1 DIREITO PROCESSUAL CIVIL I FABAC PROF.: Fábio Rogério França Souza JURISDIÇÃO Conteúdo: A jurisdição no quadro do poder estatal. Jurisdição: conceito, características, escopos. Jurisdição X Legislação X Administração. 1. O PODER ESTATAL E SUAS FUNÇÕES: O poder político do Estado, como expressão da soberania, é ontologicamente uno. Embora consagrada inclusive em textos constitucionais, a expressão separação de poderes não se afigura como tecnicamente correta. O que há, em verdade, é a repartição das funções essenciais ao Estado, entre órgãos distintos e independentes entre si. Reconhece-se que essas funções essenciais são três: a executiva (administrativa) a legislativa e a jurisdicional. Partindo-se dessa constatação, chegou-se à conclusão, em determinado momento histórico, que essas funções não poderiam ficar concentradas em uma única pessoa ou colegiado, já que essa concentração fatalmente conduzia ao arbítrio e à tirania, constituindo grave ameaça às liberdades individuais. Construiu-se, assim, a teoria política que pregava a separação das funções estatais, atribuindo-as a órgãos públicos distintos e independentes, o que se chamou de separação de poderes, sendo mais adequado se falar em tripartição das funções do poder estatal. Essa teoria foi elevada a verdadeiro dogma, estando consolidada nas constituições desde as revoluções liberais do final do séc. XVIII. 1.1. A FUNÇÃO JURISDICIONAL: Assentado que o Estado tem três funções essenciais, foram elas repartidas entre órgãos especializados e independentes. Assim, ao Poder Executivo foi atribuída a função executiva ou administrativa, ao Poder Legislativo foi atribuída a função legisferante, criadora do Direito; e ao Poder Judiciário foi atribuída a função jurisdicional, pela qual o Estado se desincumbe de seu monopólico mister de solucionar os conflitos de interesses ocorrentes na sociedade, mediante a aplicação da norma previamente elaborada pelo Poder Legislativo. O Judiciário, portanto, na teoria clássica da tripartição do poder, não cria o Direito; apenas aplica a norma preexistente, funcionando, segundo a doutrina clássica como longa manus do Legislativo. - Vale lembrar que essa separação não é absoluta, já que pelo sistema de freios e contrapesos, os poderes se controlam entre si. Demais disso, embora ao Judiciário seja atribuída a função jurisdicional, nem todos os seus atos são jurisdicionais, já que ele também pratica atos administrativos (como, por exemplo, quando realiza a contratação de servidores e concede aposentadorias) e normativos (regimentos dos tribunais). O mesmo se dá com os demais poderes, pois o Legislativo excepcionalmente exerce a jurisdição (no caso de impeachment) e administra os seus 2 serviços próprios. O Executivo, por sua vez, a par de conduzir a administração pública, também edita atos normativos (medidas provisórias, regulamentos). Em suma, cada poder tem uma função típica, correspondente à sua nomenclatura, e funções atípicas, essencialmente identificadas com aquelas tidas como principais dos outros poderes. 2. ETIMOLOGIA: a palavra jurisdição provém do latim iuris dictio, que significa dizer o direito. Em seu sentido clássico, portanto, a jurisdição resumia à declaração do direito. No entanto, a ciência processual não mais discute acerca da natureza jurisdicional também das funções de execução e cautelar desenvolvidas pelo Estadojuiz, mesmo porque se essas atividades não são nem legislativas nem administrativas, só podem ser jurisdicionais. 3. CONCEITO DE JURISDIÇÃO: Jurisdição é a função exclusiva do Estado, atribuída a órgãos específicos e independentes, pela qual os conflitos de interesses são resolvidos, mediante a aplicação do direito objetivo ao caso concreto, seja afirmando a vontade concreta da lei, seja realizando-a praticamente, seja, por fim, assegurando a efetividade de sua afirmação ou de sua realização prática. 