TCC pronto - eGov UFSC

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
DEPARTAMENTO DE DIREITO
CURSO DE DIREITO
Julia da Silveira Rocha
MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL:
POR UMA HERMENÊUTICA JURÍDICA DEMOCRATICAMENTE ADEQUADA.
Florianópolis
2011
Julia da Silveira Rocha
Mutação Constitucional: por uma hermenêutica jurídica democraticamente adequada.
Trabalho de Conclusão apresentado ao
Curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito à obtenção do título de bacharel.
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa
Florianópolis
Dezembro de 2011
Autor: Julia da Silveira Rocha
Título: Mutação Constitucional: por uma hermenêutica jurídica democraticamente adequada.
Trabalho de Conclusão apresentado ao
Curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito à obtenção do título de bacharel,
aprovado com nota 10.
Florianópolis (SC), 09 de dezembro de 2011.
___________________________________________
Prof. Dr. Alexandre de Morais da Rosa
Orientador
___________________________________________
Profª. Juliana Wulfing
Coordenadora do Curso
Autor: Julia da Silveira Rocha
Título: Mutação Constitucional: por uma hermenêutica jurídica democraticamente adequada.
Trabalho de Conclusão apresentado ao
Curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito à obtenção do título de bacharel,
aprovado com nota 10.
Florianópolis (SC), 09 de dezembro de 2011.
___________________________________________
Prof. Dr. Alexandre de Morais da Rosa (Orientador)
Universidade Federal de Santa Catarina
___________________________________________
Prof. Rodrigo Steinmann Bayer
Universidade Federal de Santa Catarina
___________________________________________
Leilane Serratine Grubba
Universidade Federal de Santa Catarina
AGRADECIMENTOS
Aos membros da banca, em especial ao professor Alexandre Morais da
Rosa, por ter dedicado uma parte de seu tão disputado tempo à orientação desse trabalho, pela atenção dispensada em diversos momentos da escolha e posterior delimitação
do tema, pelos conselhos, pelas respostas aos não sei quantos e-mails com o mesmo
assunto: TCC. Por sua visão prática e seu jeito tranquilo, que tornaram essa pesquisa
muito mais leve. Por não ter permitido que eu enlouquecesse.
Ao professor e amigo Rodrigo Steinmann Bayer, por seu papel decisivo num
dos momentos mais difíceis dessa monografia: a escolha do tema. Pelas sugestões dadas com tanto carinho na hora certa.
Aos companheiros de aventura, por terem tornado quase agradáveis os sábados de BU, as tardes de TJ, os feriados de estudo, o carregar de livros pra lá e pra
cá, enfim, o “Tececer”. Por terem compartilhado suas dúvidas sobre formatação, seus
conhecimentos sobre o Word, o número de capítulos, páginas ou palavras, seus temas,
seus medos, seus humores. Por terem feito esse momento parecer normal.
Aos amigos que fizeram do CCJ um lugar habitável. Aos que me acompanharam no “correr atrás” do tempo perdido no intercâmbio. Às duplas, trios e quartetos
que compartilharam as melhores baias do EMAJ. Aos cadernos e às tequilas.
Aos amigos que nunca pisaram no CCJ, às meninas de Joinville que realizaram juntas o sonho de sair de lá e às que vieram visitar, por terem deixado a vida em
Floripa ainda melhor.
Ao meu supervisor de estágio e às colegas do gabinete, pela compreensão.
Àqueles que fizeram parte da minha loucura nesses últimos meses, pelo
apoio, pela força. Por terem escutado atentamente os meus tantos temas. Por terem
suportado e entendido meus surtos. Pelos “abracinhos”, pelo carinho, pela paciência.
Ao meu irmão, por ser “o melhor amigo que eu vou ter na vida”.
Aos meus pais, por tudo aquilo que a gente não pode colocar numa folha de
papel. Por terem estado ao meu lado, sempre, transbordando um amor incondicional.
Por não terem me deixado desistir. Seus lindos.
- Aonde você vai?
- Se der sorte, em frente.
Trecho do filme Ratatouille
RESUMO
Este estudo tem o objetivo de ressaltar a importância da flexibilização da hermenêutica
na aplicação efetiva da Constituição. Em princípio, faz-se uma análise das concepções
de Constituição como norma suprema e fundamental de um Estado e das implicações
da Teoria da Rigidez constitucional. Demonstra-se a necessidade de adaptação da
Constituição, vista como organismo vivo, à evolução da realidade circundante, a partir
da relação entre o Direito e a sociedade. Analisa-se o Poder de Reforma da
Constituição, por meio de breve estudo sobre a revisão e a emenda constitucional.
Passa-se, então, ao desenvolvimento da Teoria da Mutação Constitucional, responsável
pela compreensão do fenômeno, seus fundamentos e seus processos na dinâmica do
sistema jurídico. Enumera-se, exemplificativamente, alguns processos que permitem o
desenvolvimento constitucional, por meio do dinamismo social, destacando-se aspectos
da interpretação da Constituição. Ressalta-se a função do Supremo Tribunal Federal na
guarda e defesa da Constituição e a importância da hermenêutica judicial na
configuração da mutação impulsionada pela sociedade. Para trazer o estudo à nossa
realidade, faz-se uma análise do caso da união homossexual, discutido recentemente
no STF, após breve síntese histórica de alguns aspectos do conceito de família e do
princípio da igualdade, no contexto da evolução do Direito Constitucional brasileiro.
Finalmente, ressalta-se o papel do Supremo Tribunal Federal na efetivação da mutação
provocada por uma percepção constitucionalmente adequada do Direito ao tempo de
Democracia pelo qual passa nosso país.
Palavras-chave: Constituição. Rigidez. Reforma. Mutação. Interpretação.
Supremo Tribunal Federal. União homossexual. ADI 4277. ADPF 132.
SUMÁRIO
RESUMO.....................................................................................................................................................7
SUMÁRIO....................................................................................................................................................8
INTRODUÇÃO..............................................................................................................................................9
1.2 Constituição e sociedade....................................................................................................................18
9
INTRODUÇÃO
Assim como o Direito e o Estado, a Constituição, compreendida como
organismo vivo, configura uma estrutura dinâmica, em constante mutação, que deve
sempre acompanhar o compasso da sociedade. A hermenêutica constitucional e as
possibilidades formais de alteração do texto da Constituição – revisão e emenda – são,
há muito tempo, temas amplamente estudados pela doutrina constitucional. O
fenômeno da mutação, por sua vez, embora sempre presente na vida constitucional dos
Estados, não foi tratado de forma exaustiva e ainda não recebe, na maioria das
doutrinas, a atenção merecida.
A mutação constitucional é a mudança informal do significado, do sentido ou
do alcance de uma norma constitucional, sem alteração de seu texto, por meio da ação
de um Poder Constituinte Difuso, legitimado e limitado pelo espírito da Constituição.
Seu fundamento é encontrado na discrepância percebida entre a interpretação que se
faz da norma, em determinado período, e a realidade circundante ou, na tradução das
palavras de Jürgen Habermas, na tensão existente entre a validade das normas e a
facticidade social. A percepção desse fenômeno levou a doutrina alemã a distinguir a
verfassungsänderung (reforma constitucional) da verfassungswandlung (mutação
constitucional) e o tema passou a ser objeto de estudo em diversos países.
No Brasil, o assunto tomou maiores proporções a partir de 2007, quando da
interposição da Reclamação Constitucional n. 4335-5/AC pela Defensoria Pública do
Estado do Acre em face de decisão do Juiz da Vara de Execuções Penais da comarca
de Rio Branco/AC, que indeferiu pedido de progressão de regime em favor de
condenados pela prática de crimes hediondos. A Defensoria alegou o descumprimento
da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no HC 82.959 (Relator Ministro
Marco Aurélio), que considerou inconstitucional o art. 2º, parágrafo 1º, da Lei n.
8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), afastando a vedação de progressão de regime aos
condenados por prática de crime hediondo. O Juiz entendeu que a decisão, proferida
em sede de controle difuso de constitucionalidade, teria valor inter partes e não
vinculante, defendendo a necessidade de expedição, por parte do Senado Federal, de
resolução que viesse suspender a eficácia do dispositivo declarado inconstitucional,
10
conforme o disposto no art. 52, inciso X, da Constituição.
O Relator, Ministro Gilmar Mendes, analisando a evolução do controle de
constitucionalidade difuso no Brasil, extrai do referido dispositivo um novo sentido,
alegando ter o Senado Federal a função de dar, simplesmente, publicidade à decisão
do STF, que, por si só, já seria capaz de produzir efeitos erga omnes, como ocorre no
controle concentrado. Julga procedente a reclamação, com base no que chamou de
mutação constitucional do art. 52, inciso X, da Constituição. Em voto-vista, o Ministro
Eros Grau acompanha o entendimento do relator. Ao defender, igualmente, a ocorrência
de mutação constitucional, propõe uma mudança na leitura do texto do inciso citado. Os
Ministros parecem entender que a mutação constitucional é uma alteração (na leitura)
da letra da Constituição, ou seja, a produção de novo texto sem que haja mudança
formal.
Cabe alertar que o caso apresentado foi usado, apenas, para exposição
introdutória do tema e que não analisaremos, nesse estudo, o mérito da questão. O que
nos interessa, aqui, é a discussão que se fez, a partir dos votos citados, em torno do
conceito, dos limites e das possibilidades do fenômeno da mutação constitucional,
principalmente no Direito Constitucional brasileiro. Por meio da análise histórica de
alguns institutos constitucionais e do estudo de diversas compreensões doutrinárias a
respeito do assunto, percebemos a mutação como uma nova interpretação que se
extrai da norma em virtude de mudança nas circunstâncias de fato da sociedade ou de
uma nova percepção do Direito. Nesse sentido, ela deve caber no texto constitucional,
sem alterá-lo, servindo apenas como flexibilização da norma. O objetivo não é reparar
ou corrigir a Constituição, como queriam os Ministros no caso exposto, mas buscar a
efetivação de seus dispositivos no mundo fático, permitindo seu desenvolvimento sem
desrespeitar seu espírito e sua letra.
O objetivo desse trabalho é demonstrar que, apesar de ser classificada como
rígida, a Constituição brasileira não pretende ser imutável. A mutação constitucional
entra como importante recurso de adaptação da Constituição, sempre que não houver
necessidade de se recorrer aos meios formais de alteração de seu texto. Na busca da
concretização das normas, o desenvolvimento constitucional – termo sugerido por Brun-
11
Otto Bryde – aproxima a Norma Suprema da realidade social de seu Estado. A mutação
permite o que resolvemos chamar de fluidez constitucional, na procura constante do
equilíbrio entre a identidade reflexiva da Constituição e a elasticidade de suas normas,
entre rigidez e dinamismo. A mutação constitucional também serve de instrumento para
a legitimidade democrática da Constituição numa sociedade aberta de intérpretes,
aproveitando a expressão de Peter Habërle, formadora daquilo que Burdeau denominou
Poder Constituinte Difuso.
Assim como a sociedade, os Poderes estatais também são responsáveis
pela adaptação da Constituição à realidade social cambiante. A função entregue ao
Supremo Tribunal Federal de guarda e defesa da Constituição dá ao Poder Judiciário
um papel de destaque na efetivação dessas mudanças. Ao final desse trabalho,
analisaremos a recente discussão levada ao STF a respeito da possibilidade de
proteção às famílias formadas pela união de pessoas do mesmo sexo.
Após a exposição que se faz de alguns conceitos no âmbito da Teoria
Constitucional, a partir de uma orientação sociológica do Direito, nosso estudo pretende
demonstrar como a Teoria da Mutação surge na forma de um novo paradigma da
hermenêutica judicial e da jurisdição constitucional, tomando importantes proporções,
principalmente, quando de seu exercício pelos guardiões da Constituição.
12
1 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO
1.1 O lugar da Constituição na Democracia
A Constituição é conceituada, por grande parte da doutrina, como a reunião
de fatores que retratam o modo de ser de um Estado, a organização de seus elementos
essenciais, considerada, por isso, sua norma fundamental1. Essa estrutura normativa,
por envolver um conjunto de valores advindos dos elementos constitutivos de um
Estado, vinculados à sua realidade social, pode ser concebida em diferentes sentidos.
Encontramos, na história da Teoria Constitucional, três concepções distintas de
Constituição: a jurídica, política e a sociológica.
A Constituição jurídica, sentido adotado por Hans Kelsen, seria lei pura, a
norma positiva suprema de um Estado2. Para Carl Schmitt, a Constituição é
considerada uma decisão política fundamental sobre o modo de vida e a forma do
Estado3. Ferdinand Lassalle entende a Constituição, a partir de um sentido sociológico,
como a soma dos fatores reais dos poderes que regem um país4.
Acontece que uma Constituição engloba, na verdade, todos esses sentidos
em conexão. Atualmente, a maioria dos autores busca entender a Constituição como
uma estrutura complexa, “mediante a qual se processa a integração dialética dos vários
conteúdos da vida coletiva na unidade de uma ordenação fundamental e suprema”5. O
legislador constituinte retira da forma de vida da sociedade os elementos essenciais
que constituem o Estado e os reúne em um conjunto normativo fundamental. Nesse
sentido, José Afonso da Silva extrai sua conclusão:
A constituição é algo que tem, como forma, um complexo de normas (escritas
ou costumeiras); como conteúdo, a conduta humana motivada pelas relações
sociais (econômicas, políticas, religiosas etc.); como fim, a realização dos
valores que apontam para o existir da comunidade; e, finalmente, como causa
1
2
3
4
5
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado, São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
SCHIMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 1992.
LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo
Horizonte: Líder, 2002.
FERREIRA, Luiz Pinto. Da Constituição. 2 ed. Rio de Janeiro: José Konfino,1956, p. 24.
13
criadora e recriadora, o poder que emana do povo. Não pode ser compreendida
e interpretada, se não se tiver em mente essa estrutura, considerada como uma
conexão de sentido, como é tudo aquilo que integra um conjunto de valores6.
O objeto desse complexo é estabelecer a estrutura do Estado e sua forma de
governo, sua organização e suas instituições, fixar o modo de aquisição e exercício do
poder e os limites de atuação, assegurar os direitos fundamentais do homem e suas
respectivas garantias, regulando princípios básicos de convivência social. Por isso, a
Constituição é considerada norma suprema e fundamental, figurando, no topo do
sistema jurídico, como critério de validade de todas as outras normas do ordenamento e
fundamento de toda autoridade do Estado. A competência e atuação dos poderes
governamentais são sempre limitadas pelas normas constitucionais. As outras normas
que integram o ordenamento jurídico, para que sejam válidas, devem estar em
conformidade com a norma suprema.
A distinção que se faz entre normas ordinárias e normas constitucionais
nasce de uma acepção formal de supremacia da Constituição7. A supremacia formal,
por sua vez, nasce da regra da rigidez constitucional, sendo seu principal corolário. A
regra da rigidez, presente na Constituição brasileira de 1988, decorre da maior
dificuldade encontrada para alteração do texto constitucional do que para elaboração da
legislação infraconstitucional. Termo que põe em evidência a supremacia da
Constituição, a legislação infraconstitucional envolve tanto o produto da atividade do
Poder Legislativo como os atos normativos do Poder Executivo. Pode-se verificar que
essa distinção de categorias de normas sempre esteve relacionada, no decorrer da
história constitucional, com uma forma de rigidez.
De fato, vimos que em Aristóteles já se encontra a distinção entre a politéia
(normas fundamentais de organização política) e os nómoi (normas ordinárias,
fundadas nas primeiras); e que em Roma as normas fundamentais somente
podiam ser modificadas por magistrados especiais; que em França as “leis
fundamentais” do reino não podiam ser modificadas pelo soberano, mas apenas
pelos Estados Gerais; que durante a revolução chefiada por Cromwell, na
Inglaterra, em pleno século XVII, aparecia, pela primeira vez, a clara formulação
científica da rigidez constitucional e de suas vantagens […]. E ainda pouco
antes da Revolução Francesa, Vattel […] e Rousseau […] e antes deles Bodin,
Huber, e outros, haviam insistido na distinção formal entre leis fundamentais e
6
7
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 39.
BURDEAU, Georges. Droit Constitutionnel et institutions politiques. Paris: Librarie Générale de Droit et
de Jurisprudence, 1966, p. 67.
14
as demais leis e regras jurídicas.8
Em decorrência dessas distinções, encontramos na doutrina uma verdadeira
Teoria da Rigidez Constitucional, responsável pelo estudo dos efeitos advindos da
rigidez. Tem-se, como consequência, a diferenciação entre Constituições rígidas e
flexíveis - expressões cunhadas por Bryce9 -, muitas vezes relacionadas às suas
formas, escritas e não escritas. Trata-se de uma classificação feita em virtude da maior
ou menor estabilidade que se pretende dar ao texto constitucional, guardando
importante vínculo com o procedimento previsto para suas modificações. Nas
Constituições rígidas, das quais podemos citar, além da brasileira, a da França e a dos
Estados Unidos, os meios de reforma de seu texto são mais rigorosos do que aqueles
estipulados para a elaboração das demais leis do Estado. As flexíveis, como a Carta
inglesa, podem ser modificadas da mesma maneira adotada para edição de legislação
infraconstitucional. Há, ainda, as chamadas semi-rígidas, a exemplo da Constituição
Imperial brasileira, de 1824, que estabelecem processo especial somente para
alteração de alguns artigos, enquanto parte do texto pode ser alterado de forma menos
dificultosa.
O professor Canotilho entende que a rigidez de uma Constituição não é
caracterizada, propriamente, pelo processo de reforma dotado de exigências
específicas. Explica que esse processo agravado é o instrumento utilizado pelo
legislador para garantir a relativa estabilidade da Constituição10, sem possuir a utópica
pretensão de que seu texto seja imutável. O fundamento da rigidez está, então, na
escolha feita pelo legislador constituinte originário em atender o desenvolvimento
constitucional através da possibilidade de atualização da Constituição, sem deixar
prejudicada sua identidade. “É neste ponto que o conceito de Constituição rígida, ou
melhor, de rigidez constitucional, apresenta-se como técnica capaz de atender a ambas
as exigências: de estabilidade e de evolução constitucional”11.
8
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991,
p. 109.
9
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
10
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p.
1059.
11
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991,
p. 108.
15
Essa escolha acaba por aumentar a força legal da Constituição, colocando-a
no vértice de um ordenamento jurídico. Dela decorrem algumas consequências
importantes para a compreensão do Sistema Constitucional do Estado. Teixeira
enumera as noções fundamentais advindas da regra de rigidez, que denomina de
corolários da rigidez constitucional. Entre eles, estão a distinção entre poder constituinte
e poderes constituídos, a supremacia da Constituição e a hierarquia das normas, a
noção de inconstitucionalidade de leis e de atos do Poder Público e os sistemas de
guarda ou defesa da Constituição.
A diferença das normas constitucionais para as outras normas do
ordenamento é percebida, principalmente, na forma de sua elaboração, incluindo as
fontes de poder das quais se originam. A norma constitucional é elaborada por um
Poder Constituinte, chamado, pela maioria da doutrina, Poder Constituinte Originário,
no momento de criação da Constituição, e Poder Constituinte Derivado, nos momentos
seguintes. A primeira manifestação do poder político advindo da estrutura de uma
sociedade é exercida, no Brasil, por uma Assembleia Constituinte, representante do
povo, titular desse poder. O Poder Constituinte é, “como diz Hauriou, o 'Poder
Legislativo fundador', exercendo uma atividade normativa em grau primeiro,
fundamental, supremo, ao fixar os fundamentos do Estado e da ordem jurídica e social,
numa Constituição escrita”12.
Os poderes constituídos são aqueles criados pelo Poder Constituinte e
encontram na Constituição, além de sua origem, sua legitimidade, sua forma, seus
limites e suas finalidades. Assim, o Poder Executivo, o Poder Judiciário e o Poder
Legislativo devem ser exercidos em conformidade com os dispositivos constitucionais.
O Poder Judiciário é considerado o intérprete máximo e final da Constituição. O Poder
Legislativo cria as leis ordinárias e complementares. Outra parte da legislação
infraconstitucional advém da atividade do Poder Executivo, por meio da edição de atos
administrativos.
Por óbvio, volta-se à questão da supremacia constitucional. Orientadora do
exercício de todos os poderes estatais, a Constituição é a lei das leis, o limite das
12
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991,
p. 116.
16
competências administrativa, jurisdicional e legislativa. Daí advém a ideia de hierarquia
das normas, que se organizam em graus de dependência e limitação dentro de uma
unidade denominada ordenamento jurídico. A Constituição, razão de ser desta unidade,
serve como fundamento de validade de todas as outras normas do Estado.
Vale advertir que a supremacia constitucional não faz do Poder Constituinte
um poder arbitrário. Os direitos fundamentais do homem atuam como limite supraestatal de qualquer ação, inclusive da positivação dos próprios preceitos fundamentais.
A supremacia está, na verdade, guiada pela segurança de direitos essenciais à
dignidade da pessoa humana, colocados como limites extrajurídicos ao próprio Poder
Constituinte Originário. Trata-se de uma limitação natural a qualquer poder, inclusive ao
exercício da soberania, tendo natureza ética, como as regras morais, os grandes
princípios de convivência social que regem em determinado período histórico, bem
como ideais de justiça e bem comum, concepções que podem variar com o tempo.
Esses direitos, quando positivados na Constituição, tornam-se limites jurídicos a todos
os outros poderes do Estado, ganhando, então, um valor formal.
Desse entendimento decorre a noção de inconstitucionalidade das leis
infraconstitucionais e dos atos do Poder Público. Sempre que se colocarem em choque
com os preceitos constitucionais, as manifestações dos poderes constituídos serão
inconstitucionais13. Dessa maneira, fica óbvia a limitação imposta ao legislador ordinário
e à administração pública pelas normas fundamentais do Estado, positivadas em uma
Constituição rígida. Isso porque a Constituição rígida é qualificada de uma
supralegalidade que se coloca como uma proteção em favor do indivíduo contra o
arbítrio dos poderes constituídos.
Para que se verifique a (in)constitucionalidade das normas do ordenamento,
é preciso que se construa um sistema de defesa da Constituição, chamado de controle
de constitucionalidade. Dessa forma, as violações que pode sofrer a Norma Suprema
são verificadas através de um sistema de garantia de sua supremacia e,
consequentemente, das liberdades fundamentais nela positivadas.
A legitimidade
13
do
controle
de
constitucionalidade
advém
de
uma
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
17
interpretação democraticamente adequada da Constituição, que possibilite o respeito e
a garantia das liberdades fundamentais do indivíduo. Para que se faça uma
interpretação adequada da Constituição, é preciso localizá-la, é preciso saber inseri-la
no lugar e no tempo nos quais vivem a sociedade por ela organizada e seus intérpretes.
Atualmente, o paradigma que nos guia no estudo de uma Teoria da Constituição
constitucionalmente adequada14 é o do Estado Democrático de Direito, que, fundado da
soberania popular e na limitação do poder, visa assegurar o respeito aos direitos
fundamentais do indivíduo numa sociedade de livres e iguais. É nesse sentido que o
estudo e a interpretação da Constituição, nos dias de hoje, devem buscar sempre
compatibilizá-la com o atual período de Democracia pelo qual passamos para tornar
efetivos seus principais objetivos.
