Artigo Mário Sérgio Vasconcelos Conflitos que educam: novos olhares para a ética e a disciplina em sala de aula No contexto educacional, é frequente ouvirmos falar sobre o agravamento da indisciplina escolar, os conflitos interpessoais, a crise de valores e a necessidade de a escola empenhar-se na construção de valores socialmente desejáveis. Porém, quando visitamos instituições escolares para debater propostas que podem favorecer a organização de uma educação formadora, com salas de aula mais harmônicas e equilibradas, é comum ouvirmos, antes de iniciarmos nossa conversa com os professores e as professoras, que propostas dessa natureza são inviáveis no contexto no qual trabalham. É compreensível que atualmente professores não reajam bem a propostas desse tipo, pois a maioria dos docentes trabalha em escolas nas quais prevalecem modelos instrucionais de ensino. Porém, nossas observações demonstram que projetos pedagógicos direcionados para a construção de valores éticos e resolução de conflitos interpessoais são viáveis e significam uma oportunidade para se investir numa educação formadora e não apenas instrucional. Para discutir nossa visão, partiremos das seguintes questões: o que são valores? Qual a relação entre valores e conflitos no contexto escolar? Como a resolução de conflitos pode se tornar uma oportunidade para melhorar o ambiente e a cooperação no ambiente escolar? Valores são construídos por meio de investimentos afetivos e cognitivos que fazemos quando nos relacionamos com objetos, ideias e pessoas. Permeados pela linguagem, nossos valores vão sendo constituídos nas interações que realizamos nos lugares que frequentamos e vivemos, porque onde existem interações humanas circulam valores. É inevitável, portanto, que valores estejam presentes no cotidiano das escolas. De maneira semelhante, os conflitos também fazem parte das relações humanas. Por isso, não se constituem em algo externo ou estranho à escola, mas são inerentes ao convívio humano. Partindo desses pressupostos, valores e conflitos interpessoais fazem parte do cotidiano das relações escolares. Por isso, quando vamos definir o projeto pedagógico de uma escola, o mais importante não é perguntarmos se devemos ou não investir na formação de valores e resolução de conflitos no contexto escolar, mas questionarmos: quais valores queremos construir? Como incorporar na prática pedagógica ações que promovam a resolução de conflitos interpessoais? Artigo Mário Sérgio Vasconcelos A construção de valores e a resolução de conflitos envolvem ações inter-relacionadas. Para desenvolvermos projetos com esses propósitos, a escola deve incorporar em seus ideais princípios que levem em consideração uma concepção de indivíduo na qual razão e emoção, cognição e afeto são dimensões indissociáveis do funcionamento psíquico e do conhecimento humano. Quem trabalha em escolas sabe das dificuldades que os educadores, funcionários e alunos encontram para lidar com conflitos interpessoais. Quando surge um conflito, o procedimento mais frequente é buscar resolver “o problema” de forma disciplinar, sem levar em consideração aspectos importantes que estão presentes na situação: o que pensam, o que sentem e o que desejam as pessoas envolvidas. Desse modo, os conflitos são “solucionados” apenas na face mais externa e superficial do problema, que inclui apenas os aspectos racionais. Emoções e sentimentos geralmente são desprezados como se não existisse aquilo que não se vê, isto é, sentimentos, desejos e pensamentos são deixados de fora. Geralmente se atua como se as pessoas fossem divididas em duas metades, a cognitiva e a afetiva, e os conflitos escolares pertencessem apenas à esfera racional. Reafirmamos que razão e afetividade são dimensões indissociáveis do ser humano e estão presentes nos conflitos. Sabemos que não existe fórmula mágica para a resolução imediata de conflitos interpessoais. No entanto, temos observado que o trabalho temático com grupos em sala de aula tem mostrado resultados satisfatórios para o processo de construção de valores e resolução de conflitos. A análise coletiva de conflitos “hipotéticos”, relacionados àqueles que ocorrem na instituição escolar, transforma os conflitos em motivos de aprendizagem. Assim como não aprendemos os novos conteúdos das matérias curriculares no exato momento em que são ministrados (pois os conceitos são construídos aos poucos, com base em experiências anteriores), também a aprendizagem de resolução de conflitos deve ser iniciada não apenas em momentos conflituosos, mas com a análise de problemas extraídos da realidade escolar e da sociedade. Podemos, por exemplo, analisar situações que envolvem justiça e injustiça, direitos e deveres, disciplina e indisciplina, conceitos e preconceito, etc. Para que um conflito seja resolvido de maneira satisfatória, precisamos analisá-lo, verificar os elementos que o compõem, torná-lo transparente e não camuflá-lo. É necessário refletir sobre suas causas e não apenas o motivo aparente que permitiu sua manifestação. Mapear a história do conflito e os elementos envolvidos na situação possibilita levantar hipóteses para sua resolução. Não é função do professor ou da professora “solucionar” os conflitos interpessoais, mas sim possibilitar estratégias que possam propiciar aos alunos e às alunas a reflexão e o levantamento de hipóteses para definir ações para sua resolução. Artigo Mário Sérgio Vasconcelos Pensar em uma escola formadora implica assumir os conflitos como algo inerente às instituições educacionais. Incentivar a reflexão de como resolvê-los, sem dúvida, contribui para a construção de valores éticos e para a formação de sujeitos críticos, autônomos e democráticos. * Mário Sérgio Vasconcelos é Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em Processos Cognitivos pela Universidade de Barcelona. É professor livre-docente em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Estadual Paulista. Foi vice-presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento e diretor da Faculdade de Ciências e Letras de Assis/UNESP.