Gabriela Azevedo Campos Sales - Sapientia

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Gabriela Azevedo Campos Sales
A CONSTRUÇÃO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL:
uma abordagem jurídica
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Gabriela Azevedo Campos Sales
A CONSTRUÇÃO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL:
uma abordagem jurídica
Dissertação
apresentada
à
Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de MESTRE em
Direito Constitucional, sob a orientação do
Professor Doutor Luiz Alberto David Araujo.
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2012
BANCA EXAMINADORA
_______________________________
_______________________________
_______________________________
Ao Allison, por todas as escolhas que fez.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador Professor Doutor Luiz Alberto David Araujo, pelo paciente
incentivo ao longo do desenvolvimento deste trabalho.
À Professora Luciana de Toledo Temer Castelo Branco e ao Professor Álvaro
Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga, pelas considerações tecidas por ocasião do exame
de qualificação, essenciais para a conclusão desta dissertação.
À Bianca Galafassi, pela cuidadosa revisão.
Aos meus queridos Fred Diehl, Fred Normanha e Denise Vaz, pela disposição
e pelo apoio, sobretudo na fase final deste trabalho.
Ao João Lovo, pelas muitas ajudas durante o curso de Mestrado.
Aos meus avós, Jeslaine e José, aos meus pais, Jussara e Ademar, aos meus
tios, Janete e Acácio, por uma vida inteira.
À minha irmã, Juliana, por saber, melhor do ninguém, o que é ser irmã.
Ao Allison, pela presença.
SALES, Gabriela Azevedo Campos. A construção da assistência social no Brasil: uma
abordagem jurídica. São Paulo, 2012. 334 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de
Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
RESUMO
Esta dissertação analisa a evolução do tratamento jurídico conferido à assistência social
no Brasil, cujo reconhecimento como direito social somente se deu com a promulgação
da Constituição Federal de 1988. Procura-se responder às seguintes indagações: em que
medida a assistência social delineada antes da Constituição Federal de 1988 contribuiu
para seu pouco destaque como direito social após 1988? Em que medida o Brasil
avançou no tratamento jurídico da assistência social desde a promulgação da
Constituição Federal até a presente data? O tratamento dispensado à assistência social a
partir de 1988 é norteado pelas disposições contidas na Constituição Federal ou pelas
concepções e práticas que pautaram a assistência social antes de seu reconhecimento
como direito? A escolha do tema se justifica pela relevância que a assistência social –
mecanismo de proteção social não contributiva – tem na construção da segurança social
e na promoção de justiça social. A hipótese que guiou a elaboração da pesquisa é a de
que as normas e as práticas de assistência social preexistentes à Constituição Federal de
1988 obscureceram o potencial dessa política pública na superação de graves problemas
socioeconômicos do país. A pesquisa empreendida consistiu na análise de registros
históricos da assistência social no Ocidente e, de forma mais detida, no Brasil; no
exame das normas contidas na Constituição Federal que devem pautar a efetivação da
assistência social; no exame das normas jurídicas referentes ao tema promulgadas no
Brasil antes e depois da Constituição Federal de 1988; e na análise de decisões judiciais
versando sobre o benefício assistencial de prestação continuada previsto no artigo 203,
inciso V, da Constituição Federal. Os resultados da pesquisa indicam que muitas
normas e práticas de assistência social ainda são bastante influenciadas pelas
concepções anteriores a seu reconhecimento como direito social. Por outro lado, esses
mesmos resultados revelam que, embora ainda haja um longo caminho a percorrer, os
avanços na concepção e na gestão dessa política pública, à luz dos parâmetros contidos
na Constituição Federal, têm sido significativos.
Palavras-chave: Proteção social. Direitos sociais. Seguridade social. Assistência
social no Brasil.
SALES, Gabriela Azevedo Campos. The construction of social assistance in Brazil: a
juridical approach. São Paulo, 2012. 334 p. Masters Dissertation. Law School,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
ABSTRACT
This dissertation examines the evolution of juridical treatment granted to social
assistance in Brazil, whose recognition as a social right only occurred with the
enactment of the Federal Constitution of 1988. This study aims to answer the following
questions: to what extent has the concept of social assistance outlined before the Federal
Constitution of 1988 contributed to its little importance as a social right after 1988? To
what extent has Brazil improved the juridical treatment of social assistance since the
enactment of the Federal Constitution? Has the treatment granted to social assistance
since 1988 been guided by the constitutional rules or by conceptions and practices
regarding social assistance from before its recognition as a right? The theme was chosen
due to the relevance of social assistance – a non-contributory social protection
mechanism– to the construction of social security and promotion of social justice. The
hypothesis that guided the development of the research is based on the idea that rules
and practices preexisting to the Federal Constitution of 1988 have shadowed the
potential of this public policy in overcoming serious socioeconomic problems in Brazil.
The research consisted of the analysis of historical records concerning social assistance
in the West and, especially, in Brazil; of the analysis of constitutional standards that
should guide the implementation of social assistance; of the examination of legal rules
concerning the subject before and after the Federal Constitution of 1988; and of the
analysis of judicial rulings related to the benefit of continued provision established by
the Federal Constitution, article 203, n. V. The conclusions of the research show that
many rules and practices of social assistance are still influenced by conceptions from
before its recognition as a social right. On the other hand, these results also reveal that,
despite the long way to go through, advances in the conception and management of this
public policy, according to the constitutional standards, are significant.
Keywords: Social Protection. Social Rights. Social Security. Social Assistance in
Brazil.
RELAÇÃO DE SIGLAS
ADCT
–
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ADI
–
Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADPF
–
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
BPC
–
Benefício de Prestação Continuada
CASMU
–
Comissão de Assistência Social do Município
CBIA
–
Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência
CC
–
Código Civil
CEAM
–
Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares
Centro-Pop
–
Centro de Referência Especializado para População em Situação
de Rua
CF
–
Constituição Federal
CIB
–
Comissão Intergestores Bipartite
CIT
–
Comissão Intergestores Tripartite
CNPS
–
Conselho Nacional de Previdência Social
CNSS
–
Conselho Nacional de Serviço Social
CRAS
–
Centros de Referência de Assistência Social
CREAS
–
Centros de Referência Especializados de Assistência Social
CNAS
–
Conselho Nacional de Assistência Social
CONAB
–
Companhia Nacional de Abastecimento
DSS
–
Divisão de Serviço Social
FINSOCIAL
–
Fundo de Investimento Social
FNAS
–
Fundo Nacional de Assistência Social
FUNAC
–
Fundo Nacional de Ação Comunitária
FUNRURAL –
Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural
IGD
–
Índice de Gestão Descentralizada
INAMPS
–
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INPS
–
Instituto Nacional de Previdência Social
INSS
–
Instituto Nacional do Seguro Social
IPEA
–
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPLAN
–
Instituto de Planejamento de Gestão Governamental
LBA
–
Legião Brasileira de Assistência
LOAS
–
Lei Orgânica de Assistência Social
MDS
–
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
NEPPOS
–
Núcleo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais
NESP
–
Núcleo de Estudos de Saúde Pública
NOB
–
Norma Operacional Básica
NOB/SUAS
–
Norma Operacional Básica da Assistência Social
OMS
–
Organização Mundial da Saúde
OIT
–
Organização Internacional do Trabalho
ONU
–
Organização das Nações Unidas
PAEFI
–
Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e
Indivíduos
PAIF
–
Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família
PETI
–
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PNAA
–
Programa Nacional de Acesso à Alimentação
PNAS
–
Política Nacional de Assistência Social
PND
–
Plano Nacional de Desenvolvimento
PND-NR
–
Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República
RGPS
–
Regime Geral de Previdência Social
RMV
–
Renda Mensal Vitalícia
SINPAS
–
Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social
SEBES
–
Secretaria do Bem-Estar Social
SNAS
–
Secretaria Nacional de Assistência Social
STF
–
Supremo Tribunal Federal
SUAS
–
Sistema Único de Assistência Social
SUS
–
Sistema Único de Saúde
TNU
–
Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais
Federais
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 13
1
2
3
4
Delimitação do tema ................................................................................................ 13
Método ..................................................................................................................... 15
Estrutura do trabalho................................................................................................ 16
Alguns cuidados na elaboração deste trabalho ........................................................ 17
1 ASSISTÊNCIA SOCIAL: ANTECEDENTES HISTÓRICOS NO
OCIDENTE .............................................................................................................. 19
1.1
1.2
1.3
1.4
1.5
1.6
1.7
1.8
Considerações iniciais sobre proteção social ........................................................... 19
A ausência de práticas institucionalizadas de proteção social ................................. 20
Surgimento e evolução da proteção social............................................................... 24
A evolução do modelo britânico de proteção social ................................................ 25
O modelo francês de proteção social ....................................................................... 41
O modelo germânico de proteção social .................................................................. 48
O modelo norte-americano de proteção social ........................................................ 51
Outros registros históricos ....................................................................................... 54
1.8.1 Encíclica Rerum Novarum (1891) ............................................................... 54
1.8.2 Constituição Mexicana (1917) ..................................................................... 56
1.8.3 Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)................................... 57
1.8.4 Convenção n. 102 da Organização Internacional do Trabalho sobre
norma mínima para seguridade social (1952) .............................................. 59
1.9 Conclusões ............................................................................................................... 63
2 A ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL ANTES DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988 ................................................................................................. 65
2.1
2.2
2.3
2.4
2.5
Introdução ................................................................................................................ 65
Primeiros registros do Brasil-Colônia ..................................................................... 65
A assistência no Brasil Imperial .............................................................................. 69
A assistência na República Velha ............................................................................ 72
A assistência social do final da República Velha até o início do regime militar..... 77
2.5.1 A década de 1930: o início da filantropia regulamentada............................ 77
2.5.2 Ainda a década de 1930: o início da disciplina infraconstitucional da
assistência social .......................................................................................... 79
2.5.3 A década de 1940: o surgimento da Legião Brasileira de Assistência –
LBA.............................................................................................................. 82
2.5.4 Ainda a década de 1940: assistência social e caridade cada vez mais
próximas ....................................................................................................... 85
2.5.5 A década de 1950: a multiplicação de órgãos de assistência social e de
incentivos fiscais .......................................................................................... 86
2.5.6 A década de 1960 até 1964: a ampliação dos incentivos fiscais e o
reforço ao papel cartorial do CNSS ............................................................. 89
2.6 A assistência social durante o regime militar .......................................................... 91
2.6.1 Aspectos gerais ............................................................................................ 91
2.6.2 A Carta Constitucional de 1967 e a Emenda n. 1/1969 ............................... 92
2.6.3 A legislação infraconstitucional: isolamento do CNSS, crescimento da
LBA e manutenção de benefícios fiscais ..................................................... 93
2.6.4 A assistência social na década de 1970........................................................ 98
2.6.5 Os últimos anos do regime militar ............................................................. 102
2.7 O período pré-Constituição Federal de 1988 ......................................................... 103
2.8 Uma síntese da assistência social até a Constituição Federal de 1988 .................. 105
3 DIRETRIZES DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988 ............................................................................................... 109
3.1 Considerações iniciais ........................................................................................... 109
3.2 Estado de Bem-Estar.............................................................................................. 110
3.3 Cidadania, dignidade humana e valor social do trabalho como fundamentos da
República Federativa do Brasil .............................................................................. 113
3.3.1 Cidadania ................................................................................................... 113
3.3.1.1 Cidadania como direito a ter direitos ........................................... 115
3.3.1.2 Cidadania como conjunto de direitos .......................................... 117
3.3.2 Dignidade da pessoa humana ..................................................................... 120
3.3.3 Valor social do trabalho ............................................................................. 122
3.4 Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil ................................. 124
3.5 Objetivos da Ordem Social .................................................................................... 126
3.5.1 Bem-estar social na Constituição Federal de 1988 .................................... 127
3.5.2 Justiça social na Constituição Federal de 1988.......................................... 128
3.6 O direito social à segurança e à assistência aos desamparados ............................. 132
3.6.1 O direito social à segurança ....................................................................... 132
3.6.2 O direito social à assistência aos desamparados ........................................ 135
3.7 Competências constitucionais em matéria de assistência social............................ 137
3.8 Seguridade Social .................................................................................................. 140
3.8.1 Conceito de seguridade social tendo o atendimento às necessidades
sociais como eixo estruturante ................................................................... 141
3.8.2 Disposições gerais relativas à seguridade social ........................................ 149
3.8.2.1 Universalidade da cobertura e do atendimento ............................ 149
3.8.2.2 Uniformidade e equivalência de benefícios e serviços às
populações urbanas e rurais ......................................................... 152
3.8.2.3 Distributividade e seletividade na prestação dos benefícios e
dos serviços .................................................................................. 153
3.8.2.4 Irredutibilidade do valor dos benefícios ...................................... 156
3.8.2.5 Equidade na forma de participação no custeio ............................ 156
3.8.2.6 Diversidade da base de financiamento ........................................ 157
3.8.2.7 Caráter democrático e descentralizado da administração,
mediante gestão quadripartite, com participação dos
trabalhadores, empregadores, aposentados e Governo nos
órgãos colegiados......................................................................... 157
3.9 Comentários aos artigos 203 e 204 da Constituição Federal ................................. 158
3.9.1 A definição de assistência social à luz da Constituição Federal ................ 158
3.9.2 As espécies de normas veiculadas no artigo 203 da Constituição Federal .. 162
3.9.3 O artigo 203 da Constituição Federal e a identificação dos destinatários
da assistência social ................................................................................... 163
3.9.3.1 Estrangeiros como destinatários da assistência social ................. 169
3.9.4 O caráter não contributivo da assistência social ........................................ 173
3.9.5 A subsidiariedade da assistência social: um princípio inadequado ........... 174
3.9.6 O Artigo 204 da Constituição Federal ....................................................... 176
4 A DISCIPLINA INFRACONSTITUCIONAL DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
NA VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............................ 179
4.1 O período de 1988 a 1993 ...................................................................................... 179
4.2 A Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS ..................................................... 182
4.2.1 Observações iniciais................................................................................... 182
4.2.2 Definições e objetivos ................................................................................ 183
4.2.3 Princípios e diretrizes ................................................................................. 188
4.2.4 Organização e gestão ................................................................................. 190
4.2.4.1 A gestão das ações na área da assistência social ......................... 190
4.2.4.2 Proteção social, defesa de direitos e vigilância socioassistencial
na LOAS ...................................................................................... 191
4.2.4.3 As competências dos entes federativos na área da assistência
social ............................................................................................ 194
4.2.4.4 Entidades e organizações da assistência social ............................ 197
4.2.4.5 As instâncias deliberativas do SUAS .......................................... 197
4.2.4.5.1 O Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS ... 198
4.2.4.5.2 As Conferências Nacionais de Assistência Social ...... 201
4.2.5 Benefícios, serviços, programas e projetos de assistência social............... 205
4.2.5.1 Benefícios da assistência social ................................................... 206
4.2.5.1.1 Benefício de prestação continuada .............................. 206
4.2.5.1.1.1 Destinatários do benefício assistencial: idosos e
pessoas com deficiência ............................................ 207
4.2.5.1.1.2 A aferição da necessidade financeira como
requisito para concessão do benefício assistencial
de prestação continuada ............................................ 211
4.2.5.1.1.3 A definição de família para efeito de concessão do
benefício assistencial de prestação continuada ......... 216
4.2.5.1.1.4 Uma alternativa aos critérios previstos no artigo
20, § § 1º e 2º, da LOAS ........................................... 222
4.2.5.1.1.5 Manutenção, suspensão e cessação do benefício
assistencial de prestação continuada ......................... 223
4.2.5.1.2 Benefícios eventuais.................................................... 225
4.2.5.2 Serviços assistenciais ................................................................... 226
4.2.5.3 Programas de assistência social ................................................... 227
4.3
4.4
4.5
4.6
4.2.5.3.1 Programas de assistência social desenvolvidos entre
a promulgação da LOAS e a aprovação da
PNAS/2004 ................................................................. 227
4.2.5.3.2 Programas de transferência de renda paralelos à
política de assistência social........................................ 229
4.2.5.3.3 Uma avaliação dos programas de assistência social
antes da PNAS/2004 ................................................... 230
4.2.5.3.4 Os programas de assistência social na atual redação
da LOAS...................................................................... 232
4.2.5.4 Projetos de enfrentamento da pobreza ......................................... 233
4.2.6 Financiamento da assistência social........................................................... 233
A Medida Provisória n. 813/1995 .......................................................................... 236
A Política Nacional de Assistência Social de 1998 e as Normas Operacionais
Básicas de 1997 e 1998.......................................................................................... 239
A Política Nacional de Assistência Social de 2004 ............................................... 241
O Sistema Único de Assistência Social – SUAS ................................................... 245
4.6.1 Aspectos gerais .......................................................................................... 245
4.6.2 A gestão do SUAS e as competências dos entes federativos ..................... 247
4.6.2.1 Entre cooperação e subsidiariedade: as estratégias da
descentralização ........................................................................... 251
4.6.2.2 Os instrumentos de gestão da PNAS/2004 e do SUAS ............... 251
4.6.3 As instâncias de articulação, pactuação e deliberação ............................... 252
4.6.4 O financiamento da assistência social........................................................ 253
5 ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS SOBRE A CONCESSÃO DO
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA ................ 256
5.1 Considerações iniciais ........................................................................................... 256
5.2 Delimitação da pesquisa ........................................................................................ 257
5.3 Temas destacados .................................................................................................. 260
5.3.1 Deficiência, incapacidade laborativa e incapacidade para a vida
independente .............................................................................................. 260
5.3.2 Pessoas com deficiência menores de 16 anos ............................................ 263
5.3.3 Definição de família para aferição da renda .............................................. 265
5.3.4 Critério objetivo de renda .......................................................................... 271
5.3.5 Aplicação do Estatuto do Idoso, artigo 34, parágrafo único ...................... 275
5.3.6 As referências à miserabilidade ................................................................. 288
5.4 Crítica aos acórdãos ............................................................................................... 290
CONCLUSÕES ........................................................................................................... 294
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 302
Legislação ..................................................................................................................... 313
Sites Acessados ............................................................................................................. 323
Decisões Judiciais ......................................................................................................... 325
INTRODUÇÃO
1
Delimitação do tema
A Constituição Federal de 1988 consagra em seu artigo 6º o direito social à
“assistência aos desamparados”. Mais adiante, no Título VIII – Da Ordem Social,
Capítulo II – Da Seguridade Social, disciplina a assistência social em uma seção
própria, ao lado da saúde e da previdência social. Juntas, saúde, previdência e
assistência social compõem o sistema de seguridade social, que busca proteger
indivíduos e grupos contra diversas situações de necessidade. A seguridade social, por
sua vez, é abarcada pela noção mais ampla de proteção social.
Ao prever uma disciplina jurídica da assistência social, o constituinte trouxe
para o campo dos direitos um tema historicamente atrelado à filantropia e à caridade ou
benemerência1. Transformou em dever estatal o que historicamente era concebido como
benesse, criando, dessa maneira, um compromisso com o atendimento das necessidades
básicas de todos os membros da sociedade.
Compreender como um direito fundamental a assistência social –
historicamente alocada entre o favor e o dever – não seria simples, como também não
seria simples o desenvolvimento de políticas públicas2 que concretizassem esse novo
direito. De fato, foi o que se percebeu nos anos seguintes à promulgação da
Constituição Federal. A difícil aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social, em
1993, foi uma das demonstrações mais claras disso. Outro sintoma dessa dificuldade é a
constatação de que muitas obras dedicadas ao estudo do Direito Constitucional e à
1
Emprega-se a palavra filantropia para designar o sentimento de “altruísmo e a comiseração, que
levam a um voluntarismo que não se realiza no estatuto jurídico, mas no caráter da relação”
(MESTRINER, 2011, p. 14). As palavras caridade e benemerência são empregadas como expressões
sinônimas para designar a “ação do dom, da bondade, que se concretiza pela ajuda ao outro”
(MESTRINER, 2011, p. 14), pautadas por sentimentos religiosos.
2
Adota-se aqui o conceito de política pública formulado por Bucci (2006, p. 39), a saber: “programa de
ação governamental que resulta de um processo ou um conjunto de processos juridicamente regulados –
processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo
legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do
Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente
determinados”.
14
Seguridade Social reservam espaço reduzido ao tema da assistência social e nem sempre
vão além da reprodução do texto constitucional3.
Em contraste, os debates sobre direitos sociais como saúde e educação
aparecem com frequência e profundidade crescentes. Importantes trabalhos acadêmicos
tratam de temas como a extensão desses direitos e os limites à sua justiciabilidade,
havendo ainda rica jurisprudência a respeito. A assistência social não conta com a
mesma produção jurídica, tampouco com a mesma pluralidade de abordagens.
Três indagações importantes – e entrelaçadas – emergem dessas observações
iniciais. A primeira: em que medida a assistência social delineada antes da Constituição
Federal de 1988 contribuiu para seu pouco destaque como direito social após 1988? A
segunda: em que medida o Brasil avançou no tratamento jurídico4 da assistência social
desde a promulgação da Constituição Federal até a presente data? A terceira: o
tratamento dispensado à assistência social a partir de 1988 foi norteado pelas
disposições contidas na Constituição Federal ou pelas concepções e práticas que
pautaram a assistência social antes de seu reconhecimento como direito social?
Para responder a essas perguntas, importa, antes de tudo, compreender como a
assistência social surgiu como prestação estatal, como se deu sua positivação no
ordenamento jurídico e qual foi a evolução subsequente. Ao traçar essa evolução,
pretende-se investigar a leitura que o Estado brasileiro fez e faz da assistência social.
Para tanto, é imprescindível apresentar um estudo sobre os antecedentes do direito à
assistência social. Justifica-se assim a existência de dois capítulos: o primeiro, mais
genérico, voltado às matrizes da assistência no Ocidente; o segundo, mais específico,
destinado ao surgimento da assistência social no Brasil.
O passo seguinte é analisar a conformação da assistência social na Constituição
Federal, o que não pode se limitar ao estudo dos dispositivos especificamente voltados a
3
No mesmo sentido, tem-se a crítica de Stuchi (2010, p. 148): “em razão da arraigada concepção da
assistência social como filantropia e do pouco avanço na produção jurídica sobre a área, observa-se que o
pensamento jurídico não assimilou a novidade. O direito constitucional e o direito da seguridade social
lhe deram pouco ou nenhum espaço nas páginas dos seus manuais. Geralmente reproduzem o que já está
escrito na Constituição e na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) [...]”.
4
Ressalta-se que enfoques jurídicos sobre assistência social são escassos, o que não se repete em outras
áreas de conhecimento. Há interessante produção sobre a assistência social, sobretudo elaborada por
estudiosos e profissionais do Serviço Social. Aliás, deve-se à mobilização dos profissionais do Serviço
Social, ao lado dos movimentos sociais e de outros trabalhadores da área de assistência social, boa parte
da evolução da assistência social no país, como a aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social –
LOAS, a elaboração da atual Política Nacional de Assistência Social – PNAS e a criação do Sistema
único de Assistência Social – SUAS (STUCHI, 2010, p. 148).
15
essa matéria, mas deve se estender a todas as normas que, de alguma forma, delineiam o
referido direito. Com isso, pretende-se identificar os vetores constitucionais da
assistência social no Brasil.
Os subsídios obtidos pelo estudo desses aspectos permitem uma análise crítica
da efetivação desse direito social a partir de 1988.
Interessa, nesse ponto, esclarecer em que medida o Poder Público retomou
formas tradicionais de assistência – nem sempre compatíveis com a Constituição
Federal – e em que medida efetivamente concretizou os ditames constitucionais. Para
tanto, examina-se a disciplina infraconstitucional da assistência social a partir de 1988,
com foco na legislação federal, e a maneira como foi efetivada a garantia contida no
artigo 203, inciso V, da Constituição Federal – dispositivo que inaugura um dos maiores
programas de transferência de renda do país e que assegura o direito subjetivo a uma
prestação assistencial.
2
Método
Visando compreender o surgimento e a evolução da assistência social nos
moldes indicados no tópico anterior, a pesquisa foi desenvolvida em três etapas.
A primeira delas consistiu no estudo da evolução histórica da assistência social
no mundo ocidental, seguido do exame do histórico brasileiro. Prestigiou-se nessa etapa
da investigação a pesquisa bibliográfica e o estudo de normas jurídicas pertinentes à
matéria.
Para o estudo da assistência social brasileira após a promulgação da
Constituição Federal de 1988, recorreu-se à pesquisa bibliográfica, ao exame de normas
constitucionais e infraconstitucionais produzidas na esfera federal, bem como à análise
de decisões do Supremo Tribunal Federal.
A terceira e última etapa da pesquisa – também concernente à assistência social
após a Constituição Federal de 1988 – consistiu na coleta e análise de decisões judiciais
da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais – TNU.
16
3
Estrutura do trabalho
A pesquisa realizada resultou na elaboração de cinco capítulos, além desta
introdução e da conclusão.
O Capítulo 1 é dedicado ao estudo da evolução das práticas socioassistenciais
no mundo ocidental. Interessa compreender como surgiram as medidas de proteção
social e, dentro desse conjunto, como surgiu a assistência social. Além de identificar as
características
herdadas
das
primeiras
práticas
socioassistenciais,
pretende-se
demonstrar o quanto a reflexão atual sobre assistência social é marcada pelos eventos
que ensejaram as primeiras medidas de assistência, muitos deles anteriores à
consolidação do capitalismo industrial.
No Capítulo 25, busca-se traçar um histórico das primeiras formas de
atendimento às situações de necessidade social6 no Brasil, sobretudo em razão da
pobreza e do abandono. Ainda nesse capítulo, apresenta-se um levantamento das
normas constitucionais e infraconstitucionais sobre assistência social no Brasil até a
Constituição Federal de 1988. Com isso, conhece-se o terreno encontrado pela
Constituição Federal para finalmente positivar a assistência social como um direito e
identificam-se os fatores históricos que dificultaram a implementação desse direito sob
a nova ordem constitucional.
5
Minhas primeiras pesquisas sobre assistência social em todas as constituições brasileiras e na Lei
Orgânica de Assistência Social (Lei n. 8.742/93) resultaram na elaboração do trabalho A assistência
social na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Assistência Social, que foi submetido ao Conselho
Editorial da Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino e aceito para
publicação. A previsão é de que o artigo integre a edição de número 53 da Revista, mas a publicação não
ocorreu até a conclusão desta dissertação. Algumas das ideias apresentadas nesse artigo – incluindo o
significado do direito à segurança previsto no artigo 6º da Constituição Federal, a importância do conceito
de necessidade social formulado por Almansa Pastor (1991) para a compreensão da seguridade social e a
afirmação de que o critério da necessidade não se resume à necessidade de renda – e os registros sobre a
evolução da assistência social no ordenamento jurídico brasileiro e na jurisprudência foram desenvolvidos
e aprofundados nesta dissertação, levando em conta inclusive recentes alterações legislativas que
modificaram em muito a Lei Orgânica da Assistência Social. Por outro lado, algumas afirmações foram
revistas, sobretudo no que concerne à subsidiariedade em matéria de assistência social e no emprego dos
termos necessidades humanas e necessidades sociais como sinônimos. Além disso, no artigo A
construção da assistência social no Brasil: notas sobre as Leis n. 12.435/11 e 12.470/11, publicado em
outubro de 2011, discorri sobre o conteúdo da Lei Orgânica de Assistência Social antes e depois da
promulgação das leis indicadas no título do artigo, buscando identificar e contextualizar as principais
inovações e, ao mesmo tempo, ressaltar pontos que poderiam ter sido aprimorados.
6
Na esteira da terminologia adotada por Pereira (2006, p. 19), os termos necessidades humanas e
necessidades sociais são empregados como expressões equivalentes, pois, nas palavras da autora, “não se
concebe o aspecto humano dissociado do social”.
17
A seguir, no Capítulo 3, estuda-se o sistema de assistência social delineado na
Constituição Federal de 1988, ao que se segue a análise da construção da assistência
social no plano infraconstitucional contida no Capítulo 4. Nesses dois capítulos, o foco
de atenções está centrado no protagonismo do Poder Público em matéria de assistência
social – uma das novidades contidas na Constituição Federal de 1988 – e, dadas as
limitações impostas pela pesquisa, concentra-se a análise nas normas e ações
desenvolvidas na esfera federal.
O Capítulo 5 é voltado para o estudo acerca de decisões judiciais tratando da
concessão do benefício assistencial de prestação continuada. Com isso, será possível
verificar de que a maneira a TNU vem se pronunciando a respeito da extensão do direito
à assistência social.
As conclusões do trabalho são apresentadas com o propósito de retomar
algumas das considerações apresentadas e, com isso, oferecer resposta às três
indagações suscitadas no tópico 1 desta Introdução.
4
Alguns cuidados na elaboração deste trabalho
Na elaboração da presente pesquisa, procurou-se tomar dois cuidados. O
primeiro foi o de não simplificar políticas de assistência social a simples mecanismos
de manutenção do status quo, preocupadas apenas em prover aos cidadãos o mínimo
para atenuar conflitos sociais. O segundo, exatamente oposto, foi de não enxergar os
avanços em matéria social como fruto de lutas intransigentes da população. Em suma:
evitou-se qualquer abordagem que negasse o caráter contraditório e conflituoso da
assistência social.
Discorrer sobre assistência social, defendendo, inclusive, uma ampliação ou
mudança de perspectiva, não é tarefa simples, tampouco isenta de contradições. A
efetivação de direitos sociais é sempre conflituosa, por envolver altos investimentos – e,
por conseguinte, implicar significativa alocação de recursos nas políticas sociais
correspondentes a esses direitos – e reavivar o embate em torno do que deve ou não
deve ser assegurado pelo Estado. Mesmo quando estabelecido um conjunto claro e
18
técnico de necessidades a serem atendidas, não se pode afastar a controvérsia sobre o
quanto cabe ao Estado prover e em que condições deve fazê-lo (ABRANCHES, 1987,
p. 13).
Portanto, sem a pretensão de encontrar um modelo ideal de assistência social
para o Brasil ou mesmo de superar as contradições que permeiam essa política, este
trabalho pretende contribuir para a discussão do tema, registrando o processo – ainda
em curso – de efetivação do direito à assistência social e apontando aspectos que
carecem de maior reflexão por parte dos operadores do Direito.
1
ASSISTÊNCIA SOCIAL: ANTECEDENTES HISTÓRICOS NO
OCIDENTE
1.1
Considerações iniciais sobre proteção social
Muitas experiências convergiram para formar o campo de conhecimento que
hoje corresponde à seguridade social, da qual a assistência social faz parte. As
experiências vão desde a provisão de mínimos de subsistência – por vezes limitados ao
estritamente necessário para a sobrevivência física de indivíduos – até políticas de
caráter universal, pautadas por princípios de igualdade e justiça social. Essas práticas
podem ser reunidas sob o signo amplo da proteção social7 que, na lição de Dictamen y
Asesoría (1996 apud SANTOS, 2003, p. 139), pode ser subdivida em três fases: a
proteção dos pobres, a proteção dos trabalhadores e a proteção dos cidadãos.
