Definição de febre

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Mecanismos da Febre
Gilles Kaplanski 1,2
Valérie Marin 2
1. Serviço de Medicina Interna, Hôpital de la Conception 13385 Marselha Cedex 05
2. INSERM Unidade 387, Hôpital Sainte-Marguerite BP 29, 13274 Marselha Cedex 09
e-mail: [email protected]
La Revue du Praticien 2002; 52: 135-8
A febre é uma resposta normal e adaptativa do organismo a uma agressão de
natureza variável, freqüentemente infecciosa, e se integra a uma vasta reação de
defesa: a reação inflamatória aguda. Os mediadores da febre são principalmente
produzidos pelo hospedeiro e correspondem às citocinas pirogênicas como a
interleucina 1, o fator de necrose tumoral , a interleucina-6 e os interferons, que
agem sobre o hipotálamo através da prostaglandina E2. Bem conservada ao longo da
evolução das espécies, a febre confere ao homem uma vantagem ainda não
claramente estabelecida.
Definição de febre
A febre é um aumento da temperatura corporal de 1 a 4oC acima dos valores normais.
Ela reflete uma elevação da temperatura do “termostato hipotalâmico” e constitui uma
resposta normal e adaptativa do organismo contra uma agressão de natureza variável,
principalmente infecciosa. Ela faz parte de mecanismos de defesa mais complexos que
constituem a reação inflamatória aguda. A febre é diferente da hipertermia, que
corresponde a uma elevação da temperatura corporal independente do controle
hipotalâmico, refletindo um descontrole dos mecanismos periféricos de perda e (ou) de
produção de calor 1
Temperatura corporal normal
A temperatura corporal varia pouco de 36,5 a 37,5oC entre os homens, com mínimas
variações ditas circadianas (temperatura mais baixa pela manhã do que à noite). A
manutenção de tal estado de homeotermia se dá por um comando central, exercido pela
parte anterior do hipotálamo, o “termostato hipotalâmico” que fixa a temperatura corporal.
O hipotálamo recebe as informações aferentes provenientes dos neurônios associados aos
termorreceptores periféricos e também do sangue circulante que banha a região
hipotalâmica ao nível dos órgãos circunventriculares, que não possuem barreira hematoencefálica (fig. 1).
O hipotálamo, de retorno, envia as informações através dos neurônios periféricos
que controlam, pela pele, as perdas ( evaporação da água, vasodilatação periférica e
sudorese) ou a conservação do calor (vasoconstrição), e pelos músculos e vísceras a
produção do calor (hidrólise do trifosfato de adenosina ATP em conseqüência da contração
muscular que observamos no calafrio). O hipotálamo emite também mensagens para o
córtex cerebral que controla o comportamento do indivíduo ( procura de uma temperatura
quente ou fria o que o faz se cobrir ou descobrir). 1,2
Substâncias pirogênicas
A febre resulta de um aumento da temperatura do termostato hipotalâmico sob o
efeito de substâncias sangüíneas chamadas pirógenos. Distinguem-se os pirógenos em
exógenos e endógenos.
1
Córtex: modificação do comportamento
Vasoconstrição: conservação do calor
pele
Vasodilatação: perda do calor
Periferia
Fígado e músculos
Produção de calor
Fig. 1: Controle da homeotermia pelo hipotálamo
Localização do hipotálamo em corte sagital do cérebro. Os órgãos
circunventriculares são apresentados pontilhados. Repare nas flechas que representam os
neurônios com destino ao córtex que controla as modificações de comportamento, e os
destinados à periferia que controlam a perda, a conservação ou a produção de calor.