4. CARACTERÍSTICAS DA JURISDIÇÃO: A jurisdição possui características próprias, cujo reconhecimento permite distinguí-la das demais funções estatais. São elas: a) SUBSTITUTIVIDADE: É a jurisdição uma forma heterocompositiva de solução dos conflitos de interesses. Significa dizer que um terceiro, alheio ao conflito (imparcial), é quem o decide, mediante a aplicação do direito objetivo. Assim, o Estado, ao exercer a jurisdição, substitui, com uma atividade sua, as atividades dos litigantes direcionadas à solução dos litígios. - Ainda quando o conflito é entre um particular e o poder público, existe a substitutividade, pois é o Estado-juiz que irá julgar o litígio entre o particular e o Estado-administração. - Há restrições doutrinárias quanto à substitutividade ser apontada como característica da jurisdição. Diz-se que as atividades das partes — que seriam substituíveis pela jurisdição — jamais poderiam compor aqueles litígios envolvendo interesses indisponíveis (ex.: processo penal, processo civil referente à anulação de casamento). Outrossim, não se explicaria como seriam jurisdicionais os pronunciamentos do juiz sobre questões processuais, como a competência, que jamais poderiam ser resolvidas pelas partes e, por isso, nada haveria a substituir. Assim, a substitutividade, modernamente, há de ser entendida em comparação não às atividades que podem hoje ser desempenhadas pelos litigantes para a solução dos conflitos, e sim em relação à atuação dos particulares nos primórdios da civilização, quando estes resolviam os litígios através da autotutela. Neste sentido, a jurisdição é substitutiva porque substitui a autotutela. Por outro lado, entende-se que substitutividade deve ser traduzida por imparcialidade, no sentido de que o conflito é decidido por alguém 3 estranho aos interesses sobre os quais incidia sua atividade, mantendo-se esse terceiro numa posição eqüidistante das partes. b) ATIVIDADE DO PODER JUDICIÁRIO: A jurisdição é atividade exclusivamente pública e atribuída monopolicamente ao Poder Judiciário. Onde houver solução de conflito de interesses por terceiros, agentes do Estado ou não, que não integrem o Poder Judiciário, não haverá jurisdição. c) LIDE: Via de regra, a jurisdição somente se exerce diante de uma lide, ou seja, diante de um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Enquanto não houver interesses dessa forma contrapostos, não se fará necessário o exercício da jurisdição. - Isso não significa que só o julgamento da lide seja ato jurisdicional. Toda a atividade desempenhada para se chegar àquele fim — julgamento da lide —, tais como realização de audiências, decisões de questões incidentais, também é jurisdicional. A mesma ressalva vale para a característica da substituvidade, que, assim, abrangeria também os atos processuais predipostos à realização do julgamento. - Há forte corrente doutrinária que sustenta não ser a lide característica essencial à jurisdição, que pode ser exercida mesmo ante conflito de interesses não qualificados por pretensão resistida. Exemplificam os defensores da tese com a ação de anulação de casamento, proposta pelo Ministério Público, sem oposição dos cônjuges. A corrente contrária, porém, objeta que, em casos que tais, a resistência à pretensão anulatória advém do próprio sistema, em decorrência do alto grau de indisponibilidade dos interesses em jogo. d) INÉRCIA: A jurisdição é atividade provocada. Ocorrendo a lide, aquele que teve a sua pretensão resistida, ou o que manifestou a resistência, provoca o Estado-juiz para que exerça a jurisdição, solucionando o conflito. São duas as justificativas para a inércia: primeiramente, se o objetivo da jurisdição é a pacificação, decerto ela não seria obtida se de imediato se lançasse mão da jurisdição, ainda havendo possibilidade soluções consentidas (autocomposição) para o conflito. Em segundo lugar, a experiência revela um comprometimento psicológico do juiz, quando a ele é conferido o poder de iniciar o processo, afetando, assim, a sua imparcialidade. O princípio da inércia está expresso no art. 2o do CPC, resumindo-se nas parêmias latinas nemo judex sine actore e ne procedat judex ex officio. e) FUNÇÃO DECLARATÓRIA: Partindo-se da aceitação da idéia de que existem dois grandes planos no Direito — o material e o processual —, forçoso reconhecer, como assentado alhures, que a jurisdição, objeto do direito processual, não cria direitos, mas apenas reconhece aqueles que existem, segundo os ditames das normas de direito material. f) DEFINITIVIDADE: Quando o juiz julga um conflito e não cabe mais recurso, sua decisão reveste-se de imutabilidade, fenômeno a que se denomina coisa julgada, imune não só à revisão judicial, mas também a leis posteriores (CF, art. 5o, XXXV). 