A Constituição de um Estado tem duas funções principais. Em primeiro lugar,
compete a ela veicular consensos mínimos, essenciais para a dignidade das
pessoas e para o funcionamento do regime democrático [...]. Esses consensos
elementares, embora possam variar em função das circunstâncias políticas,
sociais e históricas de cada país, envolvem a garantia de direitos fundamentais,
a separação e a organização dos Poderes constituídos e a fixação de
determinados fins de natureza política ou valorativa. Em segundo lugar, cabe à
Constituição garantir o espaço próprio do pluralismo jurídico, assegurando o
funcionamento adequado dos mecanismos democráticos.15
Segundo Bonavides, a estrutura constitucional da Democracia é composta,
basicamente, pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da soberania popular,
da soberania nacional e da unidade da Constituição. O primeiro seria o espírito da
Constituição, o valor dos valores numa sociedade democrática, fundamentando a
positivação dos direitos humanos como direitos fundamentais do homem. A soberania
popular, fonte de todo poder constituinte, seria “a carta de navegação da cidadania
rumo às conquistas democráticas, tanto para esta como para as futuras gerações”16. O
princípio da soberania nacional, na concepção de Bonavides, afirmaria a independência
do Estado perante a esfera jurídica internacional. Por último, o princípio da unidade da
Constituição destaca-se como importante elemento hermenêutico para compreensão da
essência e da hierarquia constitucionais.
14
15
16
CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 89.
BONAVIDES, Paulo. A Constituição e a Democracia participativa. In: SCALOPPE, Luiz Alberto Esteves
(org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá : Fundação Escola, 2003, p. 38.
18
Os quatro princípios acima expendidos e declinados somente hão de prosperar
numa sociedade aberta, onde os instrumentos e mecanismos de governo não
sejam obrepticiamente monopolizados e controlados por uma casta política
cujos membros à revelia do povo se alternam e se permeiam no exercício da
autoridade civil e governativa; sempre a serviço de interesses que concentram
egoísmos e que esteiam a força do capital.17
O constitucionalismo e a Democracia são fenômenos que devem se
complementar mutuamente18. A Constituição, filtro de todo direito infraconstitucional,
coloca-se como limitação dos poderes do Estado. A Democracia representa a soberania
popular dentro de uma sociedade participativa e plurisubjetiva. Deveras, os dois
fenômenos servem a garantir os direitos fundamentais do indivíduo e o respeito aos
princípios essenciais da convivência social. Sempre que interpretada de forma
adequada, a Constituição será o principal instrumento de defesa das garantias do
Estado Democrático contemporâneo.
Nessa perspectiva, a Constituição deve ser estudada não apenas a partir de
seus fatores internos e das consequências que provoca na estrutura do ordenamento
jurídico de um Estado, mas também a partir da influência que sofre da própria
sociedade que organiza. Para encontrarmos o verdadeiro lugar da Constituição na
Democracia é preciso analisá-la em constante diálogo com tantos outros fatores reais19
da sociedade democrática em que se insere essa Norma Suprema.
1.2 Constituição e sociedade
O Direito é uma forma de organização da sociedade, o enquadramento
jurídico dos fenômenos políticos20 e sociais ou, nas palavras de Caio Mário da Silva
Pereira, “o direito é o princípio de adequação do homem à vida social”21. Nesse sentido,
as normas positivadas no ordenamento jurídico de determinado Estado são um reflexo
17
18
19
20
21
BONAVIDES, Paulo. A Constituição e a Democracia participativa. In: SCALOPPE, Luiz Alberto Esteves
(org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá : Fundação Escola, 2003, p. 39.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.
LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo
Horizonte: Líder, 2002.
HAURIOU, André; GICQUEL, Jean; GÉLARD, Patrice. Droit constitutionnel et institutions politiques. 6
ed. Paris: Montchrestien, 1975, p. 9.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990,
p. 5. (grifo no original)
19
da vida dos cidadãos que nele vivem. “Com efeito, a vida social, em todos os lugares
onde ela existe de uma maneira durável, tende, inevitavelmente, a tomar forma definida
e a se organizar, e o direito nada mais é do que essa própria organização”22.
Por isso, para serem efetivamente eficazes, as normas de um Estado devem
corresponder a fatores reais da sociedade circundante, mantendo com essa um
permanente vínculo dialético. Vale dizer, se o direito existe em decorrência da
sociedade que pretende regular, deve evoluir e mudar, sempre que evolua e mude a
sociedade. Como leciona a sociologia jurídica, “as regras jurídicas, para o sociólogo,
não possuem caráter estável e perpétuo”23, o Direito escrito tem caráter essencialmente
provisório e relativo. “Ora, é um dos postulados da sociologia jurídica que o direito,
longe de apresentar algo de imutável, está sujeito a transformações”24. Afinal, a
sociedade é um organismo vivo em constante mutação e o Direito, apenas um de seus
elementos. Nesse sentido, Meirelles Teixeira afirma que “o direito é movimento e vida,
síntese dialética entre as forças de transformação da sociedade e as tendências do
conservantismo, devendo reajustar constantemente as necessidades do processo com
as tradições da história”.
Assim sendo, a Constituição, texto supremo da organização jurídica de um
Estado, não pode pretender ser perpétua na forma como foi elaborada. Devemos
entendê-la e interpretá-la como um organismo vivo, que evolui junto aos fatores reais da
sociedade. Conforme Burdeau, “uma Constituição não se conserva como um
monumento histórico. É explorando as possibilidades que ela oferece aos governantes
de agir regularmente que se pode mantê-la entre as regras vivas”25.
Como já visto, Lassalle adota uma visão sociológica da Constituição,
diferenciando a Constituição real e efetiva da Constituição escrita. A Constituição efetiva
é a soma dos fatores reais de poder de uma sociedade. Esses fatores são erigidos em
22
23
24
25
DURKHEIM, Émile. De la division du travil social. Paris: Presses Universitaires de France, 1960, p. 29
(tradução nossa).
LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologie du Droit. Paris: Presses Universitaires de France, 1981, p. 31
(tradução nossa).
CARBONNIER, Jean. Flexible Droit - Textes pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: Librairie
Générale de Droit et de Jurisprudence, 1979, p. 7 (tradução nossa).
BURDEAU, Georges. Traité de science politique. 2 ed. Paris: Librarie Générale de Droit et de
Jurisprudence, 1969, p. 211 (tradução nossa).
20
Direito e em instituições políticas, escritos numa folha de papel, formando a
Constituição escrita, que, para ser boa e duradoura, deve exprimir a realidade fática.
Sua constante renovação impede que ela venha a se tornar uma mera folha de papel,
sem concretização no meio social a que suas normas se destinam, porque, para
Lassalle, de nada serve aquilo que se escreve no papel, se não se ajusta à realidade ou
àquilo que chama de fatores reais e efetivos de poder26.
Hesse, em diálogo com a Teoria de Lassalle, opõe aos fatores reais do poder
a força normativa da constituição, tendo como pressuposto central a vontade de
constituição, caracterizada, principalmente, “pela atuação interpretativa dos tribunais e
pela estabilidade constitucional (garantida tanto por sua rigidez, que dificulte o processo
de reformas, como pela práxis jurisprudencial, que amolde Constituição formal e
realidade social)”27. O autor vê a Constituição num sentido mais amplo, acreditando que
o plano jurídico e o plano sociológico não precisam estar, necessariamente, em
contraposição. Para Hesse, “a força vital e a eficácia da Constituição assentam-se na
sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, o que
possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva”28.
Heller também critica a unilateralidade da Teoria de Lassalle, configurando o
fenômeno constitucional na integração entre norma e realidade. Inclui em sua Teoria a
Constituição normada (conjunto de normas jurídicas e extrajurídicas) e a não normada
(os fatos sociais, a realidade). Nesse sentido mais completo, a Constituição deve ser
entendida a partir do fluxo dialético entre seu vetor normado e não normado, que se
influenciam constante e mutuamente29.
Nota-se que as Teorias do Direito Constitucional buscam sempre separar a
realidade da norma. Ainda que pretendam analisá-las em conjunto, o estudo se faz
através de uma ponte30 necessária a superação do hiato colocado entre o Direito
26
27
28
29
30
LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo
Horizonte: Líder, 2002.
BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição: Participação popular e eficácia constitucional.
Curitiba: Juruá, 1999, p. 59.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 18.
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 295 a 327.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 2 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1982.
21
legítimo e os fatores políticos, sociais, econômicos e morais de um Estado. Essa
dualidade entre o ideal e o real, chamada por Cattoni de teoria dos dois mundos, é o
que deve ser superado para que se consiga a máxima realização dos objetivos de uma
Constituição. Separar a Constituição formal da Constituição real é distanciar Direito e
realidade, ignorar aquilo que Jürgen Habermas chama de tensão31 entre facticidade e
validade.
(...) a perspectiva da teoria do Direito e da Constituição que privilegia o aspecto
normativo deverá passar por um giro reconstrutivo, se quiser levar a sério a
tensão presente no Direito entre facticidade e validade, assim como o papel
desempenhado pelo Direito nos processos de integração social. E ao se falar
em tensão e não em hiato, oposição, contradição ou até mesmo dialética, entre
norma ou ideal e fato ou realidade, estar-se-á abandonando a chamada teoria
dos dois mundos (...).32
A partir desse entendimento, pode-se estudar e interpretar a Constituição
da maneira que mais a aproxima de uma sociedade democrática. Daí advém o
verdadeiro respeito à sua supremacia e a possibilidade de realização de seus fins, de
modo a conferir-lhe a maior eficácia possível.
A palavra eficácia assume diversos sentidos na doutrina constitucional.
Conforme Maués, ela pode ser tratada sob o ponto de vista formal ou material, sendo
essa diferenciação de grande importância para esse estudo33. Os autores que estudam
a eficácia das normas, apesar de costumarem explicá-la sob seus dois aspectos, não
chegaram a um consenso quanto à denominação usada para que se faça a
diferenciação. Persiste, portanto, o uso da mesma palavra para a compreensão de dois
conceitos distintos.
A eficácia entendida em seu sentido técnico ou formal é a possibilidade que a
norma tem de produzir efeitos na ordem jurídica, o que entendemos como uma eficácia
em potencial, que envolve também a validade da norma. “Eficaz é o ato idôneo para
atingir a finalidade para a qual foi gerado”34. José Afonso da Silva entende que todas as
31
32
33
34
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 1, p. 23.
CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 37.
MAUÉS, Antonio G. Moreira. Reflexões Sobre a Eficácia dos Direitos Fundamentais. In: SCALOPPE,
Luiz Alberto Esteves (org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá : Fundação Escola, 2003.
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e
Possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro : Renovar, 2002, p. 83.
22
normas constitucionais possuem essa eficácia jurídica, ou seja, todas as disposições da
Constituição teriam capacidade de produzir efeitos. A nosso ver, esse seria um
entendimento mais aproximado do conceito de validade. Uma norma válida é aquela
que cumpriu todos seus requisitos, emitida por agente competente, formalmente e
materialmente adequada ao ordenamento em que passar a viger. Para ser eficaz, uma
norma deve ser válida, mas a recíproca não é verdadeira. Muitas das normas da nossa
Carta de 1988 não são realizáveis, não possuem capacidade de se concretizar no
mundo sensível.
A eficácia material, chamada de efetividade por parte da doutrina, é a real
aplicação dos efeitos dessa norma, sua concretização no mundo dos fatos. Kelsen
distinguindo vigência e efetividade da norma, disse ser essa última “o fato real de ela
ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana
conforme à norma se verificar na ordem dos fatos”35. Denominada também de eficácia
social – expressão utilizada por Barroso em contraposição à eficácia jurídica – ela é a
realização do Direito, “a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser
normativo e o ser da realidade social”36. Essa aproximação, que depende de uma prévia
eficácia jurídica, se faz através do efetivo cumprimento da norma, do reconhecimento
por parte de seus destinatários, que lhe dão força operativa. “Esse segundo conceito
nos permite relacionar direito positivo e sociedade, já que uma norma eficaz no sentido
social, uma norma efetiva, não é apenas aquela que tem possibilidade de gerar efeitos,
mas aquela que realmente os gera”37.
É evidente que o objetivo de um ordenamento jurídico não é ter normas
meramente válidas ou potencialmente eficazes. Destarte, é de se esperar que a
Constituição, contendo o condão de influenciar todas as outras normas do
ordenamento, possua um texto aplicável. E para que sejam efetivas, as normas
constitucionais não podem subestimar os aspectos culturais, econômicos, sociais e
políticos do período pelo qual passa o Estado. Uma norma que tenta ignorar esses
35
36
37
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado, São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 29.
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e
Possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro : Renovar, 2002, p. 85.
MAUÉS, Antonio G. Moreira. Reflexões Sobre a Eficácia dos Direitos Fundamentais. In: SCALOPPE,
Luiz Alberto (org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá : Fundação Escola, 2003, p. 51.
23
fatores, ainda que seja válida, tende a ser transgredida constantemente ou cai em
desuso, perdendo sua eficácia.
Ora, se as Constituições, para serem eficazes, isto é, realmente observadas,
cumpridas, devem corresponder, ao menos em sua essência, a esses fatores
reais de poder, e se esses fatores variam, evoluem, modificam-se com a
evolução social, através das transformações e do progresso da técnica, das
ciências, da economia e dos próprios valores morais e espirituais de cada
sociedade, é evidente que as Constituições, como instrumentos de progresso e
de justiça social, devem também acompanhar essa evolução, modificar-se ao
ritmo das transformações sociais e até mesmo abrir caminho às reformas
julgadas necessárias. Preparando-se e propiciando assim, mediante a
transformação das instituições e do ordenamento jurídico, a evolução política e
social.38
É a constante renovação da Constituição que assegura também sua
soberania, vez que só assim suas normas serão concretizadas e poderão exercer sua
influência sobre a legislação infraconstitucional. Destarte, o poder de adaptação de que
são dotadas as normas constitucionais deve ser exercido sem ignorar o espírito da
Constituição, sem ferir a essência de seus fundamentos. Trata-se de uma questão de
respeito ao poder que primeiro constituiu a norma para salvaguardar a superioridade da
Constituição em relação a todo o resto do ordenamento.
O que esse respeito devido pelos poderes de adaptação à Norma Suprema
deve exprimir precisa ser compreendido como uma garantia de sua identidade reflexiva.
Essa identidade, que teve base em fatores reais da sociedade ao tempo de criação da
norma, é o que faz com que a norma suprema possa influenciar a validade e aplicação
da legislação infraconstitucional. Sendo assim, garantir a constante reflexividade do
texto constitucional, através das mudanças que se fizerem necessárias ao longo do
tempo, é reforçar sua identidade, o que “significa dotar a constituição de capacidade de
prestação em face da sociedade e dos cidadãos”39. Como explica o professor Gomes
Canotilho: “A identidade da Constituição não significa a continuidade ou permanência
do ‘sempre igual’, pois num mundo sempre dinâmico a abertura à evolução é um
elemento estabilizador da própria identidade”40.
38
39
40
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991,
p. 107.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p.
1073.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p.
1073.
24
A importância da mutabilidade da Constituição está no enquadramento do
problema concreto na dimensão valorativa da experiência dos fatos, sempre analisados
em um dado período histórico41. O respeito à supremacia de uma norma é muito mais
efetivo quando esta é concretizável, e isso só acontece quando a Constituição pode
acompanhar o dinamismo mutacional da sociedade a que se dirige. “Embora passe
muitas vezes desapercebido, o perigo do divórcio entre o Direito Constitucional e a
realidade
ameaça
um
elenco
de
princípios
basilares
da
Lei
Fundamental,
particularmente o postulado da liberdade”42. A superioridade da Constituição em relação
ao resto do ordenamento jurídico não significa, portanto, cláusula de inalterabilidade.
Assim, a adequação sociológica da Constituição, ao tornar mais efetivas suas normas,
age em favor da própria supremacia constitucional.
Deveras, uma Constituição em desuso não pode ser instrumento de controle
de aplicação de outras normas, do mesmo modo como não pode fazer valer seus
próprios objetivos. Essa Constituição não passaria de uma mera “folha de papel”, como
afirma Lassalle. Comparato expressou bem esse sentimento ao diferenciar o corpo e o
espírito da Constituição em artigo publicado na Folha de São Paulo. O autor explica que
existiam duas penas capitais cominadas pelas Ordenações Filipinas: uma era a morte
natural, outra era a execução da alma do excomungado, a morte espiritual. E faz o
paralelo:
Algo semelhante aconteceu com nossa Carta. Ela continua a existir
materialmente, seus exemplares podem ser adquiridos nas livrarias (na seção
das obras de ficção, naturalmente), suas disposições são invocadas pelos
profissionais do Direito no característico estilo “boca de foro”. Mas é um corpo
sem alma. Hitler, afinal, não precisou revogar a Constituição de Weimar para
instaurar na civilizada Alemanha a barbárie nazista: simplesmente relegou às
traças aquele “pedaço de papel”.43
Diante dos abusos dos poderes estatais, esse é o sentimento que predomina
na sociedade atual. Aqueles que começam a estudar a nossa Constituição esbarram
em
normas esquecidas pelos responsáveis por sua
efetivação,
disposições
consideradas, atualmente, até mesmo utópicas. A discrepância entre o que se vê escrito
41
42
43
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 29.
COMPARATO, Fábio Konder. Uma morte espiritual. Folha de São Paulo, caderno 1, 14 de maio de
1998, p. 3.
25
e o que se tem, hoje em dia, no mundo real, leva à sensação de impotência que faz crer
imprestável uma norma que deveria ser fundamental. No entanto, uma postura
derrotista não pode levar à solução do problema.
Essa postura desesperada deveria, num giro paradigmático, levantar-se do leito
mortuário e ir à luta, tendo como armas uma nova concepção do Direito
Constitucional, perpassando pelas tensões entre facticidade social e
autocompreensão normativa do constitucionalismo democrático (...). A
Constituição da República de 1988, mais do que derrogada, reformada ou
distorcida, deve ser interpretada, aplicada e vivenciada de modo adequado,
deve ser levada a sério e defendida, se quisermos contribuir, como juristas, e
construir, como cidadãos, uma sociedade livre, justa e solidária no Brasil.44
Nós dispomos de diversos meios para adaptar a norma constitucional às
necessidades reais da sociedade. É preciso, então, assumir uma postura renovadora,
utilizar-se desses instrumentos para defender e tornar efetiva a Norma Suprema.
Através da adoção de medidas construtivas e eficazes que compactuem com o
desenvolvimento de uma interpretação jurídica constitucionalmente adequada ao
Estado de Democrático de Direito, é possível fazer valer seus principais objetivos, quais
sejam a garantia dos direitos fundamentais do indivíduo e a efetivação de uma ordem
constitucional participativa.
1.3 Poder de reforma da Constituição
É certo que uma Constituição não pode pretender ser imutável, em virtude de
seu objetivo maior e da constante tensão entre o Direito e a sociedade. Foi nesse
sentido que Brun-Otto Bryde sugeriu o termo desenvolvimento constitucional45 para
identificar o fenômeno de adaptação de uma Constituição à realidade cambiante ao
longo do tempo. O termo engloba todo o conjunto de formas de evolução da
Constituição, seja através de modificações de sua letra seja através de novas
compreensões.
Fora o influxo sofrido por fatores sociológicos, culturais, políticos, morais e
econômicos, também acabam surgindo problemas que nascem da própria aplicação da
44
45
CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 132-133.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000.
26
Lei Maior46, ou ainda, de sua elaboração. O legislador constituinte, por opção consciente
ou não, nos lança inúmeros vocábulos de significações variáveis ou disposições em
aberto, haja vista ser a Constituição a estrutura do ornamento jurídico, contendo,
portanto, normas extremamente genéricas. Assim averbou o professor Barroso, a partir
das lições de Maximiliano e Duverger: “a amplitude de seu conteúdo, que menos se
presta a ser enfaixado em um texto, e a complexidade de erigir-se sobre elementos
políticos, essencialmente instáveis, conduzem o Direito Constitucional a certos
impasses, ainda insuficientemente equacionados”47.
Outrossim, esse legislador não está livre de cometer erros, máxime quando
nossa vigente Constituição nasceu fruto de um jejum de 25 anos de Democracia e
participação social, deixando constar do texto constitucional obscuridades, vícios de
redação, defeitos e incongruências. Para entender o perigo real dos vícios advindos do
Poder Constituinte, vale tentar entender um pouco sobre a formação da Carta de 1988:
A Assembléia Nacional Constituinte, que iria elaborar a nova Constituição da
República, marcou o ingresso do Brasil no rol dos Países democráticos, após
vinte e cinco anos de regime militar e quase doze de abertura “lenta, segura e
gradual”. Não prevaleceu a idéia, que teve amplo apoio na sociedade civil, de
eleição de uma constituinte exclusiva, que se dissolveria quando da conclusão
dos trabalhos. Ao revés, optou-se pela fórmula insatisfatória de delegação dos
poderes constituintes ao Congresso Nacional, a funcionar, temporariamente,
como constituinte (...).48
Temos, ainda, que uma Constituição corresponde a fatores de organização e
funcionamento das instituições de um Estado, sendo considerada uma ordem-quadro49,
The Frame of the Government (A Moldura do Governo), como denominou Willian Penn
a Constituição da colônia da Pensilvânia, em 1682.
Sendo, portanto, uma ordem
fundamental, estrutural e principiológica, não deve ser transformada em um código
exaustivo, na tentativa de prever e regulamentar todas as situações que podem surgir
entre os indivíduos de uma sociedade. Aliás, essa tarefa foge aos poderes do legislador
constituinte originário, que vive num determinado período histórico. No entanto, ao
pretender representar as diversas concepções encontradas em uma sociedade
46
47
48
49
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 2 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1988.
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e
Possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro : Renovar, 2002, p. 80.
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e
Possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro : Renovar, 2002, p. 41
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000.
27
plurisubjetiva, uma ordem sucinta e objetiva acaba por deixar lacunas, que devem ser
preenchidas, ao longo do tempo, de acordo com a necessidade e evolução da estrutura
social que normatiza.
Há que reconhecer, porém, que a constituição é sempre um processo público
que se desenvolve hoje numa sociedade aberta ao pluralismo social (...). Sendo
assim, a ordem-quadro fixada pela constituição é necessariamente uma ordem
parcial e fragmentária carecida uma actualização concretizante quer através do
“legislador” (interno, europeu e internacional) quer através de esquemas de
regulação “informais”, “neocorporativos”, “concertativos”, ou “processualizados”
desenvolvidos a nível de vários subsistemas sociais (económico, escolar,
profissional, desportivo).50
Considerada por muitos autores um estatuto jurídico do político51, a
Constituição apresenta uma gama de visões que podem se chocar em alguns
momentos. Esse problema se mostra ainda mais evidente na Carta brasileira de 1988,
devido ao processo utilizado em sua formação. Ainda que pretenda ser um plano geral
normativo, a nossa Constituição, classificada como analítica52 ou dirigente53, em
oposição às Constituições sintéticas, apresenta um texto extenso e minucioso,
denunciando a falta de objetividade em sua configuração. A metodologia de trabalho
escolhida não incluiu uma etapa onde pudessem ser dirimidos os problemas advindos
da heterogeneidade de concepções políticas, na qual se chegasse a um consenso para
elaboração de um texto final mais sucinto. Dessa forma, a norma constitucional, embora
fragmentária e incompleta, é extremamente ampla e prolixa, com disposições ou
vocábulos que se contradizem ou que acabam por perder a razão de ser ao longo do
tempo.
Dividida, inicialmente, em 24 subcomissões e, posteriormente, em 8 comissões,
cada uma delas elaborou um anteprojeto parcial, encaminhado à Comissão de
Sistematização. Em 25 de junho do mesmo ano, o relator desta Comissão,
Deputado Bernardo Cabral, apresentou um trabalho em que reuniu todos estes
anteprojetos em uma peça de 551 artigos!
