito da Constituição, deve ser extraída de necessidades reais dos indivíduos e ter base nos princípios que regem a vida em sociedade. A mutação será inconstitucional quando distanciar a Constituição da realidade fática ou violar seu texto, seus princípios ou sua identidade. Os maiores limites da mutação são os mesmos nos quais esbarra o Poder Constituinte Originário, respaldado por valores extrajurídicos presentes em uma comunidade formada por indivíduos livres e iguais. Presente no Direito Constitucional Brasileiro, o fenômeno da mutação proporciona uma relação dialética da força normativa da Constituição com o dinamismo do tempo em que se inserem seus intérpretes e aplicadores. Pode ocorrer por diversos meios, dentre os quais, a influência dos grupos de pressão, os usos e costumes sociais, as práticas governamentais, legislativas e judiciárias, a construção jurisprudencial, as transformações ocorridas na Constituição através do controle de constitucionalidade de legislação infraconstitucional e da complementação legislativa advinda de leis complementares. A interpretação é uma forma de mutação que acaba por estar presente em todos os outros processos que levam a alteração de uma norma. Ela pode partir da atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário ou do discurso resultante da interação dos diversos pontos de vista presentes em uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição. A jurisdição constitucional, em especial o controle de constitucionalidade de leis e atos administrativos, também é um grande vetor de mutação. Sempre que nova interpretação de um conceito ou princípio constitucional vier substituir antigo entendimento, em função de uma alteração percebida na realidade, demonstrada, 89 muitas vezes, pela reação social contrária às decisões judiciais, o dispositivo sofrerá um processo de mutação. Para que seja legítimo, é preciso que tanto a sociedade como os Poderes estatais assumam uma postura renovadora, adotando medidas construtivas e eficazes que compactuem com o desenvolvimento de uma interpretação jurídica constitucionalmente adequada ao paradigma do Estado de Democrático de Direito. O Supremo Tribunal Federal, no exercício da função máxima de guardião da Constituição, assume um importante papel na validação da mutação provocada por ação da sociedade ou dos Poderes do Estado e em sua consequente concretização no mundo sensível. Seus Ministros atuam na intermediação do diálogo provocado pela reação social contrária às decisões judiciais que ignoram preceitos constitucionais fundamentais, dando a última palavra sobre a nova interpretação de determinado dispositivo ou princípio constitucional. Sua atuação deve seguir no sentido de fazer valer os principais objetivos da Constituição, na garantia dos direitos fundamentais do indivíduo e da efetivação de uma ordem constitucional democrática e participativa. O que verificamos desse estudo e da análise do caso concreto é que a mutação acontece, na verdade, na cabeça do intérprete, em função de sua consciência constitucional. Somos todos responsáveis pela construção de uma interpretação condizente com a nossa realidade, que busque a efetivação dos preceitos constitucionais e a garantia dos direitos fundamentais do indivíduo. No entanto, para que seja efetiva a mudança que acontece na sociedade, onze cabeças devem funcionar em favor de uma hermenêutica constitucional democraticamente adequada, de forma a guardar o espírito da Constituição, sem encarcerá-lo no tempo. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. 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