PIRÓGENOS EXÓGENOS
São substâncias que não se originam do hospedeiro mas sim dos microorganismos que
o infectam. O pirógeno exógeno mais estudado tem sido o lipolissacarídeo (LPS) [ou
endotoxina], produzido por todas as bactérias gram-negativas. As bactérias gram-positivas
produzem igualmente substâncias pirogênicas, tais como as enterotoxinas ou a toxina do
choque estafilocócico ou as toxinas do estreptococo A. Os pirógenos exógenos induzem
um estado febril no hospedeiro, seja diretamente (LPS), seja sobretudo ativando a
produção dos pirógenos endógenos pelas células do hospedeiro.

PIRÓGENOS ENDÓGENOS
Na década de 40, foi demonstrado que os leucócitos produzem pirógenos ditos endógenos
os quais, uma vez injetados em um animal de laboratório, são capazes de induzir um estado
febril. Na verdade, estas substâncias são proteínas solúveis que pertencem à vasta família
das citocinas. As mais importantes são as interleucinas (IL-1/) e o fator de necrose
tumoral  (TNF-), mas também a linfotoxina (LT-), os interferons (em particular o
IFN-) e a IL-6. Os leucócitos produzem estas citocinas a medida que são ativados pelos
pirógenos exógenos, assim como por outros estímulos celulares como os complexos
imunes, as radiações ionisantes, queimaduras ou pelas próprias citocinas. Isto explica que a
ocorrência de febre não é sinônimo de infeção. Os monócitos são os mais importantes
produtores de citocinas porém a maior parte das células do organismo (células epiteliais,
2
endoteliais, fibroblastos) podem também secretar estas substâncias, se forem submetidas
aos estímulos celulares.

RECEPTORES DE CITOCINAS E RECEPTORES TOLL
As citocinas agem sobre as células ao se fixarem sobre receptores específicos que estão
presentes na superfície de todas as células do organismo. É possível agrupar-se estes
receptores em grandes famílias em razão de analogias estruturais e da utilização de
mecanismos comuns de ativação celular (transdução de sinal). Assim, os membros da
família dos receptores do TNF  possuem homologias nas suas porções extracelulares, e
alguns um domínio intracelular dito “de morte” que os faz participar da apoptose celular.
A IL–6 e as moléculas que lhe são aparentadas fixam-se a receptores heterodiméricos, os
quais compreendem uma proteína transdutora comum, a gp 130.
Foi demonstrado que os receptores da IL –1 / e do LPS pertencem a uma mesma
grande família de receptores, os receptores Toll-like ou TLR (do nome do receptor Toll da
drosófila), os quais foram conservados através da evolução, desde os insetos até os
homens. 3 As cadeias destes receptores possuem, nos seus domínios intracitoplasmáticos,
motivos conservados (TIR, Toll/IL–1 receptor), que lhes permite interagir com as enzimas
que controlam a ativação da maquinaria pró-inflamatória da célula, em particular a
ativação do fator de transcrição NF-kB e a produção do ácido aracdônico e de
prostaglandinas, a partir dos fosfolipídeos de membrana (fig. 2)
LBP
IL-1
LPS
CD14
TLR-2
IL-IRI
TIR
TIR
TIR
TIR
MYD 88
MYD 88
IRAK
IRAK
AA
TRAF-6
COX
P38
ATF-2
JNK
AP-1
NF-kB
PGE
2
Resposta pró - inflamatória
Fig. 2: O receptor da interleucina 1 e o receptor Toll(TLR-2) do lipopolissacarídeo (LPS).
A IL-1 se fixa no seu receptor IL-1RI e sua proteína associada (proteína acessória
IL_1, IL-1 RacP) que possuem em suas porções intracitoplasmáticas um motivo TIR (Toll
/IL-1 receptor) que os permite interagir com a molécula adaptadora MyD88. Em seguida,
com enzimas tais como a kinase ativada pelo receptor IL –1 (IRAK) e o fator associado
ao receptor do TNF (TRAF –6). O LPS se fixa através da proteína de fixação do LPS
(LBP) ao ligante CD14 que está associado às membranas celulares. O complexo LPS –
LBP – CD14 se associa ao receptor Toll, TLR–2, o qual possui motivos TIR interagindo
com MyD88, IRAK e TRAF–6. Estas enzimas desencadeiam assim a ativação de fatores
de transcrição pró-inflamatórios (NFkB, ATF–2, AP–1) e a produção do ácido
aracdônico a partir dos fosfolipídeos de membrana.
3

