DIREITO À IGUALDADE DE VOTO E FEDERALISMO: Possibilidade de compatibilização do valor igual do voto à luz da integração regional na Federação brasileira EQUAL VOTE AND FEDERALISM: Matching equality value of the vote with regional integration in the Brazilian Federation. Marcelo Labanca Corrêa de Araújo1 Gabriela Barreto Gadelha2 RESUMO:O presente artigo examina a tensão entre o direito fundamental à igualdade e o princípio federativo no processo de representação política do Congresso Nacional. O direito à igualdade possui uma aplicação específica no campo dos direitos políticos, mais precisamente no direito ao voto. Não basta o mero direito ao voto, mas sim ao voto “igualitário”, perfazendo a premissa clássica de que para cada homem, deve haver um voto (one man, one vote). Todavia, o direito à igualdade de voto possui implicações específicas no sistema federativo brasileiro, para impedir que Estrados hegemônicos, econômico e politicamente, possam fazer valer suas vontades no Congresso Nacional. A existência de um piso e um teto de deputados federais por cada Estado pode parecer violador do direito à igualdade de voto. E isso fica em evidência quando se fala em desmembramento de Estados pouco populosos. Todavia, a Constituição não apenas deseja homens iguais, mas também regiões iguais. O entendimento de democracia não deve ser calcado apenas na dimensão individual e no princípio majoritário, pois a maioria deve ser um instrumento em favor de inclusão regional, mesmo que importe no atendimento a interesses minoritários. PALAVRAS-CHAVE: direito à igualdade; voto; federalismo. ABSTRACT: This paper examines the conflict between the fundamental right to equality and the federative principle in the political process of representation in National Congress. The equality right specifically applies in the field of political rights, and more specifically the vote right. The vote right is not enough, but the “egalitarian” vote, making the classic premise that to each man must exists one vote (one man, one vote). However, the vote equality right has specific implications in The Federative Brazilian System, to avoid that hegemonic States - economically and politically - assert their wishes on National Congress. The existence of a minimum and maximum federal deputies number for each State appears 1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (Graduação e Mestrado) e da Faculdade Marista do Recife. Procurador do Banco Central na Procuradoria Regional do Banco Central para a 5ª Região – Pernambuco. 2 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Advogada. to violate equality right. And this is evident when it comes to states dismemberment sparsely populated. However, the Constitution should not only equal men, but also regions. The democracy understanding should not be downtrodden only in the individual dimension and the majority principle. The majority must to be an instrument in favor of regional inclusion, even if it results in serving minority interests. KEYWORDS: The Equality Right; Vote; Federalism. 1. Colocação do tema: entre a isonomia do voto e a Federação.3 O tema do princípio da isonomia possui várias aplicações e implicações. O objetivo deste estudo é examinar o princípio da isonomia de voto, considerando os problemas de representação dos Estados-membros existentes na Federação brasileira. Sabe-se que a Federação, como forma de Estado Composto por excelência, necessita de um ente ou órgão no governo federal que possa ouvir e receber os influxos oriundos dos Estados-membros. E muitas vezes, tal órgão é o próprio Poder Legislativo do tipo bicameral, formado por parlamentares que se submetem a um processo eleitoral. O processo eleitoral, por sua vez, pode viabilizar ou não o voto com valor igual para todos, seja adotando um único distrito nacional, seja aplicando um distrito de votação estadual. No primeiro caso, não há maiores problemas em se contabilizar voto a voto, ocasião em que a isonomia seria efetivamente assegurada entre os cidadãos. No segundo caso, objeto do presente trabalho, a votação recebida por deputados federais em Estados-membros diferentes pode gerar um aparente conflito com o princípio da isonomia do voto, já que as eleições são decididas em distritos estaduais que possuem um piso e um teto no número de vagas de deputados federais, trazendo, pois, impacto para a representatividade desses mesmos Estados-membros. Ou seja, v.g., nos Estados-membros muito populosos, o teto impossibilitaria que a regra da divisão proporcional das vagas X população pudesse ser respeitada plenamente. 3 Este artigo foi selecionado para apresentação no XX Encontro Nacional do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, na cidade de Belo Horizonte, em 24 de junho de 2011, no Grupo de Trabalho “Direitos Fundamentais e Democracia I”. Nesse sentido, uma leitura coerente do texto constitucional se torna essencial, como forma de compatibilizar artigos aparentemente em conflito (o da isonomia do voto e o da imposição de limites mínimos e máximos de representação de cada Estado para a Câmara dos Deputados), tudo isso com vistas a preservar o princípio democrático sem confundi-lo com a vontade da maioria. Para tanto, será estudado o princípio da isonomia do voto, levantando-se as principais questões acerca do tema na perspectiva da representação dos Estados-membros. 2. O princípio da isonomia do voto no Brasil Dentre tantos direitos fundamentais políticos4 previstos na Constituição brasileira de 1988 (v.g., iniciativa popular para apresentação de projetos de lei, participação de partidos políticos, propositura de ação popular em defesa do patrimônio público), o direito ao sufrágio se destaca pela capacidade eleitoral ativa e pela capacidade eleitoral passiva, de votar e ser votado. Deve-se destacar, porém, que sufrágio e voto são conceitos que não se confundem. O sufrágio seria o direito de escolher ativamente os governantes, bem como o de, passivamente, participar do processo de escolha, sendo eleito. Para André Ramos Tavares, a distinção entre sufrágio e voto é reconhecida por Kelsen, para quem “o direito ao sufrágio é o direito do indivíduo de participar do processo eleitoral dando o seu voto” 5. Assim, o voto seria justamente o instrumento por meio do qual o direito ao sufrágio é exercido. E tal sufrágio seria considerado “universal” na medida em que pudesse ser exercitado por todos, independentemente de sexo, cor ou classe econômica. Nesse sentido, o princípio da isonomia de voto é instrumento essencial para a caracterização do sufrágio universal, eis que a ausência da isonomia implicaria em um déficit na participação ativa/passiva dos negócios públicos. 4 Para Ingo Sarlet, os direitos políticos são considerados direitos fundamentais de natureza mista, pois eles são ora classificados como direitos de defesa, e ora como direitos a prestações, na modalidade “participação na organização e no procedimento”. Segundo o mencionado autor, “mais recentemente, de acordo com lição recolhida de Vieira de Andrade, sustentou-se, entre nós (diga-se de passagem, acertadamente), a natureza mista dos direitos políticos que, na condição de direitos de participação dos cidadãos na vida política, possuem natureza mista de direitos de defesa e direitos a prestações”. SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.180. 