Muitas das práticas que constituíram o embrião da assistência social foram
superadas há muito tempo8. Outras se fazem presentes há séculos, apenas com algumas
mudanças, a exemplo do pagamento de complementações da renda. Por fim, persistem
alguns traços da forma original de a sociedade lidar com as situações de necessidade de
seus membros, especialmente as situações de pobreza. O que permite identificar um
núcleo comum a todas essas experiências é o fato de consistirem em respostas dadas
pelo Poder Público, isoladamente ou em conjunto com outras instituições, às situações
de necessidade social.
7
Em relação ao sentido atual de proteção social, adota-se a definição apresentada por Pereira (2006, p.
16, nota de rodapé 2), a saber: “Proteção social é um conceito amplo que, desde meados do século XX,
engloba a seguridade social (ou segurança social), o asseguramento ou garantias à seguridade e políticas
sociais. A primeira constitui um sistema programático de segurança contra riscos, circunstâncias, perdas e
danos sociais cujas ocorrências afetam negativamente as condições de vida dos cidadãos. O
asseguramento identifica-se com as regulamentações que garantem ao cidadão a seguridade social como
direito. E as políticas sociais constituem uma espécie de política pública que visa concretizar o direito à
seguridade social, por meio de um conjunto de medidas, instituições, profissões, benefícios, serviços e
recursos programáticos e financeiros. Neste sentido, a proteção social não é sinônimo de tutela nem
deverá estar sujeita a arbitrariedades, assim como a política social – parte integrante do amplo conceito de
proteção – poderá também ser denominada de política de proteção social”.
8
Analisadas criticamente, nem todas essas experiências fazem jus ao adjetivo “protetivas”, porque não
foram concebidas para resguardo ou favorecimento de pessoas em situação de fragilidade, mas sim para
manter a ordem e preservar interesses econômicos.
20
Adiantando em parte o conteúdo dos tópicos que se seguem, chama-se a
atenção para o fato de que muitos vetores de atuação da assistência perduram, tais
como: a prevalência das estratégias centradas na família; a atenção aos casos de
incapacidade laborativa; o apelo à caridade; o domicílio ou a naturalidade como critério
central para o recebimento de assistência; a proximidade entre a instituição que presta
assistência e seu destinatário; a atribuição da assistência a poderes locais.
O escopo desse primeiro capítulo é identificar as matrizes da proteção social no
Ocidente, traçando um histórico da assistência social e destacando as características que
se preservaram ao longo de séculos. Para tanto, é inevitável abordar ou, pelo menos,
mencionar informações relativas à história da previdência social e da assistência à
saúde. A razão é simples: a gênese desses sistemas é una; a diferenciação entre eles só
ocorreu com o desenvolvimento das sociedades industriais, sobretudo no século XX.
O estudo parte do período de ausência de práticas institucionalizadas de
proteção social. A seguir, são identificadas as primeiras formas de proteção social. A
análise se subdivide posteriormente entre os modelos que tiveram maior influência
sobre os ordenamentos jurídicos contemporâneos e que, de forma mais específica,
impactaram a seguridade social no Brasil – os modelos desenvolvidos na GrãBretanha9, na França, na Alemanha e nos Estados Unidos10.
1.2
A ausência de práticas institucionalizadas de proteção social
Para compreender o que se encontra sob o espectro da proteção social é
importante conhecer a distinção entre práticas societais e práticas socioassistenciais.
9
O estudo mais detido da Grã-Bretanha se justifica por contar com uma antiga e extensa legislação em
matéria de assistência à pobreza, além de ser o país de onde se originou a obra mais importante para a
seguridade social contemporânea – o Plano Beveridge. O interesse pela assistência social francesa decorre
da influência que essa experiência teve no início da assistência social brasileira, bastante clara no
pensamento de Ataulpho Nápoles de Paiva, e pelo alto nível de proteção social ainda hoje dispensado
naquele país, como bem lembra Carro (2008, p. 31). O estudo do sistema alemão torna-se relevante por
ter sido pioneiro na implantação de sistemas de proteção social obrigatórios (ROSANVALLON, 1984,
p. 117). Quanto aos Estados Unidos da América, o registro histórico se justifica pela influência que o
exemplo norte-americano exerceu na condução da política brasileira de assistência social a partir do início
do século XX, sobretudo pelo prestígio conferido ao papel da iniciativa privada para esse mister.
10
A análise dessas matrizes não se estende até os dias de hoje, limitando-se à primeira metade do século
XX. A partir de então, o país passou a contar com seus mecanismos de assistência, cujo desenvolvimento
segue um caminho próprio, inclusive em seus aspectos negativos e excludentes.
21
Castel (2010, p. 48) ensina que todas as formas de existência coletiva, com o
consequente estabelecimento de relações humanas, podem ser qualificadas como
societais. Como prática societal, a ajuda mútua esteve presente desde o início da
sociedade humana. Aliás, não há como deixar de compreender os grupamentos humanos
sem a ideia de apoio recíproco.
Mas é o desenvolvimento de relações específicas que permite falar em práticas
sociais ou socioassistenciais (CASTEL, 2010, p. 48). A especificidade em questão
consiste na organização e assunção de responsabilidade da comunidade pela
sobrevivência de pessoas consideradas mais vulneráveis, a exemplo de órfãos, viúvas,
enfermos e idosos11. Portanto, três elementos centrais caracterizam as práticas sociais ou
socioassistenciais: a organização, a atribuição de responsabilidades e a identificação de
pessoas que, em comparação ao restante do grupo social, estão em situação de
desvantagem.
Com base nessa distinção, tem-se que as relações societais predominaram até o
final da Alta Idade Média, no século XI. Antes disso, há registros esparsos de práticas
organizadas de assistência, como auxílios a órfãos, distribuição de alimentos
(FERREIRA, 2007, p. 95) e associações de ajuda mútua na Grécia – denominadas
eranói – e em Roma – as collegia ou sodalitia, (HORVATH JÚNIOR, 2008, p. 22).
Também em Roma impunha-se à família, sob a administração e controle do pater
familias, “a obrigação de prestar assistência aos servos e clientes, em uma forma de
associação mediante contribuição de seus membros, de modo a ter condições de ajudar
os mais necessitados” (HORVATH JÚNIOR, 2008, p. 23).
11
As religiões foram essenciais na passagem de práticas societais para práticas socioassistenciais. Seja
porque líderes religiosos assumiram o papel de protetores de pessoas desamparadas, seja porque a
benevolência e a caridade surgiram como um dever religioso, o fato é que a crença religiosa impulsionou
a caridade. Friedlander (1973, p. 08-09) ressalta a conexão entre fé e caridade, ainda comum: “La
devoción religiosa se convirtió en el incentivo más poderoso para la benevolencia y la caridad.
Encontramos este motivo en las religiones antiguas, en la filosofía védica – un libro hindú de fórmulas
contra los demonios –, en los códices asirios, babilónicos y egipcios, en las costumbres griegas y
romanas; particularmente, en las enseñanzas religiosas judaicas y cristianas. La caridad era
fundamentalmente motivada por el deseo de recibir la gracia de Dios u obtener los méritos de las buenas
obras para la vida eterna; sin embargo, un sincero sentimiento de compasión hacia las viudas y los
huérfanos puede muy bien haber sido la razón de que se hayan satisfecho las demandas de las iglesias
para la ayuda a los pobres. El aliviar el sufrimiento de los desventurados se convirtió, según los conceptos
judío y cristiano, en un importante deber religioso. [...] Con la creciente influencia de la iglesia y la
aceptación del cristianismo como religión de estado, se establecieron instituciones en los monasterios,
instituciones que servían como orfelinatos, como asilos para los ancianos, para los enfermos y los
inválidos, así como refugio para la gente sin hogar, con lo cual se continuó la tradición de las xenodochia
(casa de huéspedes) griegas”.
22
Até o final da Idade Média tampouco havia ganhado força a disciplina da
mendicância, prática que se desenvolveria com vigor juntamente com as primeiras
medidas de atendimento às pessoas em situação de pobreza. Um exemplo isolado em
sentido contrário ao dessa afirmação remonta ao ano 800, quando Carlos Magno proibiu
a mendicância e estabeleceu multas aos que dessem esmolas aos mendigos aptos para o
trabalho. Com isso, visava manter trabalhadores rurais nas propriedades e evitar a
criminalidade (FRIEDLANDER, 1973, p. 09-10).
Horvath Júnior (2008, p. 22) anota a existência, durante a Idade Média na
Germânia, de associações “que tinham como finalidade conceder assistência a seus
associados em caso de doença e prover as despesas funerais de seus membros”. Essas
associações eram as chamadas guildas – nada mais do que as corporações de ofício – e
existiram também na França, onde duraram até 1790 (POLANYI, 1980, p. 83).
Passando aos séculos XII e XIII, pode-se dizer que houve um esboço de
sistematização, mediante categorização dos assistidos, organização de instituições de
assistência laicas e religiosas, bem como delimitação de bases territoriais para prestação
dessa assistência (CASTEL, 2010, p. 95).
No século XIV essas atividades começaram a se desenvolver, tanto em escala
quanto em grau de sistematização. A partir do final do século XVIII e mais
intensamente no século XIX, a Revolução Industrial impôs o aprimoramento de
mecanismos de proteção às necessidades humanas, sobretudo pela via da previdência
social12.
12
Discorda-se da afirmação de Horvath Júnior (2008, p. 23), o qual, tratando da cronologia da
Previdência Social, sustenta que “até o século XVII, essa proteção era feita pela família, por vizinhos,
instituições religiosas, pelo Município, pelos companheiros de trabalho, por meio de associações
profissionais, pelos proprietários da terra ou pelas corporações de ofício. Somente no final do século XIX,
com a segunda onda da revolução industrial, é que as nações começaram a desenvolver proteção aos
trabalhadores, que, paulatinamente, foi sendo estendida aos demais integrantes da sociedade”. Tal
discordância se deve pela percepção de que, mesmo de modo canhestro, existiam formas de gestão
pública da indigência e de amparo aos indivíduos e famílias incapazes de prover o próprio sustento desde
o século XIV. Além disso, não se pode afirmar sem ressalvas que a proteção social surgiu para os
trabalhadores e só depois se expandiu para outras classes. De fato, em períodos anteriores à Revolução
Industrial existiram medidas de assistência que não se pautavam na distinção entre trabalhadores e não
trabalhadores, a exemplo das Workhouses britânicas. Houve, portanto, uma oscilação na forma de
proteção das pessoas inaptas para prover o próprio sustento ou tê-lo provido por seus familiares, em meio
à qual a previdência surgiu como uma de suas especializações, até obter protagonismo nas políticas de
seguridade social, situação que, de fato, levou a serem (re)discutidas outras formas de proteção social aos
não trabalhadores.
23
Há uma razão para que práticas institucionalizadas de assistência só tenham
ganhado corpo a partir da metade do século XIV13, não antes disso. Como bem explica
Castel (2010, p. 48-60), a sociedade feudal predominante no Ocidente cristão durante a
Idade Média era fechada e resistente à mobilidade social. Por um lado, essas
características nutriam a rigidez de estruturas sociais e estabeleciam vínculos de
dependência permanentes, quase imutáveis. Por outro lado, essa sociedade contava com
um grau de segurança econômica que evitava a desestabilização interna decorrente da
pobreza e da desigualdade. Isso não implica, no entanto, um elogio à estrutura feudal. O
que Castel (2010, p. 55) salienta é que essa sociedade era fortemente integrada pelas
redes de dependência, ainda que sob uma condição generalizada de precariedade. Fazia
parte desse sistema a segurança material oferecida a todos que se colocassem sob a
proteção de alguém mais poderoso, abdicando, por outro lado, de sua liberdade. Nas
palavras do autor:
a conjunção do fato de estar colocado sob a proteção de alguém
poderoso (é o sentido de “maimbour”, transcrito do antigo direito
germânico) e do fato de estar inscrito nas redes familiares ou da
mesma linhagem e de vizinhança da comunidade de habitantes
garantia uma proteção máxima contra os ocasos da existência. Essas
comunidades são, ao mesmo tempo, globalmente vulneráveis quanto
às agressões externas (crises de subsistência e devastações de guerra)
e fortemente integradas por redes estreitas de interdependência. A
precariedade da existência faz parte da condição de todos e não rompe
o pertencimento comunitário. Tais sociedades dificilmente aceitam a
novidade e a mobilidade, mas são eficazes contra a desfiliação.
(CASTEL, 2010, p. 55).
Nesse contexto, o atendimento às necessidades básicas do indivíduo competia
primordialmente às famílias, complementado por algumas formas de assistência
religiosa, comunitária etc. (HORVATH JÚNIOR, 2008, p. 19). Prevaleciam os laços de
sociabilidade primária, isto é, “sistemas de regras que ligam diretamente os membros de
um grupo, a partir de seu pertencimento familiar, da vizinhança, do trabalho e que
tecem redes de interdependência sem a mediação de instituições específicas” (CASTEL,
2010, p. 48).
13
Sposati (1987, p. 45), aponta outro marco inicial das medidas de assistência, na seguinte passagem:
“Os analistas da arqueologia do poder e do saber consideram o assistencial como decorrente da ascensão
do social cuja gênese se dá por volta dos séculos XVIII e XIX. Sob essa ótica, a assistência social retrata
um setor de domínio híbrido, que tem contornos nebulosos, e que se constitui a partir de uma
redistribuição ou expansão de antigos poderes e saberes ligados ao jurídico e ao educacional”.
24
Esse sistema, entretanto, só funcionou enquanto as redes de proteção próximas
– ou laços de sociabilidade primária – puderam cuidar dos indivíduos em situação de
vulnerabilidade. À medida que essas redes se fragilizaram ou que a sociedade se tornou
mais complexa a ponto de inviabilizar respostas eficazes por meio dessas relações mais
próximas, surgiram práticas específicas voltadas ao atendimento das pessoas ditas
“carentes”14. Assim surgiram instituições incumbidas de realizar tarefas antes
desempenhadas pela comunidade, sem mediações (CASTEL, 2010, p. 57).
1.3
Surgimento e evolução da proteção social
Antes de dar início ao exame específico dos modelos relevantes para a
compreensão da assistência social no Brasil, interessa apresentar uma pequena síntese
do surgimento e da evolução da proteção social.
Houve, em linhas gerais, a passagem de formas de desproteção daqueles que
não podiam prover o próprio sustento para formas baseadas na vigilância, punição e,
quando possível, obrigatoriedade do trabalho. Seguiu-se a isso a criação de sistemas de
apoio aos trabalhadores, especialmente pelos seguros sociais. Por fim, surgiram os
modelos de seguridade social.
Durante a Idade Média e até o século XIV, a Igreja Católica protagonizou o
auxílio aos necessitados, com recursos provenientes da família real e da aristocracia15.
No século XIV, a proteção social surgiu sob a forma de proteção aos pobres,
especificada anteriormente. A ideia de assistência pública16 remonta a essa etapa inicial.
14
Desde logo chama-se a atenção para o quanto a referência às populações “carentes” ou “necessitadas”
é emblemática de uma forma de compreender a assistência social. De fato, o emprego desses termos, no
lugar de expressões como cidadãos ou usuários dos serviços denuncia que a assistência é vista como “a
forma de tratamento que a riqueza destina à pobreza” (SPOSATI, 1987, p. 337).
15
Esse protagonismo não se deu sem conflitos entre Igreja e Estado e, menos ainda, sem denúncias de
má administração dos recursos destinados aos hospitais e outras instituições de caridades vinculadas à
Igreja (FRIEDLANDER, 1973, p. 10).
16
O termo assistência pública é empregado para designar as ações protagonizadas pelo Poder Público,
com ou sem auxílio de outros agentes, visando suprir necessidades vitais de indivíduos ou grupos em
situação de indigência (ALMANSA PASTOR, 1991, p. 37). Essas medidas se caracterizam pela função
de controle social que a elas eram frequentemente atribuídas e pelo não reconhecimento da assistência
social como um direito dos assistidos, mas, ao contrário, pela “interpretação ancorada na idéia de dívida
que os assistidos contraíam com a sociedade” (CARRO, 2008, p. 40). A passagem da assistência pública
para a assistência social representa uma mudança no fundamento dessas medidas, que passa a ser o
reconhecimento de um dever da sociedade para com as pessoas em situação de necessidade (CARRO,
25
O protestantismo também defendeu a centralização da ajuda aos desamparados
nas mãos da Igreja. Ainda no século XVI, em 1520, Martinho Lutero conclamou os
príncipes a proibirem a mendicância e organizarem nas paróquias um fundo comum
para reunir doações aos necessitados. Planos semelhantes foram desenvolvidos na
Suíça, França, Áustria e países escandinavos. Mesmo quando a arrecadação ficava a
cargo de autoridades seculares locais, sua administração cabia aos eclesiásticos
(FRIEDLANDER, 1973, p. 10-11).
No final do século XIX, ingressou-se em outra fase dessa proteção, com a
organização de sistemas de proteção aos trabalhadores.
A terceira fase da proteção social – a fase de proteção ao cidadão – é bem mais
recente, tendo se desenvolvido a partir da década de 1940.
A organização dos modelos atualmente adotados em muitos países remonta aos
séculos XIX e XX. Embora a pobreza, a doença, o sofrimento e a desorganização estatal
sempre tenham existido, a sociedade industrial desses séculos teve que enfrentar
problemas que não mais podiam resolvidos no âmbito da família, da igreja ou das
comunidades locais (FRIEDLANDER, 1973, p. 03). A esse dado acrescenta-se que a
melhor compreensão sobre as causas da pobreza, a tentativa de conter o avanço das
ideias socialistas e a necessidade de grandes contingentes de trabalhadores nas
indústrias geraram impactos sobre os estudos e as ações empreendidas.
1.4
A evolução do modelo britânico de proteção social
De acordo com Friedlander (1973, p. 13-14), até o século XIV a ajuda aos
necessitados ficava a cargo da Igreja, que revertia cerca de um terço dos donativos que
recebia em atendimento aos pobres sem, contudo, envidar esforços para alterar sua
2008, p. 40). Essa distinção, conquanto auxilie na compreensão dos dois termos, não elimina pontos
nebulosos. Isso porque a evolução da assistência social não é linear, o que dificulta a identificação de
transformações indenes de dúvidas. Além disso, os termos assistência ou assistência pública, sem o
adjetivo social, também aparecem empregados para designar ações e serviços passíveis de enquadramento
como assistência social, o que é compreensível já que o surgimento desta expressão é relativamente
recente. A título de ilustração, anota-se que o Plano Beveridge, responsável pela fundação da seguridade
social tal como conhecida atualmente, utiliza o termo assistência nacional e que a legislação francesa
somente adotou a expressão assistência social a partir de 1953, a despeito de haver proclamado a
assistência como um direito muito antes desta data. Por fim – e não menos importante – ressalta-se que
muitos autores empregam o termo assistência social para designar as práticas anteriores à mudança de
fundamento apontada, isto é, para designar os antecedentes da assistência social conhecida atualmente. É
o caso, por exemplo, de Rosanvallon (1984) e de Horvath Júnior (2008).
26
condição social. A esmola era então ofertada como forma de salvação da alma de seu
donatário. Paralelamente, e em menor escala, os grêmios também desempenhavam
atividades de beneficência. Foi com o fim da sociedade feudal que surgiu o problema da
manutenção da ordem entre os antigos servos das grandes propriedades, que ficaram
livres para se deslocarem com suas famílias (FRIEDLANDER, 1973, p. 14).
Representando uma mão de obra sem qualificação para as atividades urbanas – e
que, portanto, não poderia ser vista como “exército de reserva” –, esses grupos fizeram
crescer a mendicância, a despeito da existência de postos de trabalho vagos, sobretudo no
período imediatamente posterior à Peste Negra (CASTEL, 2010, p. 112-115).
Em virtude disso, no século XIV o Estado passou a disciplinar o que se pode
denominar de “gestão racional da indigência” (CASTEL, 2010, p. 72), sendo a GrãBretanha
pioneira
na
organização
sistemática
da
assistência
pública
(cf.
ROSANVALLON, 1984, p. 112).
Rosanvallon (1984, p. 112) assevera que o “direito à assistência e o direito do
trabalho eram [...] afirmados paralelamente”. De fato, a conjugação entre assistência e
trabalho é uma constante na história da proteção social. Porém, indo além do que afirma
o autor, o que se pode notar em boa parte do tempo é uma conjugação entre assistência
e dever de trabalhar.
Pois bem, a disciplina da assistência principia com a distinção entre os pobres
capacitados e os pobres incapacitados para trabalhar, operada pela a promulgação da
Ordinance of Labourers17 e do Statute of Labourers18 e da qual resultou a distinção
entre os que têm e os que não têm o dever de trabalhar. A Ordinance of Labourers
consistia em um decreto do Rei Eduardo III, de 1349. Já o Statute of Labourers foi
instituído pelo Parlamento Inglês em 1351. Os dois diplomas são muito semelhantes.
Visando fazer frente à falta de mão de obra decorrente da Peste Negra – que
dizimara parcela significativa da população europeia – esses diplomas normativos
dispunham sobre relações de trabalho. Impunha-se aos trabalhadores sãos e desprovidos
de meios de subsistência a aceitação de emprego ofertado, sancionava-se com prisão a
recusa ao trabalho, disciplinava-se o valor dos salários e restringia-se a possibilidade de
17
REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE. Ordinance of Labourers, 1349.
Disponível em: <http://www.britannia.com/history/docs/laborer1.html>. Acesso em: 24 fev. 2011.
18
REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE. Statute of Labourers, 1351.
Disponível em: <http://avalon.law.yale.edu/medieval/statlab.asp>. Acesso em: 12 jan. 2011.
27
uma pessoa deixar o trabalho. A oferta de esmola aos capazes era proibida, o que
contribuía para que todos cumprissem com o dever de trabalhar19.
Friedlander comenta o diploma de 1349, destacando seu caráter punitivo:
El Statute of Laborers20 se convirtió en la primera de muchas leyes
que permitieron el desarrollo del “estado erastiano” (ideado por el
teólogo suizo-alemán Tomás Erastus), en el cual el poder secular
sustituyó a la autoridad eclesiástica. Estaba destinado a prever la
vagancia y la mendicidad, y a obligar al trabajador rural a permanecer
en la tierra. Se ordenaron castigos muy crueles para los mendigos y
los vagabundos, tales como ponerlos en el cepo, azotarlos, marcarlos
con hierro candente, o mutilarlos cortándoles las narices y las orejas,
condenándolos a las galeras y, finalmente, ahorcándolos
(FRIEDLANDER, 1973, p. 15).
Em 1388, o Statute of Cambridge impôs outras limitações à circulação de
trabalhadores e pedintes. Estabeleceu-se que um servo só poderia deixar seu posto de
trabalho portando um atestado emitido pelas autoridades de seu distrito de origem; do
contrário, a pessoa poderia ser detida até que se tivesse certeza de seu retorno ao
trabalho de origem. Impediu-se, outrossim, que trabalhadores agrícolas com mais de 12
anos escolhessem outro emprego braçal.
Quanto aos mendigos, manteve-se a distinção entre válidos e inválidos. Os
primeiros eram equiparados a vagabundos. Os segundos podiam permanecer onde
estivessem, mediante anuência da comunidade local, ir para asilos ou retornar para o
local de seu nascimento (CASTEL, 2010, p. 99-100).
Friedlander (1973, p. 15-16) aponta uma lei de 1531, sob o reinado de
Henrique VIII, como marco inicial da responsabilidade pública para com os pobres.
Essa lei determinava a investigação de pessoas idosas e incapazes que recebessem
19
Transcreve-se parte da Ordinance of Labourers de 1349: “every man and woman of our realm of
England, of what condition he be, free or bond, able in body, and within the age of threescore years, not
living in merchandise, nor exercising any craft, nor having of his own whereof he may live, nor proper
land, about whose tillage he may himself occupy, and not serving any other, if he in convenient service,
his estate considered, be required to serve, he shall be bounden to serve him which so shall him require;
and take only the wages, livery, meed, or salary, which were accustomed to be given in the places where
he oweth to serve, the twentieth year of our reign of England, or five or six other commone years next
before. Provided always, that the lords be preferred before other in their bondmen or their land tenants.
(…) because that many valiant beggars, as long as they may live of begging, do refuse to labor, giving
themselves to idleness and vice, and sometime to theft and other abominations; none upon the said pain of
imprisonment shall, under the color of pity or alms, give any thing to such, which may labor, or presume
to favor them toward their desires, so that thereby they may be compelled to labor for their necessary
living”. REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE. Ordinance of Labourers,
1349. Disponível em: <http://www.britannia.com/history/docs/laborer1.html>. Acesso em: 24 fev. 2011.
20
Embora o texto refira-se ao Statute of Labourers, a alusão ao fato de se tratar da primeira
normatização sobre o controle da mendicância indica que se trata, na verdade, da Ordinance of
Labourers. De todo modo, a semelhança entre os dois textos torna a análise de um aplicável ao outro.
28
auxílio paroquial e solicitassem autorização para pedir esmolas. Após a investigação,
fazia-se um registro e concedia-se uma licença para pedir esmolas em áreas
preestabelecidas.
Citando Marx e Friedlander, Pereira (2009, p. 63) relata que, no século XVI21,
os “vagabundos” incapazes de trabalhar receberam permissão para mendigar em
algumas áreas, ao mesmo tempo em que as paróquias puderam recolher donativos para
prestar assistência a esses grupos. Por outro lado, os “vagabundos” aptos para o trabalho
eram punidos e compelidos a trabalhar, conforme determinara o Parlamento inglês em
1547.
Castel aponta o decreto de 1547 como a mais radical das medidas adotadas
visando compelir as pessoas “vagabundas” a trabalharem e destaca o grau de crueldade
dessas políticas:
Partindo como sempre da constatação de que “as pessoas ociosas e
vagabundas são membros inúteis da comunidade e, principalmente,
inimigas da coisa pública”, Eduardo VI ordena que se prenda qualquer
pessoa que, sem nenhum meio de subsistência, tenha ficado sem
trabalhar mais de três dias. Todo bom cidadão é convidado e levar
esse infeliz à presença de dois juízes que “devem, imediatamente,
fazer marcar, com ferro em brasa, a letra V na testa do dito ocioso, e
adjudicar a dita pessoa, que vive tão ociosamente, ao apresentador
(isto é, ao denunciante) para que este se aposse dela e tenha o dito
escravo à sua própria disposição, à disposição de seus executores ou
servidores durante os dois anos seguintes”. Em pleno Renascimento, a
legislação sobre a vagabundagem reinstaura, assim, a escravidão no
reino da Inglaterra. Passível de ser condenado à talha e à corvéia, o
vagabundo pode ser chicoteado, acorrentado, preso, alugado por seu
proprietário e, no caso da morte deste, ser transmitido como um bem
aos herdeiros. Se a vítima fugir uma primeira vez, a pena será
transformada em escravidão para o resto da vida e, se houver a
segunda tentativa de fuga, em pena de morte. (CASTEL, 2010, p. 127128)
Em 1576, surgiram as poor houses, locais para onde os beneficiários de
assistência, válidos ou inválidos, eram levados. Nessas instituições, aqueles que
21
Reiterando a afirmação de que a evolução das medidas de assistência ocorreu de forma semelhante em
toda a Europa, observa-se que as medidas de atendimento à pobreza do século XVI não constituem
exclusividade da história britânica. Outras cidades europeias adotaram políticas semelhantes para fazer
frente à mesma conjuntura socioeconômica. Portanto, essa narrativa registra um movimento geral
existente à época. Segundo CASTEL (2010, p. 73): “Entre 1522 e a metade do século, cerca de sessenta
cidades européias tomam um conjunto coerente de medidas. Essas políticas municipais baseiam-se em
alguns princípios simples: exclusão dos estrangeiros, proibição estrita da mendicância, recenseamento e
classificação dos necessitados, desdobramentos de auxílios diferenciados em correspondência com as
diversas categorias de beneficiários”.
29
tivessem condições físicas, deveriam trabalhar para prover a própria subsistência
(FRIEDLANDER, 1973, p. 17; PEREIRA, 2009, p. 63).
Em 1601, editou-se o Poor Law Act ou Elizabethan Poor Law22. Tal lei
inaugurou a distinção entre grupos atendidos pela assistência pública, a saber: pobres
corporalmente
capacitados,
pobres
incapacitados
e
crianças
dependentes
(FRIEDLANDER, 1973, p. 18)23. As pessoas que não pudessem trabalhar seriam
encaminhadas a asilos ou hospícios; aos demais, impunha-se o trabalho. Seriam
mandados para reformatórios ou casas de correção aqueles que, tendo condições de
trabalhar, se recusassem a fazê-lo, o que mostra a persistência da repressão no
tratamento da pobreza (PEREIRA 2009, p. 64). Marshall (1967, p. 71) faz uma
avaliação até certo ponto positiva dessa regulamentação, provavelmente por compará-la
ao que viria mais adiante:
A Poor Law se encontrava numa posição um tanto ambígua. A
legislação elisabetiana tinha feito dela algo mais do que um meio para
aliviar a pobreza e suprimir a vadiagem, e seus objetivos construtivos
sugeriam uma interpretação do bem-estar social que lembrava os mais
primitivos, porém mais genuínos, direitos sociais de que ela tinha, em
grande parte, tomado o lugar. A Poor Law elisabetiana era, afinal de
contas, um item num amplo programa de planejamento econômico
cujo objetivo geral não era criar uma nova ordem social, e sim
preservar a existente com um mínimo de mudança essencial. À
medida que o padrão da velha ordem foi dissolvido pelo ímpeto de
uma economia competitiva e o plano se desintegrou, a Poor Law ficou
numa posição privilegiada como sobrevivente única da qual,
gradativamente, se originou a idéia dos direitos sociais. Mas, no fim
do século XVIII, houve uma luta final entre a velha e a nova ordem,
entre a sociedade planejada (ou padronizada) e a economia
competitiva. E, nessa batalha, a cidadania se dividiu contra si mesma;
os direitos sociais se aliaram à velha e os civis à nova.
Pereira (2009, p. 64-65) registra que a Poor Law promoveu uma regulação
político-administrativa mais descentralizada, a cargo das paróquias, sob supervisão de
um inspetor externo, incumbido também de arrecadar recursos para a assistência
22
Segundo Horvath Júnior (2008, p. 24), o Poor Law Act é considerado a primeira lei sobre assistência
social. Embora as inovações dessa lei possam conduzir a essa afirmação, mais uma vez discorda-se desse
entendimento. Como se pretende demonstrar neste capítulo, a regulação estatal da assistência à pobreza
foi anterior a 1601 e não houve propriamente uma ruptura do modelo adotado. Antes e depois do Poor
Law Act, as políticas de atenção à pobreza estiveram marcadas por seu caráter punitivo, pela internação
de assistidos, pela obrigatoriedade do trabalho e pela importância das paróquias como agentes de
organização da assistência.
23
O Poor Law Act aplicava-se apenas às pessoas que, integrando as categorias mencionadas, não
trabalhassem. Aqueles que desempenhassem atividades laborativas ficariam sob a égide do Statute of
Artificers, de 1563 (POLANYI, 1980, p. 97).
30
pública. Havia ainda um Conselho Privado a supervisionar o controle social
desenvolvido em nível local. Apesar das mudanças, reiterou-se a responsabilidade da
comunidade local pela atenção “aos seus necessitados”, pois a atenção prioritária era
voltada para o atendimento da população local, nativos ou residentes havia algum
tempo.