A falta de coordenação entre as diversas comissões, e a abrangência
desmesurada com que cada uma cuidou de seu tema, foram responsáveis por
uma das maiores vicissitudes da Constituição de 1988: as superposições e o
detalhismo minucioso, prolixo, casuístico, inteiramente impróprio para um
documento dessa natureza.54
50
51
52
53
54
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p.
1436.
SCHIMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 1992.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Atlas S.A., 2009, p. 11.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 6.
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e
28
Ainda que as diversas visões políticas presentes em uma Constituição
possam ser compatíveis ou que se extraia do todo, através de uma interpretação
sistemática, o que se deve adotar para determinado caso concreto, há que se
considerar o tempo da análise. Os interesses constantes na norma constitucional não
devem ser analisados só em relações internas de compatibilidade, mas também em sua
relação ao meio e ao período em que se inserem. O ponto de vista de quem cria uma
norma está contaminado por fatores e anseios sociais, econômicos, religiosos, morais e
políticos de seu tempo. Assim, mesmo que se obtenha um consenso sobre determinado
dispositivo que regula uma situação de fato, essa concepção pode vir a mudar ao longo
tempo, uma vez que os indivíduos protagonistas da situação fazem parte de uma
sociedade que está em constante mutação.
Constituições, quando concebidas e adotadas, tendem a refletir as crenças e os
interesses dominantes, ou algum compromisso entre crenças e interesses
conflitantes, característicos da sociedade naquele momento. Ademais, eles não
refletem, necessariamente, apenas convicções e interesses políticos ou
jurídicos. Eles podem incorporar conclusões ou compromissos sobre questões
econômicas e sociais que a estrutura da Constituição quis garantir ou
proclamar. Uma Constituição é, na verdade, o resultado de um paralelograma
de forças - políticas, econômicas e sociais - que operam ao tempo de sua
adoção.55
A partir dessa compreensão, resta claro que nenhuma Constituição pode
se exaurir no momento de sua criação, mostrando-se essencial a possibilidade de
renovação, seja para correção ou complementação de seu texto, seja para adaptá-lo a
fatos surgidos após a sua elaboração, afinal, também não se pode prever, da
elaboração de uma norma, todas as possibilidades de casos concretos da vida a serem
regulamentados.
Diante dessa necessidade, já do preparo da Norma Suprema, o legislador
prevê possíveis modificações para o futuro, abrindo a possibilidade de adaptação a
fatos que ocorram após a sua criação. São os meios formais de transformação de sua
letra, que podem ocorrer de forma ampla (revisão) ou específica e pontual (emenda).
Do gênero56 reforma, a Constituição brasileira prevê duas espécies: a revisão
e a emenda. Essa última designa o processo de alteração pontual, caracterizado por
55
56
Possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro : Renovar, 2002, p. 42.
WHEARE, Karl C. Modern Constitutions. Londres: Oxford University Press, 1956, p. 98 (grifo nosso).
BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.36.
29
supressões, acréscimos ou simples alterações de uma parte específica do texto
constitucional. A revisão é uma modalidade de reforma extensa, provocando alterações
mais profundas na Constituição. Para sua identificação leva-se em conta o fator
quantitativo - o número de artigos modificados - e o qualitativo - a relevância afeta à
reforma57.
Como vimos no começo desse estudo, a Constituição brasileira de 1988 é
classificada como rígida, ou seja, estabelece uma possibilidade de alteração de seu
texto, exigindo, para tanto, determinados requisitos que compõem um processo formal e
dificultoso. “Permitem-se emendas, reformas ou revisões constitucionais, necessárias à
adaptação das Constituições às novas necessidades políticas e sociais, mas as
próprias Constituições, ao estabelecerem o processo de sua emenda ou reforma,
fazem-no cautelosamente, de modo a tornar tais reformas mais difíceis, mais
demoradas, e por isso mesmo mais ponderadas, mais amadurecidas que a elaboração
de uma simples lei ordinária”58.
A revisão constitucional está prevista no artigo terceiro do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias de 1988, que assim dispõe: “A revisão
constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da
Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em
sessão unicameral”. Apesar de ser uma reforma mais ampla, seus requisitos são menos
específicos do que aqueles exigidos para a emenda. “O singular no constitucionalismo
pátrio de 1988 é que a revisão aparece solitária e transitoriamente à margem da parte
fixa da Constituição e com rigidez inferior à da emenda”59.
A emenda, conforme elencado no artigo 60 da Constituição de 1988, só pode
ser proposta pelo Presidente da República, por um terço dos membros da Câmara dos
Deputados ou do Senado Federal ou por mais da metade das Assembléias Legislativas,
tendo cada uma delas se manifestado pela maioria relativa de seus membros. A
proposta, depois de discutida e votada em dois turnos, só será aprovada se obtiver, em
ambos, três quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional.
57
58
59
SEGADO, Francisco Fernández. El sistema constitucional español. Madrid: Dykinson, 1992, p. 86.
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991,
p. 108.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 211.
30
Além desses requisitos formais, o artigo 60 também impõe limitações circunstanciais60 à
possibilidade de emenda do texto constitucional quando dispõe, em seu parágrafo
primeiro, que a Constituição não pode ser emendada na vigência de estado de defesa,
estado de sítio ou intervenção federal.
No que tange ao objeto da reforma, alguns conteúdos do texto constitucional
são considerados cláusulas pétreas, matéria imutável, ao ver do legislador constituinte
originário. As vedações materiais ao exercício do poder de reforma da Constituição de
1988 estão elencadas no parágrafo 4º do artigo 60. Uma emenda constitucional não
pode abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a
separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.
Tem-se feito, todavia, diversos questionamentos a respeito das limitações
impostas ao poder de reforma da Constituição. “O poder de reforma constitucional
exercitado por um poder constituinte derivado, sobre ser um poder sujeito a limitações
expressas do gênero daquelas acima expostas, é também um poder circunscrito a
limitações tácitas, decorrentes dos princípios e do espírito da Constituição” 61. Tanto as
limitações expressas, escolhidas pelo criador da Constituição, como as tácitas,
advindas de sua identidade, são postas numa discussão que tem como principal vetor a
relação entre aquele que cria esses limites e os que estão sujeitos a eles.
Encontramos, na doutrina constitucional, diversas maneiras de tratar a
diferença existente entre Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado. O
primeiro é aquele exercido por uma Assembléia Nacional Constituinte, que formula as
regras constitucionais, dentre elas, as que prescrevem os meios formais de alteração
de seu texto. O segundo seria o legitimado para reformar ou emendar o texto da
Constituição, por força de delegação. Parte da doutrina, tendo Sieyés como um de seus
precursores, entende que este seria um poder constituído, assim como os poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário, haja vista retirar sua legitimidade da própria
Constituição, não podendo, portanto, ser denominado constituinte62. “Alguns autores,
como Carl Schmitt e Luis Recasens Siches, sustentam ponto de vista de que somente o
60
61
62
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 65.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 202.
SYEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa – Que é o Terceiro Estado?. Rio de Janeiro:
Líber Júris, 1988, p. 13.
31
originário é poder constituinte, pois somente ele tem caráter inicial e ilimitado, ao passo
que o poder reformador retira sua força própria da Constituição, estando limitado pelo
direito”63.
Resta claro que esses autores entendem ser o legislador constituinte
originário dotado de um poder ilimitado. Acontece que, como vimos anteriormente, ao
criar a Norma Suprema, esse poder esbarra em limites extrajurídicos, em princípios
morais da sociedade que se constituem antes da criação dessa norma. Esses princípios
não devem reger desordenadamente um Estado, mas também não podem estar
completamente desassociados do ordenamento jurídico. Muitos deles acabam por ser
positivados, passando a ser usados no controle de constitucionalidade da legislação
infraconstitucional, outros continuam a servir como limites não jurídicos dos poderes de
alteração da Constituição. Nesse sentido, alguns autores já não distinguem mais esses
poderes, considerando haver um único Poder Constituinte dividido em duas etapas,
conforme terminologia utilizada por Viamonte: a de primogeneidade, momento de
criação do texto constitucional, e a de continuidade, etapa posterior de alterações
formais64. “Trata-se, portanto, e na realidade, do mesmo Poder Constituinte originário,
agindo aí numa segunda etapa ou, na expressão de Sanchez Viamonte, ‘em etapa de
continuidade’ ”65.
Canotilho afirma existir uma superioridade do poder constituinte (em fase de
criação da Constituição) em relação à função de revisão, fundamentando sua idéia nas
exigências que podem ser feitas pelo primeiro como requisitos do exercício do poder
reformador. No entanto, adverte que “a ideia de superioridade do poder constituinte não
pode terminar na idéia de constituição ideal, alheia ao seu ‘plebiscito cotidiano’, à
alteração dos mecanismos constitucionais derivados das mutações políticas e sociais”66.
Explica sua posição afirmando que aquilo que o constituinte inicial pode exigir dos
poderes de atualização da Constituição é uma solidariedade em relação a seus
princípios fundamentais. Deveras, se o fundamento da reforma é a adaptação do texto
63
64
65
66
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.30.
VIAMONTE, Carlos S. El Poder Constituyente. Buenos Aires: Bibliográfica Argentina, 1957, p. 213.
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991,
p. 141.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p.
1060.
32
positivado à realidade social para que se possa concretizar a norma, tornando eficaz a
Constituição, ela não pode pretender desrespeitar o seu espírito. Portanto, é uma
questão lógica que os poderes reformadores queiram dar continuidade ao trabalho do
texto inicial, afinal, “o poder de revisão da constituição baseia-se na própria
constituição; se ele a negasse como tal, para substituí-la por outra, transformar-se-ia
em inimigo da constituição e não poderia invocá-la como base de validade”67.
Todavia, se existe apenas um Poder Constituinte, não se pode querer dotar
de uma hierarquia interna suas etapas de primogeneidade e de continuidade. Assim
como não se pode colocar o produto da emenda ou da revisão constitucional abaixo da
Constituição na pirâmide hierárquica do ordenamento jurídico, não se pode hierarquizar
os poderes que os criam. Esse produto é anexado ao texto constitucional, integrando e
fazendo parte da Norma Suprema, sem que haja qualquer dependência ou
superioridade formal entre eles. “É verdade que as emendas ou reformas
constitucionais devem processar-se com as formalidades prescritas pela própria
Constituição, mas isso não basta para colocá-las abaixo dos demais dispositivos
constitucionais, na hierarquia das normas”.68
Da mesma forma, o chamado Poder Constituinte Derivado não pode ser
propriamente colocado abaixo do Poder Constituinte Originário. Tanto a criação da
Constituição como a sua atualização são processos de gênese das normas
constitucionais, igualmente necessários e importantes. Possuindo os mesmos limites
extrajurídicos, um poder não pode ser considerado superior ao outro. Evidentemente,
os poderes de reforma dependem da pré-existência de um Poder Constituinte
primogênito, assim denominado por motivos tão somente cronológicos. Em sua etapa
de continuidade, bem como na etapa inicial, o Poder Constituinte cria a norma
constitucional, ou seu novo sentido, para exprimir a organização de uma sociedade em
determinado período histórico.
A partir desse entendimento, começa-se a questionar a eficácia das
67
68
ZAGREBELSKY, Gustavo. Il sistema costituzionale delle fonti del diritto. Torino: EGES, 1984, p. 101
(tradução nossa).
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991,
p. 123.
33
limitações impostas pelo legislador constituinte ao exercício do poder reforma69.
Segundo Laferrière, esses impedimentos, por serem manifestações políticas, não
possuem força jurídica obrigatória, já que o “poder constituinte exercitado num
determinado momento não é superior ao poder constituinte que se exercerá no futuro e
não pode pretender restringi-lo, ainda que seja num determinado ponto”70. Vale lembrar
que, em qualquer etapa, o Poder Constituinte é limitado por questões extrajurídicas, por
princípios de natureza moral que se encontram acima da Constituição, positivados ou
não. Surgem, por isso, outras formas de adaptação do texto constitucional às novas
necessidades de uma sociedade mutante, através de processos informais que buscam
manter, de forma mais efetiva, a estrutura dinâmica da Constituição.
2 TEORIA DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
2.1 O Fenômeno da Mutação Constitucional
As Constituições classificadas como rígidas não pretendem, como já vimos,
ser eternas na forma como nasceram. Possuem uma perspectiva de mudança, mas
demandam, para tanto, processo complexo que impõe certas dificuldades ao poder
reformador, como limites expressos e tácitos e requisitos específicos. Dos requisitos
exigidos para emenda, elencados no art. 60 da Carta de 1988, verifica-se o freio colado
pelo legislador constituinte ao poder de reforma. “E, quanto mais difíceis se apresentam
as técnicas de reforma, mais fortemente aparecerão os meios difusos de modificação
constitucional, para a adaptação do Texto Maior às exigências prementes da
sociedade”71.
Seria errôneo, entretanto, e mesmo ingênuo, pensar-se que as Constituições
rígidas somente pudessem sofrer alterações através de técnicas jurídicas
69
70
71
DUEZ, Paul; BARTHÉLEMY, Joseph. Traité Élémentaire de Droit Constitutionnel. Paris: Dalloz, 1926.
LAFERRIÈRE, Julien. Manuel de Droit Constitutionnel. Paris: Domat-Montchrestien, 1947, p. 289.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, prefácio, p. XVIII.
34
expressa e previamente estabelecidas, e que o impacto da evolução política e
social somente pudesse atuar sobre elas através desses canais, e que a vida
deveria necessariamente acomodar-se, em seu eterno fluxo de progresso,
dobrando-se com docilidade ao sabor dessas fórmulas e apenas ao juízo de
políticos e legisladores.72
Nesse sentido, além das possibilidades previstas pelo Poder Constituinte no
momento de criação da Constituição, outras práticas acabam por propiciar o
redimensionamento da realidade normativa constitucional, através dos chamados
processos informais ou indiretos de modificação73. “Com base nesse fundamento, as
Constituições, embora rígidas, transformam-se espontânea e continuamente, ainda que
de modo lento e imperceptível”74. Esse meio difuso de se buscar o equilíbrio, sempre
dinâmico, da norma escrita no tempo e no meio em que se insere assume diversos
nomes na doutrina, a exemplo de revisão informal ou transição constitucional75,
processo não formal76, vicissitude constitucional tácita77, mudanças constitucionais
difusas78, processos de fato79, mudança material80.
Observa-se, destarte, que as denominações não fogem de um conceito de
natureza informal. Hoje em dia, temos esses processos reunidos, para estudo
doutrinário, sob a denominação de mutação constitucional. Falamos, aqui, de uma
mudança informal do sentido, do significado e do alcance de uma norma constitucional,
sem alteração de sua letra, que pode acontecer por diversos meios, mas sempre em
virtude da discrepância entre realidade fática e norma escrita, partindo de uma
concepção de Constituição viva. “Una teoría jurídica de la mutacióm constitucional y de
sus límites sólo hubiera sido posible mediante el sacrificio de uno de los presupuestos
metódicos básicos del positivismo: la estricta separación entre ‘Derecho’ y ‘realidad’ ”81.
72
73
74
75
76
77
78
79
80
81
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Apostilas de Direito Constitucional. São Paulo: FADUSP, 1961, p. 72.
FRIEDRICH, Carl J. Teoría y realidad de la organización constitucional democrática (em Europa y
América). Tradução de Vicente Herrero. México: Fondo de Cultura Económica, 1946.
FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição – Mutações
constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1986, p. 11.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p.
1228.
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Apostilas de Direito Constitucional. São Paulo: FADUSP, 1961, p. 60
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 2 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1988.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, prefácio, p. XVII.
CHIERCHIA, Pietro Merola. L’interpretazione sistemática della constituzione. Padova: Cedam, 1978, p.
128.
FERREIRA, Luiz Pinto. Da Constituição. 2 ed. Rio de Janeiro: José Konfino,1956, p. 102.
HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Tradução de Pedro Cruz Villalón. Madrid: Centro
35
Doutrinadores alemães no final do século XIX, ao constatar abismais
disparidades entre o texto constitucional formal e a realidade circundante, passaram a
distinguir a mutação constitucional (verfassungswandlung) da reforma constitucional
(verfassungsänderung). Conforme lição de Pinto Ferreira, a Constituição pode sofrer
mudanças formais em seu texto, chamadas de reforma constitucional, ou materiais no
conteúdo de suas normas, entendidas como mutação constitucional82. A mutação
constitucional é um processo de natureza informal, não prevista expressamente pelo
legislador, um conjunto de circunstâncias que fazem com que as normas tenham seu
sentido modificado segundo uma necessidade social.
Várias são as diferenças encontradas entre a reforma, alteração formal da
Constituição, e a mutação, alteração informal. A que nos parece mais evidente é quanto
ao lugar onde percebemos essas mudanças. Laband detectou o fenômeno da mutação
ao examinar as mudanças ocorridas na Constituição Alemã de 1871, caracterizando-o
como a alteração ocorrida no sentido da norma, sem que houvesse a modificação de
seu texto.
Seu conceito de mutação foi traduzido para o espanhol por Urritia: “la
esencia real del derecho del Estado plasmada en la Constitución puede experimentar
una modificación radical y significativa sin que el texto constitucional vea alterada su
expresión escrita”83. No caso de reforma, a mudança ocorre no próprio texto
constitucional, enquanto a mutação se perfaz somente no mundo sensível. “Sem
qualquer alteração no texto, as Constituições vão se modificando, assumindo
significados novos, de forma tal que é difícil conhecer de modo adequado a estrutura
fundamental de um Estado, as relações de governo, o funcionamento de órgãos
constitucionais, pela simples leitura da Lei Maior”84. A mutação altera o sentido e a
abrangência do comando constitucional, “consiste em uma alteração do significado de
determinada
norma
da
Constituição,
sem
observância
do
mecanismo
constitucionalmente previsto para emendas e, além disso, sem que tenha havido
82
83
84
de Estudios Constitucionales, 1983, p. 97.
FERREIRA, Luiz Pinto. Da Constituição. 2 ed. Rio de Janeiro: José Konfino,1956.
URRUTIA, Anna Victoria Sanchez. Mutación constitucional y fuerza normativa de la Constitución – Una
aproximación al origen del concepto. Revista Española de Derecho Constitucional, vol. 20, janeiro-abril
de 2000, p. 108.
FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição – Mutações
constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1986, p. 3.
36
qualquer modificação de seu texto”85.
Essa característica, a possibilidade de alteração da letra da norma, é uma
diferença encontrada entre esses dois meios de mudança constitucional que se faz de
grande importância para a aplicação do Direito, vez que permite a metamorfose da
Carta Suprema, sem que se tenha que transformá-la em uma colcha de retalhos.
Mesmo porque, assim como o texto original, aquele modificado por reforma também
pode vir a sofrer transformações.
Jellinek aponta outro critério para diferenciar a reforma e a mutação
constitucional, além da alteração ou não do texto da norma: a intenção de mudar. A
reforma, segundo ele, advém de um ato de vontade do legislador, enquanto a mutação
se dá devido a fatos que não pretendem mudar o texto constitucional, mas acabam por
exigir uma mudança do sentido da norma para que a mesma não se torne obsoleta em
razão da mutação da própria sociedade. Em suas palavras, traduzidas para o espanhol
por Christian Förster:
Por reforma de la Constitución entiendo la modoficación de los textos
constitucionales producida por acciones voluntarias e intencionadas. Y por
mutación de la Constitución, entiendo la modificación que deja indemne su texto
sin cambiarlo formalmente que se produce por hechos que no tienen que ir
acompañados por la intención, o consciencia, de tal mutación.86
Heller aprofunda o conceito, atentando para os elementos não jurídicos que
fazem da mutação constitucional um mecanismo informal87. Os métodos formais são
assim chamados não só porque alteram o texto da norma ou porque dependem da
vontade do legislador, mas também por estarem previstos no próprio texto
constitucional, possuindo, assim, procedimento próprio e, portanto, formal. Já as
mudanças difusas são legítimas a partir de uma visão material de Constituição. Isso não
quer dizer que elas sejam formalmente opostas à Constituição, pelo contrário, nascem
dos próprios princípios constitucionais, da ideia de ordenamento jurídico vivo, mutável.
Algumas possibilidades de mutação encontram, inclusive, legitimidade
85
86
87
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 125
JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Tradução de Christian Förster. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pág. 7.
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou,
1968.
37
expressa no texto constitucional, a exemplo da evolutiva função de interpretação
autônoma entregue ao Supremo Tribunal Federal pelo legislador constituinte. Outras
possibilidades surgem da necessidade de evolução e adaptação da norma às novas
exigências da sociedade ou da mudança de perspectiva que se tem de determinados
dispositivos. Para Smend, essa transformação informal se deve a um processo de
integração advindo de uma concepção de Constituição como movimento88. Assim
sendo, a mutação é uma consequência da própria Constituição, que, evidentemente,
não pode “prever todas as possíveis combinações de casos concretos, que a
experiência cotidiana possa proporcionar”89.
Así como por lo general la aplicación jurisprudencial de los textos legales
vigentes está sujeta las necessidades y opiniones variables de los hombres, lo
mismo ocurre com el legislador, cuando interpreta mediante leyes ordinarias la
Conctituición. Lo que parece em un tiempo inconstitucional emerge más tarde
conforme la Constituición y así la Constituición sufre, mediante el cambio de su
interpretación, uma mutación. No sólo el legislador puede provocar semejantes
mutaciones, también pueden producirse de modo efectivo mediante la práctica
parlamentaria, la administrativa o gubernamental y la de los tribunales.90
Hsü Dau-Lin levanta a lentidão do processo como mais uma característica da
verfassungswandlung, que, por não sofrer interferência do poder reformador, mas de
um poder difuso, advindo de fatores cotidianos da vida em sociedade, acontece de
forma imprevisível e, muitas vezes, quase imperceptível91. O fator tempo mostra-se
fundamental na compreensão da mutação, não como requisito desta, mas para sua
percepção. Por ser um processo lento, a mudança só seria constatada quando
comparados momentos diferentes e afastados da realidade constitucional. “A afirmação
da ocorrência da mutação informal, portanto, pressupõe uma comparação temporal que
conclua pela diversidade de compreensão de um mesmo enunciado normativo”92. Na
prática, referida lentidão corresponde ao lapso de tempo entre a consolidação da
mutação no mundo sensível e sua consequente assimilação pela novel interpretação do
texto constitucional.
88
89
90
91
92
SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional. Tradução de José Maria Beneyto Pérez.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 66.
JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Tradução de Christian Förster. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 15-16.
DAU-LIN, Hsü. Mutación de la Constitución. Tradução de Christian Föster. Oñati: IVAP, 1998.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 83.
38
No entanto, o decorrer de certo período de tempo, a partir da criação de uma
Constituição, não é necessário para que ocorram as mutações, afinal, embora lentas,
elas podem ser muito mais frequêntes que as reformas93, justamente por serem
métodos informais e pelo seu próprio fundamento. Nem mesmo os métodos formais de
mudança podem pretender determinar certo tempo para possibilidade de sua
ocorrência.
O fato é que a facilidade ou a frequência com que uma Constituição é alterada
depende não só das disposições legais que prescrevem o método de mudança,
mas também dos grupos políticos e sociais predominantes na comunidade e na
medida em que eles estão satisfeitos ou concordam com a organização e
distribuição de política que a Constituição prescreve.94
Por evidente, as palavras de Wheare não se aplicam somente ao processo
de reforma, como também à mutação constitucional. Nesse sentido, Hesse adverte para
imprevisibilidade do fenômeno, considerando que o lapso temporal entre a entrada em
vigor da Constituição e suas mutações não pode ser determinado 95, posto que depende
do influxo das exigências da evolução social. “O ritmo, mais ou menos acelerado
dessas modificações constitucionais indiretas, há de variar portanto, em cada época e
em cada lugar, de acordo com os fatores históricos atuantes, entre os quais,
evidentemente, em primeiro lugar, o próprio ritmo das transformações sociais e
políticas”96.