5 KELSEN, Hans apud TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 541. No caso brasileiro, é preciso dizer que os cidadãos nem sempre tiveram um reconhecimento do direito de voto a ser exercido de maneira igual. A tradicional e clássica fórmula “one man, one vote” mereceu diferentes tratamentos pela legislação brasileira. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral6, as eleições constituem uma prática adotada há muito em nosso território, trazida ainda com nossos colonizadores. A primeira eleição registrada em nossa história ocorreu em 1532 com o objetivo de eleger o Conselho Municipal da Vila de São Vicente. Segundo aquele mesmo órgão, nossos primeiros pleitos eleitorais foram claramente marcados pelas ainda intrincadas relações entre Igreja e Estado. Em regra, as eleições para os governos locais ocorriam em paróquias e o exercício de profissão eclesiástica constituía condição de elegibilidade do candidato. Apenas com a edição da Constituição de 1891 é que houve uma separação nítida da vida político-eleitoral da influência religiosa. Inicialmente as Ordenações do Reino constituíam o corpo legislativo que regia o procedimento eleitoral em nosso país. Mas, em verdade, o direito ao voto foi, pela primeira vez, previsto na legislação brasileira em 3 de janeiro de 1822 pela lei que convocou eleições para a Assembléia Geral Legislativa e Constituinte, antes mesmo da edição da nossa primeira Constituição. Naquela oportunidade, o pleito se deu em dois graus, estando proibidos de votar, em primeiro grau, os que percebessem salários e soldos, enquanto que para votar no segundo grau exigia-se “decente subsistência por emprego ou indústria de bens”7. Observe-se que na vigência da Constituição Imperial o voto era obrigatório e, em caso de ausência, o eleitor deveria fazer-se representar por procurador devidamente constituído. Naquele momento histórico as questões políticas no Brasil eram decididas de acordo com as vontades apenas de parte do povo, eis que à época não havia o direito ao sufrágio para todos. A título de exemplo, Walter Costa Porto8 menciona que a legislação eleitoral do Brasil Imperial excluía das urnas largos contingentes populacionais: 6 História das Eleições no Brasil. Disponível em: http://www.tse.gov.br/ines/principal/historia.html. Acesso em 01 de março de 2007. 7 É a dicção do art. 92, V da Constituição de 1824. Disponível em: www.planalto.gov.br . Acesso em 01/03/2007. 8 PORTO, Walter Costa. Apresentação da obra coletiva A cidadania no Brasil (o voto). PORTO, Walter Costa (org). Brasília: Fundação Projeto Rondon, 1998, p. 7. A respeito da Lei Saraiva convém registrar que A primeira exclusão era a do agrupamento feminino: os “cidadãos”, a que a Constituição de 1824 concedia o sufrágio, não envolvia as mulheres, que a moldura social e econômica do tempo restringia ao recôndito dos lares; a segunda, a exclusão pela renda, que valeu, também, por todo o período monárquico e que, a partir de 1881, foi agravada pela Lei Saraiva com o aumento das exigências para sua comprovação. A participação popular, traduzida no direito de escolha daqueles que vão gerir o Estado, foi, no Brasil, sendo paulatinamente alargada em direção do sufrágio universal, mas um dos grandes problemas jurídicos atinentes à isonomia de voto que a legislação brasileira teve de enfrentar foi o tema da igualdade entre o homem e a mulher. Apenas com a edição do Código Eleitoral Provisório de 1932 a mulher passou a ter direito a voto. Nada obstante isso, já era possível observar discussões sobre o tema nos debates da constituinte de 1891. Discursos foram produzidos contra e a favor da participação feminina no processo de escolha dos políticos. Apesar das discussões sobre a extensão do direito de voto às mulheres, ao final da Constituinte, não foi aprovada a emenda instituindo o voto feminino9. Porém, também não houve expressa vedação constitucional de tal direito, já que a Constituição de 1891 utilizou-se de expressão de gênero para definir os titulares dos direitos políticos (“cidadãos brasileiros”, ou simplesmente “cidadãos” consoante a redação adotada pelos arts. 26, 69 e 70 da Constituição brasileira de 1891)10. O tema do voto para as mulheres, então, ficou para ser disciplinado em legislação infraconstitucional. Dentre tais discursos, destaca-se o Lacerda Coutinho11, posicionando-se contrariamente à aprovação de emenda contendo expressa previsão do voto feminino. O parlamentar sustentou, na ocasião, que: ela representou um marco construção de um sistema eleitoral brasileiro, em razão de contemplar, pela primeira vez, em nossa ordem jurídica a previsão de eleições diretas. Além disso, a lei permitia que não católicos se elegessem, desde que possuíssem renda superior a duzentos mil réis. 9 Uma das emendas fora apresentada por Lopes Trovão, Leopoldo de Bulhões e Casimiro Júnior, prevendo o direito de voto apenas “às mulheres diplomadas com títulos científicos e de professora, desde que não estivessem sob poder marital nem paterno, bem como às que estivessem na posse de seus bens”. Outras emendas foram apresentadas, concedendo tal direito a mulheres diplomadas em farmácia, medicina ou direito, ou às solteiras e viúvas (ROURE, Agenor de. A mulher e o voto em 1891. In: A cidadania no Brasil (o voto), Ob cit, p. 41. 10 Nos citados artigos, as expressões são utilizadas no masculino não com o sentido de excluir as mulheres de tais direitos. Basta ver que na parte relativa à declaração de direitos – art. 72 – também se fala na expressão “brasileiros” e, nem por isso, a mulher deixou de se utilizar de garantias alocadas em tal artigo, a exemplo do habeas corpus. 11 ROURE, Agenor de, Ob. Cit., p. 48. Se acreditam elevar a mulher dando-lhe o direito de voto, não fazem mais do que amesquinhá-la, fazendo-a descer da elevada altura em que se acha colocada, da esfera serena de mãe de família, para vir entrar conosco no lodaçal das cabalas e tricas eleitorais. A mulher deve ser a educadora da filha que tem de suceder-lhe nas virtudes domésticas. Em outro discurso, muito embora reconhecendo capacidade intelectual nas mulheres, Serzedello Correia12 posicionou-se contra as emendas que previam o voto feminino, alegando que: A mulher, pela delicadeza dos afetos, pela sublimidade dos sentimentos, pela superioridade do amor, é destinada a ser o anjo tutelar da família, a educadora do coração, a inspiradora do aperfeiçoamento humano e o apoio moral mais sólido do próprio homem. Jogá-las no meio das paixões políticas, atirá-las às lutas da indústria é tirar-lhes essa santidade que é a sua força; essa delicadeza, que é a sua graça; esse recato, que é o seu segredo; é destruir, é desorganizar a família. O fato é que apenas se pode falar em isonomia de voto entre homens e mulheres com a edição do Decreto n. 21.076 em 1932, que em seu art. 2º assim declarava: “É eleitor o cidadão maior de vinte e um anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código”. Durante a evolução jurídica em busca do tratamento igualitário no voto, não foi apenas o tema do voto feminino que precisou ser enfrentado. Outros temas