No intuito de condicionar a concessão dos auxílios à fixação territorial, o
Settlement Act de 1662 restringiu o deslocamento de trabalhadores de uma paróquia
para outra. Um dos escopos dessa regra era impedir que as pessoas saíssem de suas
paróquias em busca de remunerações maiores. Outro objetivo, nas palavras de Polanyi
(1980, p. 98-99), era o de “proteger as paróquias ‘melhores’ contra o fluxo de
indigentes”.
Também com amparo nessa lei, os juízes de paz poderiam providenciar o
retorno de recém-chegados à sua antiga residência quando os “inspetores de pobres”
vislumbrassem a possibilidade de essa pessoa se tornar um ônus para o Poder Público
(FRIEDLANDER, 1973, p. 20). Possibilitou-se alguma mobilidade de trabalhadores
após a criação de um certificado por meio do qual a comunidade que o expedia assumia
a responsabilidade de custear a manutenção do portador do documento em caso de
necessidade (FRIEDLANDER, 1973, p. 21). Mesmo assim, a servidão paroquial só foi
realmente atenuada em 1795 (POLANYI, 1980, p. 89)24.
O intento de fazer concorrência comercial aos holandeses, somado à
dificuldade de levar a cabo a organização instituída pela Poor Law e pelo Settlement
Act, conduziu a novas mudanças. Por meio do Workhouse Act as diferentes categorias
de assistidos foram reunidas e receberam o mesmo tratamento: a internação nas
Workhouses e a exploração mercantil do trabalho de todos. O recebimento de qualquer
auxílio estava condicionado à disposição dos requerentes em ir para as Workhouses
(FRIEDLANDER, 1973, p. 21; PEREIRA, 2009, p. 66).
O sistema das Workhouses não tinha meios de prosperar. As condições de
habitação e trabalhos eram as piores possíveis e, ademais, os internos não contavam
com formação profissional que lhes permitisse concorrer com os trabalhadores
24
“Na Inglaterra, tanto a terra como o dinheiro foram mobilizados antes do trabalho. Este se viu
impedido de formar um mercado nacional pelas restrições estritamente legais impostas à sua mobilidade
física: o trabalhador estava praticamente restrito à sua paróquia. O Act of Settlement (Decreto de
Domicílio) de 1662, que estabeleceu as regras da assim chamada servidão paroquial só foi abrandado em
1795” (POLANYI, 1980, p. 89).
31
especializados das oficinas (FRIEDLANDER, 1973, p. 22). Portanto, a manobra foi
perversa até mesmo para aqueles que pretendiam explorar essa mão de obra com baixos
custos.
O caráter da assistência prestada aos que não pudessem prover seu sustento
começou a mudar ainda no século XVIII. O insucesso das Workhouses conduziu a
propostas de mudanças que culminaram com o Poor Relief Act, de 1782. Conhecida
como Gilbert’s Act, essa lei instituiu a assistência prestada fora das Workhouses, nas
residências dos assistidos. Embora sem um princípio norteador dessa atuação nas
diversas paróquias, Pereira (2009, p. 66-67) aponta aqui um embrião dos trabalhadores
sociais.
A escassez de alimentos, com o consequente aumento de preços desses
gêneros, tornou necessária a complementação dos ganhos dos trabalhadores, e não
apenas a oferta de auxílios aos que não trabalhassem (PEREIRA, 2009, p. 67).
Ademais, os veteranos da guerra com a França (1793-1815) que haviam perdido sua
capacidade laborativa se recusavam a ir aos asilos com seus familiares, reivindicando o
auxílio público em suas casas. Esses fatores forçaram o desenvolvimento de alternativas
para o incremento da renda, o que ocorreu de forma heterogênea em diversas
localidades (FRIEDLANDER, 1973, p. 23-24).
Foi nesse cenário que a Speenhamland Law, de 1795, introduziu um “sistema
de abonos”, por meio do qual “ficaria assegurada ao pobre uma renda mínima
independente de seus proventos”, como resume Polanyi (1980, p. 90).
O sistema de abonos foi elaborado em uma conferência de juízes de Berkshire,
ocorrida em Speenhamland25. Calculados em consonância com o preço do pão, os
abonos assumiam a forma de complementação de salários, para os que trabalhassem, ou
de rendimentos mínimos, para os que fossem desprovidos de renda. Reafirmou-se a
tutela comunitária às populações carentes, com o consequente alijamento dos grupos de
não residentes, uma vez que esses abonos eram custeados pelos habitantes de cada
paróquia26.
25
Polanyi (1980, p. 90) narra que o sistema de abonos foi adotado em caráter emergencial e introduzido
informalmente. Relata ainda que a tabela de abonos calculada com base no preço do pão nunca foi
promulgada. Friedlander (1973, p. 24) também registra que essa estratégia se disseminou antes mesmo de
ser convertida em lei.
26
Como avalia Castel (2010, p. 80): “Como para as poor laws anteriores, o financiamento é garantido
por contribuições obrigatórias impostas aos habitantes da paróquia. Em contrapartida, os beneficiários dos
auxílios são vinculados de uma maneira quase intangível a seu território de origem. Estão por isso a tal
32
A ideia de uma proteção pública generalizada representa um embrião da
proteção social universal. Como afirma Polanyi (1980, p. 90), houve “uma inovação
social e econômica que nada mais era do que o ‘direito de viver’”. Se, sob a égide da
Poor Law de 1601, os pobres eram obrigados a trabalhar por qualquer valor e a
assistência era destinada apenas aos que não o fizessem, sob a égide da Speenhamland
Law, reconhecia-se que todos tinham necessidades mínimas a serem atendidas.
Mas, como adverte Pereira (2009), essa preocupação com as massas em
situação de pobreza não decorreu de motivos humanitários, e sim do temor de revolta
dessas populações. A autora recorda que essa lei é posterior à Revolução Francesa e
que, portanto, vem a lume num cenário de receio de revoltas populares. Pondera ainda
que “a política social daquela época ainda não tinha contra si elaborações teóricas ou
filosóficas de peso” (PEREIRA, 2009, p. 69), o que evitou resistências à disseminação
desse sistema de abonos27.
Como se depreende das análises de Friedlander (1973), Polanyi (1980) e
Pereira (2009), os reflexos desse sistema se mostraram perniciosos para todos os
envolvidos e, nas palavras de Polanyi (1980, p. 89), “o mercado livre de trabalho, a
despeito dos métodos desumanos empregados na sua criação, provou ser
financeiramente benéfico para todas as partes envolvidas”.
À medida que os salários foram complementados e a sobrevivência das
populações mais pobres passou a ser subsidiada, os empregadores puderam pagar
remunerações baixíssimas com menor risco de conflitos com os trabalhadores. Os
salários tornaram-se tão baixos que os trabalhadores se viam obrigados a recorrerem à
assistência para sobreviverem, já que seus ganhos impediam que uma pessoa se
sustentasse de forma autônoma. Por outro lado, como os ganhos eram os mesmos para
todos os trabalhos, não havia incentivo à maior produtividade do empregado (cf.
FRIEDLANDER, 1973, p. 24).
ponto sob a dependência dos notáveis locais, que se pôde falar a esse respeito de servidão paroquial
(parish serfdom). O Speenhamland Act representa – no momento em que a ‘revolução industrial’ já se
iniciou na Inglaterra, e tal paradoxo será retomado – a fórmula mais completa das políticas assistenciais
organizadas desde a Idade Média em torno da necessidade do pertencimento comunitário. Fora da
domiciliação, do duplo sistema de proteção que organiza e das obrigações que impõe, quase não há
salvação para os pobres”.
27
“O assalto intelectual mais sofisticado contra a política social só ocorreu a partir dos obstáculos que a
Speenhamland impôs às forças livres do mercado de trabalho requerido pelo irreversível sistema
industrial. Por isso, a geração de trabalhadores, de desempregados e de pessoas incapazes para trabalhar,
naquela época, não via na assistência pública externa uma degradação e nem se sentia estigmatizada por
merecê-la. É como se já estivesse embutido na consciência das massas daquela época a idéia de direito à
assistência, fato que vai ser veementemente negado e desqualificado pela proposta de emenda da
Speenhamland Law, nos anos 1830...” (PEREIRA, p. 2009, p. 69).
33
Essa contraditória experiência influenciou intensamente a reflexão sobre
políticas sociais e, por isso mesmo, fornece elementos valiosos para a compreensão dos
conflitos entre essas políticas e a produção acadêmica e jurídica que se seguiu. Por um
lado, destaca o início de uma concepção universalizante das políticas de proteção social
– o reconhecimento de que todos deveriam contar com um mínimo necessário à sua
sobrevivência – e, segundo Pereira (2009, p. 69), marca um período em que o
recebimento de prestações assistenciais não era visto como uma degradação. Por outro
lado, ficam claros os efeitos deletérios de medidas paliativas contra a pobreza,
desconectadas de preocupações com o desenvolvimento integral do indivíduo28, além da
dificuldade em criar mecanismos de proteção social para operar numa economia de
mercado e, ao mesmo tempo, não submetê-los às regras da competição. Além disso, o
insucesso de Speenhamland favoreceu um sentimento geral de aversão à assistência
pública.
Passando-se ao século XIX, assiste-se a uma completa mudança de rumos das
medidas de assistência aos pobres29.
A difusão dos princípios liberais, apoiada na justificativa teórica oferecida por
autores como Malthus e Ricardo (PEREIRA, 2009, p. 70-74) e catalisada por
experiências como as recém-comentadas, apresentou a assistência aos pobres como
danosa e contraproducente. Até mesmo as práticas de benemerência fundadas em
crenças religiosas foram revistas, passando a ser regidas pela convicção de que a
pobreza era causada por fracassos individuais (FRIEDLANDER, 1973, p. 25-26).
Em virtude desse cenário, em 1832 foi instituída uma Comissão Real para
avaliar a aplicação das Poor Laws. Seu relatório final, que foi apresentado em 1834,
criticava o mecanismo de auxílio parcial criado pelo Sistema Speenhamland e apontava
que a ajuda aos pobres levara pessoas capazes a se tornarem mendigos permanentes.
28
Na opinião de Polanyi (1980, p. 92), “se os trabalhadores tivessem a liberdade de fazer combinações
para favorecer seus interesses, o sistema de abonos talvez pudesse ter causado efeito contrário no padrão de
salários: a assistência aos desempregados, implícita numa administração tão liberal da Poor Law, teria
ajudado a ação de muitos sindicatos”.
29
Polanyi (1980) mostra que a sociedade do século XVIII resistiu à criação de um mercado de trabalho,
mesmo durante períodos ativos da Revolução Industrial. Tanto as medidas do Settlement Act, que
restringiam a mobilidade dos trabalhadores, quanto o sistema de abonos instituído pela Speenhamland Law
contiveram o surgimento de um mercado nacional de trabalho da Inglaterra. Assim, conclui o autor: “a
tentativa de criar uma ordem capitalista sem um mercado de trabalho falhara redondamente” (POLANY,
1980, p. 92). Mas não é correto pensar que Polanyi aponta um fio condutor entre essas duas normatizações;
segundo ele “a contradição era patente: o Act of Settlement estava sendo abolido porque a Revolução
Industrial exigia um suprimento nacional de trabalhadores que poderiam trabalhar em troca de salários,
enquanto a Speenhamland proclamava o princípio de que nenhum homem precisava temer a fome porque a
paróquia o sustentaria e à sua família, por menos que ele ganhasse” (POLANY, 1980, p. 99).
34
As propostas que emergiram desse estudo são bem resumidas por Friedlander
(1973, p. 27-28):
Las seis principales recomendaciones del informe fueron a) abolir el
“auxilio parcial” aplicado de acuerdo con el sistema Speenhamland; b)
internar a todos los solicitantes de ayuda, físicamente capacitados, en
el hospicio; c) otorgar “socorro” externo sólo los enfermos, ancianos,
inválidos y viudas con hijos pequeños; d) coordinar la administración
de auxilio de varias parroquias convirtiéndolo en una “unión de la ley
de pobres”; e) hacer que las condiciones de los recipiendarios de
auxilio público fueron menos apetecibles que las condiciones de vida
de los trabajadores de más bajos sueldos en la comunidad (Principio
de “menor elegibilidad”); y f) establecer una comisión central de
control que debía ser nombrada por el rey.
Como resultado desse trabalho, editou-se o Poor Law Amendment Act de 1834.
A nova lei resultou no fim da assistência externa, de maneira que os assistidos
aptos para o trabalho, juntamente com suas famílias, só receberiam algum tipo de
atenção se internados nas Workhouses (FRIEDLANDER, 1973, p. 29). Impôs-se a
prestação de contrapartida por parte dos beneficiários dessa internação com o produto
de seu trabalho, mecanismo que, como afirma Pereira (2009, p. 79), transformou a
assistência em uma fonte de acumulação primitiva, muito favorável às classes
possuidoras. Passar pelos “testes de meios”30 das Workhouses envolvia a disposição do
candidato a se submeter ao trabalho exaustivo, ao estigma, ao isolamento em relação ao
restante da sociedade e ao sofrimento psíquico31. Polanyi (1980, p. 110) narra que os
albergues deviam atender a requisitos de habitabilidade (higiene e decência), atributos
que eram usados para justificar outras provações.
30
Entende-se por “testes de meios” ou “provas de indigência” os mecanismos de seleção dos
destinatários da assistência. Esses testes marcaram o período de atendimento prestado nas Workhouses,
em que a necessidade de assistência era demonstrada pela concordância do candidato com o tratamento
dispensado nessas instituições. Aceitar esse tratamento significava abdicar da liberdade e do convívio
familiar – pois as famílias eram separadas ao ingressarem nessas instituições, onde ficariam internadas –,
sujeitar-se a trabalhos extenuantes como contrapartida à assistência recebida e a viver em condições
piores do que as do trabalhador pior remunerado. Portanto, passar por um teste de meio significava
submeter-se a condições de vida aviltantes e violadoras da dignidade e da liberdade dos indivíduos. (cf.
FRIEDLANDER, 1973, p. 21; PEREIRA, 2009, 76-77).
31
Sobre essa nova fase, as considerações de Polanyi (1980, p. 93-94) merecem ser transcritas: “muitos
dos pobres mais necessitados foram abandonados à própria sorte quando se retirou a assistência externa, e
entre aqueles que sofreram mais amargamente estavam os ‘pobres merecedores’, orgulhosos demais para
se recolherem aos albergues, que se haviam tornado um abrigo vergonhoso. Em toda a história moderna
talvez jamais se tenha perpetrado um ato mais impiedoso de reforma social. Ele esmagou milhões de
vidas quando pretendia apenas criar um critério de genuína indigência com a experiência dos albergues.
Defendeu-se friamente a tortura psicológica, e ela foi posta em prática por filantropos benignos como
meio de lubrificar as rodas do moinho do trabalho”.
35
A consagração do princípio da menor elegibilidade (less elegibility) também
deixou marcas profundas nos rumos da assistência pública. Como explica Friedlander
(1973, p. 28), a menor elegibilidade consistia em um postulado segundo o qual a
assistência aos pobres deveria ser ofertada de forma ínfima e indigna, colocando seu
destinatário em situação pior do que o trabalhador pior remunerado na mesma
comunidade. Criado como forma de impelir todas as pessoas ao trabalho – quaisquer
que fossem as condições a serem enfrentadas –, esse princípio não está distante do que
ainda se discute em termos de assistência social e de mínimos sociais32.
Marshall (1967, p. 72) apresenta uma síntese lapidar sobre o tratamento à
pobreza instituído a partir de 1834, salientando de que forma a proteção social se fazia
às custas da liberdade e da autonomia de seus destinatários:
Pela Lei de 1834 a Poor Law renunciou a tôdas suas reivindicações de
invadir o terreno do sistema salarial ou de interferir nas forças do
mercado livre. Oferecia assistência somente àqueles que, devido à
idade e à doença, eram incapazes de continuar a luta e àqueles outros
fracos que desistiam da luta, admitiam a derrota e clamavam por
misericórdia. O movimento experimental em prol do conceito de
previdência social mudou de direção. Porém, mais do que isso, os
direitos sociais mínimos que restaram foram desligados do status de
cidadania. A Poor Law tratava as reivindicações dos pobres não como
uma parte integrante de seus direitos de cidadão, mas como uma
alternativa deles – como reivindicações que poderiam ser atendidas
somente se deixassem inteiramente de ser cidadãos. Pois os indigentes
abriam mão, na prática, do direito civil da liberdade pessoal devido ao
internamento na casa de trabalho, e eram obrigados por lei a abrir mão
de quaisquer direitos políticos que possuíssem. Essa incapacidade
permaneceu em existência até 1918 e, talvez, não se tenha dado o
devido valor à sua abolição definitiva. O estigma associado à
assistência aos pobres exprimia os sentimentos profundos de um povo
que entendia que aqueles que aceitavam assistência deviam cruzar a
estrada que separava a comunidade de cidadãos da companhia dos
indigentes.
O perverso sistema instituído pela Poor Law de 1834 despertou reações,
sobretudo a partir do século XX. As críticas diziam respeito às condições de trabalho
enfrentadas dentro e fora das Workhouses, haja vista que as condições de vida
insalubres nos bairros pobres também constituíam um grave problema de saúde pública
(FRIEDLANDER, 1973, p. 30; PEREIRA; 2009, p. 80). Além disso, uma crise no setor
32
Nesse sentido, Castel (2010, p. 185) afirma que o princípio de less elegibility “reina sem restrições nas
políticas sociais (e não apenas nas sociedades pré-industriais)”. De modo semelhante a Friedlander, o
autor explica que, por força da menor elegibilidade, “os auxílios e alocações de recursos devem ser
sempre inferiores à mais baixa remuneração que um indivíduo poderia obter com uma atividade
‘normal’” (CASTEL, 2010, p. 185).
36
carbonífero aumentou em muito o contingente de pessoas desempregadas que, com suas
famílias, buscavam auxílio público (FRIEDLANDER, 1973, p. 49)33.
Nesse contexto, um grupo de intelectuais defendia reformas econômicas e
sociais para fazer frente ao quadro de pobreza: a Sociedade Fabiana. Uma integrante
desse grupo, Beatrice Webb, foi nomeada para compor uma comissão real constituída
com o intuito de estudar a reforma da assistência pública. Para o desempenho desta
tarefa, Beatrice recebeu apoio de seu marido Sidney Webb, analista econômico da
Sociedade Fabiana. Segundo Pereira (2006, p. 109), o casal se tornou “uma das
influências intelectuais mais destacadas na realização das reformas iniciadas em 1905”.
Nessa comissão, Beatrice Webb integrava uma corrente minoritária que
defendia a abolição da lei dos pobres, ao passo que o grupo majoritário propunha apenas
algumas reformas a essa legislação (FRIELANDER, 1973, p. 49). Com base nos
estudos da comissão, o casal elaborou o Minority Report34, publicado em 1909, no qual
expunham suas próprias concepções sobre a assistência.
Rosanvallon (1984, p. 114) destaca pontos do Minority Report que são centrais
para o avanço da proteção social: a defesa de uma atuação preventiva na assistência
pública; a criação de uma “obrigação mútua entre o indivíduo e a comunidade”; e a
“manutenção universal de um mínimo de vida civilizada, que deve ser o objeto da
responsabilidade solidária de uma sociedade indissolúvel”.
A despeito do não acolhimento desse relatório, a influência do pensamento de
Sidney e Beatrice Webb se fez sentir à época e, mais tarde, surtiu efeitos pela atuação de
William Beveridge. Beveridge integrava a Sociedade Fabiana e atuara como secretário
do casal na comissão real (PEREIRA, 2006, p. 110). Nos anos que se seguiram, seu
trabalho foi decisivo para a seguridade social tal como configurada atualmente.
Nesse período, David Lloyd George emergiu como responsável por
importantes alterações em matéria de proteção social, papel que desempenhou na
condição de Ministro das Finanças (1908 a 1915) e de Primeiro Ministro (1916 a 1922).
33
Não se pode deixar de registrar, contudo, que a proteção trabalhista e previdenciária começou a dar
alguns passos no final do século XIX. Em 1880, o Employers’ Liability Act estabeleceu a
responsabilidade dos empregadores por lesões sofridas por seus empregados, porém sob o mecanismo de
responsabilidade subjetiva dos empregadores. Horvath Júnior (2008, p. 25) também aponta o advento do
Workmen’s Compensation Act, de 1897, que introduziu um sistema de seguro obrigatório contra acidentes
de trabalho fundado na responsabilidade objetiva.
34
Como se deduz do título do trabalho, o Minority Report trazia as discordâncias de Beatrice e Sidney
Webb em relação às conclusões que prevaleceram na comissão real.
37
Data de 1908 o Old Age Pension Act, lei que assegurou assistência aos idosos
sem exigência de contrapartidas. Em 1911 registrou-se o advento do seguro-doença e
do seguro-desemprego, este último complementado em 1920 e 1931. Também em
1925 foram instituídos benefícios em favor de viúvas e órfãos (ROSANVALLON,
1984, p. 114).
Com exceção do Old Age Pension Act, pode-se afirmar que o início do século
XX esteve marcado pela evolução da previdência social, não da assistência. O maior
desenvolvimento pode ser atribuído ao êxito das reivindicações dos trabalhadores
organizados. Ademais, durante a Primeira Guerra Mundial, o país absorveu a mão de
obra dos trabalhadores até então desempregados, diminuindo, pois, a demanda por
assistência.
Como funcionário do Ministério do Comércio, Beveridge destacou-se na
criação de uma rede nacional de oficinas de emprego e na implementação do programa
de seguro-desemprego instituído pelo National Insurance Act de 1911 (PEREIRA,
2009, p. 85). Em 1941, eleito deputado, ele foi incumbido de presidir uma comissão
interministerial que deveria orientar o estudo dos planos de seguro social e serviços
afins (BEVERIDGE, 1943, p. 5).
Os trabalhos dessa comissão resultaram na elaboração, em 1942, do Report on
Social Insurance and Allied Services, conhecido como “Plano Beveridge”.
Apesar de reconhecer que grande parte das contingências passíveis de acarretar
perda de rendimentos dos cidadãos já estava prevista na Grã-Bretanha, o plano
identificou alguns pontos falhos (BEVERIDGE, 1943). O primeiro deles foi a falta de
conexão entre os órgãos incumbidos de executar a política de seguridade social e
serviços afins. O segundo foi a limitação dos seguros sociais então existentes, que
favoreciam apenas empregados que obtivessem certos níveis de renda. Outro ponto
importante foi a insuficiência do valor dos benefícios para o atendimento adequado das
necessidades de seus titulares.
Como síntese do diagnóstico efetuado, foram indicados “cinco gigantes” a
serem combatidos: a Miséria, a Doença, a Ignorância, a Imundície e a Preguiça. Para
fazer frente a essa situação, o relatório propôs a revisão do modelo de proteção social
até então vigente, sugerindo o desenvolvimento de um eixo contributivo e outro
38
distributivo (PEREIRA, 2009, p. 93), como pilares de um regime de segurança social,
assim entendida:
garantia de um rendimento, que substitua o salário, quando se
interromperem estes pelo desemprego, por doença ou acidente, que
assegure a aposentadoria na velhice, que socorra os que perderam o
sustento em virtude da morte de outrem e que atenda a certas despesas
extraordinárias, tais como as decorrentes do nascimento, da morte e do
casamento. Antes de tudo, segurança social significa segurança de um
rendimento mínimo; mas esse rendimento deve vir associado a
providências capazes de fazer cessar, tão cedo quanto possível, a
interrupção dos salários. (BEVERIDGE, 1943, p. 189)
O Plano de Segurança Social valia-se de três métodos: (a) seguro social,
“para as necessidades básicas”, condicionado a realização de contribuições prévias35;
(b) assistência nacional, “para casos especiais”, independentemente de contribuições;
e (c) seguro voluntário “para os auxílios adicionais aos auxílios básicos”
(BEVERIDGE, 1943, p. 189).
Como se vê, o seguro social foi apresentado como forma de proteção contra
situações de perda de rendimentos, mas a segurança social não se esgotava nesses
seguros. Ao contrário, foram propostos um programa universalizante – apto a proteger
um contingente maior de pessoas –, a adequação das prestações às necessidades dos
titulares e de suas famílias, a atenção às ações e serviços de saúde e a organização do
emprego36.
A assistência foi apresentada como forma de “atender a todas as necessidades
que não forem satisfeitas pelo seguro”, em níveis aptos a satisfazer adequadamente tais
necessidades. Como fim permanente da assistência, Beveridge indicou o auxílio a
pessoas que não preenchessem condições de contribuir para o sistema, pessoas que não
preenchessem requisitos para recebimento de auxílios, pessoas com necessidades
qualificadas como “anormais” e pessoas necessitadas por razões não contempladas pelo
35
No texto original são empregadas as expressões social insurance e social security. Na versão em
português, publicada em 1943, o termo social insurance foi traduzido como seguro social, ao passo que o
termo social security foi traduzido como segurança social. Os termos não são usados como sinônimos: o
seguro social integra um plano de seguridade social, este mais amplo.
36
“Para Beveridge, esta nova política de segurança social só tem sentido se estiver ligada a uma política
de pleno emprego. Em 1944, escreve uma obra sobre este tema, Full Employment in a Free Society
(Trabalho Para Todos Numa Sociedade Livre). De facto, para ele, o desemprego é o principal risco
social. De um certo ponto de vista, toda a política social que preconiza quase compara a doença, o
acidente, a maternidade ou a velhice a períodos de inactividade forçada. ‘Deve ser uma função do
Estado’, escreve, ‘proteger os seus cidadãos contra o desemprego de massa, tão definitivamente que,
actualmente, a função do Estado consiste em defender os cidadãos dos ataques externos e dos roubos e
violência internos’” (ROSANVALLON, 1984, p. 115-116).
39
seguro. Além disso, apontou uma finalidade transitória de prover meios de subsistência
no período de transição do modelo vigente para o modelo de seguro social proposto, isto
é, no período de expansão do sistema de pensões contributivas (BEVERIDGE, 1943,
p. 219-220).
A assistência surgiu como mecanismo subsidiário em relação ao trabalho e ao
seguro social e, para que a subsidiariedade fosse observada, estabeleceu-se que as
prestações assistenciais deveriam ser menos vantajosas do que as prestações
securitárias. Isso nada mais representa do que o princípio da menor elegibilidade. Vale a
leitura do relatório:
Servirá a assistência para atender a todas as necessidades que não
forem satisfeitas pelo seguro. Devem ser atendidas tais necessidades
de maneira adequada ao nível de subsistência; mas os beneficiados
devem ver na assistência algo menos desejável do que o auxílio de
seguro, pois, se assim não for, nada lucrarão os segurados com as suas
contribuições. Só se ministrará assistência mediante prova das
necessidades e exame dos recursos do beneficiado; dependerá ela
também de algumas condições de comportamento, que possam
parecer adequadas a apressar o restabelecimento da capacidade
produtiva. (BEVERIDGE, 1943, p. 219)
Embora propondo a unificação dos chamados “testes de meios” ou “provas de
indigência” para concessão dos benefícios, não se afastou completamente a ideia de
prestação de alguma forma de contrapartida por parte dos beneficiários, o que se
depreende a partir do exame do que Beveridge chamou de “casos especialmente
difíceis”:
Na base de qualquer sistema de segurança social, que abranja todos os
que aceitam justas e razoáveis condições de seguro e de assistência,
deve haver provisões para uma limitada classe de homens e mulheres,
que, por fraqueza ou maldade de caráter negam o seu assentimento.
Em última análise, o homem que deixa de satisfazer as condições para
obter os benefícios do seguro ou da assistência e deixa a família sem
recursos deve ficar sujeito a tratamento penal. (BEVERIDGE, 1943,
p. 221)
A partir do trabalho de Beveridge, a proteção social britânica foi ampliada por
meio de medidas como o Family Allowances Act (1945), o National Insurance Act (1946),
o Serviço Nacional de Saúde (1946) e a criação da Lei Nacional de Assistência (1948).
Nessa evolução, a delimitação de um campo específico da assistência social e
seu tratamento como um dever estatal significaram mudanças importantes, sobretudo
40
porque se distingue da caridade, da filantropia e das formas punitivas de atenção à
pobreza. A propósito, transcreve-se Carro (2008, p. 14-15):
Nesse conjunto de regulações, e em momentos históricos distintos,
ocorreu a singularidade de uma política social de proteção que não se
vinculou nem à legislação social do trabalho nem à proteção à saúde.
Um campo que se ocuparia da qualidade das relações como resistência
a riscos sociais que deterioram ou tornam precário o convívio
humano, ou ainda que provocam o isolamento, o abandono e a
apartação social. O núcleo primeiro dessas relações localiza-se na
experiência cotidiana da vida em família (genética ou construída) e as
transgressões que nele vão se apresentando reduzem sua capacidade
de ser o núcleo básico de proteção social. Outra centralidade está na
capacidade e na possibilidade concreta de provisionar a sobrevivência
de cada um sob os padrões aceitáveis em cada sociedade. As garantias
que a sociedade constrói para responder a essas situações, via de
regra, são as que constituem o campo da assistência social.
Esse relatório pode ser considerado a principal matriz dos modelos de
seguridade social existentes até hoje e, segundo Faleiros (1980, p. 45), inspirou quase
todos os sistemas de seguro social do pós-guerra.
Rosanvallon (1984, p. 115) aponta que esse informe foi “o primeiro documento
a exprimir os grandes princípios da constituição do Estado-providência moderno”37 e
observa que, embora a expressão Social Security38 tenha sido empregada anteriormente,
deve-se a Beveridge o desenvolvimento e a ampliação do conceito, cujo significado
ainda hoje se atribui ao termo.
O regime de segurança social preconizado por Beveridge no seu
relatório está em ruptura com a concepção restritiva dos “seguros
sociais” que se tinha afirmado através das diversas reformas dos anos
30, nos Estados Unidos ou na Europa. Assenta numa nova concepção
do risco social e do papel do Estado. A segurança social tem por
objetivo “libertar o homem da necessidade”, garantindo uma
segurança de rendimento. Considera como risco social tudo o que
ameace o rendimento regular dos indivíduos: doença, acidentes de
37
Divulgado em meio à Segunda Guerra Mundial, o relatório revela clara preocupação em evitar a
repetição do cenário socioeconômico existente no início do século XX, como destaca Hobsbawm (1995,
p. 162): “a Segunda Guerra Mundial foi, para os lados do vencedor, não apenas uma luta pela vitória
militar, mas – mesmo na Grã-Bretanha e nos EUA – por uma sociedade melhor. Ninguém sonhava com
um retorno ao pré-guerra de 1939 – nem mesmo a 1928 ou 1918, como os estadistas após a Primeira
Guerra Mundial haviam sonhado com uma volta ao mundo de 1913. Um governo britânico sob Winston
Churchill se comprometeu, no meio de uma guerra desesperada, com um Estado do Bem-Estar
abrangente e o pleno emprego. Não foi por acaso que o Relatório Beveridge saiu com estas
recomendações num dos anos mais negros da desesperada guerra da Grã-Bretanha: 1942”.