Por se tratar de processo formal, vimos que a revisão e a emenda devem ser
feitas por agentes a tanto legitimados. A mutação, por sua vez, acontece por meios
informais, através de um Poder Constituinte difuso - aproveitando a expressão utilizada
por Burdeau - amplo e espontâneo, que não se encontra subjugado a nenhum tipo de
delegação. “Se o poder constituinte é uma força que faz ou transforma as constituições,
é necessário admitir que sua ação não é limitada às modalidades juridicamente
organizadas de seu exercício”97. Trata-se de um poder material, “elemento componente
93
94
95
96
97
LOEWESNSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. 4 ed.
Barcelona: Ariel, 1986, p. 165.
WHEARE, Karl C. Modern Constitutions. Londres: Oxford University Press, 1956, p. 23 (tradução
nossa).
HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Tradução de Pedro Cruz Villalón. Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1983.
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991,
p. 143.
BURDEAU, Georges. Traité de science politique. Tomo IV. 2 ed. Paris: Librarie Générale de Droit et de
39
de toda a dinâmica constitucional e, por sem dúvida, aquele que mais significativamente
explica certas variações ou mudanças profundas de sentido que tomam os textos
constitucionais”98.
Esse poder, por não encontrar legitimidade formalmente determinada pelo
poder constituinte originário, ou o poder constituinte em fase de primogeneidade, difere
do Poder Constituinte reformador. É nesse sentido que nos parece interessante a
classificação de Viamonte, para que possamos diferenciá-los sem distanciá-los, afinal,
os dois são poderes constituintes que atuam em momento posterior ao nascimento da
Constituição. “Destina-se a função constituinte difusa a completar a Constituição, a
preencher vazios constitucionais, a continuar a obra do constituinte”99. Temos, portanto,
um poder de criação inicial da Constituição e dois poderes constituintes de
continuidade: um poder reformador e um poder de mutação.
O Poder Constituinte difuso também decorre diretamente da Constituição,
sendo, portanto, tão legitimado pelo legislador constituinte originário quanto o é o poder
de reforma. Seu fundamento, a complementação e adaptação do texto constitucional,
decorre da própria Lei Fundamental, que nasce para ser aplicada, mas precisa, para
tanto, acompanhar a evolução do meio que pretende organizar. Trata-se, portanto, de
uma decorrência lógica, advinda da necessidade de meios que garantam a eficácia da
norma constitucional, sua possibilidade de concretização no mundo do ser. A
Constituição que quer ser efetivada exige um Poder Constituinte em constante atuação,
em exercício cotidiano, um poder que não cessa jamais de agir100.
Existe, outrossim, uma previsão expressa da legitimidade desse poder, ainda
que posta de forma desorganizada na estrutura constitucional. Verifica-se essa
expressão através do texto do parágrafo único de seu primeiro artigo, que prevê a
legitimidade do povo como agente de mutação, através do princípio da soberania
popular, reiterado como norma positiva: “Todo poder emana do povo, que o exerce por
Jrurisprudence, 1969, p. 246 (tradução nossa).
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 159.
99
FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição – Mutações
constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1986, p. 10.
100
BURDEAU, Georges. Traité de science politique. Tomo IV. 2 ed. Paris: Librarie Générale de Droit et
de Jrurisprudence, 1969, p. 246.
98
40
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Há,
ainda, a referência encontrada no preâmbulo da Carta de 1988 – “Nós, representantes
do povo brasileiro” -, a exemplo da Constituição dos Estados Unidos, de 1787 (“We the
people”).
Resta saber, para melhor compreensão da mutação constitucional, quem são
os titulares desse Poder Constituinte difuso. Vale observar, para tanto, a lição de Paulo
Bonavides:
Poder-se-ia argumentar, em meio a abundantes exemplos colhidos no costume
ou na jurisprudência, com o caso da Suprema Corte dos Estados Unidos, vista
por Wilson como uma “convenção constituinte em sessão permanente”, ou seja,
um tribunal que, à margem do poder constituinte formal, exercita materialmente
atos configurativos de verdadeira atividade constituinte.101
Deveras, os juízes e tribunais exercem esse papel, mas se analisarmos mais
a fundo o processo, veremos que, assim como no caso do controle de
constitucionalidade difuso, o Poder Constituinte difuso é exercido pelo povo, em seu
sentido mais amplo. É exercido por cada cidadão, através da construção de uma
realidade que faz adaptar o sentido da norma constitucional para sua aplicação ao caso
concreto. Esse exercício pode acontecer diretamente, através da interpretação da
própria norma constitucional, ou indiretamente, por meio da aplicação de outras
normas, ordinárias ou complementares, que devem, outrossim, respeitar a Constituição.
"Em conclusão: só o povo real - concebido como comunidade aberta de sujeitos
constituintes que entre si ‘contratualizam’, ‘pactuam’ e consentem o modo de governo
da cidade -, tem o poder de disposição e conformação da ordem político-social.102"
Vale dizer que o conceito de povo, entendido como grandeza pluralística103,
compreende cada cidadão, cada indivíduo a quem se dirigem as normas de
determinado Estado. A visão normativa de povo é tão somente o corpo eleitoral de um
Estado, o povo que vota. Esse povo-eleitor é entendido como o titular dos poderes
constituintes de primogeneidade e de reforma, exercidos mediante representação. Não
101
102
103
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 159
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000,
p. 76 (grifo no original).
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar
Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1977.
41
se pode confundir o eleitor, o titular do direito de sufrágio, com o cidadão. Não se pode
olvidar, ainda, que tanto o povo majoritário como o minoritário fazem parte desse poder
difuso. As decisões políticas, no âmbito de determinado Estado, são, geralmente,
tomadas pela maioria, valendo como decisões do povo. No entanto, também aqueles
que votam contra, as chamadas minorias, estão englobados no conceito de povo aqui
contemplado. “Para que seja legítima, a Constituição precisa ter lastro democrático, isto
é, deve corresponder a uma demanda social efetiva por parte da coletividade, estando
respaldada, portanto, pela soberania popular”104.
Com efeito, participantes dos litígios concretos da vida, cada cidadão,
maioria ou minoria, eleitor ou não, acessa a Justiça através de um devido processo
legal, onde lhe é concedido o direito de argumentação. “O ‘processo’ é um
procedimento no qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera
jurídica o ato final é destinado a produzir efeitos: em contraditório, e de modo que o
autor do ato final não possa desconsiderar a atividade deles”105. Cada cidadão pode,
então, demonstrar a sua interpretação da lei, ou da Constituição, em um processo
dialético, ajudando na construção de uma sentença e na consequente aplicação da
norma ou princípio ao caso concreto. Deveras, a essência dessa construção “está na
‘simétrica paridade’ da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que
nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos”106. Esse
procedimento pode, portanto, alterar o sentido de uma norma constitucional por
exercício de um Poder Constituinte difuso, o que nos leva a entender que cada partícipe
da sociedade faz parte desse poder, sendo, portanto, sujeito constituinte.
Nessa esteira, a mutação constitucional é um procedimento constituinte
informal e difuso, exercido pelo povo, em toda sua plurisubjetividade. E se mostra de
extrema importância no atual panorama constitucional brasileiro, “já que o momento
privilegiado em que a cidadania pode afirmar seus direitos, impondo a sua vontade
sobre a vontade dos governantes, é o momento constituinte”107. Ainda que não se
104
105
106
107
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 126.
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. Padova: Cedam, 1994, p. 82 (tradução nossa).
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p.
115.
MAUÉS, Antonio G. Moreira. Reflexões Sobre a Eficácia dos Direitos Fundamentais. In: SCALOPPE,
42
constitua novo texto ou nova norma, constitui-se novo sentido, significado ou alcance
para que a Constituição corresponda, efetivamente, ao dinamismo da sociedade.
2.2 O fundamento da mutação: fluidez constitucional
Como já vimos, foram os juristas alemãs que detectaram a existência de
mudanças informais inevitáveis, sem que houvesse previsão ou procedimento próprio
para tanto. No entanto, a doutrina tradicional europeia, originada da teoria constitucional
francesa, acreditava que as Constituições deveriam ser preservadas o máximo
possível, por isso, os procedimentos de reforma previstos em seu texto eram os únicos
meios de mudança constitucional admitidos. A Constituição francesa de 1791,
pretendendo ser eterna, instituía processos excessivamente rígidos para modificação
de seu texto, “tendo sido tragada pela dinâmica revolucionária”108. Após ter tido dois de
seus decretos vetados pelo Rei, a “Assembléia Legislativa toma todos os poderes, com
ajuda
de
um
“Conselho
Executivo
Provisório”,
e
convoca
uma
assembléia
especialmente encarregada de redigir ou revisar uma Constituição”109.
A nova Carta francesa, votada em 1793, suprimiu a Monarquia, consagrando
o sistema republicano de governo. Inspirada na Declaração de Direito do Homem e do
Cidadão, admitiu a impotência de uma norma suprema granítica, proclamando em seu
artigo 28: “Um povo tem sempre o direito de rever, reformar e mudar sua Constituição.
Uma geração não pode submeter a suas leis gerações futuras”110. Embora tenha durado
muito pouco, essa Constituição, que veio declarar a tomada do poder por um governo
revolucionário, deixou legados de grande valor. Hoje, a doutrina francesa já reconhece
a importância das mudanças informais da Constituição, principalmente no que tange ao
papel da coutume constitutionnelle (costume constitucional).
108
109
110
Luiz Alberto Esteves (org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá : Fundação Escola,
2003, p. 54.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 122.
HAURIOU, André; GICQUEL, Jean; GÉLARD, Patrice. Droit constitutionnel et institutions politiques. 6
ed. Paris: Montchrétien, 1975, p. 795 (tradução nossa).
Constituição Francesa de 1793 (tradução nossa). Texto original : “Art. 28 Un peuple a toujours le droit
de revoir, de réformer et de changer sa Constitution. Une génération ne peut assujettir à ses lois les
générations futures”.
43
A existência de tais práticas não pode ser contestada. Para se ater à França,
pode-se dizer que grande parte de nossa vida política, sob o reinado das leis
constitucionais de 1875, era regulamentada pelo costume, por exemplo, tudo
que dizia respeito ao papel do Presidente do Conselho, cujo título não foi sequer
dado pela Constituição. Da mesma forma, pelo não-uso, por parte do Presidente
da República, de seu direito de dissolução, concluiu-se que esse direito havia
sido revogado por força do costume.111
Nos Estados Unidos, a partir do sistema da common law, a Suprema Corte
desempenha forte papel na mudança do sentido das normas constitucionais. A
Constituição norte-americana, mais sintética que a brasileira, é composta por apenas
sete artigos, possuindo normas abertas e genéricas, de sentido amplo. A construção
jurisprudencial, nesse caso, demonstra mais claramente uma contínua mutação
constitucional, uma alteração do significado e do alcance dos dizeres da lei, através de
um processo informal. Apesar de pretender ser rígida, a Lei Fundamental norteamericana teve suas principais modificações advindas da atuação de juízes e tribunais,
tendo sido a Suprema Corte um importante agente na evolução de seus conceitos.
Essa mutabilidade é, sem dúvida, uma das razões da longevidade da Constituição dos
Estados Unidos, que vigora desde 1787. Para ilustrar, aproveitamos o exemplo utilizado
por Barroso:
(...) a decisão proferida pela Suprema Corte no caso Brown v. Board of
Education, julgado em 1954, que impôs a integração racial nas escolas
públicas. Até então, prevalecia o entendimento constitucional, firmado em
Plessy v. Ferguson, julgado em 1896, que legitimava a doutrina do “iguais mas
separados” no tratamento entre brancos e negros.112
Apesar de parecer que a rigidez constitucional, por dificultar a adaptação da
norma ao estabelecer processo de reforma solene e específico, é base para que
ocorram os processos informais, também as Constituições ditas flexíveis, como a da
Inglaterra, percebem a ocorrência da mutação. “Vale dizer: o fenômeno da mutação
constitucional não é exclusivo das constituições rígidas”113. Isso porque o fundamento da
mutação não é a regra da rigidez, mas a busca do equilíbrio entre a estabilidade que se
pretende dar a uma Constituição e a elasticidade que permite a adaptação de suas
normas à realidade circundante.
111
112
113
BURDEAU, Georges. Droit constitutionnel et institutions politiques. Paris: Librarie Générale de Droit et
de Jurisprudence, 1966, p. 59. (tradução nossa).
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 124.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 85.
44
As Cartas flexíveis possuem certa rigidez sociológica advinda de sua própria
natureza, na procura de uma perfeita adequação à conjuntura sócio-política de seu
tempo114. Essa é a autêntica estabilidade constitucional, criada artificialmente pelas
Constituições rígidas, por meio da consagração de processos solenes de reforma. A
mutação constitucional sempre acontece, seja a rigidez jurídica ou sociológica, afinal,
tanto as Cartas rígidas como as flexíveis estão sujeitas ao influxo de mudanças,
adquirindo novos sentidos, através do lento trabalho dos costumes ou da consolidação
jurisprudencial. Nesse sentido, Wheare alerta para as desvantagens desse sistema de
classificação, constatando que os termos escolhidos tendem a ser mal interpretados:
Eles nos levam a pensar que uma Constituição que contém uma série de
obstáculos legais para sua reforma será mais difícil de alterar e será, portanto,
alterada com menos frequência do que uma que contenha menos obstáculos ou
que não cotenha obstáculo específico. É verdade que esta é uma má
interpretação do que a distinção entre "rígida" e "flexível" pretendia significar.
Ela refere-se apenas a certos requisitos formais no processo legal de reforma.115
Como vimos, o legislador, ao estabelecer os critérios de reforma,
pretendendo tornar rígida a Constituição, não tem poderes para prever todas as
necessidades futuras de uma sociedade. Assim como não se pode querer tornar a
Constituição imutável, a história também revela a impossibilidade de limitar sua
alteração aos processos formais. O legislador constituinte pode, tão somente, prever
mecanismos para impedir abusos que levem à destruição de sua identidade. Identidade
esta, que por ser reflexiva116, deve acompanhar o dinamismo da sociedade, mantendo a
estabilidade de seu espírito.
Na verdade, nem a rigidez nem a flexibilidade podem ser concebidas sem
ressalvas. Mesmo as Constituições que pretendem maior rigidez precisam se adaptar à
dinâmica da sociedade e as que se dizem mais flexíveis acabam por construir certa
estabilidade sociológica em normas centrais, que passam a sofrer processos de
mutação. Uma Constituição pétrea não poderia ter eficácia em uma sociedade mutante.
O tempo seria seu grande inimigo e acabaria por transformá-la em uma mera folha de
114
115
116
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1991, p. 112.
WHEARE, Karl C. Modern Constitutions. Londres: Oxford University Press, 1956, p. 23 (tradução
nossa).
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000,
p. 1073.
45
papel117, na expressão utilizada por Lassalle. Por isso, o câmbio social obriga a
adaptação das normas constitucionais em prol da utilidade da própria Constituição. “Por
ser fundamental, o estatuto orgânico do Estado não teria a pretensão de ser
absolutamente imutável”118, pelo contrário, a mudança, por vias formais ou informais, se
faz sempre necessária.
“Para entender-se o intrincado problema das mudanças constitucionais
difusas, é mister visualizar o direito na sua perspectiva dialética, ao lado da realidade
social que o circunscreve, em perpétuo movimento, adaptando-se às necessidades da
vida e fluindo do contexto cultural”119. Se o Direito, como foi dito, acompanha a evolução
da sociedade, a Constituição, representante máxime do ordenamento jurídico de um
Estado, não pode deixar de adaptar-se no mesmo passo. Afinal, a Constituição nasce
vocacionada a ser aquilo que a sociedade que a gerou espera que ela seja, vez que o
Direito não domina a sociedade, ele a exprime120.
Aliás, o ser Constituição, como organismo vivo que é, configura uma estrutura
dinâmica, prospectiva, em permanente progresso; seria irrisória a tentativa de
pretender-se escravizá-la ou cristalizá-la nesta ou naquela fórmula, em
instituições ou normas graníticas (imodificáveis), sem levar em conta a interação
de causas e efeitos próprios da vida em sociedade.121
O que se pretende evidenciar aqui, portanto, não é a diferença entre rigidez e
flexibilidade, mas entre dinamismo e estabilidade. O primeiro fator está inevitavelmente
presente na sociedade e, como consequência, na ordem jurídica de um Estado. Sendo
a Constituição a norma suprema de um ordenamento jurídico, suas normas também
devem acompanhar esse dinamismo. Através dele, a realidade normativa é
redimensionada, assume novos significados, renovando-se no tempo através dos mais
variados processos. Por outro lado, as normas basilares do Estado pretendem um
patamar seguro, mínimo de estabilidade, tanto em Constituições rígidas como nas
flexíveis, procurando salvaguardar os direitos e garantias fundamentais da pessoa
humana.
117
118
119
120
121
LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição?. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo
Horizonte: Líder, 2002.
BURDEAU, Georges. Traité de science politique. Tomo IV. 2 ed. Paris: Librarie Générale de Droit et
de Jurisprudence, 1969, p. 84 (tradução nossa).
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, prefácio, p. XX.
CRUET, Jean. De l'impuissance des lois. Paris: Flammarion, 1912.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, prefácio, p. XVIII.
46
(...) não se podem considerar completamente separados o dinâmico e o
estático, tampouco podem sê-lo normalidade e normatividade, o ser e o dever
ser no conceito da Constituição. (…) como forma e ordenação concretas, a
Constituição só é possível porque os partícipes consideram essa ordenação e
essa forma já realizadas ou por realizar-se no futuro, como algo que deve ser e
o atualizam.122
O elemento estático que reveste a Carta Magna deve estar em constante
tensão com as forças mutacionais da sociedade, afinal, “la transformación está
estrechamente vinculada a la esencia de la constituición”123. Assim sendo, estabilidade
não pode significar inalterabilidade. O equilíbrio entre a norma escrita e a evolução da
sociedade se encontra na adaptação do sentido e do alcance do texto constitucional.
Deveras, se a Constituição, como aqui entendemos, deve corresponder a fatores reais
da sociedade, deve seguir o ritmo das mudanças políticas, econômicas e morais de um
Estado para ser socialmente eficaz.
Nessa esteira, os processos difusos de alteração constitucional tornam-se
imprescindíveis para que se respeite a dinamicidade da realidade social e jurídica.
Mesmo porque, nossa Constituição é repleta de disposições em aberto, seja através da
previsão de leis complementares ulteriores, de silêncios ou de generalidades
conscientes, vocábulos de significações variáveis, caracterizando uma elasticidade,
uma exigência de adaptação por parte da própria redação da norma. A mutação
constitucional é o meio mais eficaz de se encontrar o equilíbrio entre a estabilidade
pretendida e o dinamismo necessário em uma Constituição.
2.3 Processos que provocam mutação
A determinação do sentido e do alcance de um dispositivo Constitucional
pode se dar diretamente, através da concretização de pretensões fundadas no próprio
dispositivo constitucional, ou indiretamente, sempre que houver aplicação de norma
infraconstitucional, sendo que “nesse caso, a Constituição figurará como parâmetro de
122
123
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou,
1968, p. 296.
PELAYO, Manuel Garcia. Derecho constitucional comparado. Madrid: Revista de Occidente, 1951, p.
126.
47
validade da norma a ser aplicada”124. Devido a sua natureza informal, a mutação não
tem um rol taxativo de possibilidades, como acontece com os meios de reforma, sendo
impossível enumerar os meios pelos quais ocorre125. No entanto, podemos estudar os
mecanismos que se mostram mais atuantes na história constitucional e as
circunstâncias que os provocam.
Vimos que a legitimidade da mutação constitucional deve ser buscada no
ponto de equilíbrio entre a rigidez e supremacia da Constituição e a elasticidade e
efetividade de suas normas. Enquanto procura-se preservar a estabilidade do texto, a
mutação tende a adaptá-lo às novas demandas surgidas com o tempo, sem que se
recorra aos processos formais de reforma. Para que seja legítimo, o processo de
mutação precisa corresponder a uma demanda social efetiva, precisa ter como base um
fato ocorrido na sociedade ou uma mudança de interpretação advinda da realidade.
Dessa forma, duas são as razões que podem provocar um processo mutacional: uma
nova percepção do Direito ou uma alteração na realidade de fato126.
A primeira ocorre em função de conceitos jurídicos indeterminados,
disposições que podem sofrer diversas interpretações ou variações ao longo do tempo,
como é o caso das normas gerais e dos enunciados de princípios, comuns no texto
constitucional. A mutação constitucional em razão de uma mudança na percepção do
Direito ocorrerá sempre que houver uma releitura de valores sociais que alterem as
ideias do justo, do ético, do bem, do certo ou de tantos outros conceitos abertos que
variam conforme as novas necessidades e circunstâncias de uma sociedade.
A alteração na realidade fática também pode influenciar o sentido, o alcance
ou mesmo a validade de uma norma. Os impactos decorrentes de mudanças dentro de
uma
sociedade
acabam
por
determinar
a
compatibilidade
de
uma
norma
infraconstitucional com a Constituição ou, ainda, de uma norma constitucional com as
circunstâncias de certo período histórico. As maiores implicações desse fenômeno
124
125
126
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 129.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 65-66
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 126.
48
incidem no plano do controle de constitucionalidade das leis127.
Dessas mudanças, decorrem diversos processos que implicam em mutação.
Podemos destacar, dentre eles, a influência dos grupos de pressão, os usos e
costumes sociais, as práticas governamentais, legislativas e judiciárias, a construção
constitucional (jurisprudência constitucional) e a interpretação, além das transformações
ocorridas na Constituição através do controle de constitucionalidade de legislação
infraconstitucional e da complementação legislativa advinda de leis complementares.
Os grupos de pressão são as associações, sindicatos, entidades de classe,
grupos artísticos, religiosos, filosóficos, organizações civis, militares, partidos políticos,
dentre tantos outros que se unem em favor de causas comuns. Esses grupamentos são
importante fator de mutação na medida em que “influenciam as relações reais de poder
numa sociedade, várias vezes de forma determinante, embora quase nunca de maneira
institucionalizada”128. No sistema democrático, dentro de uma sociedade pluralística, a
formação desses grupos aparece como elemento ineliminável129 do processo político,
afinal, a união, ao fortalecer a legitimidade da pretensão, aumenta a possibilidade de
êxito do movimento.
Os usos e costumes servem de substrato para uma interpretação mais
adequada da norma. Como nos ensina Carbonnier, “o direito é maior que as fontes
formais do direito”130 e, ao mesmo tempo, “menor que o conjunto de relações entre os
homens”131. Por isso, pode-se considerar que a maior fonte de desenvolvimento do
direito não deve ser procurada nem na legislação, nem na doutrina, nem na
jurisprudência, mas na própria sociedade. O costume constitucional é o conjunto de
práticas observadas reiteradamente e socialmente aceitas, seja por agentes públicos
seja por cidadãos. Cria-se um padrão de conduta que passa a ser aceito como válido
ou, ainda, como obrigatório e pode ser incorporado ao sentido de determinada norma
127
128
129
130
131
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1022.
BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição: Participação popular e eficácia
constitucional. Curitiba: Juruá, 1999, p. 61.
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 6 ed. Brasília: UnB, 1994, p. 570.
CARBONNIER, Jean. Flexible Droit - Textes pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: Librairie
Générale de Droit et de Jurisprudence, 1979, p. 16 (tradução nossa).
CARBONNIER, Jean. Flexible Droit - Textes pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: Librairie
Générale de Droit et de Jurisprudence, 1979, p. 18 (tradução nossa).