importantes precisavam ser superados para que se pudesse falar efetivamente em voto como exercício do sufrágio universal, como, v. g. o da igualdade de participação política entre pessoas pertencentes a classes econômicas distintas, já mencionado acima. A conquista da igualdade do voto entre pessoas de diferentes classes econômico-sociais conheceu uma evolução gradativa. A nossa primeira carta constitucional excetuava do exercício deste direito político todo aquele que não dispusesse de “renda líquida annual cem mil réis por bens de raíz, indústria, comércio ou empregos”. Já a Constituição de 1891 trouxe a vedação do alistamento eleitoral de mendigos e analfabetos. Atualmente, a Constituição brasileira assegura o direito ao voto aos brasileiros, homens e mulheres, independentemente da classe social e econômica pertencentes. O nosso direito positivo consagra, assim, o voto obrigatório para os maiores de dezoito anos, tornando-o facultativo aos analfabetos, aos maiores de setenta anos, bem como àqueles que contem entre dezesseis e dezoito anos. Mas, importante destacar, a 12 ROURE, Agenor de. Ob cit, p.51. capacidade eleitoral ativa não exercida por analfabetos não desfigura o sufrágio universal. É antes uma condição para que a vontade que se pretende expressar na urna seja formada livremente. Por outro lado, o §2º do Art. 14 da Constituição Federal proíbe expressamente o alistamento de estrangeiros, militares (enquanto perdurar o período do serviço militar obrigatório) e conscritos como eleitores. A Constituição Federal de 1988, em seu Art. 14 caput, ao estatuir que o voto tem igual valor para todos, consagrou o princípio do voto igualitário, expressão máxime da clausula “one man, one vote”. Em uma acepção genérica e propedêutica, cada eleitor teria direito a um único voto em cada eleição para cada tipo de mandato13. Com esta previsão, o constituinte projetou o princípio da isonomia sobre os domínios do direito político, ficando vedada qualquer distorção que dê ao voto de qualquer eleitor peso diferenciado, em razão de critérios distintivos. Alguns autores14 afirmam que o dimensionamento deste princípio implica além do reconhecimento do igual valor de cada eleitor no exercício da democracia representativa, a atribuição do mesmo peso político a cada voto para efeitos de distribuição de mandatos. Sendo assim, conforme preleciona a doutrina, o número de votos de cada eleito, no país, deveria ser o mesmo, ou ao menos, aproximado15. Canotilho assinala que a violação deste princípio, nos dias de hoje, não ocorre mais por meio do estabelecimento de critérios distintivos entre os homens16, dando a cada um deles a prerrogativa de votar mais de uma vez, mas pelo regramento dos sistemas eleitorais. O estabelecimento de possíveis cláusulas de barreira e eventuais distorções do sistema proporcional violariam o princípio do voto igualitário, impossibilitando a devida representação das minorias. 13 SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros., 2003, p. 352. 14 Cf. SILVA, Jose Afonso da. Ob cit. et CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. 15 O que, na prática, não ocorre, pois para eleger-se deputado federal em um estado como São Paulo certamente o candidato terá que obter um número de votos consideravelmente maior se comparado com o número de votos com que um candidato do Piauí se elege para o mesmo cargo. 16 A história constitucional do ocidente nos revela que o voto com igual valor é uma conquista relativamente nova das democracias modernas. O voto plural, familiar e múltiplo já se fez presentes em muitos países e favoreceram a manutenção de grupos elitistas no poder. A titulo de exemplo cumpre registrar que o direito de votar mais de uma vez já foi concedido a diretores de empresas e portadores de diploma de curso superior na Inglaterra até 1948. SILVA, 2003. Ob cit, p. 353. Justamente por isso, é possível afirmar que os atuais problemas brasileiros relacionados com a isonomia do voto não se encontram no plano do homem e da mulher, ou em questões econômicas. A grande problemática que envolve atualmente a aplicação do voto igualitário se encontra inserida nos temas dos sistemas eleitorais e, principalmente, da definição do número de vagas que serão disponibilizadas para as eleições em cada estado da Federação, tema que será abordado no próximo item. 3. Princípio federativo e a participação dos Estados-membros na União Federal: o bicameralismo federativo. Não há standards ou modelos de federação, que devam ser necessariamente seguidos por todos os Estados para que possam ser considerados “federais”. Na verdade, são as especificidades políticas de cada povo que terminam determinando o tipo de federalismo adotado constitucionalmente. Por isso mesmo há tantos Estados federais diferentes uns dos outros pelo mundo afora. Uns mais centralizados, outros menos. Mas, do ponto de vista do federalismo tradicional, notadamente tomando-se como parâmetro a experiência norte-americana, é preciso reconhecer que a formação de um Estado Federal ocorre mediante uma junção de outros Estados que abdicam de sua autonomia para dar vazão a um novo ente político. É bem verdade que nem sempre o Estado Federal será criado a partir da agregação de outros Estados antes soberanos. A federação pode surgir a partir de uma segregação interna de um Estado Unitário, como foi o caso do Brasil: antes – até 1889 – , um Império; após, uma federação advinda de uma segregação político-territorial. De uma maneira ou de outra (segregação ou agregação), o fato é que, etmologicamente, a palavra “federação” possui um significado relevante. Vem de foedus, que significa pacto, aliança17. Uma junção de Estados para formar outro Estado, classificado como Estado composto. Talvez por isso a Constituição Federal de 1988, mesmo não tendo sido criada a partir de uma agregação de Estados antes soberanos, fez questão de afirmar em seu artigo 1º que a República Federativa do Brasil é formada pela 17 BORGES NETTO, André Luiz. Competências Legislativas dos Estados-Membros. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 40. “união” de “Estados, Distrito Federal e Municípios”, donde se extrai que a palavra união”, grafada com letra minúscula, significa exatamente a antes propalada junção, aliança. Se por um lado os diversos federalismos não são iguais (justamente por não terem que seguir um modelo específico), por outro lado não se pode deixar de reconhecer que tal forma de Estado possui, de acordo com Celina Souza18, duas dimensões principais: um arranjo constitucionalmente determinado e uma divisão territorial de poder, verbis: Apesar das controvérsias sobre as principais características dos sistemas federativos, existe um consenso de que essa instituição tem duas dimensões principais: desenho constitucional e divisão territorial de poder governamental. Embora outros fatores e instituições também sejam objeto de análise sob a ótica do federalismo, tais como as dinâmicas da economia política, da competição partidária e da chamada cultura política, as manifestações territoriais do federalismo requerem uma análise não apenas de sua aplicação prática, mas também do ponto de vista das constituições Enquanto a divisão territorial do poder