38
A Constituição Mexicana de 1917 empregou a expressão seguridad social. O termo Social Security
foi empregado em 1935 nos Estados Unidos, com a aprovação do Social Security Act.
41
trabalho, morte, velhice, maternidade, desemprego. Perante as
políticas parciais existentes, resultantes de reformas parciais e
limitadas, propõe a criação e um sistema global e coerente.
(ROSANVALLON, 1984, p. 115)
Por outro lado, o Relatório Beveridge teve aspectos negativos, como ressalta
Pereira (2009, p. 94):
o referido Relatório teve seus pontos fracos, que remontavam aos
conservadores anos 1930, para não falar de objetivos em conflito,
presentes no seu intento de equilibrar, de um lado, direitos e deveres,
e, de outro, o incentivo à seguridade, o individualismo e o coletivismo
(Timmins). Dentre os pontos fracos, dois podem ser citados: o
estabelecimento de um mínimo nacional como padrão de
sobrevivência, sendo que a definição desse padrão tinha a conotação
de ínfimo de provisão. Além disso, essa provisão mínima estava
baseada no princípio da contribuição e de benefícios uniformes,
referentes ao seguro; isto é, todos pagavam a mesma quantia para
receber a mesma cobertura. Tal medida gerou déficit de recursos, além
de baixo atendimento às necessidades sociais. Nesse sentido, o
mínimo concebido por Beveridge, como um direito de todos, tinha o
velho ranço liberal e, por conseguinte, deveria funcionar apenas como
um incentivo ao trabalho e à autoprovisão. Isso, sem falar nas
intenções subjacentes aos arranjos de proteção social voltados para a
família, visando mantê-la unida, sob o comando do homem, que teria
a sua força de trabalho reproduzida com a colaboração doméstica
gratuita da mulher.
Como se verifica da evolução histórica britânica, ao longo de séculos as
práticas assistenciais representaram uma forma de “gerenciamento” – e não de redução
ou erradicação – da pobreza, o que explica o caráter punitivo de muitas de suas ações.
Só se pôde vislumbrar uma mudança de perspectiva, com preocupações mais
acentuadas com o enfrentamento da pobreza (e não com o controle das pessoas pobres)
a partir do século XX. Por isso mesmo, não se pode diminuir a importância que o
Relatório Beveridge teve para a evolução da seguridade social.
1.5
O modelo francês de proteção social
A assistência social na França teve início semelhante ao verificado na GrãBretanha.
Entre os séculos XII e XIV, instituições religiosas de assistência foram
fundadas no país. Além dessas instituições, autoridades municipais assumiram
42
atribuições no atendimento às populações carentes. Essa tarefa se desenvolveu em nível
local, seguindo critérios rigorosos de seleção dos assistidos (CASTEL, 2010, p. 71).
No século XIV, criaram-se políticas locais de atendimento baseadas na
restrição à mendicância, na obrigatoriedade do trabalho e no atendimento limitado a
integrantes da comunidade. Castel (2010, p. 100) apresenta alguns exemplos de como a
assistência e o dever de trabalho caminharam juntos nesse período, os quais são
destacados a seguir.
Um decreto de 1351 determinou às pessoas ociosas de Paris que passassem a
exercer alguma tarefa ou deixassem a cidade em três dias, sob pena de castigos
corporais. Em 1354, determinou-se que trabalhadores braçais se dirigissem aos locais
onde se recrutavam serviços dessa natureza, para então trabalharem recebendo os preços
pagos pela jornada dos trabalhadores desses ofícios. Em 1413, ordenou-se que
mendigos e mendigas aptos para o trabalho abandonassem a mendicância e ganhassem a
vida de outro modo.
Também entre os séculos XIII e XV, os poderes locais intensificaram sua
atuação no sentido da chamada “gestão racional da indigência”. Como parte desta
atuação, citam-se medidas como a imposição aos indigentes do uso de distintivos – para
controle de seu acesso às distribuições de esmolas e às instituições hospitalares – e
cadastro de mendigos em registros fiscais como um grupo profissional (CASTEL, 2010,
p. 71-72).
Em relação ao século XVI, Castel (2010, p. 73) identifica um movimento de
sistematização da assistência, por meio das seguintes medidas: “exclusão dos
estrangeiros, proibição estrita da mendicância, recenseamento e classificação dos
necessitados, desdobramentos de auxílios diferenciados em correspondência com as
diversas categorias de beneficiários”. O autor aponta a concessão de auxílios a
algumas categorias de indigentes aptos para o trabalho como uma inovação,
representando a tentativa da cidade de resolver os problemas de todos os seus
membros (Castel, 2010, p. 74).
No entanto, a França não deixou de vivenciar fases de vigilância e reclusão das
pessoas em situação de indigência. A esse respeito, Carro (2008, p. 39) menciona a
fundação do Grande Ofício dos Pobres de Paris, em 1544, “para assumir o
direcionamento social das camadas consideradas em perigo”.
43
A internação dos pobres na França foi expressamente determinada em 1556,
por meio do Decreto de Moulin (CASTEL, 2010, p. 74). Castel propõe uma leitura
interessante sobre o significado dessa reclusão. O autor interpreta a assistência prestada
nessas instituições fechadas como uma tentativa de reconstruir laços de pertencimento
comunitário (CASTEL, 2010, p. 74-77). Citando Goffman, Castel enfatiza que a
combinação entre trabalho, disciplina e oração seria, pois, uma forma de reeducar
indivíduos para retornarem ao convívio social como “um membro útil para o Estado”.
Vale a transcrição:
Os parênteses da reclusão com vocação reeducativa não são, pois, de
maneira alguma, contraditórios com o princípio de domiciliação da
assistência. Tentam reformulá-lo de modo original, tendo em vista que
as condições para o exercício de uma assistência por proximidade
tornaram-se desfavoráveis. Assim, Luis XIV pode afirmar que age “não
por meio de ordem de polícia” – que aqui diria respeito “aos membros
inúteis para o Estado”, e em primeiro lugar aos vagabundos – mas
“unicamente por caridade”, isto é, para ajudar os que ainda pertencem à
ordem comunitária. A reclusão não tem um fim em si mesma.
Desenvolve uma estratégia sinuosa que consiste, num primeiro
momento, em fazer um corte em relação ao meio circundante a fim de,
num segundo momento, ter os meios de reeducar o mendigo válido
para, num terceiro momento, reintegrá-lo. (CASTEL, 2010, p. 78)
Até o final do Antigo Regime, houve perseguição às pessoas desprovidas de
meios de subsistência, sobretudo às consideradas “forasteiras”. Essa perseguição
significou nada menos do que banimento, pena de morte, imposição de trabalhos forçados
por meio de reclusão e deportação para as colônias (CASTEL, 2010, p. 122-127).
O último marco normativo desse tratamento data de 1764, quando um decreto
real equiparou mendigos válidos a vagabundos e condenou os homens nessa situação às
galeras; impôs a reclusão a mulheres e crianças; e determinou que pessoas doentes e
inválidas seriam encaminhadas para tratamento domiciliar ou hospitalar (CASTEL,
2010, p. 78-79).
Após a Revolução Francesa – e muito embora essa revolução tenha se voltado
essencialmente à promoção de igualdade formal, mediante supressão dos privilégios
estamentais, e não à promoção de igualdade material –, as concepções fundantes da
assistência prestada no país passaram por transformações.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 178939 não tratou
especificamente da assistência.
39
Sobre a força normativa dessa declaração, assevera Comparato (2006, p. 147): “A Declaração de 1789
foi, aliás, em si mesma o primeiro elemento constitucional do novo regime político. Pelo fato de ter sido
44
Na declaração de direitos da Constituição de 1791 que, segundo Comparato
(2006, p. 149), foi pioneira em reconhecer direitos humanos de caráter social, previu-se
a criação de um estabelecimento geral de Assistência Pública, nos seguintes termos:
Será criado e organizado um estabelecimento geral de Assistência
Pública, para educar as crianças abandonadas, ajudar os enfermos
pobres e fornecer trabalho aos pobres válidos que não tenham podido
encontrá-lo. (FRANÇA, 1791 apud COMPARATO, 2006, p. 157)
Indicando a concepção de que caberia ao Estado assegurar a sobrevivência de
pessoas em situação de necessidade – o que, implicitamente, indica a superação da ideia
de que a pobreza era decorrente de fracassos ou culpas individuais –, a declaração de
direitos da Constituição de 1793 consagrou o direito à assistência:
Art. 21. A assistência pública é uma dívida sagrada. A sociedade deve
sustentar os cidadãos infelizes, dando-lhes trabalho, ou assegurando os
meios de subsistência aos que não estejam em condições de trabalhar.
(FRANÇA, 1793 apud COMPARATO, 2006, p. 159)
Carro (2008, p. 41) relata que as primeiras categorias a serem atendidas pela
assistência foram crianças, idosos e indigentes. Em 1794, passaram a ser abrangidas
mulheres com crianças a seus cuidados e beneficiários de socorros. Também nesse ano,
surgiu a previsão de assistência médica domiciliar.
A mesma autora avalia que a proclamação do dever de assistência, com a
previsão de que a subsistência das pessoas pobres deveria ser assegurada, é expressão
da solidariedade social (CARRO, 2008, p. 41).
Sem descuidar da importância de se reconhecer a assistência como um dever,
não se pode também desprezar o fato de que a Constituição de 1793 não chegou a ser
aplicada (COMPARATO, 2006, p. 151). Tampouco se deve esquecer que a ruptura com
o Antigo Regime não se deveu a preocupações com a promoção da igualdade material.
Portanto, não se pode falar em uma evolução linear e sem contradições na assistência
social francesa.
publicada sem a sanção do rei, houve quem a interpretasse, de início, como simples declaração de
princípios, sem força normativa. Mas em pouco tempo a assembléia aceitou as idéias expostas por Sieyès
em sua obra famosa e reconheceu que a competência decisória por ela exercida emanava diretamente da
nação, como poder constituinte, e que o rei não passava de poder constituído, cuja subsistência como tal,
de resto, dependia ainda de uma aprovação explícita da assembléia, no texto constitucional a ser votado”.
45
Nesse sentido, verifica-se que a declaração de direitos da Constituição de 1795
não contemplou previsões de teor equivalente ao de suas antecessoras no tocante à
assistência, dando prevalência à ordem privatista burguesa (COMPARATO, 2006, p. 153).
Avançando algumas décadas, chega-se à Constituição de 1848 que, segundo
Comparato (2006, p. 165), caracterizou-se por um compromisso entre liberalismo e
socialismo. O autor explica que, ao mesmo tempo em que inova ao prever deveres
sociais do Estado em face de trabalhadores e grupos necessitados, essa constituição
revela a preocupação de formar mão de obra para o mercado de trabalho. Ainda assim, o
autor identifica nessa constituição um ponto de partida para o Estado de Bem-Estar
Social, que seria consolidado no século seguinte (COMPARATO, 2006, p. 165-166).
Sua afirmação decorre da seguinte previsão:
Art. 13. A Constituição garante aos cidadãos a liberdade de trabalho e
de indústria. A sociedade favorece e encoraja o desenvolvimento do
trabalho, pelo ensino primário gratuito, a educação profissional, a
igualdade nas relações entre o patrão e o operário, as instituições de
previdência e de crédito, as instituições agrícolas, as associações
voluntárias e o estabelecimento, pelo Estado, os Departamentos e os
Municípios, de obras públicas capazes de empregar os braços
desocupados; ela fornece assistência às crianças abandonadas, aos
doentes e idosos sem recursos e que não podem ser socorridos por
suas famílias. (FRANÇA, 1848 apud COMPARATO, 2006, p. 168)
Paralelamente à afirmação do dever de prover assistência a todos os membros
da sociedade, emergiram reações no sentido de que o Estado não deveria assumir a
responsabilidade pelo enfrentamento da pobreza.
A esse respeito, registra-se que, em 1889, o Congresso Nacional de Assistência
Pública e Privada, parte da Exposição Universal ocorrida em Paris, marcou a discussão
em torno de duas ideias: a assistência como um dever (La Rochefoucauld Liancourt) e a
assistência como sinal de degeneração dos costumes (Thiers)40. Esse congresso teve
40
“Em Paris, ganhava hegemonia uma concepção de equilíbrio entre a afirmação do direito assistencial,
constante na Constituição de 1848 e sua oposição, desenvolvida em 1850 por Thiers, negando que o
Estado devesse assumir a assistência à pobreza dentre suas funções. A primeira, baseada nas concepções
altruístas de La Rochefoucauld Liancourt, substituiu a luta dos trabalhadores pela garantia do direito ao
trabalho, pelo direito à assistência, que Marx contesta numa de suas observações de O Capital. Nessa
concepção, a assistência não seria um benefício, mas sim um dever da “República” que, através de uma
assistência fraternal, deveria assegurar a existência de cidadãos necessitados, dando-lhes trabalho nos
limites de suas forças, ou dando, em falta da família, socorros aos que não estivessem em condições de
trabalhar. Thiers, por sua vez, em 1850, considera tal ação como ‘a destruição dos costumes, do amor ao
trabalho’, como ‘um desmando’, na medida em que ocorre o emprego do fundo público ‘além da exata
necessidade’. Para ele, a assistência deveria se restringir à singela manifestação da caridade de todo ser
46
grande influência nas reflexões brasileiras sobre assistência social da época, haja vista a
participação de um magistrado brasileiro no evento, Ataulpho Nápoles de Paiva.
A despeito desses antagonismos, a assistência social francesa não só antecedeu
os sistemas de seguro social, como também introduziu medidas diferentes daquelas que
constituíam o sistema quase punitivo das Poor Laws inglesas.
Com efeito, entre 1889 e 1913 foram promulgadas leis dispondo sobre amparo
a crianças, gestantes e famílias necessitadas, bem como sobre assistência médica
gratuita (CARRO, 2008, p. 43-44)41. Desde o século XIX, as leis francesas de
assistência previam mecanismos de garantia de subsistência aos indigentes, incluindo
trabalhadores temporariamente privados de suas fontes de renda42.
De outra senda, seguros sociais só entraram nas agendas políticas a partir da
década de 1920, como mostra Rosanvallon (1984, p. 120-121). O primeiro Projeto de
Lei sobre seguros sociais foi apresentado em 1921, tendo sido aprovado somente em
1928. Em 1930, foram instituídos seguros sociais para cobertura dos eventos de doença,
maternidade, velhice, invalidez e morte em um formato que, segundo o autor,
“representava uma espécie de compromisso entre o regime de seguro obrigatório à
alemã e o mutualismo à inglesa”. Em 1932, foi votada a lei sobre os abonos de família,
restritos aos assalariados43.
Em 1945, o Decreto 45-2258, de 4 de outubro, instituiu o sistema francês de
seguridade social. Esse sistema assentava-se sobre o princípio contributivo e destinavase a proteger “os trabalhadores e suas famílias”. Fundado sobre o princípio de gestão
humano. Seria, pois, a simples manifestação voluntária e espontânea da virtude dos indivíduos.”
(SPOSATI, 1987, p. 120-1).
41
Carro (2008, p. 47) apresenta um quadro com os marcos temporais relevantes para o estudo da
assistência social na França, principiando no século XVI e terminando no ano de 1941.
42
A referência territorial continua sendo fulcral para o acesso às prestações assistenciais francesas, como
se extrai da seguinte passagem: “Bruno Palier apresenta um estudo sobre as mudanças nos critérios de
acesso às prestações sociais e aos laços sociais. Esse estudo assinalou que, embora até o século XIX a
comuna tenha sido o primeiro lugar de incumbência de responsabilidade da assistência pública, a questão
do domicílio como condição de acesso à prestação da assistência não mudou, ainda quando foram
definidas leis de caráter nacional de assistência social durante 1893. O caráter nacional do dispositivo de
assistência não impediu que o lugar de residência, a base territorial continuasse sendo o modo principal de
aquisição dos benefícios sócio-assistenciais. Foi com as leis de seguros sociais que o critério mudou para
a hegemonia da concepção de cotização e a pertença socioprofissional como substrato da proteção social,
em vez da residência.” (CARRO, 2008, p. 48).
43
Rosanvallon (1984, p. 121) relata que essa lei foi criticada pelos economistas liberais, pois o nível de
rendimento deixava de depender apenas do salário. Como se percebe, o sistema funcionava em moldes
semelhantes ao sistema de Speenhamland, mas sem registro de consequências semelhantes às relatadas
sobre a experiência britânica.
47
mutualista operária, esse decreto se aproximava do modelo bismarckiano de seguro
social (ROSANVALLON, 1984, p. 121; CARRO, 2008, p. 51).
No ano seguinte, em 1946, a nova Constituição preceituou em seu preâmbulo que:
A Nação proporciona ao indivíduo e à família as condições
necessárias para seu desenvolvimento.
Garante a todos, em especial às crianças, à mãe e aos trabalhadores
idosos, a proteção da sua saúde, de sua seguridade material, de seu
descanso e de seu tempo livre. Todo ser humano que, em razão da sua
idade, de seu estado físico ou mental ou da situação econômica,
encontre-se incapacitado para trabalhar, tem direito a obter da
coletividade meios de existência decorosos. (FRANÇA, 1946 apud
CARRO, 2008, p. 50)
Apesar do desenvolvimento de sistemas fundados no prévio custeio, Carro
(2008, p. 51) afirma que “a assistência pública continuou incorporando as categorias
que o sistema de seguridade social – ou o regime autônomo – não tinha condição de
incorporar, seja pela idade do interessado ou pela condição física”. Na reforma da
assistência social de 1953, ampliou-se o espectro de proteção por meio da incorporação
de novas necessidades (CARRO, 2008, p. 54-55).
Rosanvallon (1984, p. 120) assevera ainda que um verdadeiro sistema de
seguro-desemprego só foi instituído em 1958; até então, muitos desempregados
dependiam da assistência social, até porque as normas sobre assistência-desemprego de
1951 seguiam critérios de acesso restritos.
Segundo Carro (2008, p. 31), atualmente a assistência social francesa é
“herdeira, em sua forma moderna, dos princípios de direito à assistência, proclamados
durante a Revolução Francesa”. Em comparação com sistemas de seguridade que têm a
assistência como subsistema, o modelo francês apresenta uma peculiaridade: seguridade
social e assistência social são tratadas como dois pilares do sistema de proteção social
(CARRO, 2008, p. 32). Em outras palavras, a seguridade não é vista como gênero da
qual a assistência social seja espécie; na verdade, seguridade e assistência são espécies
do gênero proteção social.
Concluindo este tópico, chama-se a atenção para dois aspectos importantes da
evolução da assistência social na França. O primeiro é o fato de muito cedo o Estado ter
assumido o dever de prestar assistência aos membros da sociedade, afastando-se de
concepções vinculadas à caridade ou ainda de posturas de extrema repressão às pessoas
48
vivendo em situação de pobreza. O segundo aspecto a ser destacado é que a assistência
social na França não se desenvolveu como apêndice dos sistemas fundados na
contribuição dos potenciais beneficiários – ao contrário, a proteção não contributiva se
desenvolveu com autonomia em relação à proteção social contributiva.
1.6
O modelo germânico de proteção social
A experiência germânica em matéria de proteção social não se deve à produção
normativa em matéria de assistência social, mas ao seu pioneirismo em instituir
sistemas de proteção social fundados na filiação compulsória, o que ocorreu a partir do
final século XIX.
Isso não significa que, antes do século XIX, não existisse assistência aos
pobres e indigentes. Há interessantes registros históricos a esse respeito que, observe-se,
antecedem a unificação alemã. Com base na obra de Friedlander (1973, p. 11-13), as
experiências de três cidades – Hamburgo, Munique e Elberfeld – são resumidas a
seguir.
Hamburgo instituiu um sistema de assistência aos indigentes, cujas atividades
eram custeadas por impostos e doações. Nesse sistema, as cidades eram divididas em
distritos e em cada um deles era gerido por uma comissão responsável por investigar
condições de vida dos indigentes e das famílias pobres e distribuir ajuda.
Em 1790, adotou-se em Munique um sistema de assistência com financiamento
misto. O sistema de Munique contava ainda com uma fábrica de vestuário para o
exército, cuja mão de obra era formada por mendigos aptos para o trabalho.
Em 1853, a cidade de Elberfeld criou um sistema semelhante ao de Hamburgo
e Munique, mas totalmente financiado por impostos. Outra peculiaridade de Elberfeld
era o fato de os integrantes das comissões de assistência residirem no distrito de sua
atuação, o que aumentava a vigilância e também o conhecimento sobre as famílias
atendidas.
Mas as políticas sociais que projetaram reflexos fora do país e, inclusive,
influenciaram a regulação britânica sobre o tema são posteriores à unificação alemã.
49
O mentor dessas políticas foi o chanceler alemão Otto von Bismarck, político
conservador que havia sido responsável pela unificação do país.
Bismarck buscava conter o avanço do socialismo e chegou a proibir a atuação
do partido social-democrata em 1878. Segundo Rosanvallon (1984, p. 116), “para
compensar esta repressão, procurou desenvolver uma política social ativa”, o que
resultou em uma legislação de proteção social.
Foi nesse cenário que, já no ano de 1881, o Governo imperial propôs ao
Parlamento a criação de um seguro obrigatório contra acidentes do trabalho
(ROSANVALLON, 1984, p. 116). A implantação do sistema de seguros ocorreu de
forma gradativa. Principiou com a criação do seguro-doença, em 15 de junho de
1883. Em 6 de julho de 1884 foi aperfeiçoado com a criação do seguro contra acidentes
do trabalho, “que aplicou os princípios decididos em 1881” (ROSANVALLON, 1984,
p. 116). Finalmente, em 22 de junho de 1889, instituiu-se o seguro velhice-invalidez.
O seguro-doença era custeado por empregados e empregadores, na proporção
de dois terços e um terço, respectivamente44. O seguro contra acidentes do trabalho era
custeado com contribuições dos empregadores. O seguro velhice-invalidez era custeado
por empregados e empregadores em iguais proporções. Todas essas leis foram
consolidadas em 1911, com o advento do Código dos Seguros Sociais.
O modelo bismarckiano antecedeu o Plano Beveridge e representou
significativa mudança na compreensão das causas da pobreza como fruto do
desenvolvimento capitalista (PEREIRA, 2009, p. 60-61). Pela primeira vez atribuiu-se
ao Estado a obrigação de financiar e gerir o sistema de seguros sociais (MESTRINER,
1992, p. 21-22). Como ensina Santos (2003, p. 144):
Nessa fase, já não se tratava mais de um simples seguro. Havia a
necessidade de se criar, dentro daquele Estado liberal, certo
mecanismo redutor não apenas dos conflitos e prejuízos, mas de
desigualdades sociais. O seguro social passou a ter uma vocação
institucional de redistribuição de rendas, com vistas ao consumo
daqueles bens que o Capitalismo vai produzindo cada vez em maior
quantidade. Era preciso dar vazão a essa produção. Paralelamente, a
idéia de solidariedade foi adquirindo configuração jurídica e tornou-se
o elemento mais importante do conceito de proteção social, o que fez
44
Rosanvallon relata que o seguro-doença foi gerido por instituições autônomas sob controle estatal. De
forma proporcional ao custeio por empregados e empregadores, os primeiros ocupavam dois terços dos
lugares no conselho dessas instituições e os últimos ocupavam o terço remanescente. Em sua avaliação, o
reconhecimento de que “a classe operária estava em situação de gerir patrimônio coletivo” resultou em uma
“experiência fundamental para a história da social-democracia alemã” (ROSANVALLON, 1984, p. 117).
50
com que os elementos conceituais do seguro passassem a perder
importância. O fenômeno era econômico, ao mesmo tempo em que os
direitos sociais clamavam por melhor conformação.
Segundo Nascimento (2007, p. 32), “o seguro social alemão foi bem sucedido
em seu duplo objetivo: primeiro, melhorar as condições de vida dos trabalhadores;
segundo, acalmar as reivindicações do movimento socialista”.
No entanto, cuidava-se de um modelo fundado no prévio custeio por parte dos
beneficiários das prestações. Por isso, só incluía no campo da proteção social aqueles que
integrassem a categoria de trabalhadores. Comparado ao modelo britânico, o modelo
bismarckiano não introduziu avanços imediatos na legislação de assistência social.
Porém, esse modelo foi de grande valia porque impulsionou as reflexões sobre
riscos individuais a serem amparados pela sociedade. A noção de risco e de seu
compartilhamento por toda a sociedade acabou por sair dos limites da previdência social
e se estender a toda a seguridade social, o que inclui a assistência social. Como bem
analisa Carro (2008, p. 13), a noção de risco que envolveu o seguro social foi uma
construção racional, diferente das concepções que transitavam entre a moralidade e o
secularismo. Nessa medida, prossegue, “diferenciou-se notavelmente das formas
tradicionais de assistência social”.
Outro grande salto em matéria de proteção social na Alemanha foi dado com a
Constituição de Weimar de 1919, que aprimorou o modelo de Estado Social inaugurado
pela Constituição Mexicana de 1917. Na seção intitulada “A Vida Econômica”, a
Constituição alemã avançou enormemente em matéria de direitos sociais e proteção
contra a pobreza ao estabelecer que:
Art. 161. Para conservação da saúde e capacidade de trabalho, para
proteção da maternidade e assistência contra as consequências
econômicas da velhice, da invalidez e das vicissitudes da vida, o
Estado Central (Reich) institui um amplo sistema de seguros, com a
colaboração obrigatória dos segurados.
Art. 162. O Estado central toma a iniciativa de propor uma regulação
internacional das relações jurídicas de trabalho, tendente a criar um
padrão mínimo geral de direitos sociais. (ALEMANHA, 1919 apud
COMPARATO, 2006, p. 194-195)
Apesar de sua curta vigência, essa Constituição produziu forte impacto no
desenvolvimento das instituições políticas ocidentais, conferindo estrutura mais
elaborada ao Estado Social que começara a se delinear com a Constituição Mexicana de
51
191745 (COMPARATO, 2006, p. 189). Nesse mesmo sentido, Nunes Júnior (2009, p. 52)
afirma que a Constituição de Weimar “embora não tenha tido a minudência na
discriminação de direitos trabalhistas como sua antecessora mexicana, teve a fortuna de
veicular um rol muito mais amplo de direitos sociais”.
1.7
O modelo norte-americano de proteção social
De modo geral, as colônias norte-americanas seguiram as Leis dos Pobres
vigentes na Inglaterra. Tanto pela herança cultural inglesa, quanto pelas dificuldades
advindas da sobrevivência no novo continente, os colonos viam indigentes, mendigos e
vagabundos como delinquentes e, como regra, recusavam esmolas àqueles que
estivessem em condições de trabalhar (FRIEDLANDER, 1973, p. 77)46.
Porém, quando a assistência aos pobres se fez inevitável, as comunidades
locais adotaram o local de residência do solicitante como critério para concessão de
auxílio. Contudo, os beneficiários desses auxílios eram estigmatizados mediante ampla
divulgação de seus nomes em listas abertas a consulta pública e obrigatoriedade do uso
de distintivos. É o que descreve Friedlander (1973, p. 79):
Cualquiera que fuese la causa de su desgracia, el indigente era tratado
como si fuera una persona moralmente deficiente. Tenía que prestar el
“juramento de indigente” y su nombre era registrado en la “lista de los
pobres” que se exhibían en ayuntamientos de la ciudad o en el
mercado. Los periódicos locales publicaban los nombres de todos los
indigentes, con la cantidad que se les daba de ayuda. En Pensilvania,
los indigentes (paupers) tenían que usar la letra romana “P” sobre el
hombro de la manga derecha. Los indigentes ancianos e inválidos, que
se habían residido durante largo tiempo en la parroquia eran
considerados “pobres dignos” si se atenían a las normas morales del
vecindario; todos los demás, particularmente los extranjeros y los
recién llegados, eran considerados “pobres indignos”. La negación del
derecho de sufragio a los mendigos prevalecía en todas partes. El
carácter represivo y punitivo de la ayuda al pobre, tal como se había
venido desarrollando en Inglaterra, fue también sostenido en el Nuevo
Mundo.
45
ESTADOS UNIDOS MEXICANOS. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. 5 de
fevereiro de 1917. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em:
22 out. 2011.
46
A evolução histórica apresentada neste tópico é praticamente toda baseada na obra de Friedlander (1973).
52
Entre os séculos XVII e XIX, o auxílio em nível local se mostrou
insuficiente. Isso levou os Estados a assumirem a responsabilidade pelo sustento dos
chamados
“pobres
do
Estado”,
dos
veteranos
e
de
seus
dependentes
(FRIEDLANDER, 1973, p. 100-101).
Além disso, entre o final do século XIX e início do século XX, foram
aprovadas diversas leis estaduais de assistência aos cegos. Curiosamente, em relação
aos surdos e surdos-mudos, a atenção pública limitava-se à sua educação, não à sua
assistência (FRIEDLANDER, 1973, p. 97-100).
Também nesse período, cresceram em importância as associações filantrópicas
(FRIEDLANDER, 1973, p. 82). Diversas sociedades de organização caritativa se
desenvolveram e passaram a conhecer com maior profundidade as causas da pobreza,
superando em alguma medida a ideia de culpa individual pela pobreza e iniciando a
defesa de reformas sociais. No entanto, mantiveram postura avessa à prestação de
auxílio público aos pobres, entendendo que essa forma de amparo prejudicava a
iniciativa individual e corrompia os necessitados, além de ser mais onerosa aos cofres
públicos (FRIEDLANDER, 1973, p. 109-113).
Em 1909, após a realização da Conferência sobre Cuidado de Crianças
Dependentes, o Poder Público central assumiu maior protagonismo na assistência social
às crianças. Três deliberações importantes resultaram dessa conferência: (a) crianças não
deveriam ser retiradas do convívio de sua família por motivos econômicos; (b) crianças
que houvessem deixado suas famílias deveriam ser encaminhadas prioritariamente a
lares adotivos; (c) deveriam ser criadas instituições específicas para acolhimento de
crianças, adotando-se o modelo de pequenas instituições. Ainda como resultado dessa
conferência, criou-se o primeiro órgão federal de assistência social, em 1911
(FRIEDLANDER, 1973, p. 132-133). Essas conferências se repetiram em 1919, 1930,
1940, 1950 e 1960 (FRIEDLANDER, 1973, p. 135).
A mudança substancial no enfrentamento da pobreza nos EUA ocorreu com a
Grande Depressão de 1929. O aumento do desemprego e, consequentemente, da busca
por auxílio material mostrou o potencial limitado das entidades privadas de
beneficência. Além disso, evidenciou-se o equívoco em tratar a pobreza como resultado
de fracassos individuais. Ainda assim, o então presidente Herbert Hoover (1928-1932)
insistiu na ideia de que caberia às organizações privadas dar suporte aos grupos
53
necessitados, ao mesmo tempo em que os Estados se recusavam a assumir maiores
responsabilidades em matéria de assistência (FRIEDLANDER, 1973, p. 138-141).
Com o agravamento da crise, diversos Estados implantaram programas de
assistência às pessoas sem trabalho. Essas medidas, todavia, não foram bastantes e os
governos locais pressionavam o Governo Federal a aumentar sua participação. Sob a
presidência de Herbert Hoover, a única medida aprovada foi a Lei de Auxílio e
Construção, de 1932, que dispunha sobre a transferência de verba para obras e serviços
públicos (FRIEDLANDER, 1973, p. 141).