49
ou mudar-lhe o alcance.
Assim como os comportamentos sociais, as práticas levadas a efeito por
órgãos e agente públicos resultam em adaptações da Constituição a novas realidades.
Os três poderes estatais são responsáveis, junto aos indivíduos da sociedade 132, pela
interpretação e pela construção constitucional, mas a exercem de formas distintas. O
poder Legislativo manifesta sua interpretação da realidade e das normas constitucionais
efetivamente aplicadas numa sociedade ao criar o direito positivo. Já aos poderes
Executivo e Judiciário compete sua aplicação133.
Interpretação e construção constitucional são conceitos bem próximos que
possuem certa dependência. A interpretação acaba por ser uma etapa intrínseca ao
processo de construção de uma sentença. Sem a construção jurisprudencial, a
interpretação não teria sentido, ela serve para extrair o significado da norma, e isso só
tem uma conseqüência eficaz se formos, em etapa posterior, aplicar a norma ao caso
concreto, através da construção de uma sentença.
A jurisprudência constitucional, como meio de mutação, deve ser
constantemente renovada. A jurisprudência deve ser entendida como o costume interno
dos tribunais134, servindo de exemplo e ajudando na fundamentação de uma nova
sentença, sem que, para tanto, permaneça imutável. Cada resultado deve corresponder
à conclusão advinda da construção dialética do processo, caso contrário, agiria como
um óbice ao processo mutacional. É nesse sentido que cada juiz interpreta a norma no
momento de sua aplicação ao caso concreto.
Certamente, não lhes é proibido de se referir expressamente a uma
jurisprudência constante na jurisdição superior [...]. No entando, isso não pode
passar de um argumento acrescentativo. Eles devem, antes de mais nada,
reproduzir, em seu próprio julgamento, a corrente lógica de motivação que, no
escalão superior, havia levado à conclusão que pretendem retomar por conta
própria.135
132
133
134
135
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar
Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1977.
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005, p. 3.
CARBONNIER, Jean. Flexible Droit - Textes pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: Librairie
Générale de Droit et de Jurisprudence, 1979, p. 87 (tradução nossa).
CARBONNIER, Jean. Flexible Droit - Textes pour une sociologie du droit sans rigueur. Paris: Librairie
Générale de Droit et de Jurisprudence, 1979, p. 87 (tradução nossa).
50
A interpretação, um dos meios que leva à alteração informal do sentido das
normas constitucionais, é fruto da necessidade de aplicação da norma em um caso
concreto ou, ainda, da simples tentativa de extração do sentido das palavras contidas
no texto normativo, feita por doutrinadores, por juízes, por legisladores, por
administradores, por cidadãos.
Segundo Barroso, a função integrativa do intérprete da norma pode gerar
três grandes consequências, que se exprimem nas categorias da interpretação
construtiva, da interpretação evolutiva e da mutação constitucional.
A primeira ocorre quando uma situação que poderia ter sido prevista pelo
legislador, mas não foi, é alcançada pela ampliação do sentido de uma norma. Desse
modo, o intérprete cria uma nova hipótese de incidência, que não fora nem expressa
nem excluída pelo legislador. Foi o que aconteceu com o artigo 5º, inciso LXIII da
Constituição de 1988, que, de forma expressa, dá ao preso o direito de permanecer
calado. Na prática, através de construção jurisprudencial, ampliou-se o sentido do
direito, que passou a ser direito a não auto-incriminação, e o alcance da norma, que já
não se dirige apenas ao preso, mas a qualquer acusado, inclusive àquele que presta
depoimento em Comissão Parlamentar de Inquérito136. “Foi também por interpretação
construtiva que se desenvolveu no Brasil as teses de proteção da concubina e do
reconhecimento de efeitos jurídicos às relações homoafetivas estáveis”137.
A interpretação evolutiva, por sua vez, ocorre com situações que não
poderiam ser previstas pelo legislador. Presume-se que, caso determinado fato já
ocorresse ao tempo de elaboração de determinada norma, ele teria sido contemplado
pelo legislador. Através da ação do intérprete, a norma passa, então, a amparar a nova
situação, sempre que esta puder ser enquadrada no espírito do texto. Foi o que
aconteceu com os artigos 221 e 222, que regem, de forma expressa, as emissoras que
136
137
“A condição de indiciado ou testemunha não afasta a garantia constitucional do direito ao silêncio (CF,
art. 5º, LXIII: ‘o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendolhe assegurada a assistência da família e de advogado’). Com esse entendimento, o Tribunal, embora
salientando o dever do paciente de comparecer à CPI e depor na eventualidade de convocação,
deferiu habeas corpus para assegurar ao mesmo o direito de recusar-se a responder perguntas
quando impliquem a possibilidade de auto-incriminação”
(HC 79.812/SP, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Celso de Mello, j. 8/11/2000).
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 129 e 130.
51
se utilizam de radiodifusão, único meio de transmissão de sons e imagens cogitado da
elaboração da Carta de 1988. Com o advento de novas tecnologias, essas normas
passaram a ser aplicadas também a outras formas de emissão, como o satélite e o
cabo. Verifica-se o mesmo fenômeno em relação às normas de liberdade de expressão
e sigilo de correspondência no âmbito da internet.
A mutação constitucional, ainda que ocorra pela via interpretativa, só se
concretiza quando são percebidos dois sentidos diferentes da mesma norma no
decorrer do tempo. Assim, seja por uma mudança na realidade fática ou no modo como
se percebem determinados valores, a interpretação preexistente é superada por novo
entendimento.
Uma
simples
disparidade
verificada
entre
jurisprudências
não
caracteriza, necessariamente, a mutação. Não basta que se extraia o conteúdo do texto
em função do ponto de vista do intérprete, é necessário que se extraia de mudanças
ocorridas no âmbito da sociedade o novo sentido ou alcance da norma.
Como exemplo, o habeas corpus - expressão do latim que significa “que
tenhas o teu corpo” -, antigo remédio processual penal, é utilizado, atualmente, como
garantia geral de direitos, apesar de sua etimologia. Trazido ao Brasil em 1821 e
incluído no texto da Constituição de 1891, o instrumento garantia apenas a liberdade de
locomoção. Com a necessidade de solução de conflitos surgidos em outras situações
que restringiam direitos fundamentais do indivíduo, o referido remédio teve seu âmbito
de aplicação ampliado, passando a assegurar, além do direito de ir e vir, a posse em
cargos públicos, a liberdade de imprensa, o direito de greve, entre tantos outros138,
através de reiteradas interpretações que provocaram o processo de mutação. A
elasticidade da garantia constitucional foi uma conquista das gerações do século
passado, que a adaptaram a novas exigências da sociedade.
A garantia de inviolabilidade do asilo também teve seu âmbito ampliado, através
de uma nova interpretação da palavra casa, que ocorreu em virtude de circunstâncias
de fato. A casa é constitucionalmente considerada asilo inviolável do indivíduo desde
1824139. Anteriormente, considerava-se inviolável somente o local de residência de uma
138
139
MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Direito Processual Constitucional. Rio de Janeiro: Forense,
2003, p. 142-143.
Constituição Política do Império do Brasil de 1824. Art. 179, inciso VII: “Todo o Cidadão tem em sua
casa um asylo inviolavel. De noite não se poderá entrar nella, senão por seu consentimento, ou para o
52
pessoa, com ânimo definitivo. O Código Penal, de 1940, engloba no conceito de casa o
local onde alguém exerce profissão ou atividade, pois, da edição dessa Lei, também
esses espaços careciam de proteção, para que se pudesse respeitar, ao máximo, a
privacidade do indivíduo. O Código Civil de 2002 inclui na definição de domicílio,
“quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida”140. Uma
interpretação ampla do artigo 5º, inciso XI, da Constituição de 1988, fez com que a
palavra casa passasse a significar o lugar onde alguém vive ou trabalha, “o home, o
chez soi, a habitação particular, o local reservado à vida íntima do indivíduo, seja ou
não coincidente com o domicílio civil”141. Hoje, o conceito engloba, portanto, o escritório
de um advogado, o consultório de um médico, bem como pátios, jardins, garagens,
quintais, dentre outros complementos de uma casa, sendo todos considerados asilos
invioláveis.
A mutação por via interpretativa pode se dar de diversos modos. Sintetizando
uma classificação quanto ao fundamento da interpretação da norma, Bulos relaciona
três categorias de contextos que exigem participação do intérprete para aplicação da
norma: o técnico-linguístico, o antinômico e o lacunoso142. No contexto técnicolinguístico, o intérprete atua de forma a integrar e delinear conceitos vagos, como
democracia, interesse público, reputação ilibada, honra, justiça social, bem comum. O
mesmo acontece com os princípios positivados. No contexto antinômico, a interpretação
é utilizada para que se descubra a norma a ser aplicada em determinado caso concreto,
sempre que houver normas incompatíveis num mesmo ordenamento jurídico. No
contexto lacunoso, a ação interpretativa visa sanar a incompletude de uma norma,
podendo o intérprete se utilizar da analogia, dos costumes, dos princípios gerais de
direito ou da equidade. Por estarem esses instrumentos previstos na Lei de Introdução
ao Código Civil, a doutrina não é unânime a respeito da existência de lacunas no nosso
ordenamento. Muitos autores entendem que todas as situações de fato estão
140
141
142
defender de incendio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada nos casos, e pela
maneira, que a Lei determinar”.
O Código Civil de 1916 previa em seu artigo 31: “O domicílio civil da pessoa natural é o lugar onde
ela estabelece a sua residência com animo definitivo”. O Código Civil de 2002 manteve o mesmo texto
em seu artigo 70, acrescentando, no entanto, o texto do art. 72: “É também domicílio da pessoa
natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida”.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 119.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
53
amparadas pelo direito positivo, seja através de uma norma expressa seja através da
possibilidade que se dá ao intérprete, nos artigos 4º e 5º da LICC, de se utilizar dos
recursos citados.
Concebendo o sistema em sua dimensão dinâmica, incompleta, sujeita ao
influxo de fatores exógenos, promanados das relações intersubjetivas, em
perpétuo movimento, de maneira que os legisladores constituintes não possam
prever a heterogeneidade da experiência jurídica, pertine falarmos em lacunas,
pois há casos que ultrapassam a capacidade de previsão legiferante.143.
Quanto a seu agente, a interpretação pode ser orgânica ou inorgânica. A
interpretação inorgânica pode ser feita pela doutrina ou pela sociedade, vez que a
adaptação da Constituição não se deve exclusivamente a ações estatais, mas também
ao comportamento dos cidadãos. Segundo Häberle, defensor de uma hermenêutica
pluralística, fazemos parte de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição144.
Essa interpretação se faz no dia-a-dia, nas práticas que desenvolvem os costumes ou
quando um indivíduo acessa a Justiça para proteger seu interesse.
A mutação, nesses casos, se faz mais evidente quando do controle de
constitucionalidade difuso. Qualquer cidadão pode pedir que um juiz ou Tribunal declare
uma lei inconstitucional, para efeitos inter partes, na solução de determinado caso
concreto145. Destaca-se que às partes, quando da discussão de um litígio no âmbito
judicial, é assegurado o direito de argumentação através do contraditório e da ampla
defesa, respeitando-se o princípio do devido processo legal. Portanto, ao defender e
fundamentar determinado ponto de vista, o indivíduo interpreta a lei a sua maneira e
ampara o juiz na construção de uma sentença ao final de um processo dialético.
Ao tomar suas decisões, também, é preciso lembrar que o juiz não está sozinho
no exercício das suas atribuições. Afinal, do procedimento que prepara a
decisão jurisdicional, devem, em princípio, diretamente participar, em
contraditório, em simétrica paridade, os destinatários desse provimento
jurisdicional.146
Dessa forma, sempre que houver mutação de um dispositivo constitucional
143
144
145
146
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 126.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar
Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1977.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na
Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 20.
CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 93.
54
por um novo entendimento verificado na sentença de um processo argumentativo, as
partes que contribuíram para a nova interpretação também são responsáveis pela
alteração constitucional, no exercício legítimo de um poder constituinte difuso.
A interpretação orgânica é aquela desenvolvida pelos órgãos e agentes do
Estado. Podemos dizer que todos os atos dos poderes públicos estão contaminados
pela interpretação de seus agentes. No entanto, não basta haver interpretação para que
se configure mutação. Como vimos anteriormente, ocorrerá mutação sempre que a
nova interpretação resultar em aplicação diversa de determinada norma, por alteração
de seu sentido ou alcance. O Poder Legislativo pode provocar mutação sempre que
editar Lei que altere entendimento prévio a respeito de determinado dispositivo
constitucional. O mesmo acontece com o Poder Executivo na edição de atos
administrativos, como os decretos e as resoluções. A interpretação feita pelo Poder
Judiciário se faz de grande importância, no âmbito constitucional, seja para provocar a
mutação por novos entendimentos dos próprios juízes e Tribunais, seja na (in)validação
da interpretação feita pelos outros poderes. Analisaremos mais especificamente, no
decorrer desse estudo, o papel desse Poder na guarda e defesa da Constituição.
Por fim, vale alertar sobre a possibilidade de inconstitucionalidade dos
processos que provocam mutação147. O simples fato de não estar expressamente
prevista na Lei Fundamental como processo de alteração de seu texto não faz da
mutação um fenômeno contra constitutionis. No entanto, ela será inconstitucional
sempre que contrariar o espírito da Constituição, seja através de seu texto, de seus
princípios, de seu objetivo ou de sua aplicação.
É evidente que a Constituição impõe limites expressos ao poder reformador
formal, elencando vários requisitos para seu exercício. No entanto, valores naturais nas
sociedades, como a liberdade e dignidade do homem, hoje positivados, pré-existem a
uma Constituição escrita. Isso faz com que o Poder Constituinte, mesmo em fase de
primogeneidade, não seja ilimitado. Como já vimos, o legislador constituinte, tanto
originário como reformador, encontra limites extrajurídicos no exercício de seu poder,
condicionados a fatores ideológicos, institucionais, sociológicos e substanciais de um
147
CUNHA, Anna Candida da. Processos informações de mudança da Constituição. São Paulo: Max
Limonad, 1986, p. 213.
55
Estado ou até mesmo da comunidade internacional.
A mutação constitucional encontra os mesmo tipos de limites148, que também
se modificam ao passo em que o próprio Estado vê esses fatores modificados. Nesse
sentido, “quer o poder constituinte formal, quer o poder constituinte material são
limitados pelas estruturas políticas, sociais, econômicas e culturais dominantes da
sociedade, bem como pelos valores ideológicos de que são portadores”149.
A verificação da (in)constitucionalidade de uma mutação se faz a nível da
efetividade das normas constitucionais, devendo-se levar em conta, para identificação,
a distância deixada entre a Constituição e a realidade social. Se uma Constituição
nasce para ser cumprida e aplicada, buscamos sempre a eficácia (efetividade) de suas
normas e o respeito à soberania de seus princípios. A mutação, quando constitucional,
supera o distanciamento entre a norma e a realidade circundante, tornando possível a
concretização de preceitos constitucionais que, sem alteração em seu sentido ou
alcance, não poderiam ser aplicados. A mutação inconstitucional, por sua vez, ao
romper com o espírito da Constituição, acaba por distanciá-la ainda mais das
circunstâncias reais da sociedade a que se dedica. Os abusos de poder, as omissões e
o mau uso das ferramentas de interpretação dissolvem o verdadeiro papel de uma
norma fundamental, rompendo com sua supremacia e retirando sua eficácia.
Embora tenhamos diversos mecanismos de mutação constitucional, com
vista a adaptar a norma ao tempo e ao meio em que é aplicada, nossa Constituição
encontra-se cada vez mais desvalorizada por ações dos próprios legitimados para
salvaguardá-la. “Não sejamos ridículos. A Constituição de 1988 não está mais em vigor.
(...) A Constituição é hoje o que a Presidência quer que ela seja, sabendo-se que todas
as vontades do Planalto são confirmadas pelo Judiciário”150.
Esse sentimento, amplamente presente na sociedade atual, se deve, em
grande parte, à pouca atenção dispensada pelos três poderes estatais no efetivo
148
149
150
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 131.
SOUSA, Marcelo Rebelo de. Direito Constitucional – Introdução à Teoria da Constituição. Braga:
Livraria Cruz, 1979, p. 62.
COMPARATO, Fábio Konder. Uma morte espiritual. Folha de São Paulo, caderno 1, 14 de maio de
1998, p. 3.
56
cumprimento da norma constitucional. Os guardiões da Constituição não levam mais
em consideração que não basta “ter uma Constituição promulgada e formalmente
vigente, impende atuá-la, completando-lhe a eficácia para que seja totalmente
cumprida”151. Essa falta de comprometimento do Executivo, do Legislativo e do
Judiciário leva a uma descrença na Constituição por parte da sociedade, fazendo com
que ela tenha seu brilho empalidecido152.
Essa ordem normativa supõe, portanto, a um só tempo, uma ordem ideal de
valores, a ser realizada, e uma ordem concreta aberta e receptiva, a ser
efetivamente cumprida e praticada. Sem a confluência dos dois fatores, a
Constituição é letra morta, perece, deixa de merecer o respeito do povo porque
não traduz, de modo real, a idéia de direito dominante no seio da sociedade.153
A inatividade dos poderes do Estado configura o que a doutrina chama de
inércia154 constitucional, caracterizada pelo não cumprimento intencional e prolongado
das disposições da Constituição. Na medida em que paralisam a aplicação da norma
fundamental, os agentes incumbidos de lhe dar execução desvirtuam sua finalidade,
alterando o sentido e o alcance de seu texto, de forma a distanciá-lo da realidade
circundante. Essa alteração, que torna ineficazes os comandos constitucionais, é uma
forma de mutação inconstitucional. Seu fundamento está no descomprometimento ou
nos abusos verificados por parte dos poderes constituídos, que agem para impedir a
adaptação da Constituição às necessidades dos cidadãos.
Há casos em que a inércia não caracteriza mutação inconstitucional, quando
as disposições que se deixa de aplicar não estão de acordo com a finalidade da
Constituição, entendida em seu conjunto, ou ainda, quando são tão complexas que se
tornam inexeqüíveis na prática. Essa inércia se faz necessária pelas mesmas razões
que fundamentam as mutações constitucionais.
Acontece que o que vemos mais frequentemente, em nosso país, é uma
inércia que ocorre em virtude de interesses da corrente política dominante, que vê o
cumprimento de determinado dispositivo constitucional como inoportuno ou indesejado,
151
152
153
154
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 2 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1982, p. 212.
LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. 2 ed.
Barcelona: Ariel, 1976.
CUNHA, Anna Candida da. Processos informações de mudança da Constituição. São Paulo: Max
Limonad, 1986, p. 232.
CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional.
57
contribuindo para que ocorra o que Loewestein chamou de erosão da consciência
constitucional155. Conforme lição de Milton Campos: “Muitos textos existem na Lei
Fundamental que, por fantasiosos e inúteis, são esquecidos. Outros, por muito severos
ou inconciliáveis com as condições do meio, são relegados e jazem inoperantes.
Outros, ainda, são frustrados pela inércia ou pela solércia dos executores”156.
Para Comparato, a “única razão de ser de uma Constituição é proteger a
pessoa humana contra o abuso de poder dos governantes”157. Infelizmente, nos faltam
recursos para um controle efetivo da inércia e do abuso dos Poderes estatais, mas eles
se mostram enfraquecidos nos “países onde há opinião pública forte e bem estruturada,
onde a educação, particularmente no campo político, é suficientemente desenvolvida,
onde existe imprensa responsável e efetivamente atuante, onde os sistemas de
representação são adequados e realmente democráticos”158. No Brasil, a sociedade
ainda carece de um espaço mais acessível para que possa agir em prol da efetivação
dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.
155
156
157
158
LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. 4 ed.
Barcelona: Ariel, 1986.
CAMPOS, Milton. Constituição e realidade. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1960, p.21.
COMPARATO, Fábio Konder. Uma morte espiritual. Folha de São Paulo, caderno 1, 14 de maio de
1998, p. 3.
FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição – Mutações
constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1986, p. 230.
58
3 O FENÔMENO DA MUTAÇÃO NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
3.1 O guardião da Constituição
O Supremo Tribunal Federal, mais alta instância do Poder Judiciário
brasileiro, exerce a defesa dos valores da Constituição, através da jurisdição
constitucional. É composto de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos de notório
saber jurídico e reputação ilibada, com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e
cinco anos de idade, nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da
maioria absoluta do Senado Federal159.
Responsável pela guarda da Constituição, além de exercer funções de
Suprema Corte, também possui competências típicas de uma Corte Constitucional.
José Afonso da Silva distingue, para um estudo didático, três grupos de jurisdição
exercidas pelo STF: jurisdição constitucional com controle de constitucionalidade,
jurisdição constitucional de liberdade e jurisdição constitucional sem controle de
constitucionalidade160. As matérias de sua competência lhe são atribuídas de três
formas pela Constituição: originariamente, em recurso ordinário ou em recurso
extraordinário.
A Constituição de 1988 prevê a competência originária desse Tribunal, como
Juízo único e definitivo, em seu artigo 102, inciso I. Atua, em algumas questões, como
um Tribunal da Federação, compondo litígios de natureza constitucional, sem entrar no
campo do controle de constitucionalidade. Outras vezes, seja originariamente seja em
sede recursal, exerce jurisdição constitucional de liberdade, provocada por “remédios
constitucionais destinados à defesa dos direitos fundamentais”161. O parágrafo 1º do
artigo 102 prevê, ainda, a apreciação, pelo Supremo Tribunal Federal, da arguição de
descumprimento de preceito fundamental, instrumento que alarga sua missão de defesa
159
160
161
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 101 e parágrafo único.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 560.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 561.
59
das garantias constitucionais162. Na qualidade de Tribunal de última instância, é
competente para julgar, em recurso ordinário, além do crime político, o habeas corpus,
o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção sempre que
denegatória a decisão de outros Tribunais Superiores.
Exerce, ainda, no âmbito de sua competência originária ou em recurso
extraordinário, o controle de constitucionalidade da legislação infraconstitucional. O
Brasil não possui uma Corte Constitucional, como se vê em alguns países, cabendo,
portanto, ao STF aferir a compatibilidade do Direito federal ou estadual com a
Constituição.
A discussão na Constituinte sobre a instituição de uma Corte Constitucional, que
deveria ocupar-se fundamentalmente, do controle de constitucionalidade,
acabou por permitir que o Supremo Tribunal Federal não só mantivesse a sua
competência tradicional, com algumas restrições, bem como adquirisse novas
esignificativas atribuições.
A Constituição de 1988 ampliou significativamente a competência originária do
Supremo Tribunal Federal, sobretudo em relação ao controle abstrato de
normas (...).163
Esse Tribunal é originariamente competente para processar e julgar a ação
direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade, a ação direta
de inconstitucionalidade por omissão, bem como os pedidos de medida cautelar nas
ações diretas de inconstitucionalidade. Em sede recursal, o STF aprecia, via recurso
extraordinário164, decisões proferidas em única ou última instância que contrariem
dispositivo constitucional, declarem inconstitucional tratado ou lei federal ou julguem
válida legislação contestada em face da Constituição.
Nesse sentido, seja pelo exercício de suas funções de última instância do
Poder Judiciário seja por sua atuação como Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal
Federal é considerado, pela própria Constituição, seu legítimo guardião.
Efetivamente, se a Constituição é suprema na hierarquia das normas, [...] é bem
de ver-se a necessidade imprescindível, em que se encontra a própria
Constituição, de organizar um sistema ou processo adequado de sua própria
162
163
164
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na
Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 40.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 955.