implica na presença de núcleos de decisão não centralizados (os Estados-membros), o desenho constitucional do federalismo deve, por sua vez, prever alguma forma de participação desses Estados-membros na condução da vontade da União. Afinal, numa visão clássica, se a vontade dos Estadosmembros é determinante para criar uma “União”, então o processo de formação diário da vontade dessa pessoa jurídica União não pode prescindir da oitiva desses mesmos Estados. Em outras palavras, as partes criam o todo, então as partes devem possuir o direito de interferir na vontade desse todo, continuamente. Por isso mesmo, registre-se, um dos elementos comuns nas federações é justamente a participação das vontades dos Estados na vontade da União, seja no Estado federal historicamente advindo de uma segregação ou de uma agregação. Ou seja, um Estado composto deve possuir um ente representativo do poder local no poder nacional, o que é normalmente caracterizado pela existência de um Senado que funciona como representante da vontade dos Estados-membros. Nesse sentido, as decisões legislativas da União terminam sendo decisões em duas etapas, eis que o princípio do bicameralismo existe para que uma das casas represente a vontade dos Estados-membros, e a outra, a vontade do povo. Sobre o tema, José Alfredo de Oliveira Baracho menciona que "constitui característica do Estado Federal a consagração de uma dupla representação. Num dos 18 SOUZA, Celina. Federalismo, desenho constitucional e instituições federativas no Brasil pós-1988. In: Revista de Sociologia e Ciência Política, n. 24, Curitiba, jun. 2005, p. 105. órgãos legislativos, é a população global do Estado que envia os seus representantes, no outro são as coletividades particulares que se fazem representar”.19 A segunda câmara, além de representar formalmente a participação dos Estados-membros na legislação federal e nacional, funciona também como um espaço de interlocução entre os governos estaduais e o governo federal, na medida em que atua intermediando os conflitos federativos. Assim, na perspectiva do desenho constitucional do federalismo, os Estadosmembros possuem o direito de interferir na elaboração das leis constitucionais e infraconstitucionais no plano federal, por meio do Senado. Por isso mesmo, para Susy Cavalcante, "o princípio da participação consiste no fato de que as partes federadas participam das decisões tomadas pelas autoridades federais”20 É preciso salientar que, apesar dos Estados Unitários preferirem o unicameralismo do Poder Legislativo, e os Estados Federais preferirem o bicameralismo, não se pode afirmar que a relação Estado Federal/bicameralismo seja uma constante. Sully Alves de Souza pesquisou o tema em diversos Estados Federais, concluindo que, de 19, apenas 3 deles dispunham de sistemas unicamerais, ao passo que dos 70 Estados Unitários examinados, 29 deles dispunham de sistema bicameral21. Assim, conclui-se que, apesar da ressalva da inexistência de modelos que devam ser necessariamente seguidos, a Federação normalmente prevê, em seu arranjo constitucional, duas câmaras legislativas no plano da União, onde uma delas irá representar os interesses dos Estados-membros. É assim no Brasil. O art. 45 da atual constituição brasileira afirma que os deputados federais representam o povo. Enquanto que o art. 46 afirma que os Senadores representam os Estados-membros e o Distrito Federal. Portanto, o problema da isonomia de voto aplicado à Federação se torna palpitante a partir da constatação de que é justamente o povo quem irá votar e definir quem serão os membros que irão compor tanto a câmara do povo, quanto a câmara dos estados. Ou seja, o acesso às casas legislativas que irão representar o povo ou os Estados-membros dar-se-á mediante o voto dos nacionais do país. 19 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Federalismo. Belo Horizonte: FUMARC/UCMG, 1982, p. 30. 20 CAVALCANTE, Susy Elizabeth Forte. "Federalismo: Evolução política e necessidade de reconstrução", p. 88. 21 SOUZA, Sully Alves de. Apud BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo, p. 30 Nesse sentido, a discussão da igualdade do voto deve ser enfrentada sob o aspecto do exame da proporcionalidade na representação política dos Estados-membros no contexto federativo. 4. A desproporcionalidade na representação dentro do Estado Federal e a (des)igualdade do voto Há duas formas de se analisar a isonomia do voto no contexto federativo. Na votação para o Senado e na votação para a Câmara dos Deputados. No primeiro caso, é de se registrar que existe o princípio da paridade da representação dos Estados-membros no Senado. No Brasil, cada Estado-membro possui três representantes no Senado Federal. Trata-se, na verdade, de uma idéia antiga no constitucionalismo brasileiro, presente como cláusula pétrea já na primeira Constituição federal, a de 1891, sob a inspiração do art. V da constituição norte-americana de 1787.22 Se cada Estado-membro brasileiro possui o direito de escolha de três Senadores para representação no Senado Federal, independentemente de critérios populacionais ou de número de eleitores, então não se pode analisar o discurso da igualdade do valor do voto em face do critério da pessoa, mas sim do critério do Estado. Ora, aplicando o tema da igualdade do voto para a eleição do Senado, certamente distorções representativas poderiam ser levantadas, eis que Estados-membros mais populosos elegerão o mesmo número de senadores que os demais Estados-membros menos populosos. Ou seja, um senador no Estado do Acre (pouco populoso) é eleito com bem menos votos que um senador no Estado de São Paulo ou do Rio de Janeiro (mais populosos). Bem, quanto ao Senado, não se pode argüir uma quebra do princípio da isonomia do voto entre cidadãos, justamente porque a função constitucional do Senado Federal é a de representação dos Estados-membros (art. 46 da Constituição Federal de 1988). Assim, muito embora seja o povo quem, por meio do voto, escolhe os senadores, o número invariável de três senadores para cada Estado-membro deriva do princípio da igualdade jurídica as unidades da Federação. 22 O art. 90, §4º da Constituição brasileira de 1891 assim dizia: “Não poderão ser admitidos como objeto de deliberação, no Congresso, projetos tendentes a abolir a forma republicano-federativa, ou a igualdade da representação dos Estados no Senado”. O problema da quebra da isonomia do voto encontra um campo fértil de discussão quando se analisa o critério de acesso para a Câmara dos Deputados que, à luz do art. 45 da Constituição Federal de 1988, compõe-se de representantes do povo. É que, muito embora sejam os deputados representantes do povo, o processo eleitoral é dividido em distritos eleitorais estaduais. Ou seja, as eleições ocorrem em cada Estado-membro, que escolherá um número determinado de deputados federais, de acordo com a proporcionalidade em razão da população desse mesmo Estado (art. 45, §1º. da Constituição de 1988).23 Assim, considerando (1) que a Lei Complementar 78/93 define o número total de deputados federais em 513; considerando (2) que os deputados são representantes do povo e (3) considerando que o art. 14 da Constituição Federal de 1988 assegura o direito