Com a eleição e posse de Franklin D. Roosevelt, esse cenário começou a
mudar. Em 1933, a Lei de Auxílio Federal de Emergência representou a ampliação do
papel do Governo Federal na promoção do bem-estar da população (FRIEDLANDER,
1973, p. 142).
Como parte do New Deal, o Social Security Act foi aprovado em 1935
(NASCIMENTO, 2006, p. 33). Pela primeira vez empregou-se o termo segurança
social – também passível de tradução como seguridade social –, que viria a ser utilizado
e desenvolvido por Beveridge.
À semelhança do que viria a ser o modelo britânico, esta lei estabeleceu um
tripé formado pelo seguro social, pela assistência pública e por serviços de saúde e
bem-estar (FRIEDLANDER, 1973, p. 157). Em 1950, a cobertura foi estendida aos
trabalhadores rurais, autônomos e domésticos (NASCIMENTO, 2006, p. 33).
As políticas de proteção social adotadas durante a Grande Depressão – e que
culminaram com o Social Security Act – expuseram os limites do potencial das
organizações privadas para atender integralmente às necessidades materiais da
população impedida de obter o próprio sustento mediante seu trabalho.
Ainda assim, a história norte-americana mostra que a assunção da
responsabilidade estatal pelas ações de assistência, tanto em nível federal quanto
estadual, só ocorreu quando foram esgotadas todas as possibilidades de atendimento às
necessidades sociais por meio do esforço individual e das entidades privadas de
assistência. Na verdade, quando outros países europeus já haviam criado sistemas
públicos de previdência e assistência, os EUA ainda nutriam a confiança de que a
iniciativa privada poderia resolver todas as questões sociais47.
47
Para Castel (2010, p. 41), “a ‘questão social’ pode ser caracterizada por uma inquietação quanto à
capacidade de manter a coesão de uma sociedade. A ameaça de ruptura é apresentada por grupos cuja
54
1.8
Outros registros históricos
Outros marcos históricos na evolução da proteção social, que tiveram reflexos
na evolução dos sistemas de seguridade social, devem ser registrados.
1.8.1 Encíclica Rerum Novarum (1891)
A Encíclica Rerum Novarum48, escrita pelo Papa Leão XIII e publicada em
1891, é frequentemente exaltada por sua importância no avanço dos direitos sociais.
Na leitura de Horvath Júnior (2008, p. 25), a obra seria fruto da análise da
“condição dos pobres e trabalhadores nos países industrializados” e articulação entre
Igreja e sociedade visando à construção de uma sociedade mais justa. Santos (2003, p. 39)
afirma que a Encíclica inicia formalmente o que se tornaria a Doutrina Social da Igreja e
registra que o pontífice acreditava em um caminho para a “reconciliação das classes
sociais” (SANTOS, 2003, p. 40).
Pode-se destacar nesse documento a defesa de maior intervenção do Estado na
economia e nas relações de trabalho, o que posteriormente representou um dos grandes
avanços da humanidade em matéria de direitos fundamentais.
No entanto, é preciso registrar que a Encíclica evidenciou a preocupação da
Igreja com o avanço das ideias socialistas ou, nas palavras de De Masi (2000, p. 52),
que “Leão XIII estava apavorado tanto com o conflito quanto com os socialistas e os
liberais”. E, de fato, a preocupação com o socialismo fica nítida em excertos como este:
3. Os Socialistas [...] instigam nos pobres o ódio invejoso contra os
que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares
deve ser suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser
existência abala a coesão do conjunto”. Essa definição permite identificar a chamada “questão social” em
diversos contextos, chamando-se a atenção para o fato de que as causas mudam, como também mudam as
formas de lidar com essas questões.
48
O texto da Encíclica, traduzido para o português, está disponível no site oficial do Vaticano. PAPA
LEÃO
XIII.
Encíclica
Rerum
Novarum.
15
de
Maio
de
1891.
<http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-nova
rum_po.html>. Acesso em: 1 maio 2011.
55
comuns a todos, e que a sua administração deve voltar para os
Municípios ou para o Estado. Mediante esta transladação das
propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades
que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um
remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de
ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse
posta em prática. Pelo contrário, é sumamente injusta, por violar os
direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e
tender para a subversão completa do edifício social.
A Encíclica propõe como solução para os conflitos sociais a conciliação entre
pobres e ricos, ou entre operários e patrões. E, ao fazê-lo, reforça que os operários e os
pobres têm o dever de trabalhar, o que confirma a avaliação de De Masi (2000, p. 57) de
que o trabalho é entendido “como sacrifício e como parte central da vida”. Algumas
outras transcrições da Encíclica corroboram essas observações:
O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são
inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os
ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo
obstinado. Isto é uma aberração tal, que é necessário colocar a verdade
numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no corpo
humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam
maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam um todo
exactamente proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim
também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a
unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em
perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não
pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital.
(…)
10. Entre estes deveres, eis os que dizem respeito ao pobre e ao
operário: deve fornecer integral e fielmente todo o trabalho a que se
comprometeu por contrato livre e conforme a equidade; não deve lesar
o seu patrão, nem nos seus bens, nem na sua pessoa; as suas
reivindicações devem ser isentas de violências e nunca revestirem a
forma de sedições; deve fugir dos homens perversos que, nos seus
discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças exageradas e lhe fazem
grandes promessas, as quais só conduzem a estéreis pesares e à ruína
das fortunas.
De um dos excertos de interesse para o estudo da assistência social consta a
defesa do atendimento das necessidades dos pobres por meio das “sobras” dos mais
abastados:
Ninguém certamente é obrigado a aliviar o próximo privando-se do
seu necessário ou do de sua família; nem mesmo a nada suprimir do
que as conveniências ou decência impõem à sua pessoa: “Ninguém
com efeito deve viver contrariamente às conveniências”. Mas, desde
que haja suficientemente satisfeito à necessidade e ao decoro, é um
dever lançar o supérfluo no seio dos pobres: “Do supérfluo dai
56
esmolas”. É um dever, não de estrita justiça, excepto nos casos de
extrema necessidade, mas de caridade cristã, um dever, por
consequência, cujo cumprimento se não pode conseguir pelas vias da
justiça humana.
A ideia de que a pobreza deveria ser atendida pelas “sobras” dos ricos é
profundamente arraigada na sociedade. Ainda que essa forma de pensar possa ser aceita
nas relações entre particulares, deve ser vivamente questionada quando se discute a
situação do cidadão perante o Poder Público. No Brasil, como se estudará adiante, o
aspecto mais importante da evolução da assistência social foi a luta para a ruptura com
esses padrões de atendimento à pobreza.
Por tudo isso, não se pode afirmar que a Encíclica buscava justiça social. É
certo que esse documento reconhece a desigualdade e propõe a melhoria da condição
geral de vida das populações mais pobres. No entanto, salienta De Masi (2000, p. 53),
nos termos da carta “tal desigualdade não justifica o conflito, que deve ser evitado de
qualquer jeito”.
Hobsbawm (1995, p. 118) também destaca a preocupação da Igreja com “a
ascensão do socialismo ateu”, mas reconhece na Encíclica uma renovação radical e
sintetiza seu conteúdo como
uma política social que acentuava a necessidade de dar aos
trabalhadores o que lhes era devido, mantendo ao mesmo tempo o
caráter sagrado da família e da propriedade privada, mas não do
capitalismo como tal.
Portanto, não se pode reconhecer na Encíclica Rerum Novarum uma
preocupação com a superação das desigualdades, mas sim com sua recondução a um
nível menos conflituoso.
1.8.2 Constituição Mexicana (1917)
De forma inédita, a Constituição Mexicana de 1917 atribuiu aos direitos
trabalhistas e previdenciários, previstos em seus artigos 5º e 123, o status de direitos
fundamentais.
Embora não tenha disciplinado de forma específica a assistência social, essa
constituição é extremamente detalhada e prevê mecanismos de assistência ao
57
trabalhador que não estão adstritos à disciplina do contrato de trabalho e aos direitos de
cunho previdenciário.
O artigo 123, A, XXV, por exemplo, determina a gratuidade do serviço de
colocação de trabalhadores e determina que, em igualdade de condições, se dê
prioridade àqueles que representem a única fonte de rendimentos da família49.
Além disso, Comparato (2006, p. 178, nota de rodapé 178) ressalta outras duas
grandes inovações: a exigência de que o Estado mexicano se paute pelo respeito aos
direitos humanos em suas relações internacionais50 e a previsão de que a propriedade
privada atenderia ao interesse público51.
1.8.3 Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)
Sob o impacto da Segunda Guerra Mundial, o processo de internacionalização
dos direitos humanos restou favorecido. Disso resultou a expansão das organizações
49
“XXV. El servicio para la colocación de los trabajadores será gratuito para éstos, ya se efectúe por
oficinas municipales, bolsas de trabajo o por cualquier otra institución oficial o particular.
En la prestación de este servicio se tomará en cuenta la demanda de trabajo y, en igualdad de condiciones,
tendrán prioridad quienes representen la única fuente de ingresos en su familia”. ESTADOS UNIDOS
MEXICANOS. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. 5 de fevereiro de 1917.
Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em: 22 out. 2011.
50
“Artículo 15. No se autoriza la celebración de tratados para la extradición de reos políticos, ni para la
de aquellos delincuentes del orden común que hayan tenido en el país donde cometieron el delito, la
condición de esclavos; ni de convenios o tratados en virtud de los que se alteren los derechos humanos
reconocidos por esta Constitución y en los tratados internacionales de los que el Estado Mexicano sea
parte”. ESTADOS UNIDOS MEXICANOS. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. 5
de fevereiro de 1917. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em:
22 out. 2011.
51
“Artículo 27. La propiedad de las tierras y aguas comprendidas dentro de los límites del territorio
nacional, corresponde originariamente a la Nación, la cual ha tenido y tiene el derecho de transmitir el
dominio de ellas a los particulares, constituyendo la propiedad privada.
Las expropiaciones sólo podrán hacerse por causa de utilidad pública y mediante indemnización.
La nación tendrá en todo tiempo el derecho de imponer a la propiedad privada las modalidades que dicte
el interés público, así como el de regular, en beneficio social, el aprovechamiento de los elementos
naturales susceptibles de apropiación, con objeto de hacer una distribución equitativa de la riqueza
pública, cuidar de su conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y el mejoramiento de las
condiciones de vida de la población rural y urbana. En consecuencia, se dictarán las medidas necesarias
para ordenar los asentamientos humanos y establecer adecuadas provisiones, usos, reservas y destinos de
tierras, aguas y bosques, a efecto de ejecutar obras públicas y de planear y regular la fundación,
conservación, mejoramiento y crecimiento de los centros de población; para preservar y restaurar el
equilibrio ecológico; para el fraccionamiento de los latifundios; para disponer, en los términos de la ley
reglamentaria, la organización y explotación colectiva de los ejidos y comunidades; para el desarrollo de
la pequeña propiedad rural; para el fomento de la agricultura, de la ganadería, de la silvicultura y de las
demás actividades económicas en el medio rural, y para evitar la destrucción de los elementos naturales y
los daños que la propiedad pueda sufrir en perjuicio de la sociedad”. ESTADOS UNIDOS
MEXICANOS. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. 5 de fevereiro de 1917.
Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em: 22 out. 2011.
58
internacionais, com destaque para a criação da Organização das Nações Unidas – ONU
em 1945 (PIOVESAN, 2010, p. 130).
Assinada em 26 de junho de 1945, a Carta das Nações Unidas consagra como
objetivo da organização obter “cooperação internacional para resolver os problemas
internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e
estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem
distinção de raça, sexo, língua ou religião” (ONU, 1945, art. 1º-3, apud COMPARATO,
2006, p. 216). Além disso, seu artigo 55 estatui que:
Art. 55 - Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar,
necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas
no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da
autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis
mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e
desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas
internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação
internacional, de caráter cultural e educacional; e c) o respeito
universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou
religião.(ONU, 1945 apud COMPARATO, 2006, p. 220)
Concebida como interpretação autorizada (PIOVESAN, 2010, p. 142) dos
artigos 1º-3 e 55 acima mencionados, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi
aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948. Note-se,
contudo, que este documento foi idealizado como uma recomendação da Assembleia
Geral aos membros das Nações Unidas – etapa que deveria anteceder a adoção de um
pacto ou tratado internacional sobre o tema (COMPARATO, 2006, p. 222-224).
Embora se possa argumentar que não se trata de documento com força vinculante, a alta
adesão dos Estados-partes – aprovação unânime por 48 Estados, com 8 abstenções –
“confere à Declaração Universal o significado de um código e plataforma comum de
ação”, nas palavras de Piovesan (2010, p. 141).
A Declaração trata do direito à segurança social e ao atendimento de suas
necessidades básicas em dois dispositivos, que seguem transcritos:
Artigo XXII
Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança
social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação
internacional e de acordo com a organização e recursos de cada
Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à
sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
[…]
59
Artigo XXV
1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si
e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e
direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez,
velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu
controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência
especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio,
gozarão da mesma proteção social52.
Ao comentar a Declaração, Comparato (2006, p. 227) aponta que esses incisos
tratam do direito à seguridade social e se pautam pelo princípio da solidariedade, tendo
por destinatários as classes ou grupos sociais “mais fracos ou necessitados”.
Em sentido um pouco diverso do que sustenta o autor, é possível afirmar que
essas disposições se destinam inclusive – e, pode-se dizer, sobretudo – às pessoas
desprovidas de meios próprios de subsistência, mas não exclusivamente a elas. Isso
porque o estabelecimento de patamares básicos de satisfação de necessidades humanas é
pretensão de cunho universalizante e, como tal, não comporta uma segmentação a
priori. Em suma: a disposição deve ser interpretada com o sentido mais amplo e
igualitário possível.
1.8.4 Convenção n. 102 da Organização Internacional do Trabalho sobre norma
mínima para seguridade social (1952)
A Organização Internacional do Trabalho – OIT, atualmente vinculada às
Nações Unidas, foi instituída em 1919, logo após a Primeira Guerra Mundial, e sua
Constituição passou a integrar a Parte XIII do Tratado de Versalhes53. A Constituição
original foi substituída pelo texto aprovado na 29ª reunião da Conferência Internacional
do Trabalho, em 1946, e sofreu alterações em 1997. O texto atualmente em vigor tem
como anexo a Declaração da Filadélfia, aprovada em 1944, que versa sobre fins e
objetivos da OIT e preconiza que “todos os seres humanos de qualquer raça, crença ou
sexo, têm o direito de assegurar o bem-estar material e o desenvolvimento espiritual
52
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10 de
dezembro
de
1948.
Disponível
em:
<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 03 mar. 2012.
53
LIGA DAS NAÇÕES. Part XIII of the Treaty of Peace of Versailles. Disponível em:
<http://www.ilo.org/public/english/bureau/leg/download/partxiii-treaty.pdf>. Acesso em: 23 out. 2011.
60
dentro da liberdade e da dignidade, da tranquilidade econômica e com as mesmas
possibilidades”.
A OIT surgiu com o objetivo de promover a valorização e a melhoria das
condições de trabalho, reconhecendo a importância do bem-estar físico, moral e
intelectual dos trabalhadores. Mas os objetivos dessa organização vão além das relações
de trabalho, ingressando no domínio de questões atinentes à segurança socioeconômica,
bem-estar e justiça social54, o que se comprova por sua intensa atuação na área da
seguridade social. Para Nascimento (2006, p. 33), com o surgimento dessa organização,
“a legislação social, antes um fenômeno basicamente europeu, expandiu-se pelos
demais países do mundo”55.
Entre as muitas normas aprovadas no âmbito da OIT com vistas ao incremento
dos níveis de proteção social em todo o mundo, está a Convenção n. 102 da OIT.
Aprovado em 28 de junho de 1952, este diploma estabelece padrões normativos
mínimos em matéria de seguridade social. Com isso, contribui para que a seguridade
social seja inserida nas agendas políticas de diversos países.
A Convenção n. 102 prevê patamares mínimos de prestações destinadas a
atender situações de: a) necessidade de serviços médicos; b) incapacidade laborativa,
temporária ou definitiva; c) desemprego; d) idade avançada; e) acidentes de trabalho e
doenças profissionais; f) responsabilidade pela manutenção de crianças; g) maternidade;
e h) morte.
Além de fixar o conteúdo mínimo de serviços e prestações que deverão ser
asseguradas aos residentes dos Estados-membros, a Convenção define percentuais
mínimos da população a ser integrada às redes de proteção social. Para o alcance desses
níveis de proteção, não há definição prévia sobre quais dessas prestações terão cunho
previdenciário e quais terão cunho assistencial. A escolha dos instrumentos mais
adequados cabe aos Estados-partes.
A maleabilidade conferida aos Estados-membros na elaboração de seus
sistemas de seguridade explica a adoção do termo período de carência (qualifying
54
“Com a incorporação da Carta de Filadélfia à Constituição resultante da revisão de 1946, a
competência da OIT foi incontroversamente ampliada, pois tornou explícito que as questões sociaistrabalhistas e as econômico-financeiras são interdependentes, razão por que, para adotar soluções
referentes às primeiras, é imprescindível, muitas vezes, estudar as segundas” (SÜSSEKIND et al., 1997,
p. 1443).
55
A participação no Brasil na OIT desde sua fundação implicaria, desde cedo, o compromisso com
reformas sociais. Porém, ressalta Sposati (1987, p. 109), o país “não consegue ir além de algumas
medidas pontuais, como a legislação de acidentes de trabalho, paralelamente à expulsão de líderes
grevistas estrangeiros”.
61
period) com significado de “período de contribuição, período de emprego, período de
residência, ou combinação entre eles, segundo o que for estabelecido”56, bem como a
previsão de diversas fontes de custeio, como impostos, contribuições ou a combinação
entre os dois57.
Retomando um aspecto bastante ressaltado ao longo deste trabalho – a ênfase
que todas as políticas de proteção social conferem ao domicílio dos assistidos –,
salienta-se que a Convenção elege o domicílio como um possível critério de acesso às
prestações da seguridade social, conforme se depreende da definição de “período de
carência” acima mencionada. Além disso, admite hipóteses de tratamento distinto entre
nacionais e estrangeiros residentes no país58.
A Convenção conta com 47 ratificações59. No Brasil, a aprovação do texto da
Convenção se deu por meio do Decreto Legislativo n. 269, de 18 de setembro de 2008,
e a ratificação ocorreu em 15 de junho de 2009. Nessa época, contudo, o ordenamento
jurídico brasileiro já contava com um sistema de seguridade social mais avançado do
que o que preconiza a Convenção.
Apoiado em Martinez Vivot, Balera (1998, p. 39-40) expõe que, à época da
elaboração da Convenção n. 102 da OIT, cogitou-se a elaboração de um projeto de
Convenção sobre normas mais avançadas. Porém, a proposta não logrou êxito naquela
ocasião. Para o autor, isso não impede que se busque um estágio de proteção máxima,
56
“Article 1º - 1. In this Convention…(f) the term qualifying period means a period of contribution, or a
period of employment, or a period of residence, or any combination thereof, as may be prescribed”.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção n. 102. 28 de junho de 1952.
Disponível em: <http://www.ilo.org/ilolex/english/convdisp1.htm>. Acesso em: 7 maio 2011.
57
“Article 71 - 1. The cost of the benefits provided in compliance with this Convention and the cost of
the administration of such benefits shall be borne collectively by way of insurance contributions or
taxation or both in a manner which avoids hardship to persons of small means and takes into account the
economic situation of the Member and of the classes of persons protected. […]”. ORGANIZAÇÃO
INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção n. 102. 28 de junho de 1952. Disponível em:
<http://www.ilo.org/ilolex/english/convdisp1.htm>. Acesso em: 7 maio 2011.
58
“PART XII. EQUALITY OF TREATMENT OF NON-NATIONAL RESIDENTS
Article 68 - 1. Non-national residents shall have the same rights as national residents: Provided that
special rules concerning non-nationals and nationals born outside the territory of the Member may be
prescribed in respect of benefits or portions of benefits which are payable wholly or mainly out of public
funds and in respect of transitional schemes.
2. Under contributory social security schemes which protect employees, the persons protected who are
nationals of another Member which has accepted the obligations of the relevant Part of the Convention shall
have, under that Part, the same rights as nationals of the Member concerned: Provided that the application of
this paragraph may be made subject to the existence of a bilateral or multilateral agreement providing for
reciprocity”. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção 102. 28 de junho de
1952. Disponível em: <http://www.ilo.org/ilolex/english/convdisp1.htm>. Acesso em: 7 maio 2011.
59
Informação disponível em: <http://www.ilo.org/ilolex/english/convdisp1.htm>. Acesso em: 10 mar. 2012.
62
“no qual todas as situações de risco encontrem adequados esquemas protetivos que
sejam aptos a superá-las” (BALERA, 1998, p. 39).
A preocupação de Balera com a garantia de níveis de proteção social que
superem os patamares mínimos merece destaque, sobretudo diante de dados recentes
sobre a seguridade social no mundo.
O Informe Mundial da OIT sobre Seguridade Social relativo aos anos de 2010 e
201160 aponta que, apesar de todos os países contarem com alguma proteção social,
somente um terço deles, abrangendo 28% da população mundial, conta com sistemas de
proteção social que incluem todos os ramos da seguridade previstos na Convenção n. 102.
Esse informe registra que somente 20% de toda a população mundial economicamente
ativa tem acesso a proteção social completa e adequada.
Esses dados mostram que a exclusão de grandes contingentes populacionais
dos sistemas de proteção social é um problema que está longe de ter solução. Nesse
cenário, a assistência social figura como importante forma de ampliação de tais
sistemas. Por outro lado, diante de dados que mostram que a maior parte da população
do mundo passa ao largo das redes de proteção social, deve-se encarar com preocupação
a ideia de que pleno emprego e sistemas previdenciários podem trazer toda a proteção
de que a sociedade necessita, reduzindo-se, por conseguinte, o campo da assistência
social. Como afirma Carro (2008, p. 01-02):
No andamento das sociedades modernas, a assistência social, como
parte desses sistemas, contribuiu com os movimentos de ampliação de
seus conteúdos e suas proteções, assim como com movimentos de
retração da sua presença no sistema, quando a seguridade social foi
considerada como já plenamente estendida. Nas últimas décadas, a
inserção ou não inserção da assistência social nas sociedades com alto
nível de desemprego, de migração externa e interna, e desigualdade
social, tem colocado o foco nas chamadas políticas de inserção ou de
inclusão social e dos programas de transferência de renda. Contudo, a
falta da abrangência social da proteção no mundo continua sendo um
problema a ser resolvido no século XXI.
60
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Informe Mundial sobre la Seguridad Social
2010/11: Brindar cobertura en tiempos de crisis, y después de las crisis. Disponível em:
<http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/@publ/documents/publication/wcms_
146569.pdf>. Acesso em: 23 out 2011.
63
1.9
Conclusões
A partir da exposição acima, pode-se extrair alguns traços que pautaram e
ainda pautam os debates sobre a assistência social.
A primeira característica marcante entre os sistemas estudados – perceptível a
partir da análise do desenvolvimento de sistemas de seguridade social no século XX – é
o papel coadjuvante que a assistência social desempenha em relação ao trabalho e à
previdência. Implícita a essa visão da assistência como uma prestação secundária está a
convicção de que o trabalho e a proteção previdenciária têm condições de suprir todas
as necessidades básicas do cidadão – entenda-se “cidadão-trabalhador” – e de sua
família. Apenas a França seguiu um caminho distinto, ao desenvolver um sistema de
proteção social mais abrangente e menos calcado nos seguros sociais, que
pressupunham a filiação a alguma categoria profissional.
A confusa relação entre caridade e assistência social é outro traço de
destaque. O reconhecimento da assistência social como um direito é recente e ainda
enseja discussões sobre o dever do Estado de assegurar a subsistência de pessoas que
não possam garantir o próprio sustento. Essa confusão também mostra a persistência de
entidades privadas como protagonistas da assistência social e gera dúvidas quanto ao
papel que devem desempenhar.
Outra característica constantemente identificada na disciplina da assistência
social é a da territorialidade: exigência de um vínculo de nascimento ou residência
entre a instância que provê a assistência e o beneficiário. Esse é, por sinal, um traço que
distingue bem a assistência da previdência. A previdência social elege como critério de
proteção o pertencimento a determinadas categorias profissionais, e, mesmo após sua
expansão, continua prestigiando a proteção ao trabalhador e seus familiares.
O aspecto territorial é chamado por Castel (2010, p. 59-60) de “pertencimento
comunitário”. Significa dizer que a assistência prioriza os membros do grupo e elege
como condição para concessão do auxílio o domicílio na localidade em que pede a
assistência. Ainda que se trate de indigentes, há necessidade de demonstração de
vínculo com alguma localidade. Nas palavras do autor, “significa que é preciso ter um
lugar marcado na comunidade para ser assistido” (CASTEL, 2010, p. 60). Esse aspecto
se preservou ao longo do tempo.
64
Nítido também é o predomínio de modelos que se pautam pelo critério de
incapacidade laborativa, decorrente de razões biológicas61 e não sociais. Com isso, em
princípio, a situação daqueles que têm condições físicas e mentais para o trabalho, mas
não conseguem obtê-lo, fica em aberto ou é relegada a outras formas de intervenção
social (CASTEL, 2010, p. 59). Programas que levem em conta a necessidade de renda
por parte de pessoas que, em tese, podem desempenhar atividades laborativas com
finalidade de sustento, como o Speenhamland Act, são menos expressivos. Sobre a
última característica, recorre-se novamente a Castel (2010, p. 42-43):
Totalmente distinta da condição dos assistidos é, com efeito, a
situação daqueles que, capazes de trabalhar, não trabalham. Aparecem
primeiramente sob a figura do indigente válido. Este, carente, e por
isso também dependente de auxílio, não pode, entretanto, beneficiarse diretamente dos dispositivos concernentes aos que estão isentos da
obrigação de ser autossuficiente. Em falta quanto ao imperativo do
trabalho, também é, muito amiúde, rechaçado para fora da área da
assistência. Vai igualmente ser colocado, e por muito tempo, numa
situação contraditória. Se, ademais, for um estrangeiro, um
“forasteiro” sem vínculos, não poderá se beneficiar das redes de
proteção próxima que, bem ou mal, asseguram aos autóctones um
atendimento mínimo de suas necessidades elementares. Sua situação
será, então, literalmente inviável. Será a situação do vagabundo, o
desfiliado por excelência.
Essas características, especialmente a territorialidade e a incapacidade
laborativa, mostram que não basta uma pessoa ser qualificada como “carente” para
obter prestações da esfera da assistência, como afirma Castel62, o que, nas palavras do
autor, equivale a dizer que “dentre as populações sem recursos, algumas serão rejeitadas
e outras atendidas” (CASTEL, 2010, p. 59).
61
Consigne-se, desde logo, que, conforme situações de pleno emprego deixam de ser a regra e cada vez
mais há pessoas lançadas para fora do mercado de trabalho formal sem perspectivas de retorno, essa
convicção é abalada.
62
Castel (2010, p. 57-60) trata desses temas ao elencar o que chama de cinco características formais do
social-assistencial, a saber: (a) constituição sob a forma de um conjunto de práticas com função protetora
e integradora, resultante da intervenção da sociedade sobre si própria; (b) presença, desde o princípio, de
algum grau de especialização, embriões de uma profissionalização futura; (c) tecnicização mínima; (d)
discussão, desde o início, da localização dessas práticas, criando a divisão entre práticas intra e
extrainstitucionais; (e) discriminação nas populações atendidas, de modo a amparar alguns grupos de
populações carentes e rejeitar de sua esfera de proteção outros grupos igualmente desprovidos de
recursos, característica exposta acima.
2
A
ASSISTÊNCIA
SOCIAL
NO
BRASIL
ANTES
DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
2.1
Introdução
À semelhança do que ocorreu na Europa, a assistência aos pobres no Brasil
surgiu de forma dispersa e baseada na caridade.
No século XX, quando outros países já haviam instituído sistemas de
proteção social complexos, com prestações independentes de prévio custeio ou
contrapartidas, o ordenamento brasileiro mantinha precários sistemas de auxílios
públicos. Ainda que com imperfeições, o sistema previdenciário avançou
isoladamente, ao passo que a assistência social seguiu mesclada com filantropia e
benemerência. Sintetiza Mestriner (2011, p. 16-17):
Longe, portanto, de assumir o formato de política social, a assistência
social desenrolou-se ao longo de décadas, como doação de auxílios,
revestida pela forma de tutela, de benesse, de favor, sem superar o
caráter de prática circunstancial, secundária e imediatista que, no fim,
mais reproduz a pobreza e a desigualdade social na sociedade
brasileira, já que opera de forma descontínua em situações pontuais.
Sempre direcionada a segmentos da população que vivem sob o signo
perverso da exclusão, não cumpre a perspectiva cidadã de ruptura da
subalternidade. Ao contrário, reitera a dependência, caracterizando-se
como política de alívio, por neutralizar demandas e reivindicações.
Desconhecendo que sua população-alvo não é a minoria, mas a grande
massa populacional de excluídos – nos quais se incluem segmentos do
próprio mercado formal hoje tão empobrecidos – ela se volta a
pequenas parcelas de indivíduos, de forma temporária ou emergencial.
Usa da focalização nas piores situações, o seu comportamento usual.
2.2
Primeiros registros do Brasil-Colônia63
Em obra dedicada ao estudo da assistência social na cidade de São Paulo,
Sposati (1987) salienta a ausência de registros a respeito da pobreza na cidade durante o
período colonial. A explicação apresentada pela autora para essa falta de dados pode ser
63
A evolução histórica apresentada neste tópico é praticamente toda baseada na obra de Sposati (1987).
66
estendida a todo o Brasil-Colônia. Cuida-se da falta de interesse da metrópole pela
sobrevivência dos povos que nela viviam64. Para que se tenha uma ideia do quão tardios
foram os primeiros registros, verifica-se que, em São Paulo, os levantamentos sobre as
condições de vida da população se tornaram mais frequentes a partir da segunda metade
do século XVIII, quando a correspondência do Morgado de Mateus (Luiz Antônio de
Souza Botelho Mourão, que governou a capitania de São Paulo a partir de 1765)
dirigida às autoridades da metrópole passou a descrever a miséria em que viviam os
paulistanos (SPOSATI, 1987, p. 53-54).
O grande contingente das populações miseráveis era composto por índios,
escravos e mamelucos, embora também houvesse homens livres na mesma condição.
Estes, diferentemente dos demais grupos, em alguns casos contavam com algum auxílio
dos senhores proprietários para subsistir (SPOSATI, 1987, p. 55-56). Tais benesses
correspondiam às relações societais descritas por Castel (2010) e se baseavam em
relações de servilidade, trocas de favores e relações individuais65.
Quando não se dedicavam a um trabalho, esses “homens livres” – que não
eram senhores, nem escravos – eram considerados vadios. Nessa condição, eram tidos
como pessoas não merecedoras de auxílio e constituíam um grupo de desfiliados, a que
Castel (2010) faz referência.