60
defesa, em face dos atentados que possa sofrer.165
Assim, afirma Calil: “Para garantir essa função basilar e orientadora, ou seja,
para assegurar que essa norma seja respeitada, surge o Sistema de Controle de
Constitucionalidade”166. Esse instrumento de defesa da Constituição pode ser exercido
de três maneiras: por controle concentrado (ou político), por controle difuso (ou judicial)
ou por controle misto167.
O primeiro, predominante na Europa, entrega a possibilidade de declaração
de inconstitucionalidade a um poder de natureza política. Nesse sistema, as Cortes
Constitucionais, a partir de um critério de controle concentrado, são os únicos tribunais
competentes para julgar conflitos constitucionais.
No segundo, utilizado nos Estados Unidos, a verificação da compatibilidade
entre a Constituição e a legislação infraconstitucional cabe à jurisdição ordinária, de
forma difusa. Esse sistema norte-americano adota um critério de natureza técnicojurídica, fazendo com que o Poder Judiciário aprecie a Constituição em função do caso
concreto e não, necessariamente, em função da guarda de seus valores políticos e
ideológicos168.
O controle misto169, adotado pela Constituição brasileira, combina o critério
difuso com o critério concentrado. O controle de constitucionalidade difuso é exercido
por todos os componentes do Poder Judiciário, ou seja, qualquer juiz ou Tribunal pode
exercer jurisdição constitucional através da não aplicação, no caso concreto, de lei ou
ato considerado inconstitucional. A decisão terá, a princípio, valor inter partes, dando-se
primazia à solução de um caso concreto.
Assim, no País, nosso controle de constitucionalidade pode dar-se como
preliminar de mérito em qualquer processo, cível ou penal, de tal forma que todo
cidadão tem o direito de se opor ou de argüir uma inconstitucionalidade e todo
165
166
167
168
169
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1991, p. 372.
SIMÃO, Calil. Elementos do sistema de controle de constitucionalidade. 1 ed. São Paulo: SRS, 2010,
p. 2.
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Resumo de direito constitucional descomplicado. 2 ed.
São Paulo: Editora Método, 2009, p. 302-303.
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Apontamentos sobre o controle de constitucionalidade. Revista
da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo: Centro de Estudos, n.34, 1990, p. 28-29.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1061.
61
juiz ou tribunal, da primeira à última instância, não só pode mas deve, como
atividade típica e função intrínseca à jurisdição brasileira, apreciar a
constitucionalidade de lei ou ato normativo de qualquer espécie, negando a
aplicação de “comando” eivado de inconstitucionalidade. Nesse sentido é que
José Luiz Quadros de Magalhães firma: “No Brasil, toda jurisdição é jurisdição
constitucional”, no que tem toda razão.170
Já o controle de constitucionalidade concentrado é de competência do
Supremo Tribunal Federal. Nesses casos, suas decisões serão vinculantes e terão valor
erga omnes, evidenciando, aí, a importância que se dá à guarda de valores
constitucionais. Cabe frisar, no entanto, que essa função não faz do STF uma Corte
Constitucional.
Primeiro
porque
o
controle
de
constitucionalidade
não
cabe
exclusivamente a esse Tribunal. Quando exercida de forma difusa, cabe a todos os
juízes e Tribunais brasileiros, bem como a qualquer cidadão, afinal, como bem expôs
Cattoni: “A cidadania não precisa de tutores”171. Segundo, o STF não atua somente em
questões de controle, possuindo, como já vimos, outras competências em matéria de
jurisdição constitucional. Sendo assim, também os casos concretos que envolvem
questões constitucionais são levadas a seu conhecimento e julgamento.
O STF pode participar, igualmente, da forma difusa de controle, como
Tribunal de última instância, apreciando questões concretas que chegam a seu
conhecimento através de recurso extraordinário. Nessas situações, José Afonso da
Silva entende que o Supremo Tribunal Federal costuma examinar a questão baseandose em critério técnico-jurídico, dando primazia à solução do caso concreto, sempre que
houver a possibilidade de julgar o litígio sem declarar a inconstitucionalidade da lei ou
do ato.
É certo que o art. 102 diz que a ele compete, precipuamente, a guarda da
Constituição. Mas não será fácil conciliar uma função típica de guarda dos
valores constitucionais (pois, guardar a forma ou apenas tecnicamente é falsear
a realidade constitucional) com sua função de julgar, mediante recurso
extraordinário, as causas decididas em única ou última instância (base do
critério de controle difuso), quando ocorrer umas das questões constitucionais
enumeradas nas alíneas do inc. III do art. 102, que o mantém como Tribunal de
julgamento do caso concreto que sempre conduz a preferência pela decisão da
lide, e não pelos valores da Constituição, como nossa história comprova172.
170
171
172
CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 123.
CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 123.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 559.
62
Acontece que também a solução do caso concreto em jurisdição
constitucional envolve a guarda dos valores da Constituição, afinal, o controle difuso é,
igualmente, controle de constitucionalidade. Deveras, não basta que a forma ou o texto
sejam preservados, se sua aplicação não puder ser efetiva. É através da apreciação da
incidência da norma constitucional nas circunstâncias de fato que se verifica sua
eficácia. E não deixar se tornarem ineficazes suas normas é preservar e defender a
Constituição. Nessa esteira, não há que se falar num choque entre o julgamento do
caso concreto e a guarda de valores constitucionais. Muito pelo contrário, sempre que
respeitar os limites impostos pela Norma Suprema, a decisão de um conflito que
envolva seus preceitos vem ampliar sua aplicação de forma a concretizar seus valores
no mundo dos fatos. Sendo esse o objetivo da nossa Carta, o controle difuso de
constitucionalidade vem somar forças ao controle concentrado e dar ao STF um
instrumento de ampliação da sua missão de guardião.
Aliás, o controle difuso173, também denominado aberto, indireto ou por via de
exceção, nos parece ainda mais eficaz na real conservação de preceitos
constitucionais. Isso porque deve ser baseado em diversos fatores da sociedade,
enquanto o poder concentrado sofre maior influência de caráter político. Assim, quando
aplicados às circunstâncias de fato de uma sociedade, os dispositivos constitucionais
tornam-se concretos e a Constituição é efetivamente defendida.
Se concluímos que a mutação constitucional é a implicação de novos
sentidos ao texto constitucional, advindos justamente do mundo fático, através de um
poder constituinte difuso, temos que admitir que o papel exercido pelo STF na jurisdição
constitucional, principalmente no que tange o controle de constitucionalidade difuso, é
um de seus grandes vetores174. A forma mais visível de mutação do significado ou
alcance de um conceito previsto pela Constituição é justamente a interpretação utilizada
pelo Supremo Tribunal Federal em suas decisões175. A mutação da Constituição, para
que sirva à sua função de concretização da norma, através da adaptação do Direito
173
174
175
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 4 ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.137-153.
NEVES, Carmen Nasaré Lopes. Mutação constitucional em face da hermenêutica judicial no controle
por via de exceção. Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios. Brasília, ano 12, edição especial, abril de 2004, p. 7-50.
STRECK, Lenio. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 468.
63
escrito à realidade social, deve ser válida, deve ser constitucional. Quando não é dado
pelo próprio STF, o novo sentido acaba passando, de qualquer forma, pelo crivo desse
Tribunal, numa espécie de controle de constitucionalidade. Segundo o professor Luís
Roberto Barroso, “A última palavra sobre a validade ou não de uma mutação
constitucional será sempre do Supremo Tribunal Federal”176.
Para que se possa entender melhor a importância do Poder Judiciário na
mutação provocada por interpretação orgânica, elencaremos, aqui, alguns exemplos:
a) Mutação por interpretação judicial: O artigo 102, inciso I, alínea a, da
Constituição da República, confere ao Presidente da República, ao Vice-Presidente, ao
Procurador-Geral da República, aos membros do Congresso Nacional e a seus
Ministros o chamado foro por prerrogativa de função. Compete ao Supremo Tribunal
Federal processar e julgar, originariamente, as infrações penais por eles cometidas. Por
muito tempo, entendeu-se que o foro privilegiado estava associado ao ato praticado
pelo agente, subsistindo, por isso, à cessação do exercício da função. Era o que
afirmava o verbete n. 394 da Súmula do STF. Através de decisão proferida no inquérito
687177, em 1999, o STF cancelou o enunciado da Súmula, demonstrando o
entendimento de que sua competência estava vinculada ao exercício do cargo pelo
agente condenado. Nota-se que o dispositivo constitucional sofre mudanças em sua
aplicação, sem necessidade de alteração de sua letra, plenamente compatível com a
nova interpretação dada pelo Poder Judiciário.
b) Mutação por interpretação administrativa: A prática constante observada
no âmbito da estrutura do Poder Judiciário de contratar parentes de magistrados para
cargos que não dependiam de concurso foi considerada costume contra constitutionis178,
ensejando a Resolução n. 7, de 14 de novembro de 2005, do Conselho Nacional de
Justiça. Declarado constitucional pelo STF179, o ato administrativo fez com que o
nepotismo deixasse de ser socialmente tolerado, provocando uma mutação nos valores
176
177
178
179
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 133.
Inq 687 QO/SP, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Sydney Sanchez, j. 25/08/1999.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.
ADC 12/DF, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Carlos Britto, j. 20/08/2008.
64
dos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade, que adquiriram novo
alcance através de interpretação administrativa, confirmada pelo Poder Judiciário.
c) Mutação por interpretação legislativa: O professor Barroso nos traz um
exemplo hipotético, depois de alertar para o fato de não bastar simples elaboração de
lei nova para que se configure mutação por atuação do legislativo.
A mutação terá lugar se, vigendo um determinado entendimento, a lei vier a
alterá-lo. Suponha-se, por exemplo, que o § 3º do art. 226 da Constituição - que
reconhece a união estável entre homem e mulher como entidade familiar viesse a ser interpretado no sentido de considerar vedada a união estável entre
pessoas do mesmo sexo. Se a lei ordinária vier a disciplinar esta última
possibilidade, chancelando as uniões homoafetivas, terá modificado o sentido
que se vinha dando à norma constitucional”180.
O que se percebe desses exemplos é que a validade de uma mutação
constitucional acaba sempre passando pelo crivo do Supremo Tribunal Federal. No
exercício de seu papel de guardião da Constituição, declarou constitucional o ato
administrativo do primeiro exemplo, cuidou da interpretação judicial no segundo e,
certamente, daria a última palavra a respeito da mutação provocada pela lei do terceiro
caso, quando de sua sujeição ao controle de constitucionalidade. Aliás, no caso tomado
como exemplo de interpretação judicial, o Congresso aprovou a Lei n. 10.628, em 2002,
restabelecendo o antigo entendimento sobre a fixação de competência por prerrogativa
de função, desfazendo, através de atuação legislativa, a mutação constitucional
provoca pelo Judiciário. O STF declarou a Lei inconstitucional, em 2005,
restabelecendo a validade da mutação181.
As maiores implicações do reconhecimento, pelo intérprete, da influência de
determinado fato na aplicação da norma ao caso concreto incidem no plano do controle
de constitucionalidade das leis. O Supremo Tribunal Federal pode invocar, nesses
casos, diversos instrumentos constitucionais desenvolvidos pela jurisprudência para
fundamentar suas decisões no controle abstrato de normas182. Gilmar Mendes elenca
cinco categorias de possibilidades que tem o STF ao julgar a constitucionalidade de
uma norma: a declaração de nulidade da lei, a interpretação conforme à Constituição, a
180
181
182
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 132 - 133.
ADI 2.797/DF e ADI 2.806/DF, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, j. 15/09/2005.
ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. 1 ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2001, p. 115
65
declaração de constitucionalidade das leis, a declaração de inconstitucionalidade sem a
pronúncia da nulidade e a declaração de inconstitucionalidade de caráter restritivo ou
limitativo183.
Não é o objetivo desse trabalho se aprofundar em cada uma das
possibilidades de que dispõe o Poder Judiciário na análise da adequação das normas
infraconstitucionais à Constituição. Vale alertar, no entanto, para a importância de
alguns instrumentos na compreensão do fundamento do processo de mutação.
Da verificação da constitucionalidade, o STF pode declarar uma Lei como
sendo ainda constitucional184, ou seja, a Lei será constitucional até o advento de certa
condição. Foi o que aconteceu em decisão proferida no HC 70.514, de 23 de março de
1994, quando da análise da constitucionalidade da Lei que concedia prazo em dobro
para os recursos da Defensoria Pública nos processos judiciais. O parágrafo 5º do
artigo 5º da Lei n. 7.871, de 8 de novembro de 1989, haveria de ser inconstitucional por
conceder prazo à Defensoria Pública superior àquele estipulado para o Ministério
Público. No entanto, entendeu o STF no sentido de que a disparidade atendia a
realidade das estruturas desses órgãos, já que o Ministério Público é instituição bem
mais antiga do que a Defensoria. Assim pronunciou-se o Ministro Moreira Alves:
A única justificativa que encontro para esse tratamento desigual em favor da
Defensoria Pública em face do Ministério Público é a de caráter temporário: a
circunstância de as Defensorias Públicas ainda não estarem, por sua recente
implantação, devidamente aparelhadas com se acha o Ministério Público. [...]
Assim, a lei em causa será constitucional enquanto a Defensoria Pública,
concretamente, não estiver organizada com a estrutura que lhe possibilite atuar
em posição de igualdade com o Ministério Público, tornando-se inconstitucional,
porém, quando essa circunstância de fato não mais se verificar.185
Não pretendemos entrar, aqui, no mérito da questão. O exemplo foi utilizado
tão somente para a demonstração da possibilidade do reconhecimento da influência de
circunstâncias de fato na interpretação e aplicação de uma norma. Como vimos, a
mutação pode dar-se tanto por uma mudança na percepção do direito como na
alteração fática da realidade circundante. O recurso à declaração de lei ainda
183
184
185
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na
Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1257.
HC 70.514/RS, Tribunal Pleno, Rel. Ministro Sydney Sanches, j. 23/03/1994.
66
constitucional é construção da doutrina alemã, constituindo “exemplo clássico do
processo de inconstitucionalização (Verfassungswidrigweden) em virtude de uma
mudança nas relações fáticas”186, o que pode gerar uma mutação no sentido ou no
alcance do dispositivo constitucional a que Lei ainda se adéqua187.
Trata-se a este propósito de que as relações fácticas ou usos que o legislador
histórico tinha perante si e em conformidade aos quais projectou a sua
regulação, para os quais a tinha pensado, variaram de tal modo que a norma
dada deixou de se “ajustar” às novas relações. É o factor temporal que se faz
notar aqui. Qualquer lei está, como facto histórico, em relação actuante com o
seu tempo. Mas o tempo também não está em quietude [...]. Existe, a princípio,
ao invés, uma relação de tensão que só impele a uma solução – por via de uma
interpretação modificada ou de um desenvolvimento judicial do Direito – quando
a insuficiência do entendimento anterior da lei passou a ser “evidente”.188
A declaração de nulidade parcial da lei sem redução de seu texto é outro
efeito da sentença em controle de constitucionalidade que pode gerar mutação. O
Supremo Tribunal Federal tem a possibilidade de, apreciando a aplicabilidade da norma
a determinado caso concreto, declarar sua inconstitucionalidade parcial, sem modificar
seu texto, limitando-se a considerar inconstitucional apena determinada hipótese de
aplicação189. Essa técnica, advinda da jurisprudência alemã, pode aparecer como
resultado de uma interpretação conforme à Constituição190, embora não exclusivamente.
Enquanto a interpretação conforme à Constituição pode ser feita por qualquer juiz ou
Tribunal, muito utilizada na jurisdição constitucional sem controle de constitucionalidade
ou no controle difuso, a declaração de nulidade – parcial ou não, com ou sem alteração
do texto – só pode ser proferida pelo STF191.
A interpretação conforme à Constituição é um recurso que leva em
consideração a percepção da norma, outra causa de mutação já estudada aqui. O
186
187
188
189
190
191
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na
Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 298.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1022.
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 2 ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1989, p. 495.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na
Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 344.
COELHO, Inocêncio Mártires. Declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto, mediante
interpretação conforme: um caso exemplar na jurisprudência do STF. Cadernos de Direito Tributário e
Finanças Públicas. São Paulo, n. 23, 1998, p. 169-188.
SILVA, Virgílio Afonso da Silva. Interpretação conforme a Constituição: entre a trivialidade e a
centralização judicial. Revista Direito GV 3, janeiro-junho de 2006, p. 201.
67
intérprete da norma, sempre que em seu texto caibam interpretações diferentes, deve
sempre preferir aquela que está de acordo com a Constituição, devido a uma presunção
que se estipulou de que o legislador sempre quer positivar uma norma que seja
constitucional192.
O instrumento é muito utilizado na solução de casos concretos,
vinculando apenas as partes envolvidas. Mas também serve às decisões no âmbito do
controle de constitucionalidade, sendo que a norma pode ser declarada constitucional,
desde que interpretada da forma que a torne compatível com a Constituição193.
Conforme Gilmar Mendes, “a interpretação conforme à Constituição não deve ser
vista como um simples princípio de interpretação, mas sim como uma modalidade de
decisão do controle de normas, equiparável a uma declaração de inconstitucionalidade
sem redução do texto”194.
Muitas vezes, e como ocorreu na questão trazida pela ADI 4277195, a norma é
interpretada, majoritariamente, em desconformidade com a Constituição. Faz-se
necessário, então, o recurso ao STF para que esse órgão dite o sentido ou o alcance
que deve ser utilizado por todos os outros juízes e Tribunais. A norma, apesar de
sempre ter sido constitucional (vez que assume interpretação compatível com a
Constituição), poderia estar sendo aplicada de forma a ferir dispositivos da Norma
Suprema. A partir da decisão do órgão responsável pelo controle de constitucionalidade,
ela passa a ser utilizada de forma adequada.
Aspecto interessante desse recurso é que, muitas vezes, ele provoca,
igualmente, mutação do preceito constitucional que, antes, a norma violava.
A jurisprudência brasileira também tem sido elemento de mutação
constitucional. Expressiva, a este propósito, é a denominada interpretação
conforme a Constituição, pela qual, havendo mais de uma interpretação
plausível do texto de norma infraconstitucional, adota-se aquela que seja
compatível com a Constituição. Ao promover a interpretação conforme a
Constituição, o Supremo Tribunal Federal acaba por operar mudança na
Constituição, pois não se limita apenas a pronunciar ou não a
192
193
194
195
BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2 ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 93.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1251.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional – O controle abstrato de normas no Brasil e na
Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 346.
ADI n. 4277/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011.
68
inconstitucionalidade, mas até mesmo diz o que o texto constitucional não diz.196
Isso acontece porque, normalmente, quando a norma é aplicada de forma
inconstitucional, o preceito com o qual estava em desconformidade também pode
assumir mais de uma interpretação. Afinal, se os juízes e Tribunais a interpretavam de
tal forma, é porque ela parecia ser compatível com o texto da Constituição. Nem
sempre, isso se deve a uma má interpretação da norma em si. O dispositivo
constitucional que ela viola também pode estar sendo lido de maneira inadequada, seja
por falta de uma compreensão sistemática da Constituição como um todo, seja por uma
evolução da sociedade e dos fatos que trouxe a necessidade de novas visões. Nesse
momento, o Poder Judiciário tem o papel de extrair não só o melhor sentido da norma
infraconstitucional, mas da própria Constituição. Como veremos na análise do caso da
união homossexual, tanto a lei ordinária como a Constituição tiveram que ser
interpretadas conforme os princípios constitucionais.
3.2 Elementos de pré-compreensão para análise de caso
A mutação constitucional, apesar de ser pouco explorada pela doutrina, não
é um fenômeno recente. Normalmente, as mudanças se sedimentam no decorrer de
diferentes gerações, fazendo com que a geração que a gerou, muitas vezes, não veja
seu resultado prático. Novas gerações costumam adotar acepções dos dispositivos
constitucionais diferentes daquelas pretendidas pelo legislador constituinte originário.
Na maioria das vezes, isso acontece sem que se conheça as raízes do dispositivo e
suas antigas interpretações. As gerações de hoje encontram diversas interpretações tão
sedimentadas que nem mesmo cogitam as hipóteses de aplicação da antiga
compreensão que se tinha do texto. Costuma-se conhecer a evolução histórica dessa
aplicação somente num estudo mais aprofundado do dispositivo. Quem nasceu no
século XXI, por exemplo, já não encontrará as mesmas discriminações superadas pela
antiga sociedade. E, ainda que determinado preconceito não esteja totalmente
superado, a discussão que se faz em torno de sua previsão constitucional certamente
196
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição, Direito
Constitucional Positivo. 15 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 330-331.
69
adquiriu outro enfoque e tomará novos rumos.
Ao longo da história constitucional brasileira, diversos dispositivos foram
dotados de nova interpretação ou aplicação. Mesmo as previsões mais evidentes
tomam novas acepções. Alguns dos conceitos que parecem, à primeira vista, óbvios e
bem delimitados, envolvem, na verdade, tantos fatores que se tornam passíveis de
mudanças tão amplas quanto aquelas que ocorrem com os princípios. Conceitos mais
abertos ou gerais – como ordem pública, interesse social, bem comum, dano moral,
abuso de poder, segurança jurídica – e enunciados de princípios positivados – como
dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, razoabilidade, moralidade, liberdade,
igualdade –, que precisam ser integrados ao tempo de sua concretização, costumam
mudar mais rapidamente, de acordo com as novas percepções e exigências da
sociedade.
Estudaremos, aqui, algumas mudanças percebidas na compreensão e
aplicação do Direito Constitucional brasileiro, para que se possa entender melhor o
caso que será analisado ao final desse trabalho. Destacamos, no entanto, que o
objetivo do nosso estudo não é conhecer, especificamente, as origens e os movimentos
históricos e sociais que culminaram na mudança de percepção e interpretação dos
conceitos analisados, mas tão somente compreendê-los de maneira a tornar mais clara
a análise da mutação constitucional verificada na interpretação feita pelo Supremo
Tribunal Federal na decisão de um caso concreto.
Faremos, portanto, uma breve síntese da trajetória que percorreu o conceito
de família na história constitucional brasileira. A família, antes patriarcal, só poderia ser
formada, até os anos 60, através do casamento. Essa perspectiva é reflexo da
realidade da polis grega, onde se fazia necessário o casamento para a configuração do
status de bom cidadão197. Nessa sociedade – e na concepção de muitos, ainda hoje,
inclusive –, o objetivo maior da união de duas pessoas, ou melhor, do sexo, era a
procriação. Somente os filhos havidos na constância de um casamento eram legítimos,
já que essa era a única forma de união socialmente aceita. No entanto, não é de hoje
que se sabe que o casamento não é a única forma real de união e que as pessoas não
197
FOUCAULT, Michael. História da Sexualidade. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de
Janeiro: Graal, 1988.
70
se unem exclusivamente na intenção de procriar. Aliás, o que também não é novidade,
mesmo as pessoas casadas se unem com outras pessoas, de tantas outras maneiras,
por tantos outros motivos.
O Código Civil de 1916 estigmatizava o concubinato como família ilegítima,
sem proteção legal. Com o passar do tempo, os dissídios referentes aos bens de quem
possuía uma concubina (não se falava juridicamente no concubino) passaram a ser
resolvidos sob a égide do Direito das Obrigações. O concubinato era tanto a relação da
pessoa casada com uma amante – utilizando, aqui, a conotação usual da palavra –
como a união não formalizada pelo casamento civil, reprimida, durante muito tempo,
pela lei e pela convenção social. No entanto, convencionou-se diferenciar os termos
concubino e companheiro, na intenção de distanciar a poligamia – ainda repudiada pelo
Direito – da união estável, quando esta última passou a ter proteção legal198.