ao voto igualitário, então, para que o voto realmente possa manter o valor igual, seria razoável que a distribuição dessas 513 vagas pudesse atender ao critério da proporcionalidade da população. Ou seja, se São Paulo detivesse 90 % da população brasileira, então 90% das 513 vagas deveriam ser alocadas ao Estado de São Paulo nas eleições, para que os brasileiros lá residentes pudessem escolher a sua parcela dos representantes do povo. Todavia, assim não ocorre, eis que a Constituição Federal de 1988 definiu os Estados-membros como distritos eleitorais24, estipulando um piso e um teto para cada Estado-membro. Nenhum Estado-membro pode ter menos de oito ou mais de setenta deputados federais. Assim, exemplificando, se eventualmente um Estado-membro diminuísse radicalmente o seu contingente populacional, mantendo poucas centenas de pessoas nele residindo, ainda assim esse Estado permaneceria com o direito de, nas 23 Muito embora os Deputados Federais, de acordo com o caput do art. 45, sejam representantes do “povo” (conceito qualitativo de nacionalidade), o número de deputados federais por cada Estado-membro é definido em razão da “população” (conceito quantitativo) de cada Estado-membro, de acordo com o que reza o §1º. desse mesmo art. 45 da Constituição Federal de 1988. 24 A desigualdade do voto não seria observada se as eleições fossem realizadas em um único distrito nacional, porque aí, todos os votos dos cidadãos brasileiros seriam contabilizados um a um, com o mesmo peso. No Brasil, apesar de isto não ocorrer em eleições legislativas, um único distrito nacional pode ser observado no voto praticado em plebiscitos e referendos, como recentemente se viu no referendo da lei do desarmamento. Aí, o princípio da isonomia de voto pode ser bem observado, eis que, em tais casos, o Brasil é o único distrito eleitoral, sendo contabilizados os votos dos pernambucanos, dos paulistas, dos fluminenses etc., todos de maneira igual. eleições, dispor de oito vagas de deputados federais, já que nenhuma das unidades da Federação pode ter menos de oito ou mais de setenta Deputados. Sob o tema, considerando não a proporcionalidade na representação territorial, mas sim a proporcionalidade no princípio da representação dos cidadãos, Márcia Soares e Luiz Lourenço25 afirmam que haveria uma sub-representação de alguns Estadosmembros da federação brasileira em função do piso e do teto dantes mencionados. É que, por terem um contingente populacional mais numeroso, deveriam, pelo critério da proporcionalidade entre cidadãos, possuir um número maior de deputados federais. Tais Estados-membros esbarram, todavia, na cláusula do teto máximo de setenta deputados. Como exemplo, São Paulo, na regra da proporcionalidade, deveria possuir cento e doze deputados. Já o Acre, apenas dois. Críticas surgem contra essa sub-representação de alguns Estados-membros do Sudeste brasileiro, alegando que Estados menos populosos do Norte-Nordeste possuem sobre-representação. E tais Estados, menos populosos, seriam justamente os que detêm uma política tradicional “atrasada” e baseada no “clientelismo”. E mais: o piso e o teto terminariam, em tese, prejudicando toda a população, pois os Deputados Federais dos Estados-membros mais ricos, com uma política “dinâmica” e mais progressista, não conseguiriam aprovar bons projetos para o povo brasileiro, já que haveria uma predominância de políticos arcaicos oriundos de Estados sobre-representados e menos populosos26. Quanto a isso, importa destacar que o número de deputados federais das regiões menos populosas do Brasil (Norte, Nordeste e Centro-Oeste) possui um percentual mínimo de diferença em relação ao número de deputados das regiões mais ricas e populosas (sul e sudeste)27. Por isso, não se pode presumir que a sub e sobre representação interfere na práxis política-legislativa-federal mais ou menos retrógrada, sem que sejam efetivamente demonstrados dados objetivos de tal conclusão (como, por exemplo, identificação real de projetos de leis “progressistas” não-aprovados em razão de votos de deputados oriundos dos Estados menos populosos). 25 SOARES, Márcia Miranda & LOURENÇO, Luiz Cláudio. A representação política dos estados na federação brasileira. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 19, nº. 56, p. 118. 26 Cf. SOARES, Gláucio Ary D. A democracia interrompida. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 294. 27 SOARES, Márcia Miranda & LOURENÇO, Luiz Cláudio.Ob cit, p. 121. Ademais, é preciso escancarar que a crítica à sobre-representação se baseia em argumentos contraditórios. É que o grande argumento utilizado contra a regra do piso e do teto é que estaria havendo uma quebra no princípio da isonomia do voto. Ou seja, a crítica tem como supedâneo a desigualdade entre cidadãos. Todavia, o fundamento dessa crítica é a de que os Estados do Sul e Sudeste ficam sub-representados. Aí, o argumento deixa de ser o do cidadão, e passa a ser o argumento da igualdade/desigualdade entre Estados-membros: Por um lado, é reivindicada uma representação na Câmara dos Deputados que tenha como diretriz a população e não a região – busca-se a igualdade na representação dos cidadãos independentemente de sua localização territorial; por outro, a desproporcionalidade é referida como sendo regional: o Sudeste é o grande perdedor e os pequenos estados do Nordeste e do Norte são os grandes beneficiados. Se o que é enfatizado é a região, ou estado, então não há como pretender desvincular do debate sobre representação a questão federativa28. Ou seja, parte-se do pressuposto de que o voto deve ser igual (one man, one vote), e de que a desigualdade do voto gera uma desigualdade entre regiões. Ter-se-ia, então, artigos constitucionais incompatíveis: uma aparente antinomia, eis que o art. 14 seria antinômico com a regra do piso e do teto contemplada no §1º. do art. 45, regra essa que terminaria por atacar o princípio democrático, pela ofensa à isonomia do voto. Observe-se, porém, que os contornos de cada norma só podem ser evidenciados diante do problema concreto, em razão da impossibilidade de enunciação prévia de todo seu conteúdo, bem como da sua limitabilidade em relação a outras normas. Colocar as duas disposições (a do art. 14 e a do §1º. do art. 45) em termos absolutos inviabiliza uma leitura coerente do texto constitucional. Por isso mesmo é que a compreensão do valor isonômico do voto na constituição brasileira exige do intérprete a consideração das formas de representatividade adotadas pelo constituinte e a sua relação com o princípio democrático, que não se confunde com o princípio da maioria. Como, então, dar uma interpretação às normas citadas – que seja uma interpretação constitucional compatível com a democracia –, será a preocupação a ser enfrentada a seguir. 28 Idem, ibidem, p. 121. 