64
“Devido à desimportância com que se considerava a sobrevivência dos povos de além-mar, encontrar
registros que ao menos indiquem a pobreza paulistana é quase impossível. Às fontes oficiais pouco
importava como vivia esta ‘outra humanidade’ de pobres e miseráveis. Para a Metrópole, a riqueza das
novas terras interessava para enriquecer a Coroa e não para expandir a Colônia. Na economia colonial, o
comércio de produtos era enquadrado de modo a possibilitar a acumulação burguesa da Metrópole, com
mercado organizado para impedir qualquer crescimento interno ou de dentro para fora. Impediam-se
circuitos econômicos e o ciclo produtivo terminava no porto, para que não interferisse nos interesses da
Metrópole (Kowarick, 1981)” (SPOSATI, 1987, p. 47).
65
“A agregação a uma família era também outra forma de sobrevivência destes homens livres e, talvez
se possa dizer que era uma das expressões eventuais da assistência no tempo colonial.
Quando se aponta esse caráter ‘assistencial’, pretende-se fazer menção à sujeição do agregado aos
interesses e benesses do senhor proprietário para garantir sua sobrevivência. Além de prestar serviços ao
proprietário, inclusive como capanga e defensor de seus interesses, a presença do agregado permitia que
fosse solicitada uma data ou sesmaria, aumentando com isso a extensão das terras do senhor.
Mas estes eram sempre ajustamentos que se baseavam numa empatia do proprietário com o ‘homem
livre’, o agregado, numa relação de cordialidade de um e de servilidade do outro. Eram relações de
caráter pessoal, individuais, com um quê de cumplicidade, marcadas pela troca de favores que transveste
apropriação em paternalismo (Schwarz,1972) [...]
A grande família, seja nas relações de agregação ou nas de compadrio, sem dúvida, foi um dos apoios
com que, tanto homens livres como os expostos, isto é, os órfãos, sempre contaram dentro dos limites dos
arranjos individuais.
Mas não é de se esperar, na São Paulo seiscentista, que muitas famílias tivessem tal condição. Alcântara
Machado, pesquisando os quatrocentos inventários desse período, mostra que somente vinte deles relatam
alguma abastança.” (SPOSATI, 1987, p. 57-58).
67
As práticas assistenciais mais significativas desse período foram desenvolvidas
pela Irmandade de Misericórdia, criada em Portugal com viés aristocrático, em 1498, e
trazida para o Brasil nas décadas seguintes.
A Irmandade instalou e manteve orfanatos e Santas Casas, disseminando
práticas assistenciais e sanitárias pelo país. A Ordem das Misericórdias em Olinda,
instalada no ano de 1539, a construção de um hospital em 154066, assim como a
fundação da Santa Casa de Misericórdia de Santos em 1543 (NASCIMENTO, 2007,
p. 36), constituem os primórdios da assistência social no Brasil67. Além dela, outras
irmandades, conventos e outras congregações de cunho religioso prestavam
atendimentos semelhantes (CARRO, 2008, p. 140-141), o que mostra que a assistência
não era prestada diretamente pela Igreja, mas por diversas irmandades.
O financiamento das atividades de Misericórdia era obtido com doações dos
ricos e convertido em esmolas (SPOSATI, 1987, p. 65). Porém, durante muito tempo,
essas irmandades tinham como provedores os próprios governadores (SPOSATI, 1987,
p. 84), inaugurando a prática de “transferência de responsabilidades do poder público
para as ações de benemerência” (CARRO, 2008, p. 140).
É importante observar que o acesso a essas esmolas era franqueado apenas às
pessoas livres, não aos escravos (SPOSATI, 1987, p. 66). Na Santa Casa, o atendimento a
escravos era condicionado ao pagamento por parte dos senhores (SPOSATI, 1987, p. 75).
Isso não significa que os não escravos estivessem em situação muito melhor, até porque
nem todos acessavam os serviços de assistência:
Na ordem escravagista colonial, a pobreza era o retrato da vadiagem
como forma de desclassificação social. Assistência esmolada e
produtividade, dentro do padrão da economia de exportação
seguramente guardam relações.
É de se supor a rigidez dos critérios para obter as esmolas da
Irmandade, pois apoiar um “homem livre” seria apoiar um vadio. Dar
esmolas e com eles estimular a vadiagem? Seguramente deveriam ser
situações mais extremadas que recebiam tal atenção [...] Talvez se
desse preferência à atenção a mulheres. Os dotes a órfãs, a atenção a
meninas nos seminários sugerem uma certa possibilidade nessa
direção [...]
66
Disponível em: <http://www.santacasarecife.org.br/web/>. Acesso em: 27 out. 2011.
Segundo Horvath Júnior (2008, p. 27), paralelamente à fundação da Santa Casa de Misericórdia de
Santos, criou-se um plano de pensão aos trabalhadores dessa entidade, plano esse que foi estendido aos
trabalhadores das Santas Casas de Rio de Janeiro e Salvador, das Ordens Terceiras e de outras ordens que
mantinham instituições de amparo, como asilos, hospitais, orfanatos etc. Portanto, vê-se que a previdência
brasileira também teve início nessa época.
67
68
Foram primordialmente os “homens livres”, (crianças e adultos), que
viviam no núcleo urbano de São Paulo, que recorreram a tais ações
assistenciais. Os cuidados dos escravos cabiam aos senhores. Eram
parte de sua propriedade e sua fonte de riqueza. Em situações
terminais, em que sua vida já estivesse comprometida, acorriam ao
Hospital de Caridade, mediante acerto dos senhores proprietários e a
“irmandade” dos senhores de misericórdia. Os homens livres do meio
rural subsistiam precariamente nos sítios volantes.
Estas formas assistenciais são descoladas da relação com o trabalho.
Dirigem-se à mão-de-obra livre que, na sociedade escravagista, não
tem horizonte de ocupação. (SPOSATI, 1987, p. 83-85)
O que se infere a partir desse retrato é que, à semelhança da Europa, o Brasil
iniciou sua trajetória de assistência social por meio da atuação da Igreja e pela adoção
de critérios restritivos aos considerados “vadios”.
A prática das esmolas aos pobres também era difundida. A propósito, Sposati
(1987, p. 64) registra a nomeação, em 1724, de um agente incumbido de arrecadar
esmolas, bem como a instituição de um livro de esmolas, em 1771.
Tem-se, portanto, algumas características nitidamente herdadas da experiência
europeia: o protagonismo na Igreja nas ações de assistência, o rigor em relação aos
considerados “vadios” e a sistematização da esmola68 como meio de atenção à pobreza.
A essas características de seleção dos assistidos agrega-se uma distinção criada
no Brasil: a distinção entre escravos e não escravos. Os primeiros eram mantidos apenas
por seus senhores e não tinham direito ao amparo pelas ações de misericórdia; os
segundos eventualmente poderiam contar com essas ações de misericórdia, contanto que
não fossem vadios.
68
A assistência aos pobres mediante esmolas nada mais era do que a continuidade de concepções
vigentes há muito na Europa, como se verifica das anotações acerca da doação de esmolas feitas no
capítulo anterior. Não menos importante é observar o quanto essas práticas se pautavam por estigmas em
torno da pobreza, sobretudo por elegerem os “merecedores” ou “não merecedores” de ajuda. A propósito,
transcreve-se Sposati (1987, p. 81-83):
“A esmola foi a instituição primeira, ao se falar na assistência social colonial. Ela era a forma dos mais
ricos exercitarem a caridade e ‘ascenderem ao reino dos céus’.
Esta instituição retrata uma concepção cristã em que ser rico é a oportunidade de fazer o bem. Nessa
leitura da cristandade, Deus nomearia os ricos como os ‘administradores de sua providência’. De acordo
com Groethuysen, que estudou a formação da consciência burguesa na França no século XVIII, a esmola
é a forma de acomodar a consciência cristã pelo fato de uns serem pobres e outros ricos. Assim, cabe à
Igreja definir quanto deve o rico dar aos pobres, criando uma proporção mútua entre a esmola e a riqueza.
[...]
Só que não bastava o ‘desejo da esmola’, fazia-se necessária também uma forma de recolhimento,
exercida historicamente pelo esmoler – com função designada pelo rei e, com a contrapartida de isenção
do serviço militar – e a organização de critérios e formas para sua distribuição. Aqui, pelos critérios
burgueses, não basta ser pobre, há que ser pobre envergonhado de sua situação, pois afinal o rico é o
‘deus visível’, capaz de ter e dar. O pobre envergonhado não deveria se dedicar à mendicância”.
69
No final do século XVIII, começaram a ser instalados em São Paulo os
primeiros estabelecimentos hospitalares, que Sposati (1987) designa como “espaço
primordial da assistência”. No século XIX, em 1802, surgiu o lazareto, hospital
dedicado ao tratamento de hansenianos. Aqui há uma verdadeira confusão entre
assistência médica e assistência social (SPOSATI, 1987, p. 67-70), confusão essa que
perduraria por muito tempo no país.
Ainda no período colonial, a atenção às crianças abandonadas se fazia por meio
das Rodas dos Expostos69, instaladas no Rio de Janeiro e em Salvador. São Paulo só
viria a ter sua Roda em 1825, após a Independência do Brasil, sob os cuidados da
Irmandade de Misericórdia (SPOSATI, 1987, p. 70)70.
2.3
A assistência no Brasil Imperial
A Constituição outorgada em 1824 não trouxe disposições sobre medidas de
erradicação da pobreza ou promoção de igualdade material, contendo apenas uma
garantia de socorros públicos em seu artigo 179, XXXI. Carro (2008, p. 140) vê nessa
previsão “o primeiro intento de formalizar a proteção social no Brasil imperial”. Da
mesma forma, Santos (2003, p. 140) aponta que essa Constituição retrata a fase de
proteção social entendida como proteção dos pobres.
Comentando a Constituição de 1824, Balera (1998, p. 29) explica que a
assistência pública não tinha grande peso para o Estado e afirma que “a realidade social
não apresentava, ainda, desigualdades tão marcantes”. Ainda que se concorde com o
fato de a assistência não ter papel de destaque na atividade estatal da época, discorda-se
da afirmação no sentido de que as desigualdades sociais não eram expressivas. Basta
69
O Código de Menores de 1927 (Decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927) eliminou o sistema
de Rodas, nos termos de seu artigo 15: “A admissão dos expostos á assistencia se fará por consignação
directa, excluido o systema das rodas”.
70
Colhe-se do trabalho de SPOSATI (1987, p. 71-72) a descrição sobre a forma como se dava a atenção
aos “expostos” na cidade de São Paulo: “[a]s crianças deixadas na Roda eram registradas e entregues aos
cuidados das amas, pagas pela Irmandade, em geral, índias, que ficavam perto da Região de Santo Amaro.
As amas recebiam 3$000 réis quando ‘de leite’, e $2$000 quando ‘secas’. Anualmente, no dia da
Visitação, 2 de julho, os expostos eram levados à Irmandade para apresentação, inclusive ao público. A
pensar na apresentação dos órfãos e das ‘jovens casadoiras’, que recebiam os dotes da Misericórdia, o dia
2 de julho devia ser o dia dos assistidos da São Paulo colonial. Era, sem dúvida a festa da benemerência
promovida pela Irmandade de Misericórdia.” (destaque no original).
70
recordar que a Constituição restringia a cidadania (art. 6º) e o direito ao voto (arts. 91 a
95), que o país se organizava social e economicamente em torno da escravidão e que os
povos indígenas haviam sido dizimados, ficando comprometidas suas tradicionais
formas de vida.
De qualquer forma, a ausência de normas tratando de enfrentamento da pobreza
não surpreende. Essa Constituição foi outorgada no começo do século XIX sob o influxo
do pensamento liberal, que prestigiava liberdades individuais impondo ao Estado deveres
de abstenção. Mesmo em outros países, a promoção de igualdade material ainda não se
traduzira na consagração dos direitos sociais, o que só viria a acontecer quase um século
depois, com a promulgação da Constituição mexicana de 1917.
Em suma: as características socioeconômicas do país, somadas ao estágio em
que se encontrava o debate sobre direitos fundamentais, afastava a igualdade material e
o atendimento às necessidades das populações mais pobres da pauta de preocupações
governamentais.
A assistência pública, nessa época, consistia no confinamento das pessoas em
situação de vulnerabilidade e medidas de higiene pública. Na cidade de São Paulo, o
período pós 1822 esteve marcado por medidas como a criação do primeiro hospício
(1852); a fundação de asilos para meninos (1824) e meninas (1825), geridos pela
Irmandade de Misericórdia; e o confinamento de mendigos, que funcionou a partir de
1886 como asilo de inválidos, sendo igualmente administrado pela Irmandade de
Misericórdia (SPOSATI, 1987, p. 73-75). Sintetiza Sposati (1987, p. 74):
Crianças órfãs, leprosos, alienados, doentes e inválidos foram os
primeiros segmentos que receberam uma forma assistencial
institucionalizada. À exceção dos alienados, os demais tiveram sua
atenção sob os cuidados da Irmandade de Misericórdia, mesmo que,
com o passar do tempo, esta fosse se desvencilhando de tais
compromissos e centrando sua ação na atenção médico-hospitalar.
As Câmaras Municipais tinham o dever de zelar pelo “estabelecimento e
conservação de casas de caridade, a criação de órfãos, a atenção aos doentes e a
vacinação de todos os meninos do distrito” (SPOSATI, 1988, p. 81 apud CARRO,
2008, p. 140) e deveriam destinar um sexto de seus recursos aos órfãos, o que não
impediu que o asilos destinados a esse grupo funcionassem em condições de
precariedade extrema (SPOSATI, 1987, p. 74). No mais, as atividades desse órgão
71
consistiam em inspecionar os estabelecimentos de caridade e apresentar recomendações
(SPOSATI, 1987, p. 76-78).
Essa atuação das Câmaras decorria de imposições contidas na Carta de Lei de
1º de outubro de 1828, as quais conferiam poder de polícia às Câmaras Municipais para
fiscalizar os estabelecimentos destinados à atenção dos necessitados, a propósito do que
registra Sposati (1987, p. 79-80):
Note-se a postura policial (fiscalizadora) do Estado, embora as ações
fossem assumidas pela filantropia privada e não como sua
responsabilidade direta. Note-se ainda que a caridade se confundia
com as práticas sanitárias, o que reforça a concepção da filantropia
higiênica [...]
O Estado brasileiro se limitava a reconhecer as irmandades, permitir
isenções e outras contribuições esparsas. A administração do serviço
era, porém, de responsabilidade da entidade.
A partir do período imperial e mesmo após a Proclamação da República, surgiu
e se disseminou o trabalho das Conferências Vicentinas da Sociedade São Vicente de
Paulo – a primeira delas criada em 1874 –, que distribuíam esmolas; das Associações das
Damas de Caridade, surgidas em São Paulo a partir de 1887 (SPOSATI, 1987, p. 76;
CARRO, 2008, p. 141); e de outras obras filantrópicas, especialmente dirigidas a
crianças órfãs71. Conventos e igrejas católicas seguiram atendendo os necessitados, sem
categorizá-los, e posteriormente passaram a prestar assistência higienista (CARRO,
2008, p. 141).
Ainda no tocante à cidade de São Paulo, pode-se concluir que somente no
século XIX se verificou algum grau de institucionalização no atendimento às
populações mais pobres. Isso se explica por se tratar do período em que a cidade
71
Sobre as obras de caridade na cidade de São Paulo, SPOSATI (1987, p. 113-114) comenta: “A partir
da investigação que se procedeu nos relatórios dos prefeitos do período de 1901 a 1927, pode se constatar
que as obras filantrópicas dirigidas à criança vão se multiplicando, predominando a atenção às meninas
órfãs. Este é caso do Asylo Bom Pastor (1897); Casa Pia S. Vicente de Paula das Damas de Caridade
(1894); Orfanato Sant’Ana, junto ao Colégio de igual nome (1893); Asylo das Meninas Orphãs Nossa
Senhora Auxiliadora do Ipiranga (1885); Casa da Divina Providência da Moóca (1902); Abrigo Santa
Maria (1902); Asylo da N. Sra. Da Luz. Dirigidos a meninos órfãos: Liceu Sagrado Coração de Jesus
(1885), Orfanato Cristovan Colombo (1895). Para ambos os sexos permanecia o Asylo dos Expostos,
funcionando na Chácara Wanderley (Sampaio Viana), utilizando também o concurso de amas-de-leite
(em 1907, 103 crianças ainda estavam sob tal atendimento) e a creche Baroneza de Limeira (1911). [...]
A atenção às crianças permanecia asilar, instrucional e dispensarial. Nesta última situação, se destaca a
ação da Sociedade Feminina de Puericultura, através da instituição denominada Gotta de Leite. Esta, na
versão de 1905, realizava a distribuição de leite a crianças pobres, similar ao programa atual de governo
federal (1986) de ‘distribuição gratuita’ de leite às crianças. Atendia 824 crianças (1907) com 158.107
vidros de leite anuais, isto é, aproximadamente 4 litros criança/semana, equivalente ao que hoje
distribuem os centros (ou postos) de saúde pública do Estado e da Prefeitura em São Paulo”.
72
começou a se desenvolver, impulsionada pelo Ciclo do Café e seguida pela
industrialização.
No entanto, não se pode falar em satisfação de necessidades básicas dessa
população; o que se observou foi a ordenação do espaço urbano que começava a se
formar – de modo a isolar a população mais pobre – e a manutenção da figura do
agregado como forma de evitar condições de extrema precariedade72.
2.4
A assistência na República Velha
Em matéria de assistência social, pode-se afirmar que a Constituição de 1891
pouco ou nada inovou em relação à Constituição de 1824. Enquanto outros países já
haviam avançado razoavelmente em matéria de proteção social, o Brasil apenas
começava a tangenciar essas questões. E essa seria a tônica de toda a Primeira
República.
O novo texto constitucional, adotando a forma federativa de Estado, atribuía a
cada Estado-membro o dever de prover as necessidades de seu Governo, ressalvando no
artigo 5º que a União prestaria socorro aos Estados-membros em caso de calamidade
pública. Não havia garantias individuais de acesso a serviços e prestações visando fazer
frente às necessidades das pessoas mais pobres e desprovidas de outras formas de
amparo. Ademais, seu artigo 70, § 1º, proibia o alistamento de eleitores mendigos ou
analfabetos para eleições federais ou estaduais, considerando ainda inelegíveis as
pessoas nessas condições.
De outro giro, a previdência social avançou com a previsão constitucional de
aposentadoria aos funcionários públicos (art. 75), desenvolvimento que vinha ocorrendo
desde antes de 1891 com as organizações de socorros mútuos que agregavam seus
72
“[...] levantamento de 1893 mostra [...] que o maior percentual de concentração ocupacional está nos
serviços domésticos, onde se alocam 26% dos trabalhadores. Este fato reitera a dimensão da oferta de
mão-de-obra existente e sua absorção em sub-ocupações. Neste serviço não estão só os brasileiros, os
estrangeiros predominam com 58,3%.
De acordo com M. Inês B. Pinto, agregar-se a uma família prestando serviços, mesmo que só para
garantir a sobrevivência, era uma das formas de enfrentar o cotidiano de pauperismo. O ‘agregado
urbano’ é a nova figura da São Paulo que cresce” (SPOSATI, 1987, p. 101).
73
membros em razão de pertencimento a categorias profissionais ou origens comuns73.
Com efeito, a Lei n. 3.397 de 24 de novembro de 1888 criou a Caixa de Socorros aos
trabalhadores das Estradas de Ferro. Em 1889, seguros sociais e montepios foram
instituídos em favor dos trabalhadores do correio, da Imprensa Régia e do Ministério da
Fazenda (CARRO, 2008, p. 142).
Nas décadas seguintes, previdência e saúde pública passaram por uma
ampliação de seus espectros de proteção.
O movimento operário impulsionou a regulamentação de direitos trabalhistas e
previdenciários, além de lançar luzes sobre questões de saúde e segurança no ambiente de
trabalho. Em matéria de seguridade social, esse movimento culminou com a promulgação
da Lei Elói Chaves em 1923, antecedido pela criação das caixas de aposentadorias e
pensões para empregados de empresas férreas, pelo Decreto n. 4.682/23. Assim, a
previdência foi sendo ampliada, abarcando mais categorias profissionais e conferindolhes tratamento mais homogêneo, mas sem integrar aqueles que estavam à margem do
mercado de trabalho.
Também no final do século XIX e início do século XX cresceu a preocupação
com questões sanitárias, especialmente em relação a saneamento básico e combate a
endemias (CARRO, 2008, p. 145-146). Boa parte do contato entre o Poder Público e a
população mais pobre se dava por meio da chamada assistência higienista ou filantropia
higiênica. A filantropia privada seguia a mesma linha e a ação social prestigiava formas
de controle “purificadores”, como se depreende das palavras de Adorno contidas no
73
“Uma das formas iniciais de manifestação coletiva dos trabalhadores foi o mutualismo ou a
organização de sistemas de socorro mútuo. A identidade nas dificuldades entre os grupos de ocupação ou
de imigrantes, somada algumas vezes à aspiração de romper sua subalternização e mostrar força,
potenciam as organizações de socorro mútuo. Os cuidados médico-assistenciais, tendo no hospital o locus
privilegiado dessa ação, caracterizam o modo mutualista perfilado pela Beneficiência Portuguêsa. Esta foi
a organização mutualista de maior vulto em São Paulo, embora não fosse representativa do operariado.
O mutualismo tem início em São Pulo em 1859, com a criação da Beneficiência Portuguêsa. Já ocorrera
em 1833, no Rio de Janeiro, uma organização similar com os funcionários civis da Marinha, que criaram
uma sociedade para se protegerem contra quaisquer eventualidades. Coexistem as duas formas de
mutualidades, por relações de etnia e por categorias profissionais ou ocupacionais. A heterogeneidade
étnica existente em São Paulo desde o afluxo de imigrantes de várias nacionalidades fez surgir várias
destas associações. Outra diferenciação eram as mutualidades formadas só por trabalhadores ou por
trabalhadores e empregadores. Coimbra assinala a influência internacional nesta modalidade de
organização. O socorro mútuo era, à época, uma tendência do movimento trabalhista europeu, por
influência de Proudhon, a que anarquistas, socialistas utópicos e cooperativistas se associavam. Era uma
forma de organização de trabalhadores que permitia o reconhecimento de sua capacidade de enfrentar
problemas e de resolvê-los sem o auxílio de outras pessoas.” (SPOSATI, 1987, p. 103-104, destaques no
original).
74
estudo A gestão filantrópica da pobreza urbana, resultante de pesquisa sobre assistência
social institucionalizada em São Paulo no período de 1880 a 1920:
aparelham-se as instâncias de controle, de intervenção e de
saneamento moral. Polícia e Justiça receberão do Estado apoio
material e humano visando dotá-las de instrumentos adequados para
conter a desobediência civil e política. À filantropia privada não
restou alternativa outra senão associar-se à medicina social em seu
processo de racionalização e de instrumentalização técnica. Elegendo
o hospital como modelo de ação social terapêutica, a filantropia
propõe-se a reconstruir os vínculos perdidos, dissipar os efeitos
perversos causados pela adversidade de espaços, de tipos humanos, de
costumes e de ambientes. (ADORNO, 1990, p. 10)
Como exemplo da assistência higienista, cita-se a entrada em domicílios e a
busca de doentes a serem levados para o isolamento, possibilitando um forte controle
sobre a vida das classes mais pobres (ROLNIK, 1983, p. 118 apud SPOSATI, 1987,
p. 110-111). Ainda nas palavras de Adorno (1990, p. 9) depreende-se que “o isolamento
dos desajustados em espaços educativos e corretivos constituía estratégia segura para a
manutenção ‘pacífica’ da sociedade” e se inseria em uma estratégia de “saneamento
moral e higiênico da cidade, cuidando-se de combater seus focos de disseminação de
afecções orgânicas e morais” (ADORNO, 1990, p. 12).
Analisando esse período, Sposati (1987, p. 143) sintetiza:
Assistência social e saúde compunham, neste período, um binômio
próprio do conceito que associa saneamento moral e higiênico. Limpar
a sociedade dos “venenos sociais”, reiterando o conceito miasmático
das doenças, já defasado no campo da medicina, fazia, ao que parece,
parte das concepções sobre os problemas sociais nas primeiras
décadas do século XX. Os fluidos dos “venenos sociais” precisavam
ser contidos, e a medicina higiênica, como forma de controle político
das populações, se prestava a tanto.
A antiga filantropia caritativa é transformada na filantropia higiênica,
que a cada vez mais estabelece espaços delimitados para a assistência.
À pobreza “liberta”, à miséria acumulada, a riqueza ergueu asilos de
orfandade e sociedades instrucionais. Seu foco é a criança, que pode
ser reorientada pela disciplina.
Coimbra (1984 apud SPOSATI, 1987, p. 109) destaca ainda o surgimento de
programas de assistência médica e de seguros prestados por algumas indústrias
mediante contribuições dos empregados, fenômeno que denomina “padrão heterogêneo
de assistência do trabalhador”. Esses programas se desenvolviam dentro de uma lógica
paternalista, buscando estabelecer relações de confiança da classe operária em relação às
classes dominantes (CERQUEIRA FILHO, 1982, p. 31 apud SPOSATI, 1987, p. 108).
75
Por outro lado, ações de assistência propriamente ditas seguiam protagonizadas
pela Igreja e por particulares, ainda que com apoio financeiro do Poder Público.
A respeito desse período, Mestriner não reconhece qualquer tipo de
intervenção estatal, afirmando que, durante a Primeira República, “o que existia na área
de assistência era desenvolvido pela Igreja católica, com quem o Estado republicano
não se relacionava, por considerar que o social não era função pública” (MESTRINER,
2011, p. 67).
Por outro lado, Sposati (1987, p. 118) analisa a distribuição de auxílios e
subvenções em São Paulo, no período de 1901 a 1927, e constata a ampliação da
quantidade e das espécies de instituições auxiliadas pelo Poder Público, tanto em nível
estadual quanto municipal.
Como exemplo da ampliação das obras de caridade impulsionadas por
entidades religiosas, toma-se a cidade de São Paulo, onde a Irmandade de Misericórdia
fundou, em 1896, a Casa dos Expostos.
Surgiram ainda entidades voltadas ao atendimento aos órfãos e especialmente
ao preparo para o trabalho (CARRO, 2008, p. 147), como a Sociedade Propagadora da
Instrução Popular (1873), a Associação Protetora da Criança Desvalida (1874) e,
posteriormente, a Fundação Paulista de Assistência à Criança (1923), a Cruzada PróInfância (1930) e o Educandário Dom Duarte (1936) (SPOSATI, 1987, p. 112-113).
Para atender a população adulta, foram fundados o Instituto Sagrada Família do
Ipiranga (1904), a Sociedade Amiga dos Pobres (1905), a Associação Humanitária de São
Paulo (1907) e a Colônia Regeneradora D. Romualdo (1911) (SPOSATI, 1987, p. 115).
Todas essas iniciativas tinham caráter fragmentário e se situavam à margem do
Estado – que, quando muito, limitava-se a repassar auxílios financeiros a essas
instituições74 –, já que, como afirma Mestriner (2011, p. 69):
A “questão social” – como um problema concreto que se forma a
partir do processo de industrialização e do surgimento do operariado e
74
“As ações municipais no período republicano, no que se refere a tais instituições, pouco diferem do
período imperial.
A Prefeitura de São Paulo, nestes primeiros anos republicanos, pautava-se pela distribuição de auxílios
anuais às instituições de caridade, hospitais, obras educacionais, culturais, recreativas, gremiais, etc.
Além disso, isentava tais instituições de pagamento de impostos, taxas e emolumentos. Por exemplo, em
1896 isentava de impostos as carroças do Orphelinato para trafegarem na cidade. Tais ações se faziam
caso a caso. A partir de 1919 (Lei n. 2.206), deu isenção geral dos impostos sobre publicidade, indústria e
profissões de todas estas instituições.
Em 1929, o prefeito José Pires do Rio, por exemplo, criou a ‘taxa de caridade’, recolhida da venda de
pules. Associando jogo e caridade, o produto dessa arrecadação ia para a Santa Casa de Misericórdia
(75%) e para a Polyclínica de São Paulo (25%), conforme a Lei n. 3.325, de 7-6-1929.” (SPOSATI, 1987,
p. 116, destaque no original).
76
suas reivindicações – antes de 1930 não se inscrevia como tema no
pensamento dominante. Ainda que já discutida por Evaristo de Morais
(“Apontamentos do direito operário”) em 1905 e por Rui Barbosa
(conferência pronunciada no Teatro Lírico do Rio de Janeiro) em
1919, era vista apenas como “fato excepcional e episódico, como
questão para o pensamento marginal e dominado”. A classe
dominante, detendo o monopólio do poder político – e por
conseqüência o poder de definir o que tinha legitimidade –, colocava a
questão como ilegítima, subversiva, a ser tratada pelos aparelhos
repressivos do Estado. Daí a ser sentenciada na Primeira República
como “caso de polícia” (Cerqueira Filho, 1982, p. 59).
Foi ainda no início do período republicano que o debate em torno da assistência
pelo Poder Público começou a ganhar novos contornos, pautado pela discussão trazida
por Ataulpho Nápoles de Paiva75, que participou do Congresso Nacional de Assistência
Pública e Privada, parte da Exposição Universal de Paris em 1889.
Inspirado pelo evento em Paris e buscando um meio termo entre posições
antagônicas a respeito da assistência social (cf. supra 1.5 O modelo francês de proteção
social), Paiva procurou criar uma lei de assistência social no início da Primeira
República (MESTRINER, 2011, p. 56) e chegou a apresentar um Projeto de Lei no
Congresso Internacional de Milão em 1906 (SPOSATI, 1987, p. 122). O magistrado
defendia ainda a organização racional das ações de assistência, a associação entre
esferas públicas e privadas, a assunção do papel de fiscalizador por parte do Estado e a
criação de um Ofício Geral de Assistência Pública.
A propósito das ideias defendidas por Paiva, Sposati (1987, p. 122) assevera que:
Estava em questão o combate ao caráter espontaneísta da esmola, que
“terminava mantendo a vadiagem”. Era preciso “saber dar esmoas”,
“canalizar o altruísmo”, a “bondade” dos brasileiros. A ação estatal
seria então de fiscalização da filantropia, para que não “alimentasse a
vadiagem e a mendicância”. O Estado se posicionaria como o eterno
vigilante para que as “obras de caridade” realmente operassem com
dignidade. Seria instituído o que denominava da “terna fiscalização de
mendicidade” que, na posição de sentinelas juntos aos asilos, só
socorreriam os verdadeiros mendigos.
75
Ataulpho Nápoles de Paiva exerceu os cargos de Juiz Municipal em Pindamonhangaba, Pretor (1890),
Juiz de Tribunal Civil e Criminal (1897), Desembargador da Corte de Apelação do Distrito Federal
(1905) – à época no Rio de Janeiro – e Ministro do Supremo Tribunal Federal (1934). Informações
disponíveis em: <http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=212>. Acesso
em: 20 jan. 2012.
77
As propostas de Paiva foram pioneiras no Brasil e primaram pela tentativa de
sistematizar a assistência social e deixar de tratar a pobreza – e principalmente a
pobreza extrema – como “caso de polícia”.