MECANISMOS DE INDUÇÃO DA FEBRE
As citocinas (mas também o LPS) aumentam a temperatura do termostato
hipotalâmico. As citocinas circulantes entram em contato com o hipotálamo e, sem
penetrar no sistema nervoso central, ativam as células endoteliais dos órgãos
circunventriculares, que possuem receptores de membrana para as citocinas e os receptores
Toll, e produzem, desta maneira, grandes concentrações de prostaglandinas E2 (PGE2). As
PGE2 penetram no hipotálamo, ativam as células hipotalâmicas ao se fixarem em seus
receptores específicos EP3, induzem a produção do neurotransmissor monofosfato cíclico
de adenosina (AMPc) e o aumento da temperatura do termostato (fig. 3).
FEBRE
Infecção
Conservação e produção
de calor na periferia
Pirógenosexógenos
(LPS,enterotoxina
)
37oC
Ativação dos monócitos
e macrófagos
39oC
Aumento do Termostato
CentroTermorregulador do
Hipotálamo
AMPc
Pirógenos endógenos
PGE2
n
nEP3
IL-1, TNF, IL-6, IFN
Endotélio
hipotalâmico
Fig. 3: Mecanismo de aparecimento da febre no caso de uma infeção bacteriana.
Uma infeção por uma bactéria gram-negativa induz a liberação do lipopolissacarídeo
(LPS) bacteriano e sobretudo a ativação dos monócitos que produzem citocinas
pirogênicas. Estas citocinas (IL-1 /, TNF-, IL-6) agem sobre as células endoteliais do
hipotálamo e induzem a produção de PGE2, que se fixa aos receptores EP-3 das células
nervosas hipotalâmicas aumentando a temperatura do termostato hipotalâmico graças à
ação do AMPc. Os neurônios periféricos controlam as perdas e a produção de calor,
induzindo um estado febril até o nível fixado pelo hipotálamo.
Por sua vez, o hipotálamo ativa os neurônios periféricos que controlam a
vasoconstrição cutânea, o que permite conservar o calor, assim como a contração muscular
(calafrios), o que aumenta a produção de calor e eleva a temperatura sangüínea até o nível
fixado pelo termostato hipotalâmico.1,2,4

CONTROLE FISIOLÓGICO DA FEBRE E SISTEMAS ANTIPIRÉTICOS
Uma vez que a agressão seja dominada pela reação inflamatória e a resposta imune, a
temperatura do termostato hipotalâmico retorna ao seu nível basal e estimula a perda do
calor corporal graças à vasodilatação cutânea e a transpiração, permitindo um retorno da
temperatura corporal à normalidade. A informação de retorno à normalidade é transmitida
4
ao hipotálamo pela queda da concentração sangüínea das citocinas ou pela produção de
antagonistas das citocinas pirogênicas. Por outro lado, uma febre muito elevada (41 a 42 º
C) pode causar lesões ao sistema nervoso central e parece haver um sistema central de
regulação fisiológica que conta com a participação de mediadores como a arginina
vasopressina, o hormônio estimulante -melanocítico ou o citocromo p-450 que, dentre
outras funções, diminuem a produção das PGE2 e impedem, em geral, que a febre
ultrapasse um determinado patamar.