5. A ponderação entre isonomia de voto e princípio federativo na análise da desproporcionalidade de representação. Sabe-se que o princípio da isonomia de voto deve, em estados federais, ser interpretado de acordo com as regras que estabelecem um intrincado jogo entre União e Estados-membros, incluindo a idéia da participação local na vontade da União. Ocorre que, analisados os artigos 14 e o §1º. do 45, pode-se identificar uma aparente incompatibilidade normativa intrínseca horizontal, pelos motivos expostos no tópico anterior: o piso e o teto em violação ao princípio da isonomia de voto. Considerando tal incompatibilidade, o Governador do Estado do Rio Grande do Sul propôs uma ação direita de inconstitucionalidade,29 impugnando a limitação mínima e máxima do número cadeiras da Câmara dos Deputados (de 8 a 70), inscrita no §1º do art. 45 da Constituição Federal, em face do princípio da isonomia do voto disposto no art.14 da do mesmo diploma normativo. O autor se valeu da tese das normas constitucionais inconstitucionais de Otto Bachof 30 para sustentar a existência de hierarquia entre normas constitucionais produzidas pelo constituinte originário. No caso, o autor defendeu a superioridade princípio da isonomia do voto, em razão da sua consagração como cláusula pétrea e pelo fato de o dispositivo representar uma espécie de concreção positiva do direito supralegal. A ação não foi conhecida em razão da impossibilidade jurídica do pedido, uma vez que a nossa Corte Suprema refuta a tese de declaração de inconstitucionalidade de norma constitucional produzida pelo poder constituinte originário, tendo em vista a ausência de parametricidade entre os dispositivos confrontados, bem como em razão da 29 Trata-se da ADIN n. 815-3 DF. Rel. Min. Moreira Alves. Disponível em www.stf.gov.br. BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra: Almedina, 1994. Bachof discute a possibilidade de vício das normas constitucionais em quatro circunstancias específicas. Mas, para os fins pretendidos por este estudo cumpre mencionar a hipótese de inconstitucionalidade de normas produzidas pelo constituinte originário em face de normas consubstanciadoras de direito suprapositivo. Tal direito não seria fruto da atividade criadora do constituinte, seria, em última análise, um direito superior e transcendente ao qual o constituinte estaria subordinado por força do próprio texto da Lei Fundamental, que estatui que “o povo alemão reconhece os direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de qualquer comunidade humana, da paz e da justiça no mundo”. A positivação do direito supralegal seria apenas uma declaração, um reconhecimento deles pela ordem jurídica. O controle de normas constitucionais teria como parâmetro um direito não positivo, o qual equivaleria ao direito natural. Crítica com relação a atuação do Tribunal Constitucional tedesco na “revelação” desta ordem suprapositiva de valores é Ingenborg Maus. Cf. MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n.58. nov. 2000. 30 incompetência deste órgão para a fiscalização da constitucionalidade de disposições integrantes do texto constitucional originário. Segundo entendimento esposado pela Procuradoria Geral da República, o qual foi seguido pelo relator, a previsão de cláusulas pétreas não guarda qualquer relação com uma possível hierarquia entre normas constitucionais. Em verdade, constitui uma limitação dirigida ao constituinte reformador, para evitar que uma eventual modificação da Constituição se torne uma supressão da mesma. As cláusulas pétreas, então, corresponderiam ao núcleo de princípios que identificam determinada carta constitucional, mas não poderiam ser tidas como valores superiores consagrados pelo constituinte. Em sendo assim, a jurisprudência brasileira não admite esta tese, entendendo que todas as normas constitucionais retiram seu fundamento de validade do Poder Constituinte e não de normas suprapositivas. Caso ocorresse uma violação de uma norma constitucional por outra, tratar-se-ia de vício de ilegitimidade, estando, portanto, fora do âmbito de controle do Supremo Tribunal Federal. Interpretando a Constituição, o autor, no mérito, sustentou que a limitação contida no §1º do Art. 45 violaria a isonomia na medida em que, não obstante os estados do sul e do sudeste constituíssem 57,7% da população do país, respondessem por 77,4% da formação do PIB, a eles só lhes cabia 45% das cadeiras do Congresso Nacional, o que lhe afigurava injusto se comparado com os números referentes às regiões norte, nordeste e centro-oeste, que, juntas, constituíam 42,3% da população nacional, respondendo por apenas 22,6% do PIB, dispondo, entretanto, da maioria das cadeiras do Congresso (54,3%). Aduzia, ainda, o prejuízo que os estados do sul e do sudeste sofreriam em virtude dessa má representação, tendo em vista que são os membros daquele órgão que determinam o destino dos recursos nacionais. Em suma, o autor alegava uma discriminação da grande maioria da população brasileira (concentrada no sul e no sudeste), produtora da maior parte da riqueza nacional em razão da inobservância do igual valor do voto quanto ao resultado na distribuição de mandatos por estado. Ainda que o Supremo aceitasse a tese das normas constitucionais inconstitucionais, conhecendo da ação, observe-se que os argumentos levantados pelo autor relacionam o sistema proporcional usado para compor a câmara dos deputados, casa representativa do povo brasileiro enquanto unidade, com a representação dos estados membros. Ou seja, como dito alhures, pretende preservar a isonomia entre “cidadãos” utilizando-se do argumento de que os “Estados-membros” do Sul e Sudeste estão sendo prejudicados. Ocorre que uma Constituição não pode ser interpretada pelas suas normas, apreendidas de maneira isolada, dissociadas do contexto do sistema federal, inclusive. Não se pode interpretar, pois, o artigo 14 fugindo do debate federalista. Em nada é original, no âmbito do direito constitucional contemporâneo, compreender a Constituição, ao menos sob uma perspectiva estrutural, enquanto sistema. Há muito, os constitucionalistas vêm empregando este termo, talvez, na tentativa suprir uma deficiência na designação e delimitação do seu objeto de estudo. A fixação do objeto de estudo dentro do direito constitucional – direito político por excelência - é tarefa particularmente complexa, seja por estar inserto no rol das ciências humanas aplicadas, seja em razão da histórica dicotomia entre direito natural e direito positivo, ou, talvez ainda, em razão da sua multifuncionalidade31 (reflexo desse conflito epistemológico pode ser observado, a título de exemplo, na distinção entre Constituição em sentido material e constituição em sentido formal). Tomando a Constituição como um sistema aberto de normas jurídicas32, facilmente identifica-se a presença de formas distintas de apresentação das normas constitucionais: as regras e os princípios. Muito embora sejam espécies do gênero norma, regras e princípios possuem diferenças notáveis – tanto no que tange as funções que desempenham na ordem jurídica como no que concerne a sua aplicabilidade – de forma que se reconhece que a diferença entre eles é de ordem qualitativa.33 Assim, considerando que os direitos fundamentais possuem a estrutura de princípios, a isonomia de voto do art. 14 31 A literatura constitucional tende a definir a Constituição pondo em relevo determinada função ou característica da carta constitucional, de acordo com os influxos ideológicos de cada momento. Veja-se a respeito, as teorias normativas, sociológica, política, sistêmica (segundo a qual a constituição seria um instrumento de redução de complexidades da esfera política) e mais recentemente a de Härbele pela qual a Constituição não estaria jungida a manifestação estática do poder constituinte, sendo, antes, o produto de uma interpretação realizada por instancias estatais e não estatais. 