Num primeiro momento, a proteção da companheira começa com o direito a
indenização por serviços domésticos; mais tarde, passa-se a reconhecer a existência
de uma sociedade de fato. Em 1964, o STF editou a Súmula 380, consolidando
jurisprudência que tratava a relação do concubinato como sociedade de fato e
substituía o entendimento de prestação de serviços domésticos pela assistência mútua:
“Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos é cabível a sua
dissolução judicial com partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. A doutrina
destaca a importância que se dava à prova da contribuição mútua na construção do
patrimônio do casal para caracterização da sociedade e possibilidade de partilha199.
A Constituição de 1967 ainda dispunha em seu artigo 167: “A família é
constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos”. Face ao
desenvolvimento cultural ocorrido na sociedade daquela época, começou-se a
construção de uma jurisprudência que reconhecia efeitos jurídicos à união de pessoas
198
199
“Companheira e concubina. Distinção. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir
institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. [...] A proteção do Estado à união
estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato. [...] A
titularidade da pensão decorrente do falecimento de servidor público pressupõe vínculo agasalhado
pelo ordenamento jurídico, mostrando-se impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em
detrimento da família, a concubina”. (RE 590.779/ES, Primeira Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio, j.
10/2/2009)
FONTANELLA, Patrícia. União Estável: a eficácia temporal das leis regulamentadoras. 2 ed.
Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 37.
71
que não haviam se casado, passando a ser considerada união de fato. O companheiro
ou a companheira passaram a ser admitidos, pela legislação previdenciária, como
beneficiários do segurado. A questão ainda era tratada somente no plano patrimonial,
com efeitos assistenciais, locatícios, previdenciários. Mas, já se notava uma efetiva
mutação naquilo que se entendia por família. A família antes considerada ilegítima
passa a estar legalmente amparada:
Com a evolução jurisprudencial, alguns direitos dos concubinos passaram a ter
guarida em legislações esparsas. O reconhecimento do filho havido fora do
casamento foi previsto no Decreto-Lei 4.737/42, mas exigia a separação legal
do casal. Todavia, com a regulamentação posterior (Lei 883/49) acrescentou-se
a possibilidade de reconhecimento em mais duas hipóteses: morte ou anulação
do casamento.
Com a Lei do Divórcio (Lei 6.515/77) tornou-se possível o reconhecimento do
filho adulterino na constância do casamento, desde que fosse feito em
testamento cerrado. Com a Súmula 447, do STF, foi legitimada a validade de
disposição testamentária em benefício do filho com sua concubina200.
A Constituição de 1988, recepcionando expressamente a mutação na figura
da união estável, afastou a hierarquia que existia entre ela e o casamento, através do
disposto no parágrafo 3º de seu artigo 226, verbis: “Para efeito de proteção do Estado,
é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a
lei facilitar sua conversão em casamento”.
A Constituição Federal, que buscou retratar a sociedade por uma ótica de
modernidade, deu nova dimensão ao conceito de família. Introduziu um termo
generalizante – entidade familiar – a englobar, além da relação decorrente do
casamento, também a união estável entre um homem e uma mulher (art. 226, &
3º) com o que emprestou juridicidade ao relacionamento até então
marginalizado pela lei.201
A norma constitucional tratou também de outra forma de família, a chamada
monoparental, formada por apenas um dos pais e seus filhos. Dessa forma, a nova
ordem veio conferir status de entidade familiar à união estável e às famílias chamadas
monoparentais, rompendo com o conceito de que família é somente a união decorrente
do casamento202. O Ministro Marco Aurélio, ao proferir voto no julgamento da ADI 4277,
discorre nesse sentido: “O processo evolutivo encontrou ápice na promulgação da Carta
200
201
202
FONTANELLA, Patrícia. União Estável: a eficácia temporal das leis regulamentadoras. 2 ed.
Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 39.
DIAS, Maria Berenice. O concubinato Legal. Porto Alegre: Jurisplenum, 1997. CD ROM.
BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias Homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002, p. 79.
72
de 1988. O Diploma é o marco divisor: antes dele, família era só a matrimonial, com ele,
veio a democratização – o reconhecimento jurídico de outras formas familiares”203.
A Lei 8.971, de 1994, veio regulamentar o artigo 226 da Constituição,
reconhecendo aos companheiros, em união estável, o direito a alimentos, sucessão e
meação. Estabelecia, no entanto, que os companheiros deveriam possuir, para
reconhecimento desses direitos, cinco anos de convivência ou filho em comum e que
entre eles não poderia haver os impedimentos legais previstos para o casamento.
A Lei 9.278, editada em 1996, ficou conhecida como a Lei da União Estável,
estabelecendo, em seu artigo 1º: “É reconhecida como entidade familiar a convivência
duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo
de constituição de família”.
Em seus artigos seguintes, a lei estabelecia os direitos e deveres dos
companheiros, quais sejam: presunção de aqüestos, direitos a alimentos e da
habitação em relação ao imóvel destinado à residência familiar; a conversão da
união estável em casamento por simples requerimento ao oficial do Registro
Civil (ignorando-se assim os impedimentos previstos no Código Civil). Ainda,
previa a competência das Varas da Família para resolver os litígios advindos da
união estável.204
Em 2002, entra em vigor o novo Código Civil, que incorpora as mudanças na
legislação referente à família. “A inserção do título ‘União Estável’ no Livro de Família do
novo Código Civil brasileiro, talvez tenha sido a grande mudança feita neste novo
diploma legal”205. Em seu artigo 1.723, reconhece a união estável nos moldes do
disposto na Lei 9.278/96, sem estipular um tempo determinado para sua configuração.
Pode ser que uma relação entre homem e mulher, com 30 anos de duração,
seja apenas um namoro. Pode ser que uma relação de apenas um ou dois anos
constituía uma família. Ou seja, não é o tempo com determinação de x ou y
meses, ou anos, que deverá caracterizar ou descaracterizar uma relação como
união estável.206
No entanto, as novas disposições, trazidas de forma expressa na Carta de
1988, e a proteção que se deu à união estável não fizeram sedimentar o entendimento
203
204
205
206
ADI n. 4277/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011.
FONTANELLA, Patrícia. União Estável: a eficácia temporal das leis regulamentadoras. 2 ed.
Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 47.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Da União Estável. In: ____ (Coord.) Direito de Família e o NCC. 2 ed.
Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 226.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Da União Estável. In: ____ (Coord.). Direito de Família e o NCC. 2 ed.
Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 228.
73
que se tem de família. Ainda hoje, discute-se a possibilidade de proteção de outras
formas de união. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina acaba de julgar, em novembro
de 2011, um caso que repercutiu na mídia como o “quadrilátero amoroso” 207. A decisão
determinou a divisão da pensão de um funcionário público, após a morte da viúva, entre
duas mulheres que provaram terem nutrido com ele relacionamento amoroso
duradouro208. Outra grande discussão se faz em torno das uniões homossexuais,
levada, também esse ano, ao Supremo Tribunal Federal, conforme veremos adiante.
Também o conceito de igualdade, que tanto mudou até os tempos atuais,
continua em pleno debate e carrega sempre novas acepções. Diversas discriminações
que, hoje, são repudiadas, já foram aceitas por gerações passadas. Antigamente,
toleravam-se discriminações em razão de idade, crença, cor, sexo e orientação sexual.
Apesar de se considerar superados vários desses preconceitos, muitos resquícios ainda
são encontrados no atual panorama constitucional brasileiro. Além disso, novos
contextos exigem novas visões dessas mesmas discriminações.
Positivado na primeira Constituição brasileira, o princípio da isonomia, no
Brasil Império, convivia com a legitimação da escravatura. A Carta de 1824 previa que a
lei deveria ser igual para todos, mas fazia distinções em virtude de méritos e virtudes
pessoais209, estando os negros proibidos de frequentar escolas. Em 1891, com o
advento da República, os privilégios de classes saíram do texto constitucional, mas não
da cultura da época. A Constituição de 1934 traz de forma expressa a abolição dos
privilégios por motivos de “nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais,
classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”210. O legislador de 1937
207
208
209
210
Viúva Morre, e Justiça divide pensão de marido entre amantes em SC. Revista Folha.com. Disponível
em: http://folha.com/no1008782. Acesso em: 20 de novembro de 2011.
“Embora seja predominante, no âmbito do direito de família, o entendimento da inadmissibilidade de
se reconhecer a dualidade de uniões estáveis concomitantes, é de se dar proteção jurídica a ambas
as companheiras em comprovado o estado de recíproca putatividade quanto ao duplo convívio com o
mesmo varão, mostrando-se justa a solução que alvitra a divisão da pensão derivada do falecimento
dele e da terceira mulher com quem fora casado” (AC n. 2009.041434-7/SC, Quarta Câmara de
Direito Civil, Rel. Des. Eládio Torret Rocha, j. em 10/11/2011).
Constituição Política do Império do Brasil de 1984. Art. 179, inciso XIII: “A Lei será igual para todos,
quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Art. 179,
inciso XIV: “Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem
outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes”.
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Art. 113, 1: “Todos são iguais
perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões
próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”.
74
retirou do dispositivo que previa a igualdade perante a lei os elementos de distinção
citados pela antiga norma.
A Consolidação das Leis do Trabalho tornou defesa, a partir de 1943, a
diferenciação de rendimentos com base na idade, nacionalidade ou sexo. A
Constituição de 1946 veio proibir a propaganda que envolvesse preconceito de cor ou
classe. A punição legal do racismo foi constitucionalizada em 1967. Nem por isso, a
discriminação pela cor da pele de uma pessoa deixou de existir.
Finalmente, a atual Constituição vem eleger, em seu preâmbulo, a igualdade
como um dos valores supremos de “uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos”. Apesar disso, mesmo depois de 1988, a sociedade vem enfrentando
diversos preconceitos de cor, idade, orientação sexual, nacionalidade, crença, gênero,
entre tantos outros. Seria impossível fazer, nesse breve estudo, uma análise dos
motivos e consequências de cada uma dessas discriminações. Vamos, apenas, de
forma bem sintética, exemplificar alguns momentos que fizeram mudar a percepção do
princípio da isonomia em nosso ordenamento.
A luta de sexos, notável na história mundial, fez amadurecer o conceito de
igualdade entre homens e mulheres. No século XIX, surgiu, nos Estados Unidos e na
Europa, o movimento feminista, no intuito de combater padrões opressores baseados
em normas de gênero211. Sua primeira grande onda212 teve lugar numa sociedade
patriarcal e veio combater casamentos arranjados e a propriedade das mulheres, que
passava dos pais aos maridos. Ao adquirir cunho político, resultou na conquista do
direito ao exercício de sufrágio pelas mulheres nos Estados Unidos, com a aprovação
da 19ª Emenda em 1919. Até então, só os homens podiam votar e participar da vida
política dos Estados. O movimento também ganhou força na luta por direitos sexuais,
trabalhistas e econômicos. Nos anos 60, mulheres ativistas colocaram no chão, em
praça pública, diversos utensílios femininos para simbolizar a libertação da opressão
masculina, em episódio que ficou conhecido como a “queima dos sutiãs” (bra-burning).
211
212
CORNELL, Drucilla. At the heart of freedom: feminism, sex, and equality. Princeton: Princeton
University Press, 1998.
HUMM, Maggie. The dictionary of feminist theory. Columbus: Ohio State University Press, 1990,
p. 278.
75
No Brasil, a Carta de 1891 não proibia expressamente o voto feminino, pois
os constituintes da época entendiam que as mulheres não possuíam direitos políticos.
O artigo 70 da Constituição da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil
assim previa: "São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma
da lei". Em 1928, a advogada, adepta do movimento feminista no Brasil, Maria
Ernestina Carneiro Santiago de Souza (conhecida como Mietta Santiago 213) impetrou
Mandado de Segurança alegando que a proibição do voto feminino contrariava a
Constituição em vigor214. A sentença lhe concedeu o direito de exercício do voto, bem
como o direito a ser votada como candidata a deputada federal. O episódio inspirou o
poeta Carlos Drummond de Andrade a escrever o poema Mulher Eleitora: “Mietta
Santiago / loura poeta bacharel / conquista, por sentença de Juiz, / direito de votar e ser
votada”. Com as mudanças advindas da luta pela igualdade política entre homens e
mulheres, o dispositivo fora interpretado e aplicado de forma diversa do que pretendiam
os constituintes originários, sem que seu texto sofresse alteração. Em 1932, o Decreto
nº 21.076, que instituiu o primeiro Código Eleitoral Brasileiro, positivou a mutação em
seu artigo 2º: “É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na
forma deste Código”. A Constituição de 1934 trouxe expressa a ampliação
constitucional do direito de voto para as mulheres.
A sociedade de hoje vê superado o problema do sufrágio feminino, mas não
o debate de questões de gênero. Atualmente, é discutida, por exemplo, a possibilidade
de requisitos de sexo para acesso a cargos públicos215. Di Pietro considera que os
agentes penitenciários devem ser do mesmo sexo dos presos, assim não “se poderia
conceber que, para o cargo de guarda de presídio masculino, fossem admitidas
candidatas do sexo feminino”216. Os autores que defendem a legitimidade da restrição
baseiam-se, sobretudo, no princípio da eficiência da administração pública, no direito
dos presos à intimidade e na segurança dos agentes. No entanto, a Constituição,
213
214
215
216
COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de. Enciclopédia de Literatura Brasileira. Minas Gerais:
Global Editora e Distribuidora Ltda., 2001, p. 1074.
COELHO, Nellly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras. Escrituras Editora e Distribuidora
de Livros Ltda, São Paulo, 2002, p. 489-491.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curdo de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros,
2008, p. 277.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 445.
76
proíbe, em seu artigo 7º, inciso XXX, a diferença de critério de admissão em postos de
trabalho por motivo de sexo, o que nem mesmo se faria necessário se levada a sério a
positivação do princípio da igualdade, sem distinção de qualquer natureza. Em seu
artigo 37, a Carta de 1988 prevê como requisito de investidura em cargo público
somente a prévia aprovação em concurso. A discussão é fundada no entendimento do
Supremo Tribunal Federal no sentido de ser possível a vedação da participação em
concurso público, desde que as restrições sejam consideradas fundamentais e
indispensáveis para realização da atividade inerente ao cargo em disputa217.
O que se quer evidenciar aqui, é que as alterações na interpretação dos
dispositivos constitucionais não se estancam em uma ou outra decisão. Com o passar
do tempo e as mudanças que se verificam na sociedade, novas questões surgem e,
com elas, novas possibilidades de interpretação e aplicação dos preceitos da
Constituição, sem necessidade de alteração de sua letra. Outras relativizações do
conceito de igualdade estão em latente discussão na sociedade de hoje. A
discriminação por motivo de orientação sexual ainda é exercida por alguns e tolerada
por muitos.
Diante dessa discriminação, volta-se à discussão em torno do conceito de
família. A homossexualidade sempre esteve presente na história, mesmo dos povos
mais remotos. No entanto, nunca foi plenamente aceita pela sociedade, devido,
principalmente, à influência da Igreja na vida dos Estados. Reza a Bíblia: “Com o
homem não te deitarás, como se mulher fosse: é abominação”218. Na Grécia antiga, no
entanto, as relações homossexuais eram constantes e aceitas pela sociedade, em
virtude da valorização que se dava ao belo, sem discriminação de sexo, como nos
217
218
“Concurso público: indeferimento de inscrição fundada em imposição legal de limite de idade, que
configura, nas circunstâncias do caso, discriminação inconstitucional (CF, arts. 5º e 7º, XXX):
segurança concedida. A vedação constitucional de diferença de critério de admissão por motivo de
idade (CF, art. 7º, XXX) é corolário, na esfera das relações de trabalho, do princípio fundamental de
igualdade (CF, art. 5º, caput), que se estende, à falta de exclusão constitucional inequívoca (como
ocorre em relação aos militares – CF, art. 42º, § 11), a todo o sistema de pessoa civil. É ponderável,
não obstante, a ressalva das hipóteses em que a limitação de idade se possa legitimar como
imposição da natureza do cargo a preencher. Esse não é o caso, porém, quando, como se dá na
espécie, a lei dispensa do limite os que já sejam servidores públicos, a evidenciar que não se cuida de
discriminação ditada por exigências etárias das funções do cargo considerado” (RMS 21.046/RJ,
Tribunal Pleno, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, j. 14/12/1990).
BÍBLIA sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1990,
Lv 18:22.
77
explica Foucault:
Podemos falar de sua “bissexualidade” ao pensarmos na livre escolha que eles
davam entre os dois sexos, mas essa possibilidade não era referida por eles a
uma estrutura dupla, ambivalente e “bissexual” do desejo – seus olhos, o que
fazia com que se pudesse desejar um homem ou uma mulher era unicamente o
apetite que a natureza tinha implantado no coração do homem para aqueles
que são “belos”, qualquer que seja o sei sexo.219
A Igreja não demorou a atuar, tratando com rigor, através de dois Editos, nos
anos 538 e 544, a questão da homossexualidade no Império romano220. “A partir daí
Roma assume, expressamente, posicionamento contrário às práticas homossexuais. E
será esta a orientação a ser seguida durante as Idades Média e Moderna”221. A
repressão não fez parar o envolvimento entre pessoas do mesmo sexo, que, com o
tempo,
foi
encontrando
espaço
na
sociedade
e
ganhou
maior
visibilidade,
principalmente no meio cultural, através do desenvolvimento do princípio da liberdade,
com as idéias advindas da Revolução Francesa.
Depois, perto do final do século XIX, quando a questão da homossexualidade
emergiu com alguma hesitação, principalmente entre os homens, o destino dos
extraviados tornou-se mais doloroso. Em vez de tornar suas vidas mais fáceis, a
incerta liberdade recém conquistada só fez complicá-la ainda mais. A nova
atenção produzia hostilidade, criava escândalos, suscitava chantagem,
arruinava carreiras e levou alguns ao suicídio.222
O panorama levou à mobilização dos homossexuais ao redor do mundo, na
busca de reconhecimento, na tentativa de fazer valer princípios como da dignidade da
pessoa humana, da liberdade e da igualdade, ignorados pela parte opressora da
sociedade, mais ou menos como aconteceu com movimento feminista.
A rebelião de travestis, denominada Motim de Stonewall, em 28 de junho de
1969, no Greenwich Village, em Nova Iorque – na qual, durante uma semana,
ocorreram protestos e brigas de homossexuais com a polícia – ensejou a
institucionalização dessa data como o Dia do Orgulho Gay.223
A discriminação se faz presente até hoje. Juízes e tribunais brasileiros não
219
220
221
222
223
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II – o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da
Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 168.
VIDAL, Marciano; FERNANDEZ, Javier Gafo; FERNANDEZ, José Maria. Homossexualidade –
Ciência e consciência. São Paulo: Loyola, 1998, p. 97.
BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias Homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002, p. 34-35.
GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud – A paixão terna. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 177.
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito & a injustiça. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000, p. 29
78
admitiam, até pouquíssimo tempo, o casamento ou a união entre pessoas do mesmo
sexo. Insistiam em interpretar de forma restritiva as tantas normas que usam as
palavras homem e mulher para caracterizar a formação de uma família, apesar do
evidente choque de tal interpretação com diversos princípios constitucionais. Até que a
questão, na busca de maior segurança jurídica no reconhecimento de uniões
homossexuais, foi levada à apreciação dos guardiões da Constituição.
3.3 O Caso da união homossexual
No dia 5 de maio de 2011, os Ministros do Supremo Tribunal Federal
reconheceram como entidade familiar a união formada por duas pessoas do mesmo
sexo. A decisão
foi
tomada
no
julgamento
conjunto
da
Ação
Direta
de
Inconstitucionalidade 4277224 e da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 132225, ajuizadas pela Procuradoria Geral da República e pelo Estado do
Rio de Janeiro, respectivamente, com pedido de interpretação conforme à Constituição
Federal do artigo 1.723 do Código Civil226.
A pretensão era de estender a proteção aos casais homossexuais, em
respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), da
igualdade (artigo 5º, caput), da vedação da discriminação (artigo 3º, inciso V), da
liberdade (artigo 5º, caput) e da segurança jurídica (artigo 5º, caput), todos positivados
na Constituição da República. Já vimos que a Constituição, norma suprema, é critério
de validade de todas as outras normas do ordenamento jurídico. Se o Código Civil
possui dispositivo que fere princípios constitucionais, basta que passe por um controle
de constitucionalidade, como acontece com qualquer norma infraconstitucional.
Vale relembrar, no entanto, que também a Constituição prevê, em seu artigo
226, parágrafo 3º: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão
em casamento”. O que se pretendia, na verdade, era uma interpretação da própria
224
225
226
ADI n. 4277/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011.
ADPF n. 132/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011.
“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na
convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
79
Constituição conforme os princípios de nosso Estado Democrático, uma mudança no
alcance da norma em função da nova percepção do Direito, devida aos fatores
presentes na sociedade.
Como vimos, a união de pessoas do mesmo sexo já existia antes mesmo de
existir Constituição, portanto, a extensão do alcance dessa norma, como objetivavam a
ADI 4277 e a ADPF 132, já deveria estar, há muito tempo, consolidada, com base na
realidade dos fatos. As normas que mencionam em seu texto as palavras homem e
mulher não excluem a possibilidade da união de pessoas do mesmo sexo.
Independentemente do que pretendia o legislador ao positivá-las dessa maneira, o
intérprete de hoje pode ampliar seu alcance sem modificar sua letra. O que se queria
mesmo, nos parece, era que houvesse uma mutação expressa da interpretação
constitucional feita pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Isso porque a visão
dos cidadãos ou de poucos juízes não é suficiente para garantir o que se pode extrair
da norma constitucional e trazer o mínimo se segurança aos interessados nessa
proteção.
Infelizmente, a sociedade em que vivemos ainda não reconhece que fazem
parte dela indivíduos livres e essencialmente iguais. A questão da homossexualidade é
encarada com preconceito e o sistema jurídico brasileiro ainda abre portas a essa
discriminação. Passados 23 anos de vigência da atual Constituição e 187 da
positivação do princípio da igualdade, as uniões homossexuais ainda não são
reconhecidas como família por muitos juízes do mundo todo.
O entendimento, que hoje se percebe em grande parte da sociedade, de que
não há qualquer diferença entre a família formada por um homem e uma mulher e
aquela formada pela união de pessoas do mesmo sexo, sempre coube no texto
constitucional. No entanto, outra parte da sociedade, nela incluindo doutrinadores e
aplicadores da lei, entende inconcebível a união homossexual, ora tentando justificar a
discriminação através da letra dos artigos citados, ora simplesmente repudiando essa
possibilidade, sem considerar qualquer aspecto jurídico, como se extrai das palavras de
Orlando Gomes:
O casamento entre pessoas do mesmo sexo é inconcebível. A exigência da
diversidade de sexo constitui entretanto, uma condição natural, tendo-se em
80
vista a conformação física de certas pessoas, dado que repugna cogitar da
hipótese de casamento entre dois homens ou entre duas mulheres, fato que
pertence aos domínios da insânia.227
Em 1808, surge, na Alemanha, a teoria do casamento inexistente228, assim
entendido o casamento que não reunia os elementos exigidos para sua configuração.