A FEBRE, UM DOS ELEMENTOS DA RESPOSTA INFLAMATÓRIA AGUDA
A febre constitui apenas uma das manifestações características da reação inflamatória
aguda, uma reação de defesa desenvolvida pelo organismo para lutar contra uma agressão
microbiana, física ou química e conservada ao longo da evolução.5 Esta reação é
orquestrada pela IL-1 / e pelo TNF- que exercem, além de seus efeitos pirogênicos,
numerosos efeitos pró-inflamatórios sobre diversas células e tecidos (pleiotróficos). Desta
forma, a IL-1 /, o TNF -  e também a IL-6 agem sobre o fígado causando a diminuição
da síntese de albumina e de transferrina, favorecendo a síntese de proteínas ditas da fase
aguda da inflamação, as quais possuem em sua maioria uma ação antiinfecciosa. A grande
característica da inflamação aguda é o extravasamento e a migração dos leucócitos para os
tecidos, que vão participar também da eliminação do agente agressor. Este fenômeno é
devido à ação da IL-1 / e do TNF- sobre o endotélio das vênulas e dos capilares, que
sofrem modificações pró-coagulantes e pró-aderentes (fig. 4).
Fig. 4: A reação inflamatória aguda orquestrada pela interleucina 1 e o fator de necrose
tumoral .
IL: interleucina; PGE: prostaglandina E; TNF: fator de necrose tumoral; ACTH
:hormônio adrenocorticotrópico; CRF: fator liberador do ACTH; CRP: proteína C.
reativa.

CONCLUSÃO
A reação febril foi conservada durante alguns 400 milhões de anos da evolução das
espécies e deve portanto conferir certas vantagens aos organismos. Estas vantagens foram
mostradas muito claramente entre os peixes e animais de sangue frio, os quais sobrevivem
melhor às infeções ao se elevar a temperatura dos seus corpos. Entre os mamíferos, os
5
benefícios parecem menos nítidos, mesmo que saibamos que os agentes infecciosos se
desenvolvem pior nas temperaturas mais elevadas e que certos mecanismos de defesa
imunitária como a proliferação dos linfócitos T e a produção de imunoglobulinas pelos
linfócitos B sejam mais eficazes à 39º C do que à 37º C . A febre permanece entretanto
como um sinal funcional relevante de grande valor semiológico e os progressos que seu
estudo tem permitido que ocorram, nos domínios da fisiologia celular e da inflamação,
deram a base da utilização terapêutica de novos medicamentos, como os anti-TNF-  ou os
antagonistas do receptor de IL-1, os quais são, sem dúvida, apenas os primeiros
representantes de uma nova classe de imunomoduladores.
Referências:
1 – Dinarello, C.A.; Cannon, J.G.; Wolff, S.M. New concepts on the pathogenesis of fever.
Rev. Infect. Dis. 1988; 10: 168-84.
2 – Saper, C.B. & Breder, C.D. The neurologic basis of fever. N. Engl. J. Med. 1994; 330:
1880-6.
3 – O’Neill ,L.A. & Dinarello, C.A. The IL-1 receptor/toll-like receptor superfamily:
crucial receptors for infection and host defense. Immunol. Today 2000; 21:206-9.
4 – Ushuikubi, F.; Segi, E; Sugimoto,Y. et al. Impaired febrile response in mice lacking the
prostaglandin E receptor subtype EP3. Nature 1998; 395: 281-4.
5 – Dinarello, C.A. Interleukin-1 and the pathogenesis of the acute-phase response. N.
Engl. J. Med. 1984; 311: 1413-8.
Tabela 1: Componentes da síndrome febril ( extraído de SAPER; N. Eng. J. Med.,
330(26): 1880-1886, 1994)
Endócrino e metabólico
Aumento na produção de glicocorticóides
Aumento na secreção do hormônio de crescimento
Aumento na secreção da aldosterona
Decréscimo na secreção da vasopressina
Decréscimo nos níveis plasmáticos de cátions bivalentes
Secreção de proteínas de fase aguda
Autonômico
Desvio do fluxo sangüíneo da pele para leitos profundos
Aumento da freqüência cardíaca
Decréscimo da sudorese
Comportamento
Calafrios
Procura por lugares aquecidos
Anorexia
Sonolência
Mal - estar
6
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