32 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob cit, p.165. 33 Cabe ressalvar que a teoria desenvolvida por Alexy, hoje já é criticada em vários sentidos. Entretanto, não se pode deixar de reconhecer que ela é responsável pelos novos rumos do direito constitucional, na medida em que atribuiu aos princípios um status especial na estrutura das Constituições. De meras diretivas ou orientações desprovidas de força normativa, eles lograram o posto de elementos identificadores das Cartas Constitucionais, exercendo papel fundamental na constitucionalização do direito. poderia se enquadrar como uma norma-princípio, enquanto que o piso e o teto do §1º. do art. 45, poderia ser classificado como uma norma-regra. Alexy, em definição clássica, concebe os princípios enquanto mandamentos de otimização, ou seja, normas que impõem que algo seja realizado, relativamente às possibilidades fáticas e jurídicas, na maior medida possível34. Daí deduz-se que os princípios conhecem diversos graus de concretização, o que permite a convivência35, a harmonização e a ponderação de interesses antagônicos. Não é possível estabelecer um elenco de princípios constitucionais organizado abstratamente segundo o grau de importância. No âmbito normativo, os princípios constitucionais convivem, em regra, em relação harmônica. A colisão, então, só se verifica diante de um caso concreto e aí prevalência de um princípio em detrimento de outro ocorre em função do peso ou da importância verificada naquela situação. A preferência de um princípio em detrimento de outro pressupõe, assim, uma ponderação36 dos bens jurídicos envolvidos. Um princípio não traz em si a previsão de suas hipóteses de incidência, nem os casos em que será excepcionado em razão de outro. Ele apenas aponta uma direção, dentre tantas possíveis, ao intérprete, o qual decidirá segui-la ou não. Com isso não se quer negar sua força normativa, mas afirmar sua limitabilidade face outros princípios. Esta técnica adquire especial valor quando dois direitos fundamentais entram em rota de colisão, incluindo o direito fundamental à isonomia de voto. Para a realização dessa ponderação ou balanceamento, os tribunais lançam mão de instrumentos hermenêuticos aptos a demonstrar a racionalidade da decisão37. O princípio da proporcionalidade é invocado como princípio de interpretação que orienta o aplicador a verificar a necessidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito da medida que irá restringir o exercício de um direito em face de outro. 34 ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, ponderação e racionalidade. Revista de Direito Privado. N. 24, a. 6. Out/dez. 2005, p. 339. 35 Em razão disso, a prevalência de um principio sobre o outro não provoca sua exclusão do ordenamento jurídico. Ele permanece íntegro, podendo, em situação diversa, se sobrepor a outro. 36 Atribui-se a jurisprudência tedesca o amplo desenvolvimento da técnica da ponderação. 37 Cf. SANTOS, Gustavo Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: limites e possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. A atuação dos princípios não se dá de forma direta, exige, antes, uma mediação concretizadora que se dá por meio da interpretação38. Isto porque o conteúdo de um princípio não está previamente declarado no ordenamento jurídico, ele se dimensiona em cada caso concreto, levando em consideração a relação que mantém com outros princípios. O fato é que os princípios desempenham papel essencial numa Constituição que traz em si a pretensão de permanência. A plasticidade das disposições principiológicas permite a atualização da carta constitucional e possibilita a integração da ordem jurídica, sempre incompleta e incapaz de prever soluções para todas as situações fáticas. Já as regras possuem características que as diferenciam dos princípios principalmente no plano da aplicação. Uma regra é ou não é válida, sendo aplicável ou não ao caso concreto. Para que incida sobre uma situação concreta, basta a configuração das circunstancias fáticas previstas por ela. Um aparente conflito entre regras é tranqüilamente solucionado por meio dos clássicos critérios de resolução de antinomias próprias. Diz-se aparente, porque em sendo uma regra válida, a outra, que também pretende ser aplicável ao caso, fatalmente não integra mais o ordenamento jurídico. O problema se restringe, portanto, ao âmbito da validade. Não obstante as inúmeras diferenças, princípios e regras mantêm uma estreita relação. Aqueles fornecem substrato material a estas, exercendo assim uma função normogenética, de modo que, no bojo de cada regra há o reflexo de um ou de um grupo de princípios. Neste sentido, pode-se dizer que as regras operam a concreção dos princípios39. Canotilho vislumbra uma articulação lógica entre regras e princípios de maneira que estes conhecem, dentro do texto constitucional, diversos graus de densificação, a depender dos seus desdobramentos em outros princípios, em subprincípios ou em regras40. Observe-se, então, que a aplicação do direito constitucional não se reduz, portanto, a aplicação de uma regra ou de um princípio constitucional considerado 38 Cf. STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. Apoiado na filosofia fenomenológica de Heidegger o autor critica a tradicional doutrina que fraciona a interpretação em dois momentos (cognitivo e volitivo), bem como a compreensão de atividade interpretativa enquanto busca do “verdadeiro sentido da norma”. 39 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 122. 40 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob cit, p. 180 a 184. isoladamente. Em verdade, o intérprete aplica o direito, cotejando as regras com o auxilio dos princípios presentes em seu bojo, tomando-os em correlação com os demais princípios albergados na Constituição, realizando, assim uma leitura sistêmica e coerente do direito constitucional. Dentro dessa visão hermenêutica de exame não isolado da normatividade, o conflito entre o princípio da isonomia de voto e o piso e o teto na fixação de números de deputados federais por Estados-membros é apenas em aparência um conflito entre um princípio e uma regra. Diz-se apenas em aparência porque se trata, no fundo, de um conflito aparente entre princípios: o da isonomia e o da federação. É que o piso e o teto já mencionados possuem não outra razão, a não ser a representação dos Estados no plano federativo. Aparentemente, e isso a Constituição diz expressamente, o Senado Federal é o verdadeiro representante dos Estados-membros. Mas, a definição do piso e do teto geram, na Câmara dos Deputados, uma função que transcende a de mera representante do povo, eis que passa a representar também os Estados na medida em que os deputados são eleitos em eleições cujos distritos eleitorais são os próprios Estados-membros. O aparente conflito normativo se dá, pois, no plano do direito fundamental à isonomia de voto e no plano do princípio