Apesar desse esforço, a regulação da assistência só começou a ocorrer na
década de 1930, quando a intervenção do Estado nas relações sociais ganhou novos
contornos.
2.5
A assistência social do final da República Velha até o início do regime
militar76
2.5.1 A década de 1930: o início da filantropia regulamentada
As primeiras regulamentações em matéria de assistência surgiram com o fim
da República Velha. Ainda que se reconheça a persistência de práticas pautadas na
caridade e na falta de tratamento sistemático da assistência social, houve uma
transformação em relação ao que vinha sendo feito até então. Ainda nesse período, mais
exatamente em 1936, surgiu a primeira Escola de Serviço Social no país.
Em 1930, instituiu-se uma “contribuição de caridade”, incidente sobre
importações de bebidas alcoólicas e distribuída anualmente a organizações sociais
(CARRO, 2008, p. 150).
Em 1931, a filantropia passou a ser regulamentada. O Decreto n. 20.351, de 31
de agosto de 1931, criou uma Caixa de Subvenções “destinada a auxiliar
estabelecimentos de caridade, de ensino técnico e os serviços de nacionalização do
ensino”. O artigo 5º77 desse decreto estabeleceu critérios para recebimento de
76
A evolução histórica da legislação sobre assistência social produzida entre o final da República Velha
e a promulgação da Constituição Federal de 1988 teve como ponto de partida e principal referência
bibliográfica a pesquisa realizada por Mestriner (2011). Em trabalho originalmente apresentado como tese
de doutorado, a autora estuda a regulação da filantropia no Brasil entre 1930 e 2000.
77
“Art. 5º Para se habilitarem, semestralmente, à percepção do auxílio ora criado, deverão as instituições
interessadas provar, com documentos habeis:
1º que se acham legalmente constítuidas, com personalidade jurídica, em funcionamento permanente por
mais de dois anos;
2º que o seu fim se enquadra em um dos casos previstos no artigo 1º;
3º que não recebem outra qualquer subvenção da União, nem dispõem de recursos próprios suficientes
para o custeio das suas despesas e desenvolvimento dos seus serviços;
78
subvenções, como a gratuidade no atendimento e o enquadramento de suas finalidades
às hipóteses previstas no artigo 1º do mesmo decreto.
A Constituição de 1934 trouxe os primeiros regramentos da assistência social.
Em matéria de reconhecimento de direitos, seu artigo 113, inciso 34, previu o direito de
cada indivíduo prover a própria subsistência mediante trabalho honesto e o dever do
Poder Público de amparar pessoas em situação de indigência entre as garantias
fundamentais de brasileiros e estrangeiros residentes no país. No entanto, o artigo 108
conservou a proibição ao voto de mendigos e pessoas analfabetas.
Inaugurou-se nessa Constituição a previsão de competência legislativa da
União para disciplinar a assistência social (art. 5º). No que tange às competências
materiais, o artigo 10, em seus incisos II e V, atribuiu à União e Estados a incumbência
de “cuidar da assistência pública” e “fiscalizar a aplicação das leis sociais”78. O artigo
138 atribuiu à União, aos Estados e aos Municípios competências para zelar pela
invalidez, maternidade, família, infância e juventude. Ainda mais específico, o artigo
141 previu a obrigatoriedade de amparo à maternidade e à infância por parte de todos os
entes federativos, incluindo a vinculação de receitas tributárias para a consecução deste
objetivo.
Em 1935, a Lei Federal n. 91 disciplinou a concessão do título de utilidade
pública em favor de sociedades civis, associações e fundações. Seu artigo 1º
condicionou o reconhecimento da utilidade pública ao preenchimento de três requisitos:
(a) personalidade jurídica; (b) efetivo funcionamento, servindo desinteressadamente à
coletividade; (c) não pagamento de remuneração aos ocupantes de seus cargos diretivos
e, após a Lei n. 6.639/79, aos ocupantes dos conselhos fiscais.
Também em 1935, a Lei Federal n. 119 extinguiu a Caixa de Subvenções
criada em 1931, instituiu um conselho consultivo vinculado ao Presidente da República
e estabeleceu critérios para concessão de subvenções.
4º que prestam serviços gratuitos, segunda os fins a que se destinam, indicando o número de beneficiados
em cada semestre, e natureza dos serviços.
§ 1º Alem dos documentos acima indicados, deverão as instituições juntar ao respectivo requerimento
relatórios, balancetes relativos ao último semestre e outros quaisquer elementos que comprovem seu
regular funcionamento e real utilidade.
§ 2º As provas: de que tratam os ns. 2, 3 e 4, deste artigo, poderão ser feitas mediante atestados; com
firmas reconhecidas, de autoridades federais das respectivas localidades e, na falta destas, de estaduais;
que não façam parte da instituição”. Decreto n. 20.351, de 31 de agosto de 1931.
78
Antecipando-se um pouco ao Governo Federal, no Estado de São Paulo, em 1933, a tributação dos
jogos realizados em instâncias balneárias passou a ser destinada a obras assistenciais e formou-se uma
Comissão de Assistência Social incumbida da distribuição dessa renda (Decreto Estadual n. 5.797/33).
Além disso, em 1935, fundou um Departamento de Assistência Social (SPOSATI, 1987, p. 124-125).
79
Já no plano constitucional, a Constituição de 1937 eliminou a previsão de
“amparo aos desvalidos” presente na Constituição anterior. Em relação à assistência,
duas disposições são dignas de nota: a competência atribuída aos Estados para
suplementar a legislação federal em matéria de assistência pública (art. 18) e o direito
de pais miseráveis buscarem auxílio do Poder Público para sustentar e educar seus
filhos (art. 127). Por outro lado, o trabalho foi previsto como um dever social (art. 136),
o que, sob aquela ordem constitucional, legitimou graus diferentes de proteção social
conforme houvesse ou não a inserção no mercado de trabalho.
2.5.2 Ainda a década de 1930: o início da disciplina infraconstitucional da
assistência social
A despeito do retrocesso apontado, foi sob a égide da Constituição de 1937 que
a assistência social começou a ser disciplinada no plano infraconstitucional. Essa
regulamentação veio à tona em um período em que o discurso atento à “questão social”
como um problema a ser enfrentado pelo Estado marcava a postura paternalista de
Getúlio Vargas. No entanto, a atenção conferida a esses temas não visava redefinir
relações econômicas; antes, buscava fortalecer o poder central.
A intervenção estatal surgiu sob a forma de uma sucessão de normas tratando
das relações entre Estado e entidades da sociedade civil dedicadas a ações assistenciais.
O primeiro passo da construção do modelo brasileiro de assistência social foi
dado com o advento do Decreto-Lei n. 525, de 01 de julho de 1938. Em seu artigo 1º, tal
norma definiu como objetivo do serviço social:
a utilização das obras mantidas quer pelos poderes públicos quer pelas
entidades privadas para o fim de diminuir ou suprimir as deficiências
ou sofrimentos causados pela pobreza ou pela miséria ou oriundas de
qualquer outra forma do desajustamento social e de reconduzir tanto o
indivíduo como a família, na medida do possível, a um nível
satisfatório de existência no meio em que habitam.
Esse diploma teve como principal disposição a criação do Conselho Nacional
de Serviço Social – CNSS, órgão incumbido de “subsidiar as organizações sociais de
amparo social” (CARRO, 2008, p. 150).
80
Depreende-se de seu artigo 4º que o CNSS teria atribuições ambiciosas como:
a realização de pesquisas sobre pessoas e famílias em situação de miséria ou
“socialmente desajustadas”; a elaboração de um plano de organização do serviço social;
a sugestão, aos poderes públicos, de medidas para ampliação e melhoria de obras
destinadas à realização de serviço social; a definição dos tipos de instituições privadas
que realizariam serviços sociais; e o estudo das instituições existentes para emitir
opinião a respeito de subvenções que deveriam ser concedidas pelo Governo Federal.
Vinculado ao Ministério da Educação e Saúde79, o CNSS foi instalado em 05 de
agosto de 1938. Seu primeiro presidente foi Ataulpho Nápoles de Paiva e os demais
conselheiros eram “pessoas de expressão na área social” (MESTRINER, 2011, p. 57-58).
A despeito das amplas atribuições previstas pelo Decreto n. 525/38 e reiteradas
no Decreto-Lei n. 5.697 de 22 de julho de 1973, na prática, a atuação do CNSS se
resumiu a análises de pedidos de subvenções formulados por entes privados. Portanto,
as competências indicadas no artigo 4º do Decreto-Lei n. 525/38 não se converteram em
políticas de assistência social protagonizadas pelo Poder Público. Dessa forma, as
populações mais pobres e não inseridas no mercado de trabalho formal não
encontravam canais de acesso às redes de proteção social.
O CNSS vai avaliar os pedidos de subvenções ordinárias e
extraordinárias, encaminhando-os ao Ministério de Educação e Saúde
para aprovação e remessa ao presidente da República para designação
da quantia subsidiada.
Constitui-se de fato, num conselho de auxílios e subvenções,
cumprindo, na época, o papel do Estado, de subsidiar a ação das
instituições privadas. Não se refere à assistência social tratada como
política social, mas da função social de amparo, em contraponto ao
desamparo disseminado que as populações, principalmente urbanas,
traziam explícitas pela conformação da “questão social”. O amparo,
nesse início, aparece travestido de serviço social, enquanto
manifestação da sociedade civil, sendo apenas posteriormente
assumido pelo Estado. (MESTRINER, 2011, p. 62-63)
Estimulando a filantropia privada, o Estado abdicou de decidir sobre a alocação
de recursos públicos no atendimento dos grupos em situação de maior necessidade. Ao
mesmo tempo, criou uma aparência de “integração social” entre ricos e pobres, como se
os primeiros estivessem ajudando os últimos (MESTRINER, 2011, p. 84).
79
Gustavo Capanema era o Ministro da Educação e Saúde à época.
81
A proteção social, nessa época, estruturava-se em torno da legislação
trabalhista, que efetivamente melhorava as condições de vida de parte da população80.
Porém os salários eram baixos e muitos trabalhadores se tornavam destinatários das
ações de assistência, entendida, repita-se, como filantropia (MESTRINER, 2011, p. 79).
Portanto, o sistema de proteção ao trabalhador (cf. supra 1.1 Considerações iniciais
sobre proteção social) também funcionava de forma insuficiente81.
Os baixos salários puderam ser mantidos, uma vez que as reivindicações
sociais eram tratadas como caso de polícia. O Decreto-Lei n. 2.416/4082 deixou clara a
conjugação entre caridade e repressão: ao tratar de normas de direito financeiro para
Estados e Municípios, inseriu assistência social e segurança pública na mesma rubrica.
Da mesma forma, a tipificação da vadiagem como contravenção penal em 194183 surgiu
como importante “impulso” ao trabalho, ainda que mal remunerado. Como se nota, o
controle das populações mais pobres tem como um de seus pilares a repressão, que seria
associada à assistência social.
A assistência social também se conjugou com a necessidade de preparar e
manter mão de obra para ser absorvida na indústria que começava a se desenvolver no
país, necessidade essa muito bem descrita por Adorno (1990, p. 13):
A constituição do trabalhador urbano industrial reclamava sua
formação integral: seu perfil, seus hábitos, seus padrões de conduta,
seus ethos, suas vinculações com as instituições capazes de assegurar
a preservação da ordem social. Daí a importância da educação, do
ensino profissional e do caráter disciplinador do trabalho industrial,
requisitos de que se jactavam aqueles que apostavam em uma era
marcada pelo progresso, pela prosperidade e pela harmonia social.
Surge assim o que Mestriner (2011, p. 94-96) denomina de filantropia
disciplinadora e ilustra com a menção a dois Decretos-lei: n. 2.024, de 17 de fevereiro
de 1940, e n. 3.200, de 19 de abril de 1941. O primeiro desses decretos visava proteger
80
Em matéria de legislação trabalhista, registra-se na década de 1930 os Decretos n. 21.186/32,
21.365/32, 21.396/32, 21.417/32, 21.761/32, 22.024/32, 22.132/32, 23.103/33, 23.768/34, 24.694/34; na
seara previdenciária, os Decretos n. 22.096/32, 24.273/34, 24.275/34, 24.615/34.
81
“[...] a imensa massa de trabalhadores pauperizados e expropriada, condição estrutural de existência
do capitalismo industrial, fazia emergir a “questão social”, colocando o imperativo da assistência na
ordem do dia, de modo a solapar as bases de uma ordem que se imaginava a si própria reduto da
autonomia individual, da coragem particular e do esforço privado” (ADORNO, 1990, p. 14).
82
Decreto-Lei 2.416, de 17 de julho de 1940.
83
“Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda
que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação
ilícita: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses. Parágrafo único. A aquisição superveniente de
renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena.” Lei das
Contravenções Penais (Decreto-Lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941).
82
a maternidade, a infância e a adolescência, tendo entre suas finalidades a “preservação
da moral” e a “preparação para a vida”. O segundo previa subvenções em favor de
entidades assistenciais destinadas a proteger famílias em situação de miséria, mediante
“prestação de alimentos, internamento dos filhos menores para fins de educação e outras
providências de natureza semelhantes”84.
2.5.3 A década de 1940: o surgimento da Legião Brasileira de Assistência – LBA
O segundo grande passo da construção do modelo brasileiro de assistência
social foi dado em 15 de outubro de 1942, quando o Decreto-Lei n. 4.830 institui a
Legião Brasileira de Assistência – LBA85, primeira grande instituição de assistência
social do Brasil.
Nas palavras de Simili (2008, p. 137), o surgimento da LBA esteve marcado
pela “composição de uma parceria entre o Estado, o empresariado e o voluntariado
feminino civil”. A instituição era presidida pela então Primeira-Dama Darcy Vargas e se
fiava no trabalho voluntário da elite civil e predominantemente feminino. Consagrou-se
com isso a imagem das “damas da caridade”, típicas de ações de filantropia e
benemerência.
A criação da LBA teve como primeira finalidade prestar amparo aos familiares
dos soldados brasileiros que lutavam na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa
fase, a instituição atuava por meio de campanhas nacionais voltadas à proteção das
famílias desses soldados. Além dos corpos de voluntárias da defesa passiva antiaérea,
disseminaram-se serviços assistenciais como orientação às donas de casa e atendimento
de enfermagem (SIMILI, 2008).
Com o fim da guerra – e não sem antes ter se cogitado sua extinção –, o
público-alvo da instituição passou a ser a população pobre do país86. Os objetivos da
84
“Art. 30. As instituições assistências, já organizadas ou que se organizarem para dar proteção às
famílias em situação de miséria, seja qual for a extensão da prole, mediante a prestação de alimentos,
internamento dos filhos menores para fins de educação e outras providências de natureza semelhante,
serão, de modo especial, subvencionadas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos
Municípios.” Decreto-Lei n. 3.200, de 19 de abril de 1941.
85
Lima (1994, p. 18-21) elabora um quadro contendo o resumo do histórico da LBA, entre 1942 a 1990.
86
Essa mudança de linha de atuação encontrava guarida no estatuto da LBA, que veiculava a promoção
de serviços de assistência social entre suas finalidades básicas (LIMA, 1994, p. 16).
83
instituição se voltaram então para a proteção da maternidade e da infância, e não apenas
das famílias dos homens que haviam sido convocados para a guerra. Essa proteção se deu
em programas de educação da mulher, cuidados na gestação e primeiros anos de vida,
além de assistência à saúde e alimentação. De acordo com Lima (1994, p. 35), tratou-se
da retomada de uma ideia em voga no Brasil já no século XIX (LIMA, 1994, p. 35).
O principal público atendido pela LBA era composto por mulheres. Porém,
longe de buscar a autossuficiência dessas mulheres ou fomentar igualdade de gênero,
atribuía-se a elas um papel de coadjuvantes nos rumos da vida nacional: incumbia-lhes
preparar adequadamente pessoas (preferencialmente homens) para o mercado de
trabalho nacional. Erigiu-se o enfrentamento da “questão social” a uma questão de
educação para a maternidade87 e a LBA se arrogou um papel messiânico, convicta de
que poderia livrar as famílias de pobreza por meio de assistência pontual a mães e
filhos.
Isso fica claro nos boletins da LBA, como o que se transcreve a seguir:
A guerra nefasta consumiu o melhor de cinqüenta milhões de vidas
humanas, a maior parte delas de jovens em plena floração de ideias e
em compleição física. A humanidade se sente por isso desfalcada de
preciosos braços, ao passo que as exigências da vida moderna, o
desenvolvimento das indústrias e a multiplicidade de novos inventos
exigem o concurso de muito mais gente. Toda a atual crise em que
nos debatemos geralmente atribuída a uma grave crise de produção é
provocada pela carência de braços. Não os há para a indústria que se
desdobra, não os há para a o comércio. É necessário assistir na
elaboração de um novo ser, prestando cuidado à mulher durante a
gestação, no parto e à criança nos primeiros anos de vida de modo a
oferecer à Nação mais um par de braços robustos e mais uma
inteligência lúcida (manifestação de Eurico Carneiro, médico e
funcionário da LBA. In: LBA, Boletim, 1946, p. 21 apud LIMA,
1994, p. 35).
Embora constituída sob a forma de associação, desde logo o custeio das
atividades da LBA se fez com recursos arrecadados pelo Poder Público88. Inicialmente,
87
Corroborando essa afirmação e indicando que esta visão a respeito da mulher não se alterou por muito
tempo, o Relatório da LBA do ano de 1966 faz referência à “situação permanente de desajustamento e de
dependência em que vive a mulher cliente da LBA” e afirma que “seu despreparo para a vida é evidente”
(LBA, Relatório Anual, 1966, p. 14 apud LIMA, 1994, p. 37-8).
88
“Art. 1º A Legião Brasileira de Assistência, abreviadamente L.B.A., associação instituída na
conformidade dos Estatutos aprovados pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, e fundada com o
objetivo de prestar, em todas as formas úteis, serviços de assistência social, diretamente ou em
colaboração com instituições especializadas, fica reconhecida como órgão de cooperação com o Estado
no tocante e tais serviços, e de consulta no que concerne ao funcionamento de associações congêneres.
84
estabeleceu-se que esses recursos seriam provenientes de contribuições pagas por
segurados dos Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões, por empregadores e pela
União. Algum tempo depois, foram mantidas apenas as contribuições destes dois
últimos89.
A adoção do formato de associação demarcou a subsidiariedade do Poder
Público na condução dos programas de assistência. Essa subsidiariedade expressou-se
pelo estímulo ao voluntariado – que acabou por se revelar uma das principais técnicas
de racionalização de despesas nessa seara –, pelo apoio às entidades filantrópicas e
pela transferência da responsabilidade às esposas dos governantes (MESTRINER,
2011, p. 108).
A LBA mostrou que o Poder Público tratava as questões que ensejavam a
intervenção da assistência social como temas de menor importância. Os programas de
enfrentamento das questões sociais não faziam parte das agendas do governo, mas sim
de um organismo a ele adjacente. A assistência social e o papel das mulheres na política
foram relegados ao plano das ações praticadas por mero diletantismo90. Atribuía-se às
mulheres assistidas um papel secundário no desenvolvimento nacional: o de esposas
dedicadas à vida doméstica e afastadas da participação na vida pública.
Em suma: nada em matéria de assistência social era prioritário.
Um cenário em que o enfrentamento da pobreza e o atendimento a
necessidades básicas identificam-se com atos de benemerência propiciou atuações
Art. 2º O Governo assegurará à L.B.A., por intermédio do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,
uma contribuição especial, constituída: a) de uma cota mensal correspondente à percentagem de 0,5%
(meio por cento) sobre o salário de contribuição dos segurados de Institutos e Caixas de Aposentadoria e
Pensões, e descontada juntamente com a contribuição devida a tais instituições; b) de uma cota mensal a
ser paga pelos empregadores, de importância igual àquela prevista na alínea anterior, e recolhida
juntamente com a dos respectivos empregados; c) de uma cota paga pela União, de valor igual ao da
arrecadação a que se refere a alínea a.” Decreto-Lei n. 4.830, de 15 de outubro de 1942.
89
“Art. 1º Fica abolida a contribuição de 0.5% sôbre o salário dos associados ou segurados dos Institutos
e Caixas de Aposentadoria e Pensões a que alude a alínea ‘a’ do art. 2º do Decreto-lei nº 4.830, de 15 de
outubro de 1942.
Art. 2º O art. 2º do Decreto-lei nº 4.830 de 15 de Outubro de 1942, passa a vigorar com a seguinte
redação: ‘Art. 2º O Govèrno assegurará à Legião Brasileira de Assistência por intermédio do Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio, uma contribuição especial constituída:
a) de uma cota mensal a ser paga pelos empregadores sujeitos aos Institutos e Caixas de Aposentadoria e
Pensões, correspondente a 0,5% (meio por cento) sôbre o montante dos salários pagos a seus empregados;
b) de uma cota paga pela União de valor igual ao da arrecadação a que se refere a alínea anterior’.”
Decreto-Lei n. 8.252, de 29 de novembro de 1945.
90
“Alguns aspectos devem ser destacados nesse ‘ministério feminino’ para a guerra. Um deles é a falta
de identidade com que as mulheres são nomeadas, denotando que a importância que lhes era atribuída
decorria do cargo de seus maridos. O segundo é a estratégia colocada em ação no sentido de indicar que
os homens e as mulheres estavam unidos no enfrentamento da guerra e suas problemáticas e que,
enquanto ‘eles’, os maridos ajudavam Vargas, ‘elas’ cooperavam com a primeira-dama” (SIMILI, 2008,
p. 141).
85
pontuais ou emergenciais, em uma dinâmica que Oliveira chama de filantropia estatal
(RAICHELIS, 2011, Prefácio, p. 16). Favoreceu-se assim a criação de mecanismos de
atendimento a algumas mazelas sociais sem discussões sobre as causas delas.
2.5.4 Ainda a década de 1940: assistência social e caridade cada vez mais próximas
O Decreto n. 7.526/45 – que instituiu a lei orgânica dos serviços sociais no
Brasil – indicou a União como principal responsável pelos serviços de previdência e
assistência social no país, prevendo a cooperação dos outros entes federativos e
instituições públicas ou particulares91. Além disso, definiu o espectro dos serviços da
assistência social como assistência médico-hospitalar e outras formas destinadas à
melhoria das condições de alimentação, vestuário e habitação dos segurados e de seus
dependentes92. Não foram especificadas as atribuições de cada ente na prestação dos
serviços de previdência e assistência.
Posteriormente, a associação entre assistência e voluntariado ficou cada vez mais
evidente. Os Decretos-lei n. 7.961/4593 e n. 9.573/4694, por exemplo, dispensavam
entidades caritativas de observar pisos salariais mínimos na remuneração de seus
profissionais. O estímulo à filantropia foi ainda ampliado pelo Decreto-Lei n. 5.698, de 22
de julho de 1943, que disciplinou a concessão de subvenções, e pelo Decreto-Lei n. 5.844,
91
“Art. 1º Os serviços de previdência e assistência social serão assegurados e ministrados pela União,
com a cooperação dos Estados, Territórios, Distrito Federal e Municípios e de instituições públicas ou
particulares, por intermédio de órgão com os poderes necessários para executar, orientar ou coordenar as
atividades pertinentes aos mesmos serviços.” Decreto-Lei n. 7.526, de 7 de maio de 1945.
92
“Art. 11. Os serviços de assistência social compreenderão as formas necessárias de assistência
médico-hospitalar, preventivas ou curativas, e ainda as que se destinem à melhoria das condições de
alimentação, vestuário e habitação dos segurados e de seus dependentes.” Decreto-Lei n. 7.526, de 7 de
maio de 1945.
93
“Art. 21. As instituições de fins exclusivamente caritativos. cujos meios de manutenção não
comportem o pagamento dos níveis mínimos de salários, constante das tabelas que acompanham o
presente Decreto-lei, será facultado requerer ao Conselho Nacional do Serviço Social isenção total ou
redução na aplicação das mesmas tabelas por prazo não excedente a dois (2) anos, suscetível de
prorrogação, mediante novo requerimento.” Decreto-Lei n. 7.961, de 19 de setembro de 1945, que
dispunha sobre remuneração mínima dos que trabalhassem em atividades médicas de natureza privada.
94
“Art. 22. As instituições de fins exclusivamente caritativos, cujos meios de manutenção não
comportam o pagamento dos níveis mínimos de salário, constantes das tabelas que acompanham o
presente Decreto-lei, será facultado requerer ao Conselho Nacional do Serviço Social isenção total ou
redução na aplicação das mesmas tabelas por prazo não excedente a dois (2) anos, suscetível de
prorrogação, mediante novo requerimento.” Decreto-Lei n. 9.573, de 12 de agosto de 1946, que estendeu
a outras categorias profissionais a regra prevista anteriormente apenas para os quadros médicos das
instituições de caridade.
86
de 23 de setembro de 1943, cujo artigo 28 isentava de imposto de renda as sociedades e
fundações beneficentes, filantrópicas, caritativas, entre outras.
Após a queda de Getúlio Vargas e sob o governo do General Eurico Gaspar
Dutra, promulgou-se a Constituição de 1946. Essa Constituição estabelecia a
obrigatoriedade de proteção à maternidade, à infância e à adolescência (art. 164).
Apesar de nada dispor a respeito de específicas políticas e programas de assistência,
previu imunidade tributária em favor de entidades de assistência social (art. 31, V, b).
No governo Dutra, merece destaque a criação de organismos como o Serviço
Nacional de Aprendizagem do Comércio – SENAC, o Serviço Social do Comércio –
SESC e o Serviço Social da Indústria – SESI, somados à LBA e ao SENAI criados
anteriormente. A uma, porque a criação destas entidades contribuiu para a difusão da
importância de qualificar o corpo profissional das instituições de assistência, inclusive
do voluntariado (MESTRINER, 2011, p. 117-118). A duas, porque o enfrentamento da
pobreza passou a ser visto como uma questão de qualificação profissional.
Além disso, reforçando o modelo de repasse de verbas às entidades privadas, a
Lei n. 909, de 08 de novembro de 1949, previu a emissão de selos destinados a
arrecadar recursos para amparo à prole de hansenianos. O produto dessa arrecadação era
repassado à Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros.
2.5.5 A década de 1950: a multiplicação de órgãos de assistência social e de
incentivos fiscais
Em 1951, Vargas retornou à Presidência da República. Nos primeiros meses de
seu governo, editou o Decreto n. 29.425, de 02 de abril de 1951, que dispôs sobre o
processamento de subvenções e sobre as atribuições do CNSS. No mesmo ano,
promulgou a Lei n. 1.493, de 13 de dezembro de 1951, que voltou a dispor sobre o
pagamento de auxílio e subvenções, prevendo consignação própria no orçamento95.
95
“Art. 1º A cooperação financeira proporcionada pela União à instituições públicas, autárquicas,
semiestatais ou privadas far-se-à mediante auxílios e subvenções, para o que haverá consignação própria
no Orçamento Geral da República.
Art. 2º Os auxílios serão concedidos em virtude de lei, decreto, tratado ou convênio, para atender a ônus
ou encargos assumidos pela União para com instituições públicas, autárquicas ou semi-estatais.
87
Nessa época, diversos Estados e Municípios criaram seus órgãos de assistência
96
social , que prestigiavam o modelo de benemerência (MESTRINER, 2011, p. 121-122)
e os procedimentos rigorosos de seleção das pessoas “merecedoras” da assistência.
Porém, essa proliferação de órgãos não significou melhor organização da ação
assistencial; ao contrário, expôs a ausência de coordenação entre os entes federativos.
Ao longo de todos esses anos, o CNSS não alterou sua atuação. Mestriner
registra que, até 1955, o CNSS e a LBA mantiveram suas linhas de atuação anteriores.
Foi em 1955, com a morte de Ataulpho Nápoles de Paiva, que a situação do CNSS
mudou para pior:
a coordenação da área social continua centralizada na União, exercida
pelo CNSS e LBA na regulação da filantropia e pelos macrorganismos
estatais, na execução de programas que, sem concorrência entre si,
parecem estar conectados no apoio às instituições privadas. O CNSS,
no entanto, com a morte de Ataulpho Nápoles de Paiva, em 8/5/1995
[sic], vai sofrer radical mudança de comando, passando sua
composição à área governamental, encerrando uma fase de
prevalência da sociedade civil e que parece ter sido rigorosa e
criteriosa no arbitramento das subvenções sociais.
Com composição governamental, as indicações provavelmente
passaram a ser negociadas pela área política. E pelo que se observou
por meio das atas, a partir de 1955 o Conselho não vai mais arbitrar as
subvenções, que devem ter passado praticamente a ser atribuição da
Câmara de Depurados e Senado. Começa aí o processo de
manipulação política do CNSS. (MESTRINER, 2011, p. 127-128)
Art. 3º As subvenções, ordinárias ou extraordinárias, serão concedidas, independente de legislação
especial, a instituições privadas de caráter assistencial ou cultural, regularmente organizadas.” Lei n.
1.493, de 13 de dezembro de 1951.
96
A título de ilustração, registra-se o histórico que Sposati (1987, p. 354-402) apresenta sobre o
surgimento e a evolução dos serviços de assistência social no Município de São Paulo, ocorridos entre
1951 e 1971. O Município, tendo Armando de Arruda Pereira como Prefeito, instituiu a Comissão de
Assistência Social do Município – CASMU (Decreto n. 1.289/51), que desempenhou atribuições
variadas, como a expedição de atestados de pobreza, manifestação em pedidos de subvenção e
atendimento à população. A presidência da entidade foi conferida a Leonor Mendes de Barros, esposa de
Adhemar de Barros. Com a eleição de Jânio Quadros para a prefeitura, Geraldo Silveira Bueno foi
indicado para ocupar a presidência do órgão, o que ocorreu em 1953. Por essa época, surgiu dentro da
própria CASMU um movimento em prol da racionalização do trabalho do órgão. Pouco depois, houve
uma mudança institucional, pelo advento da Divisão de Serviço Social – DSS (Lei Municipal n.
4.637/55). Leonor Mendes de Barros foi novamente indicada para ocupar a presidência desse conselho, o
que deflagrou imensos atritos com os assistentes sociais que buscavam preservar o trabalho técnico que
começara a ser desempenhado pela CASMU. Ao final desse embate, os assistentes sociais saíram
vitoriosos e Leonor Mendes de Barros voltou a atuar na entidade de auxílio a pessoas com tuberculose
que presidia. Apesar do êxito obtido pelos que defendiam a atuação técnica, o serviço desempenhado
pelas instâncias municipais se manteve precário, caracterizado por dificuldades organizacionais e
reduzido número de profissionais. Em 1966, criou-se a Secretaria do Bem-Estar Social – SEBES, que
incorporou a DSS. Ainda segundo Sposati (1987, p. 398), a atuação da SEBES significou “o retorno da
forma de poder desvinculada do saber assistencial”, o que mostra mais uma investida contra a
profissionalização e o aprimoramento técnico das ações de assistência social.
88
Em 1956, Juscelino Kubitschek de Oliveira assumiu a Presidência da
República.