Diversos magistrados passaram a se utilizar dessa teoria para caracterizar como
inexistente o casamento homossexual, como se percebe em decisão proferida pelo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em 1982: “Tratando de casamento realizado entre
duas pessoas do mesmo sexo, o caso não é de nulidade e sim de declaração de
casamento inexistente. Existiu o ato, mas não existiu o casamento, e o ato é nulo
porque inexistiu o casamento”229. Parte da doutrina adotou o mesmo entendimento,
desconsiderando, completamente, princípios constitucionais fundamentais, como se
extrai das alegações de Maria Helena Diniz:
O casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexo dos
nubentes, embora não haja nenhuma referência legislativa a respeito, ante a
sua evidência essa condição impõe-se por si mesma. Se duas pessoas do
mesmo sexo, como acontece com Nerus e Sporus, convolarem núpcias, ter-seá casamento inexistente, uma farsa. Absurdo seria admitir-se que o matrimônio
de duas mulheres ou de dois homens tivesse qualquer efeito jurídico. Se,
porventura, o magistrado se deparar com caso dessa espécie, deverá tão
somente pronunciar sua inexistência, negando a tal união o caráter
matrimonial.230
É verdade que a legislação não faz referência específica à união civil entre
pessoas do mesmo sexo. A Comissão Revisora e Elaboradora do Anteprojeto do
Código Civil de 2002 recebeu críticas acerca dessa omissão. Miguel Reale esclarece:
“Essa matéria não é de Direito Civil, mas sim de Direito Constitucional, porque a
Constituição criou a união estável entre um homem e uma mulher. De maneira que para
cunhar-se aquilo que estão querendo, a união estável dos homossexuais, em primeiro
lugar seria preciso mudar a Constituição231”.
227
228
229
230
231
GOMES, Orlando. Direito de Família. 11 ed. rev. e atual. por Humberto Theodoro Junior. Rio de
Janeiro: Forense, 1999, p. 79 (grifo nosso).
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume V. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2000, p. 84.
AC n. 56.899/MG, Primeira Câmara Cível. Rel. Des. Paulo Tinoco. Acórdão, j. 16.11.82. RT. 572/189.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Volume V. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.
40.
REALE, Miguel. O projeto do Novo Código Civil (Situação após a aprovação pelo Senado Federal). 2
ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 14.
81
A nosso ver, tanto as críticas como a justificação de Reale apontam em
sentido equivocado. Na verdade, não se trata de uma omissão. Não há que se falar em
normas de casamento heterossexual e normas de casamento homossexual. Os tão
famosos direitos dos homossexuais são os mesmo direitos conferidos na Constituição a
todo e qualquer cidadão, independente de sexo ou orientação sexual. Afinal, “a
discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual constitui
precisamente uma hipótese (constitucionalmente vedada) de discriminação sexual”232. A
deputada federal Marta Suplicy já havia tentado regulamentar a união de pessoas do
mesmo sexo, apresentando, em 1995, um projeto de lei com esse objetivo. “O referido
texto foi bastante criticado por diversos segmentos da sociedade brasileira, inclusive por
homossexuais”233. Uma previsão específica para a união de pessoas do mesmo sexo,
caso fosse diferente da legislação que regula o casamento heterossexual, seria
inconstitucional, caso fosse igual, seria pura redundância.
O casamento gay é amparado pelos princípios constitucionais já elencados.
Inadmissível seria qualquer interpretação contrária a esses princípios e desnecessária
se faz, portanto, alteração do texto da Constituição ou edição de legislação específica.
Nem mesmo o legislador constituinte poderia, se assim pretendesse, proibir a união
homossexual, vez que, como vimos anteriormente, o próprio Poder Constituinte
Originário é limitado por princípios extrajurídicos, de que fazem parte as normas morais
da sociedade, como é caso da igualdade.
É certo; nem sempre a vida é entendível. E pode-se tocar a vida sem se
entender; pode-se não adotar a mesma escolha do outro; só não se pode deixar
de aceitar essa escolha, especialmente porque a vida é do outro e a forma
escolhida para se viver não esbarra nos limites do Direito. Principalmente,
porque o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito.234
No entanto, diante da reação social contrária aos entendimentos que
ignoravam esses preceitos maiores e negavam aos homossexuais o direito de ter
protegida legalmente a família formada por sua união235, ou, nas palavras do Ministro
232
233
234
235
RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a
homossexualidade. Revista de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, Brasília, 1998, p.
6-29.
BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias Homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002, introdução, p. 13.
Voto da Ministra Carmén Lúcia no julgamento da ADI 4277.
“Ação declaratória. Parceria civil. Relacionamento homossexual. Inexistência de união estável. 1. A
82
Ayres Britto, “da incompatibilidade material entre os citados preceitos fundamentais da
nossa Constituição e as decisões administrativas e judiciais que espocam em diversos
Estados sobre o tema aqui versado”236, surge a necessidade de concretização de uma
hermenêutica democraticamente adequada do texto constitucional e da legislação
infraconstitucional, para que se pudesse superar, ao menos no âmbito jurídico,
interpretações prejudiciais à igualdade e à dignidade dos indivíduos. Isso fez com que
fosse levada a discussão ao Supremo Tribunal Federal, para que, então, esse órgão
pudesse dar a última palavra237 sobre o assunto.
Ao apreciar a questão, assim entendeu o Ministro Marco Aurélio:
Se o reconhecimento da entidade familiar depende apenas da opção livre
e responsável de constituição de vida comum para promover a dignidade dos
partícipes, regida pelo afeto existente entre eles, então não parece haver dúvida
de que a Constituição Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva
admitida como tal.
Vale ressaltar que nem todos os Ministros tiveram a mesma percepção. O
Ministro Ricardo Lewandowski chegou a fazer ressalvas à proteção jurídica dada à
união homossexual, entendendo ser instituto diverso da união heterossexual. Defende a
elaboração de normas específicas para casais gays, num discurso que, dando azo à
discriminação, se mostra incompatível com a Carta Constitucional. Da conclusão de seu
voto:
Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar
aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a
união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são
assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da relação entre
pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem
jus, que fundamenta o emprego da analogia no âmbito jurídico. Isso posto, pelo
meu voto, julgo procedente as presentes ações diretas de inconstitucionalidade
para que sejam aplicadas às uniões homoafetivas, caracterizadas como
entidades familiares, as prescrições legais relativas às uniões estáveis
heterossexuais, excluídas aquelas que exijam a diversidade de sexo para o
236
237
união estável para ser reconhecida como entidade familiar, exige a convivência duradoura, pública e
contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família, inclusive
com a possibilidade de sua conversão em casamento, o que não ocorre na espécie. 2. Não havendo
sequer situação fática assemelhada a uma união estável ou casamento, embora tenha havido a
relação homossexual, esta relação não evidenciou o propósito de constituir uma vida em comum, não
havendo como reconhecer a parceria civil nem sociedade de fato. Recurso provido, por maioria”. (AC
70034750901/RS, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j.
23/06/2010)
Voto do Ministro Ayres Britto no julgamento da ADI 4277.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 133.
83
seu exercício, até que sobrevenham disposições normativas específicas que
regulem tais relações. (grifo nosso)
Felizmente, esse entendimento não foi predominante. A maioria dos
Ministros, por um motivo ou por outro, fez valer a interpretação constitucionalmente
adequada dos preceitos em discussão, como se verifica na redação do Ministro Celso
de Mello:
Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, julgo procedente a
presente ação constitucional, para, com efeito vinculante, declarar a
obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da união entre
pessoas do mesmo sexo, desde que atendidos os mesmos requisitos exigidos
para a constituição da união estável entre homem e mulher, além de também
reconhecer, com idêntica eficácia vinculante, que os mesmos direitos e deveres
dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros na
união entre pessoas do mesmo sexo.
No mesmo sentido se posicionou o relator, o Ministro Ayres Britto, na
conclusão de seu voto:
No mérito, julgo procedentes as duas ações em causa. Pelo que dou ao
art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele
excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua,
pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”,
entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de
ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união
estável heteroafetiva.
Como vimos, além do artigo 1.723 do Código Civil, também a interpretação
do artigo 226 da Constituição deve ser feita conforme à Constituição, para “que não se
faça uso da letra da Constituição para matar o seu espírito […] pois esse tipo acanhado
ou reducionista de interpretação jurídica seria o modo mais eficaz de tornar a
Constituição ineficaz”238. Portanto, a conclusão do julgamento consolidou uma
mutação desse dispositivo, que, apesar de mantido seu texto, passa a valer somente
quando interpretado de forma ampla, tornando-se realmente efetivo nas atuais
circunstâncias pelas quais passam nossa sociedade. Após a referida decisão do STF,
juízes e Tribunais de todo Brasil passaram a reconhecer proteção jurídica à família
238
Voto do Ministro Ayres Britto no julgamento da ADI 4277. (grifo no original)
84
formada pelo casamento e pela união estável homossexual239/240/241.
Conflito negativo de competência. Ação de reconhecimento de
união homoafetiva. Efeito vinculante do julgamento da ADI nº 4.277 e da ADPF
n° 132, pelo STF, que reconheceu como entidade familiar a união entre pessoas
do mesmo sexo. Com o julgamento conjunto das referidas ações, considerandose seus respectivos efeitos vinculantes, não resta dúvida de que, em existindo
na comarca juízo especializado em matéria de família, a ele compete o
processamento e julgamento dos feitos que envolvam o reconhecimento de
união estável homoafetiva. Conflito prejudicado. (Conflito de Competência
0033554-38.2011.8.19.0000/RJ, Décima Primeira Câmara Cível, Rel. Des.
Fernando Cerqueira, j. 15/09/2011)
Não é função deste estudo analisar, propriamente, os fundamentos utilizados
pelos Ministros do STF em seus votos ou pelos juízes e Tribunais em decisões
posteriores. Queremos demonstrar, aqui, o papel da hermenêutica judicial –
principalmente do Supremo Tribunal Federal – na mutação constitucional provocada por
239
240
241
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA Ação de dissolução de união homoafetiva c.c. partilha
de bens Equiparação analógica ao regime da união estável para fins de fixação de competência
Recente pronunciamento do STF a respeito da matéria, entendendo não se conceber subtrair das
Varas da Família e das Sucessões litígios a tanto concernentes - Conflito procedente Competência do
Juízo suscitante”. (0065527-16.2011.8.26.0000/SP, Câmara Especial, Rel. Des. Martins Pinto, j.
19/09/2011)
“Pedido de reconhecimento e dissolução de união estável entre homoafetivos. Sentença de extinção,
sem exame de mérito, declarando o pedido juridicamente impossível. - 2. A despeito da CF e do CC
somente reconhecer tal instituto entre um homem e uma mulher, de há muito vem o Judiciário
reconhecendo, ao menos, a união homoafetiva entre pessoas do mesmo sexo e admitindo a sua
dissolução. Antecedentes jurisprudenciais. - 3. Se tal não bastasse, recente decisão do Colendo STF
veio a inaugurar uma nova era a respeito do tema. - 4. Sentença cassada. Recurso provido, com aplicação do art. 557, § 1º-A, do CPC”. (Apelação 0003994-94.2011.8.19.0212/RJ, Quarta Câmara
Civil, Rel. Des. Paulo Maurício Pereira, j. 21/06/2011)
“Incidente suscitado pela E. 2ª Câmara Cível por considerar a constitucionalidade do art. 1.723, do
Código Civil, como questão prejudicial à análise do mérito em julgamento de recurso de apelação. Sentença que julgou procedente o pedido e determinou ao prestador de serviço réu incluir
companheiro homoafeto do demandante como dependente em seu plano de saúde. - O art. 1.723, do
Código Civil, reproduz o texto do art. 226, § 3º da CRFB/88. Norma constitucional originária,
insuscetível de submissão a controle de constitucionalidade, quer pelo sistema difuso ou pelo
concentrado. - A tese da hierarquia entre normas constitucionais originárias, que dá azo à declaração
de inconstitucionalidade de umas em face de outras, é incompatível com o sistema de constituição
rígida. - Vigora entre nós o princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição, ou seja,
impossível que se fiscalize o Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não,
violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio incluiu no texto da mesma Constituição. Ademais, não se vislumbra que a resolução do mérito na demanda originária dependa da análise da
suposta inconstitucionalidade do art. 1.723 do Código Civil. - O dispositivo objeto da presente arguição
não veda ou proíbe, em nenhum momento, o reconhecimento de união estável de pessoas do mesmo
sexo. - Havendo uma situação de fato a reclamar tratamento jurídico, o juiz deve exercer a analogia,
consoante o teor do art. 4º, da LICC. - Por fim, relevante assinalar que o Plenário da Corte
Constitucional reconheceu, no julgamento da ADI Nº 4277, por unanimidade, a união estável para
casais do mesmo sexo, estabelecendo que companheiros em relação homoafetiva duradoura e
pública terão os mesmos diretos e deveres das famílias formadas por homens e mulheres. - NÃO
CONHECIMENTO da argüição”. (Arguição de Inconstitucionalidade 0005764-79.2011.8.19.0000/RJ,
Órgão Especial, Rel. Des. Sidney Hartung, j. 30/05/2011)
85
uma nova percepção do Direito, quando se faz necessária, também, uma mudança no
pensamento do Judiciário, para que a aplicação da norma seja compatível com a
realidade social. Certamente, esse tipo de discussão acontece porque a lei não é
interpretada em conformidade com as circunstâncias de fato. Isso faz com que a
sociedade busque, de diversas maneiras, evidenciar a realidade por qual passa,
clamando a atenção dos intérpretes da lei, para que a apliquem de maneira a cumprir o
objetivo real do Direito.
[...] a função primordial do Direito moderno, presente no Direito Constitucional
de modo ímpar: a função de integração social, numa sociedade em que tal
problema só pode ser enfrentado e solucionado pelos próprios membros, na
medida em que instauram um processo em que se engajam na busca
cooperativa de condições recorrentemente mais justas de vida [...].242
Quando uma lei é usada no caso concreto, não se aplica, necessariamente,
o sentido dado pelo legislador. Às vezes, nem mesmo se pode dizer o que legislador
pretendia, outras vezes, aquilo que ele pretendia já não cabe mais na realidade do
nosso tempo. Não cabe, portanto, entrar nessa discussão, como fizeram, com visões
distintas, o Ministro Ayres Britto243 e a Ministra Carmén Lúcia244. O sentido utilizado no
momento da aplicação da norma será fruto da interpretação de quem aplica. Já vimos
que os mesmos princípios que limitam qualquer legislador e intérprete são também
parâmetros para a mutação e que a nova visão tem que caber no texto da norma, uma
vez que ele não será alterado. Sendo assim, a interpretação que se tem hoje de certa
norma sempre fez parte das possibilidades de sentido que ela possuía, que poderia não
ter sido compatível com período histórico anterior. Mas se a realidade muda, também a
mente de quem nela está inserido se abre a novas concepções. E se a mutação é a
242
243
244
CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p 41.
“Donde a necessidade de se aclarar: II. 1 - que essa referência à dualidade básica homem/mulher
tem uma lógica inicial: dar imediata seqüência àquela vertente constitucional de incentivo ao
casamento como forma de reverência à tradição sócio-cultural-religiosa do mundo ocidental de que o
Brasil faz parte […]. II. 2 - que a normação desse novo tipo de união, agora expressamente referida à
dualidade do homem e da mulher, também se deve ao propósito constitucional de não perder a menor
oportunidade de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias
do gênero humano […] para atuar como estratégia de reforço normativo a um mais eficiente combate
àquela renitência patriarcal dos nossos costumes”. Voto do Ministro Ayres Britto no julgamento da ADI
4277.
“Contrariamente ao que foi afirmado na tribuna, não é exato que a referência à mulher, no § 3º do art.
226 da Constituição, pretendesse significar a superação de anterior estado de diferenciação
inferiozante de cada uma de nós. O histórico das discussões na Assembléia Constituinte demonstram
que assim não foi.” Voto da Ministra Carmén Lúcia no julgamento da ADI 4277.
86
alteração do sentido por uma nova visão que se tem da norma, ela acontece, na
verdade, na cabeça de quem interpreta. Portanto, se a interpretação de hoje não é a
mesma de ontem, é porque, ontem, a cabeça do intérprete ainda não pensava assim.
Nós partimos dessa fatalidade de que os caminhos do pensamento
desembocam inevitavelmente na imemorial interrogação: em nome de que
podemos viver? Quer dizer, por que viver? Sim, por quê? Não está ao alcance
de nenhuma sociedade dispensar o “por quê?”, abolir essa marca do humano.
E, no entanto... O desfalecimento do questionamento nesse Ocidente tão
seguro de si mesmo é tão impressionante quanto suas vitórias científicas e
técnicas. O medo de pensar fora das instruções fez da liberdade, conquistada a
tanto custo, uma prisão do discurso sobre o homem e da sociedade, uma
linguagem de chumbo. O que está acontecendo?245 (tradução nossa)
Deveras, a nossa visão sobre uma norma muda quando muda a realidade
dos fatos que nos cercam ou, simplesmente, a percepção que temos do mundo e do
Direito, a partir do momento em que paramos para questionar se aquilo que se tem
como válido é, de fato, eficaz. Nesse último caso, não é necessário que haja uma
mudança nas circunstâncias, mas apenas no modo como nós as enxergamos. Para que
haja uma mutação efetiva, é preciso que os aplicadores da norma percebam as novas
visões encontradas na sociedade e participem dessa interpretação difusa. Mais
especificamente, pelos exemplos vistos, é preciso que a nova forma de pensar a lei
entre nas cabeças dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
CONCLUSÃO
A Constituição, topo do ordenamento jurídico do Estado, norma fundamental
e suprema, é a máxima garantia dos direitos do indivíduo. A rigidez a que se submetem
suas normas visa a evitar uma relativização desses direitos fundamentais em função
dos sabores daqueles que detêm o poder de aplicá-las. No entanto, ao tempo em que
se pretende a estabilidade da identidade da Constituição, não se pode querer
245
LEGENDRE, Pierre. La frabirque de l’homme accidental. Paris: 1001 Nuits, 2002, p. 11.
87
inflexibilizá-la frente ao influxo das evoluções sociais, sob pena de torná-la letra morta.
Apesar de ser analítica, contendo texto prolixo e minucioso, a Constituição
brasileira não deixa de ser uma ordem-quadro, que carece de constante atualização
para que se concretize no meio social, devendo ser integrada pela ação difusa do Poder
Constituinte em fase de continuidade, exercido por uma sociedade aberta ao pluralismo
democrático. Esse poder visa garantir a reflexibilidade da identidade da Constituição,
dotando a norma de capacidade de prestação efetiva frente à sociedade.
Nesse sentido, a regra da rigidez não tem o condão de tornar imutável a
Constituição. Seria utópico pretender uma norma fundamental granítica, sem
desenvolvimento frente à constante evolução social. Antes de ser aplicada, a norma
passa por um processo de interpretação, pelo qual se extrai o sentido a ser utilizado no
caso concreto. Nesse processo, não se pode desconsiderar o meio e o tempo em que
está inserido o intérprete. Sua visão estará, certamente, contaminada por diversos
fatores presentes na sociedade que o entorna. Concebida, portanto, como organismo
vivo, inserida em um sistema jurídico dinâmico, a Constituição deve ser adaptada às
exigências da realidade circundante para que se mantenha efetiva e concretizável.
A Teoria da Mutação surge como um novo paradigma da hermenêutica
constitucional, que visa superar a diferenciação existente na doutrina entre os conceitos
de Constituição escrita ou normada e Constituição real ou não normada. Para manter a
Constituição entre as regras vivas do Direito, é preciso estudá-la desconsiderando a
existência de um hiato entre a validade de suas normas e a facticidade social. A
chamada Teoria dos dois mundos, que separa norma e realidade, afasta a Constituição
dos fatores reais da sociedade, de modo a deixar esquecidos seus principais objetivos,
tornando-a um corpo sem alma, um pedaço de papel. O paradigma da mutação pode
surgir como o giro reconstrutivo de que necessitamos para fazer com que a força vital
da Constituição corresponda, efetivamente, às exigências de uma sociedade
plurisubjetiva e democrática.
A mutação constitucional é a alteração da interpretação que se faz de uma
norma, no decorrer do tempo, sendo, portanto, uma realidade transformadora do
sentido, do significado e do alcance das normas constitucionais, devido a uma alteração
88
no mundo fático ou a uma nova percepção do Direito, na busca do equilíbrio entre a
estabilidade da qual se pretende dotar a Constituição e a elasticidade que devem
possuir suas normas. Essa fluidez constitucional é o meio que garante o dinamismo do
ordenamento jurídico, possibilitando a confluência da ordem ideal de valores trazida na
norma e a ordem concreta encontrada na realidade circundante, sem transformar a
Constituição em uma imensa colcha de retalhos.
Para que sirva aos objetivos de garantia de direitos fundamentais dos
indivíduos de um Estado, a mutação deve respeitar o texto e o espírito da Constituição,
deve ser extraída de necessidades reais dos indivíduos e ter base nos princípios que
regem a vida em sociedade. A mutação será inconstitucional quando distanciar a
Constituição da realidade fática ou violar seu texto, seus princípios ou sua identidade.
Os maiores limites da mutação são os mesmos nos quais esbarra o Poder Constituinte
Originário, respaldado por valores extrajurídicos presentes em uma comunidade
formada por indivíduos livres e iguais.
Presente no Direito Constitucional Brasileiro, o fenômeno da mutação
proporciona uma relação dialética da força normativa da Constituição com o dinamismo
do tempo em que se inserem seus intérpretes e aplicadores. Pode ocorrer por diversos
meios, dentre os quais, a influência dos grupos de pressão, os usos e costumes sociais,
as práticas governamentais, legislativas e judiciárias, a construção jurisprudencial, as
transformações ocorridas na Constituição através do controle de constitucionalidade de
legislação infraconstitucional e da complementação legislativa advinda de leis
complementares. A interpretação é uma forma de mutação que acaba por estar
presente em todos os outros processos que levam a alteração de uma norma. Ela pode
partir da atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário ou do discurso
resultante da interação dos diversos pontos de vista presentes em uma sociedade
aberta de intérpretes da Constituição.
A jurisdição constitucional, em especial o controle de constitucionalidade de
leis e atos administrativos, também é um grande vetor de mutação. Sempre que nova
interpretação de um conceito ou princípio constitucional vier substituir antigo
entendimento, em função de uma alteração percebida na realidade, demonstrada,
89
muitas vezes, pela reação social contrária às decisões judiciais, o dispositivo sofrerá um
processo de mutação. Para que seja legítimo, é preciso que tanto a sociedade como os
Poderes estatais assumam uma postura renovadora, adotando medidas construtivas e
eficazes que compactuem com o desenvolvimento de uma interpretação jurídica
constitucionalmente adequada ao paradigma do Estado de Democrático de Direito.
O Supremo Tribunal Federal, no exercício da função máxima de guardião da
Constituição, assume um importante papel na validação da mutação provocada por
ação da sociedade ou dos Poderes do Estado e em sua consequente concretização no
mundo sensível. Seus Ministros atuam na intermediação do diálogo provocado pela
reação social contrária às decisões judiciais que ignoram preceitos constitucionais
fundamentais, dando a última palavra sobre a nova interpretação de determinado
dispositivo ou princípio constitucional. Sua atuação deve seguir no sentido de fazer
valer os principais objetivos da Constituição, na garantia dos direitos fundamentais do
indivíduo e da efetivação de uma ordem constitucional democrática e participativa.
O que verificamos desse estudo e da análise do caso concreto é que a
mutação acontece, na verdade, na cabeça do intérprete, em função de sua consciência
constitucional. Somos todos responsáveis pela construção de uma interpretação
condizente com a nossa realidade, que busque a efetivação dos preceitos
constitucionais e a garantia dos direitos fundamentais do indivíduo. No entanto, para
que seja efetiva a mudança que acontece na sociedade, onze cabeças devem funcionar
em favor de uma hermenêutica constitucional democraticamente adequada, de forma a
guardar o espírito da Constituição, sem encarcerá-lo no tempo.
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