federativo. Ocorre que o direito à isonomia de voto não pode ser compreendido fora do contexto democrático. E a democracia brasileira rechaça o endeusamento do princípio da maioria. A prevalência da vontade da maioria pode gerar distorções democráticas, quando tais maiorias aniquilam minorias. Justamente por isso, o princípio da maioria não pode se confundir com democracia. Ele antes é um dos instrumentos para concretizar ideais democráticos. Há outros fatores que incidem no fortalecimento da democracia brasileira como, por exemplo, impedir que Estados hegemônicos na perspectiva econômica e política possam fazer valer as suas vontades na Câmara dos Deputados. A democracia brasileira não se preocupa apenas em tornar os cidadãos mais iguais, mas se preocupa também em tornar as regiões mais iguais. Não é por outro motivo que o art. 3º. da Constituição brasileira de 1988 diz constituir-se um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a redução das desigualdades regionais. A tese da prevalência da isonomia de voto sobre a regra do piso e do teto possui um entendimento de democracia calcada apenas na dimensão individual e no princípio majoritário, não enxergando que a maioria deve ser um instrumento a favor de inclusão regional e de consenso, nem que seja privilegiando interesses minoritários. Talvez por isso Márcia Soares e Luiz Lourenço afirmam que uma representação estritamente proporcional, na perspectiva populacional, encontra base no modelo de democracia majoritária. Todavia, para os autores, a democracia consociativa viabilizaria mais a forma de estado federal como expressão de interesses territoriais diferenciados e que merecem tutela especial de representação legislativa. Nesse sentido, valeria a pena, para o bem da democracia e da redução das desigualdades regionais, evitarse distorções e maus usos do princípio majoritário, prestigiando-se a igualdade da representação dos estados em detrimento da total igualdade na representação política dos indivíduos, verbis: A representação estritamente proporcional dos estados, em termos de população, levaria a uma maior concentração de poder econômico e político em uma única unidade da Federação – o estado de São Paulo –, o que contribuiria para o aumento de nossos desequilíbrios federativos com a conseqüente ameaça de o país ficar submetido no plano político-eleitoral ao que se denomina “tirania da maioria”41 Nesse passo, o princípio da unidade da constituição, corolário da hermenêutica constitucional, não é invocado apenas pela necessidade de uma interpretação sistemática da nossa Carta Política. Em constituições compromissórias como a nossa, em que pese a diversidade de interesses e bens jurídicos tutelados constitucionalmente, cumpre ao intérprete o dever de conciliar as aparentes divergências entre as disposições, harmonizando-as. A missão integradora que é atribuída às constituições é cumprida na medida em que ela se transforma em lócus da convivência da diversidade, em que a interpretação de seus princípios responda a essa necessidade de conciliação. No caso específico, a manutenção do piso e do teto constitucional para deputados federais por cada Estado é de suma importância para a conciliação entre a isonomia de voto e o princípio federativo. 41 SOARES, Márcia Miranda & LOURENÇO, Luiz Cláudio.Ob cit, p.125. CONCLUSÃO : Por uma leitura federalista do princípio da isonomia do voto. Historicamente, percebe-se que o direito ao voto teve que superar alguns problemas relacionados à falta de igualdade entre o homem e a mulher, ou mesmo à falta de igualdade entre homens, consideradas as suas posses e economia. Hoje, todavia, os problemas relacionados com o princípio do “one man, one vote”, situam-se no plano dos sistemas eleitorais e no plano da definição da quantidade de cadeiras que cada Estado-membro terá para iniciar o processo eleitoral, eis que o Brasil, nas eleições legislativas, divide-se, por assim dizer, em distritos estaduais. Há, todavia, eleições em que o Brasil funciona como um único distrito eleitoral: os plebiscitos e referendos mencionados também no art. 14 da Constituição Federal de 1988, quando, então, cada voto de cada cidadão será computado individualmente, sem qualquer prejuízo de quebra de igualdade. Considerando a existência de um Estado Federal, é natural que haja uma representação dos Estados-membros na União, fato este facilmente demonstrado pela existência do Senado Federal, casa representante dos interesses estaduais, integrada por três representantes de cada Estado-membro. Já no âmbito da chamada “casa baixa”, a definição de um piso de oito deputados e de um teto de setenta, possibilita, outrossim, no plano do exame federalista, que a Câmara dos Deputados não fique excluída dos debates de representação de Estadosmembros. Ou seja, a função de representação dos Estados desloca-se do Senado e passa a ser, do ponto de vista político, exercitada também pela Câmara dos Deputados, eis que haverá uma sobre/sub-representação no plano nacional do poder legislativo federal. Vale destacar que, dentre os instrumentos de realização da democracia, o voto tem recebido especial destaque. Tradicionalmente ele é concebido como ato político, cuja função primordial é a legitimação do poder. Entretanto, para além do exercício do direito ao sufrágio, a concretização do princípio democrático exige, em última análise, a conjugação de outros elementos essenciais como pluralidade, tolerância e consenso. Assim, percebe-se que democracia e sufrágio são conceitos que não se confundem. A garantia da igualdade de voto, como exercício do direito ao sufrágio universal, não garante a realização dos valores democráticos constitucionalmente estabelecidos. É que, com o surgimento do Estado Democrático de Direito, o sufrágio caracterizou-se como instrumento parcial de realização democrática, e, como tal, o princípio da isonomia não pode ser interpretado de maneira literal, mas deve ser interpretado de acordo com a democracia brasileira. E na democracia brasileira, a defesa de interesses regionais representa uma forma de alavancar um processo de inclusão e de busca do consenso. A própria Constituição Federal de 1988 em seu art. 3º. dá o indicativo. Por isso, considerando a necessidade de fortalecimento de uma democracia federativa que atue com mais inclusão, a desproporcionalidade na perspectiva isolada do cidadão (desproporcionalidade esta derivada da regra do piso e do teto) não é argumento que exija mais correção que a desproporcionalidade entre Estados. Por tudo exposto, entendemos que a isonomia não é um fim em si mesmo com foco na valorização do princípio majoritário. Ao contrário, ela deve, pois, ser interpretada de maneira a ser compatível com o fortalecimento da democracia por meio da inclusão e equalização das desigualdades entre os Estados-membros. REFERÊNCIAS: ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, ponderação e racionalidade. Revista de Direito Privado. N. 24, a. 6. Out/dez. 2005. BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra: Almedina, 1994. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Federalismo. Belo Horizonte: FUMARC/UCMG, 1982. BORGES NETTO, André Luiz. 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