4 5. ESCOPOS DA JURISDIÇÃO: Com o exercício da função jurisdicional, busca o Estado atingir determinados objetivos, de ordem social, política e jurídica. São eles: a) ESCOPO SOCIAL: Visa a jurisdição alcançar a pacificação social, como imperativo de sobrevivência da própria sociedade, que estaria seriamente comprometida se o Estado não se utilizasse de sua autoridade para resolver definitivamente os conflitos intersubjetivos de interesses. Não basta, porém, resolver autoritativamente os litígios. É preciso que a decisão se legitime socialmente, por se assentar em critérios de justiça. E esses critérios são fornecidos pelo legislador, ao criar o direito objetivo. Portanto, escopo social da jurisdição é pacificação com justiça, ou seja, segundo os parâmetros do direito objetivo vigente, e não conforme o arbítrio ou a subjetividade do julgador. b) ESCOPO POLÍTICO: Exercendo a jurisdição, o Estado preserva a imperatividade da ordem jurídica dele emanada, cuja norma será aplicada autoritativamente ao conflito de interesses. Assim, o Estado se afirma como ente dotado de poder soberano, não sendo dado aos indivíduos escapar do laço de sujeição que os vincula ao Estado e que, por isso, obriga-os a observar os comandos dele emanados. c) ESCOPO JURÍDICO: Trata-se do objetivo de aplicar a vontade da lei ao caso concreto. Ou seja, através da jurisdição, busca o Estado fazer com que se atinjam, em cada conflito de interesses submetido à sua apreciação, os objetivos das normas jurídicas. 6. ATO JURISDICIONAL X ATO LEGISLATIVO: Estabelecidas as características e os escopos da jurisdição, pode-se agora extremar os atos jurisdicionais dos atos estatais praticados no exercício das demais funções. Quanto à distinção entre ato jurisdicional e ato legislativo, nenhuma dificuldade maior existe, já que a atividade legislativa consiste na elaboração de normas de conduta genéricas e abstratas, ao passo que a jurisdição busca exatamente a aplicação dessas normas aos casos concretos. Outrossim, a legislação é atividade estatal automovimentada, não precisando de provocação de quem quer que seja para a elaboração das normas. 7. ATO JURISDICIONAL X ATO ADMINISTRATIVO: Mais difícil é a distinção entre o ato jurisdicional e ato administrativo, pois ambos atuam no cumprimento da norma genérica e abstrata elaborada pelo legislador. No entanto, podem ser apontadas as seguintes diferenças: 1o) Ao aplicar a lei, o administrador tem em mira especificamente o bem comum, servindo a lei de limite para o seu agir; o julgador, por seu turno, tem na lei o objeto de sua atividade, considerando-a em si mesma para aplicá-la ao conflito de interesses. 2o) A atividade jurisdicional depende, quase sempre, de provocação de uma das partes do conflito. Já a Administração, via de regra, está autorizada a agir de ofício. 3o) A administração é uma atividade primária e originária, pois a lei é aplicada no interesse da própria administração (não há, pois, via de regra, imparcialidade no atuar administrativo). A jurisdição, por sua vez, é uma 5 atividade substitutiva, aplicando a lei não em seu próprio interesse, e sim para declarar qual o interesse em conflito que é tutelado pela ordem jurídica (a imparcialidade é manifesta, visto que o Estado-juiz atua como terceiro desinteressado, alheio ao conflito). 4o) A jurisdição, via de regra, tem como causa uma lide, enquanto a atividade administrativa satisfaz os interesses individuais e coletivos independentemente da existência de lide. 5o) A definitividade é característica exclusiva da jurisdição. Os atos administrativos, ainda quando dizem respeito ao contencioso administrativo, podem ser revistos pelo poder judiciário. BIBLIOGRAFIA ALVIM, J.M. ARRUDA. Manual de Direito Processual Civil. 7. ed. São Paulo: RT, 2001. v. 1. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, v. 1. CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, v. 1. FRIEDE, R. Reis. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. v. 1. SILVA, Ovídio A. BAPTISTA da. Curso de Processo Civil. 5. ed. São Paulo: RT, 2000. v. 1.