O novo governo priorizou a industrialização do país e apostou em teses
desenvolvimentistas
para
solucionar
os
problemas
relacionados
à
pobreza
(MESTRINER, 2011, p. 127). Essa ideia – que orientava o pensamento liberal havia
algum tempo – naturalmente reforçou a compreensão das entidades assistenciais como
instâncias provisórias, que atuariam até que políticas de desenvolvimento atingissem
integralmente seus resultados. Enquanto isso, as vantagens fiscais concedidas às
entidades filantrópicas cresciam pari passu com a omissão do Estado em implementar
diretamente programas de assistência.
O franco favorecimento de entidades assistenciais se fez por meio de quatro leis.
A primeira delas foi a Lei n. 2.756, de 17 de abril de 1956, que isentava de selo
os recibos de contribuições destinadas a instituições de assistência social. A isenção era
condicionada ao atendimento de uma única formalidade: o registro perante o CNSS.
A segunda foi a Lei n. 3.193, de 04 de julho de 1957, que disciplinou a
imunidade tributária prevista no artigo 31, V, da Constituição de 1946.
O terceiro diploma normativo em questão foi a Lei n. 3.470, de 28 de
novembro de 1958. Essa lei, em seu artigo 103, permitia que doações destinadas a
entidades filantrópicas fossem deduzidas da renda bruta de pessoas físicas ou jurídicas
para efeito de incidência de imposto de renda.
A quarta e última lei, composta por apenas três artigos, foi responsável por
uma importante alteração no perfil do CNSS. Tratava-se da Lei n. 3.577, de 04 de julho
de 1959, que isentava do pagamento de contribuições previdenciárias entidades de fins
filantrópicos e Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões, mantendo apenas a
obrigação pelo recolhimento da contribuição devida pelos empregados. Surgiu então o
certificado de entidade de fins filantrópicos, expedido para assegurar o acesso às
isenções.
Como a expedição do certificado de entidade de fins filantrópicos foi atribuída
ao CNSS, o órgão assumiu atribuições eminentemente “cartoriais” (MESTRINER,
2011, p. 130), traço que marcaria seu funcionamento pelas décadas seguintes. Essa
função burocrática proporcionou um aumento de poder ao conselho – pois o certificado
garantia o acesso a crescentes benefícios fiscais – e o tornou suscetível a práticas
89
clientelistas. Em contrapartida, o CNSS passou a ter menos disponibilidade para exercer
as outras atribuições previstas pelo Decreto-Lei n. 525/38.
2.5.6 A década de 1960 até 1964: a ampliação dos incentivos fiscais e o reforço ao
papel cartorial do CNSS
Em 31 de janeiro de 1961, Jânio Quadros assumiu a Presidência da República,
com um discurso populista e nacionalista, no que buscava se distinguir de seu
antecessor.
Entretanto, a condução da política assistencial não sofreu grandes alterações
em seu governo. Por meio do Decreto-Lei n. 50.517 de 02 de maio de 1961, o novo
presidente regulamentou a Lei n. 91/35, que tratava da declaração de utilidade pública.
Já por força do artigo 1º da Lei n. 3.933, de 04 de agosto de 1961, as instituições
assistenciais indicadas na Lei n. 3.577/59 foram dispensadas do recolhimento das
contribuições devidas na qualidade de empregadoras até a entrada em vigor daquela lei.
Nada disso destoava do modelo de incentivos públicos à filantropia privada
que vinha sendo adotado nas gestões anteriores.
Com a renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, coube ao VicePresidente João Goulart assumir a Presidência da República.
As pressões contra a posse do Vice-Presidente eram grandes e provinham,
sobretudo, de grupos de militares que alegavam que João Goulart estava ligado ao
comunismo. Como “solução de compromisso” (ARRUDA; PILETTI, 2007, p. 583), os
militares aceitaram a posse de João Goulart mediante adoção de um regime de governo
parlamentarista. Em 02 de setembro de 1961, um Ato Adicional à Constituição de 1946,
veiculado pela Emenda Constitucional n. 4, instituiu o parlamentarismo no Brasil. Dias
depois, em 07 de setembro de 1961, João Goulart assumiu a Presidência.
Sob a égide do parlamentarismo, dois decretos do Presidente do Conselho de
Ministros trataram da assistência social. Nenhum deles, contudo, promoveu modificações
substanciais no tratamento do tema no país. Foram os Decretos n. 1.117/62 e n. 1.118/62,
que regulavam, respectivamente, as Leis n. 3.577/59 e n. 3.933/61.
Os dois diplomas conferiam ao CNSS competência para expedir o certificado
de entidade de fins filantrópicos e apreciar os requisitos necessários à obtenção da
90
declaração de utilidade pública, com vistas ao acesso aos benefícios fiscais previstos nas
leis a que se referiam. O artigo 4º, caput, de ambos os decretos previa a expedição de
certificados provisórios de entidade de fins filantrópicos, válidos por dois anos,
sugerindo que o órgão estava assoberbado com a quantidade de pedidos de emissão do
certificado. Da mesma maneira, o parágrafo único do artigo 4º dos dois decretos
estabelecia que instituições filantrópicas mantenedoras de organizações hospitalares ou
para-hospitalares, registradas na Divisão de Organização Hospitalar, do Ministério da
Saúde, estavam dispensadas de cumprir qualquer formalidade ou exigência para
receberem o certificado provisório.
Em um plebiscito ocorrido em 06 de janeiro de 1963, a maioria dos eleitores se
posicionou contrariamente ao regime parlamentarista. Com isso, em 23 de janeiro de
1963, a Emenda Constitucional n. 6 restabeleceu o presidencialismo no país. Dessa
forma, João Goulart pôde exercer em regime presidencialista as atribuições previstas na
Constituição de 1946.
João Goulart defendia o desenvolvimento e as reformas estruturais como
caminho para superação dos principais problemas do país, destacando políticas públicas
de educação e saúde. Com o presidencialismo restaurado, iniciou as reformas de base.
Setores conservadores da sociedade começaram a se articular, e desse movimento
resultou o golpe militar que depôs João Goulart, em 01 de abril de 1964.
No período em que João Goulart governou sob regime presidencialista, não
houve avanços legislativos em matéria de assistência social. A Lei n. 4.320, de 17 de
março de 1964, ainda em vigor, estabeleceu normas gerais de direito financeiro a serem
observadas em todos os níveis federativos e incluiu subvenções sociais entre
transferências correntes.
Nos termos de seu artigo12, § 3º, I, subvenções sociais correspondem às
transferências de recursos públicos destinadas a cobrir despesas de custeio de
instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade
lucrativa. Em seu artigo 16, caput, estabelece-se que a concessão de subvenções terá por
escopo custear serviços essenciais de assistência social, médica e educacional, nas
hipóteses em que a suplementação dos recursos privados destinados a esses objetivos se
mostrar mais econômica. O parágrafo único do mesmo artigo 16prevê que o valor dos
repasses, “sempre que possível”, será calculado em função das “unidades de serviços
91
efetivamente prestados ou postos à disposição dos interessados obedecidos os padrões
mínimos de eficiência previamente fixados”.
Por outro lado, de 1960 a 1964 houve um avanço da atuação dos profissionais
do Serviço Social, o que se deveu tanto à maior absorção desse grupo pelo aparelho
estatal, quanto por uma atuação mais politizada desses profissionais. Porém, esse
movimento se retraiu com o início do regime miliar (GIMENES, 2009, p. 23).
2.6
A assistência social durante o regime militar
2.6.1 Aspectos gerais
Instalado o regime militar a partir de 1964, os conflitos sociais passaram a ser
controlados por meio da repressão, do recurso a projetos de desenvolvimento – que, na
realidade, eram projetos de crescimento econômico97 – e de medidas pontuais de atenção
à pobreza. Nada disso impediu o acirramento das desigualdades sociais ao longo da
ditadura militar, levando o próprio presidente Emílio Garrastazu Médici a afirmar que “a
economia vai bem, mas o povo vai mal” (ARRUDA; PILETTI, 2007, p. 583).
As práticas assistenciais cresceram em vários níveis federativos, sempre de
forma setorizada, sem coordenação entre as várias instâncias e, por isso mesmo, com
97
Sobre a distinção entre desenvolvimento e crescimento econômico, ensina Nusdeo (2002, p. 17-18)
que: “estatisticamente eles poderão ser confundidos, porque em ambos os casos dá-se um crescimento do
PIB. O que varia, num caso e no outro, é que no primeiro, desenvolvimento, o crescimento daquela
grandeza faz-se concomitantemente com profundas alterações em toda a estrutura do país envolvido, por
trazer como conseqüência uma série enorme de modificações de ordem não apenas econômica, mas
também cultural, psicológica e social. São essas modificações que respondem pela sustentabilidade do
processo, ou seja, em cada uma das suas fases deverão estar-se criando condições para que ele continue se
manifestando nas fases seguintes. É por isso que o desenvolvimento econômico é dito auto-sustentável.
[...]
O crescimento econômico caracteriza-se como o desenvolvimento, por entranhar um crescimento da
disponibilidade de bens e serviços, porém sem que essa maior disponibilidade implique uma mudança
estrutural e qualitativa da economia em questão. E isto ocorre por duas razões inteiramente distintas: ou
porque essa transformação estrutural já ocorreu no país em questão e, portanto ele deixou de ser um país
subdesenvolvido; ou, então, porque essa transformação estrutural não se está produzindo, o que
demonstra ser a elevação da disponibilidade de bens e serviços (aumento do PIB) apenas transitória e sem
condições de se sustentar. O crescimento é mais um surto, um ciclo e não um processo dotado de
estabilidade. É, em geral, causado por algum fator exógeno, isto é, externo à economia em questão.
Cessada a ação daquele fator, ela regride ao seu estado anterior, contraindo-se a renda, o emprego, a
produção e tudo o mais, deixando esse surto pouco ou nenhum vestígio do que ocorreu”.
92
sobreposição de ações. Mas as ações de assistência social oferecidas pelos órgãos
governamentais, diretamente ou por entidades conveniadas, não foram além de serviços
complementares a outros programas de efetivação de direitos sociais igualmente
incompletos.
Como exemplifica Mestriner (2011, p. 165):
Como retaguarda da área de saúde, a assistência desenvolve-se na
linha da complementação do tratamento, com atendimentos de
prótese, órtese, medicamentos, suplementos alimentares; como
retaguarda de outras áreas desenvolve pretensiosas propostas de
formação e colocação de mão-de-obra, implantação de creches,
melhoria de habitação, alfabetização de adultos e outros.
2.6.2 A Carta Constitucional de 1967 e a Emenda n. 1/1969
No plano constitucional, a Carta de 1967 previu, em seu artigo 167, § 4º, que a
assistência à maternidade, à infância e à adolescência seria veiculada por meio de lei.
Além disso, manteve a imunidade tributária às entidades de assistência (art. 20, III, c).
A Emenda Constitucional n. 1/1969 manteve disposições semelhantes às da
Carta em 1967. Seu artigo 175, § 4º, reiterou a previsão de assistência à maternidade, à
infância e à adolescência, acrescentando a previsão de educação às pessoas com
deficiência98 ou “educação de excepcionais” na linguagem empregada pelo texto da
emenda. A imunidade tributária às entidades de assistência social foi mantida no artigo
19, inciso III, alínea “c”.
Essas previsões genéricas, contudo, não delimitaram um campo de responsabilidades
do Estado pela proteção dos cidadãos contra situações de necessidade, de sorte que a
compreensão do sistema de proteção social existente sob a égide dessa Constituição depende
sempre do exame da legislação infraconstitucional e dos registros sobre como as ações
estatais foram levadas a cabo.
98
Emprega-se a nomenclatura pessoas com deficiência, e não qualquer termo análogo, em razão da
terminologia consagrada pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com deficiência da ONU, a qual
foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status de Emenda Constitucional. Por meio do
Decreto Legislativo n. 186, de 09 de julho de 2008, aprovou-se o texto da Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, ambos assinados em Nova Iorque, em 30 de
março de 2007. Em 25 de agosto de 2009, o Decreto n. 6.949 promulgou a Convenção e seu Protocolo
Facultativo.
93
2.6.3 A legislação infraconstitucional: isolamento do CNSS, crescimento da LBA e
manutenção de benefícios fiscais
No plano infraconstitucional, houve continuidade na legislação centrada na
concessão de benefícios às entidades de assistência, e não nas necessidades dos
potenciais assistidos. As isenções atingiram até mesmo contribuições voltadas à garantia
de direitos sociais. Para instrumentalizar essa política, o CNSS recebeu crescentes
atribuições de registro e processamento de pedidos de isenção formulados por entidades
assistenciais.
A Lei n. 4.506, de 30 de novembro de 1964, estabeleceu requisitos para
dedução de doações às entidades filantrópicas e beneficentes e para isenção de imposto
sobre renda e proventos em favor dessas mesmas entidades99.
99
“Art. 18. Para a determinação do rendimento líquido, o beneficiário de rendimentos do trabalho
assalariado poderá deduzir dos rendimentos brutos:
I - As contribuições para institutos e caixas de aposentadoria e pensões, ou para outros fundos de
beneficência; [...]
Art. 30. As sociedades, associações e fundações referidas nas letras a e b do art. 28 do Decreto-lei nº
5.844, de 23 de setembro de 1943, gozarão de isenção do impôsto de renda, desde que: (Revogado pela
Lei nº 9.532, de 1997)
I - Não remunerem os seus dirigentes e não distribuam lucros, a qualquer título;
II - Apliquem integralmente os seus recursos na manutenção e desenvolvimento, dos objetivos sociais;
III - Mantenham escrituração das suas receitas e despesas em livros revestidos das formalidades que
assegurem a respectiva exatidão;
IV - Prestem à administração do impôsto as informações determinadas pela lei e recolham os tributos
arrecadados sôbre os rendimentos por elas pagos.
§ 1º As pessoas jurídicas referidas neste artigo que deixarem de satisfazer às condições constantes dos
ítens I e II perderão, de pleno direito, a isenção.
§ 2º Nos casos de inobservância do disposto nos itens III e IV as pessoas jurídicas ficarão sujeitas à multa
de Cr$10.000,00 (dez mil cruzeiros) a Cr$100.000,00 (cem mil cruzeiros), podendo ter a sua isenção
suspensa por ato da administração do impôsto, enquanto não cumprirem a obrigação. (Revogado pelo
Decreto-Lei nº 2.303, de 1986) [...]
Art. 55. Serão admitidas como despesas operacionais as contribuições e doações efetivamente pagas: [...]
III - As instituições filantrópicas, para educação, pesquisas científicas e tecnológicas, desenvolvimento
cultural ou artístico; [...]
§ 1º Sòmente serão dedutíveis do lucro operacional as contribuições e doações a instituições filantrópicas
de educação, pesquisas científicas e tecnológicas, desenvolvimento cultural ou artístico que satisfaçam
aos seguintes requisitos:
a) estejam legalmente constituídas no Brasil e em funcionamento regular;
b) estejam registrados na Administração do Impôsto de Renda;
c) não distribuam lucros, bonificações ou vantagens aos seus administradores, mantenedores ou
associados, sob qualquer forma ou pretexto.
d) tenham remetido à Administração do Impôsto de Renda, no ano anterior ao da doação, se já então
constituídas, demonstração da receita e despesa e relação das contribuições ou doações recebidas. [...]
§ 3º Em qualquer caso, o total das contribuições ou doações admitidas como despesas operacionais não
poderá exceder, em cada exercício, de 5% (cinco por cento) do lucro operacional da emprêsa, antes de
computada essa dedução.” Lei n. 4.506, de 30 de novembro de 1964.
94
A Lei n. 4.762, de 30 de agosto de 1965 tratou da necessidade de registro
perante o CNSS de entidades que visassem o recebimento de subvenções ordinárias e
extraordinárias100.
A Lei n. 4.917, de 17 de dezembro de 1965, concedeu ampla isenção tributária
aos alimentos e outras utilidades doados a entidades de assistência social, exigindo para
tanto parecer do CNSS101.
A Lei n. 5.127, de 29 de setembro de 1966, isentou as instituições de
assistência social da contribuição destinada à constituição do capital do Banco Nacional
da Habitação – BNH, contribuição essa correspondente a 1% ao mês sobre suas folhas
de pagamento.
O Decreto-Lei n. 194/67 facultou às entidades o não recolhimento dos depósitos
vinculados ao FGTS (art. 1º), embora não as dispensasse de pagar o valor correspondente
ao empregado, na hipótese de encerramento do contrato de trabalho (art. 2º).
Finalmente, o Decreto-Lei n. 999, de 21 de outubro de 1969, isentou
instituições de caridade do pagamento de Taxa Rodoviária Única.
A filantropia seguiu prestigiada, inclusive sob a forma de filantropia estatal.
Emblemática da forma pela qual a atenção à pobreza se dava foi a instituição
do “Dia da Caridade”, pela Lei n. 5.063, de 04 de julho de 1966, com o escopo de
“difundir e incentivar a prática da solidariedade e do bom entendimento entre os
homens” (art. 1º) e com a previsão de visitas aos “lugares onde a pobreza e a dor mais
se façam sentir” (art. 2º).
100
“Art 3º As entidades não registradas no Conselho Nacional de Serviço Social, e não compreendidas
nêste artigo, poderão receber as subvenções ordinária e extraordinárias que constem do orçamento, em
seu favor, desde que requeiram o registro até 30 trinta de novembro do corrente ano, apresentando todos
os documentos exigidos.” Lei n. 4.762, de 30 de agosto de 1965.
101
“Art. 1º São isentos dos impostos de importação e de consumo, dos emolumentos consulares, da taxa
de despacho aduaneiro, das taxas de melhoramentos dos portos e de renovação da Marinha Mercante, de
despesas de armazenagens e capatazias, e de quaisquer outras contribuições fiscais, os alimentos de
qualquer natureza, e outras utilidades adquiridos no exterior, mediante doação, pelas instituições em
funcionamento no País, que se dediquem à assistência social.
Parágrafo único. A importação dos bens a que se refere êste artigo não fica sujeita a certificado de
cobertura cambial, nem a licença prévia da Carteira de Comércio Exterior.
Art. 2º Antes da importação, a entidade beneficiada apresentará ao Conselho Nacional de Serviço Social,
do Ministério da Educação e Cultura, em 3 (três) vias, a relação dos bens a serem importados,
acompanhada das provas de doação.
Art. 3º Com o parecer quanto à natureza do bem a ser importado e habilitação da entidade para obtenção
do favor, o Conselho Nacional de Serviço Social, encaminhará 2 (duas) vias, devidamente autenticadas,
ao Ministério da Fazenda, para exame dos demais documentos relativos à doação.” Lei n. 4.917, de 17 de
dezembro de 1965.
95
A LBA, a seu turno, teve suas atribuições ampliadas, com o apoio do Poder
Público até se tornar a entidade organizadora e executora dos programas
governamentais de assistência social.
A Lei 5.107, de 13 de setembro de 1966, extinguiu a contribuição prevista pelo
Decreto-Lei n. 8.252/45, mas determinou que a manutenção de seus serviços fosse
custeada pelo orçamento da União102.
Em 27 de maio de 1969, o Decreto-Lei n. 593 autorizou a instituição de uma
fundação de assistência à infância, adolescência e maternidade, vinculada ao Ministério
do Trabalho e Previdência Social. Essa fundação incorporaria o patrimônio da LBA,
mantendo sua sigla e denominação. Ainda assim, o Decreto-Lei estabeleceu que os
programas de assistência seriam prioritariamente delegados a entidades de
assistência103.
Meses depois, o Decreto n. 65.174, de 16 de setembro de 1969, aprovou a
alteração do estatuto da LBA. De acordo com o estatuto aprovado por esse Decreto, a
finalidade primordial da LBA seria “prestar assistência à maternidade, à infância e à
adolescência, a que se referem os parágrafos 4º do art. 167 e 32 do art. 150 da
102
“Art. 22. Ficam extintos, a partir da vigência desta Lei, os seguintes ônus a cargo das empresas:
I - O Fundo de Indenizações Trabalhistas, criado pelo art. 2º § 2º e a contribuição prevista no § 3º da Lei
nº 4.357, de 16 de julho de 1964, e com a alteração feita pelo art. 6º parágrafo único, letra ‘a’, da Lei nº
4.923, de 23 de dezembro de 1965;
II - A contribuição estabelecida pelo art. 6º parágrafo único letra ‘a’, da Lei nº 4.923, de 23 de dezembro
de 1965, para o Fundo de Assistência ao Desemprego;
III - A contribuição para o BNH, prevista no art. 22. da Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, com a
alteração feita pelo art. 35, § 2º da Lei nº 4.863, de 29 de novembro de 1965;
IV - A contribuição para a Legião Brasileira de Assistência, prevista no Decreto-Lei nº 8.252, de 29 de
novembro de 1945.
Parágrafo único. A manutenção dos serviços da LBA correrá à conta de recursos orçamentários
anualmente, incluídos no orçamento da União, ficando aberto, no corrente exercício, o crédito especial de
Cr$ 35.000.000.000 (trinta e cinco bilhões de cruzeiros) para este fim.” Lei n. 5.107, de 13 de setembro
de 1966.
103
“Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a instituir uma fundação, vinculada ao Ministério do
Trabalho e Previdência Social, com o objetivo de prestar assistência à maternidade, à infância e à
adolescência, através da família desprovida de recursos, mediante o estudo das realidades médico-sociais,
periódica e metódicamente apuradas.
§ 1º A assistência de que trata o artigo será prestada prioritàriamente àqueles que não sejam protegidos
por outro sistema de assistência.
§ 2º Ressalvados os casos de manifesta impraticabilidade ou inconveniência, e observado o § 6º do artigo
10 do Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, a execução dos programas de assistência, em geral,
deverá ser delegada, no todo ou em parte, mediante convênio, a outros órgãos, incumbidos de serviços
semelhantes.
Art. 2º A fundação que se institui, nos têrmos do artigo 1º, incorporará o acervo da associação civil
denominada Legião Brasileira de Assistência, de que trata o Decreto-lei nº 4.830, de 15 de outubro de
1949, e legislação subseqüente, e terá a mesma denominação e sigla (LBA) daquela associação, passando
a ser sua sucessora para todos os fins de direito.” Decreto-Lei n. 593, de 27 de maio de 1969.
96
Constituição Federal, formulando e implantando a sua política de proteção à família”
(Estatuto da LBA, art. 3º). Em síntese, as linhas de atuação consistiam em medidas de
educação de base e profissional, orientação à família, promoção da saúde iniciação
profissional de seus membros e auxílio na solução de problemas jurídicos (Estatuto da
LBA, art. 3º, I a IV).
Concomitantemente à expansão da LBA, houve o isolamento e desprestígio do
CNSS, ainda vinculado ao Ministério da Educação e da Cultura.
Segundo Mestriner (2011, p. 178), é possível que na década de 1960 o CNSS já
fosse visto como órgão dado a práticas clientelistas. Ademais, o acúmulo de trabalho
favoreceu o isolamento deste órgão em relação às demais instituições de assistência, que
posteriormente integrariam o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social –
SINPAS.
E, de fato, a estrutura e as atribuições do conselho favoreceram esse quadro.
Até 1969, a designação dos membros do CNSS decorria de indicação do
Presidente da República, entre “pessoas notoriamente dedicadas à assistência ou
serviço social”. Porém, nessa escolha impunha-se a observância de outros dois
critérios: (a) presença do Juiz de Menores do Distrito Federal, do Diretor Geral do
Departamento Nacional de Saúde e do Diretor Geral do Departamento Nacional da
Criança como membros natos do conselho; (b) vice-presidência do CNSS atribuída ao
Juiz de Menores104.
Contudo, a partir da edição do Decreto-Lei n. 878/69, embora mantida a
previsão de que a escolha recaísse sobre pessoas “notoriamente dedicadas à assistência
ou serviço social”, os demais critérios foram suprimidos105. Essa alteração tornou
104
“Art. 5º O C. N. S. S. compôr-se-á de sete membros, escolhidos entre pessôas notoriamente dedicados
à assistência ou serviço social, em qualquer das suas modalidades, e designadas pelo Presidente da
República,
§ 1º Serão membros natos do C. N. S. S. o juiz de Menores do Distrito Federal, o Diretor Geral do
Departamento Nacional de Saúde e o Diretor Geral do Departamento Nacional da Criança.
§ 2º A designação de que trata êste artigo far-se-á por três anos, não sendo vedada a recondução.
§ 3º Designado dentre os seus membros pelo Presidente da República, terá o C. N. S. S. um presidente, ao
qual competirá orientar, coordenar e superintender todos os seus serviços, bem como exercer as
atribuições que lhe conferir o regimento a ser expedido, além dos que competirem aos demais membros.
§ 4º O juiz de Menores será o vice-presidente do C.N.S.S.
§ 5º Os membros do C. N. S. S. perceberão, por sessão a que comparecerem, a gratificação de representação
de cem cruzeiros, a qual não poderá exceder de mil Cruzeiros por mês.” Decreto-Lei n. 5.697, de 22 de julho
de 1943.
105
“Art. 1º O artigo 5º e seus parágrafos do Decreto-lei nº 5.697, de 22 de julho de 1943, passam a ter a
seguinte redação:
97
possível a designação de pessoas com menor afinidade ou menor preparo técnico para o
trabalho com a assistência ou serviço106.
Outros dois diplomas fornecem indícios do desprestígio do CNSS: os
Decretos n. 41/66 e n. 772/69. O primeiro dispunha sobre a dissolução de sociedades
civis de fins assistenciais que recebessem auxílio ou subvenção do Poder Público ou que
se mantivessem com contribuições periódicas de populares. O segundo tratava da
auditoria externa nas pessoas jurídicas de direito privado que recebessem contribuições
para fins sociais ou transferências do Orçamento da União. Nenhum deles previa
participação do CNSS nos processo de dissolução ou de auditoria externa.
O Decreto n. 41/66 abria ainda um flanco para o controle ideológico das
atividades desenvolvidas por instituições de assistência. Isso porque seu artigo 2º, inciso I,
previa que a sociedade seria dissolvida se deixasse de desempenhar efetivamente as
atividades assistenciais a que havia sido destinada. Esse dispositivo, além de comportar
diversas interpretações, previa que a sanção para o descumprimento dos requisitos
previstos para receber repasses do Poder Público era o encerramento compulsório das
atividades, e não a perda da subvenção107.
Finalizando a análise do isolamento do CNSS, verifica-se que mesmo passando
por reestruturações108, há sinais de que o conselho estava assoberbado pela demanda de
registros e emissões de certificados. Corrobora essa afirmação o Decreto n. 72.819, de
‘Art. 5º O C.N.S.S. compor-se-á de sete membros designados pelo Presidente da República, dentre
pessoas notòriamente dedicadas ao serviço social em qualquer de suas modalidades.
§ 1º A cada membro titular do Conselho corresponderá um suplente.
§ 2º O mandato dos membros e suplentes do Conselho será de três anos, não sendo vedada a recondução.
§ 3º Designado, dentre os seus membros, pelo Presidente da República, o C.N.S.S. terá um presidente, ao
qual competirá orientar, coordenar e superintender todos os seus serviços, bem como exercer as
atribuições que lhe conferir o regimento.
§ 4º O Vice-Presidente será escolhido pelo Conselho dentre os seus membros.
§ 5º Os membros do C.N.S.S. perceberão por sessão a que comparecem, a gratificação de representação
de cinqüenta cruzeiros novos, a qual não poderá exceder, em conjunto, quatrocentos e oitenta cruzeiros
novos por mês.’” Decreto-Lei n. 878, de 17 de setembro de 1969.
106
A composição do CNSS seria mais uma vez alterada pela Lei n. 5.944/73, porém, sem grande
relevância para o presente estudo, uma vez que essa lei alterou apenas o artigo 5º, § 1º, de Decreto-Lei
5.697/43, estabelecendo que “o Conselho disporá de suplentes, em número de três, que substituirão, em
sistema de rodízio, os membros efetivos, em seus impedimentos.” Lei n. 5.944, de 29 de novembro de
1973.
107
A necessidade de decisão judicial para dissolução da sociedade não representava uma garantia contra
ingerências indevidas nas atividades associativas, pois o Ato Institucional n. 5 suspendera as garantias da
magistratura, de modo que o Poder Judiciário estava fragilizado perante o Poder Executivo.
108
O Decreto n. 70.716, de 14 de junho de 1972, criou uma Secretaria-Executiva vinculada ao CNSS
com a finalidade de estudar, planejar coordenar e executar as suas atividades meio e promover o
levantamento de dados para análise e assessoramento de suas atividades-fim (art. 1º).
98
21 de setembro de 1973, que deixou de atribuir prazo de validade ao certificado
provisório de entidade de fins filantrópicos concedido na forma do Decreto n. 1.117/62.
Chegou-se, pois, à década de 1970 sem um programa de assistência social
minimamente sistematizado.
2.6.4 A assistência social na década de 1970
O Ato Complementar n. 43, de 23 de janeiro de 1969, com alteração
promovida pelo Ato Complementar n. 76, de 20 de outubro de 1969, estabeleceu que o
Poder Executivo elaboraria Planos Nacionais de Desenvolvimento, com duração igual à
do mandato do Presidente da República.
O Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento – I PND (Lei n. 5.727, de 04
de novembro de 1971), foi elaborado no governo de Emílio Garrastazu Médici para ser
desenvolvido entre 1972 e 1974.
Entre os objetivos do I PND, estavam inserir o país entre as nações
desenvolvidas no espaço de uma geração, aumentar a renda per capita da população e
elevar a economia às dimensões resultantes de um crescimento anual do Produto Interno
Bruto entre 8 e 10%. Como pressupostos para a consecução desses objetivos estavam a
disseminação dos resultados do progresso econômico entre as várias classes de renda e
regiões, a modernização das instituições e a estabilização política (I PND, tópico
“objetivos nacionais”).
Citando Sandroni, Matos (2002, p. 48) aponta ainda que o plano obteve um alto
grau de execução na área econômica, mas projetos sociais tiveram execução inferior ao
programado. Novamente a assistência social permaneceu inalterada.
O Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND, aprovado pela Lei
n. 6.151, de 04 de dezembro de 1974, foi lançado durante o governo de Ernesto Geisel,
visando guiar a economia do país até 1979.
O Brasil, nessa época, experimentava o esgotamento do milagre econômico
109
nacional
109
. Nesse cenário, o II PND buscava, entre outras medidas, garantir taxas de
“O período de 1968-73 ao mesmo tempo em que é considerado o auge do ‘milagre econômico’ é
também quando ficam evidentes as contradições, ou desequilíbrios, do crescimento exacerbado da
99
crescimento que permitissem a criação de empregos em níveis superiores ao do
crescimento vegetativo da população (BOARATI, 2003, p. 32). Portanto, nas palavras
de Stuchi (2010, p. 156), “a política social direciona-se ao exército de reserva de mão de
obra usando essa demanda como justificativa para o crescimento do Estado”.
As estratégias de desenvolvimento social indicadas no II PND foram:
conjugação da política de emprego, política de valorização de recursos humanos,
política de integração social e programa de desenvolvimento social (II PND, tópico
“síntese”, item VII).
Na esteira do II PND, desenvolveram-se ainda programas de saúde,
educação,
habitação,
alimentação,
desenvolvimento
regional,
entre
outros
(PEREIRA, 2006, p. 145-146).
Além disso, a Lei n. 6.168, de 09 de dezembro de 1974, criou o Fundo de
Apoio ao Desenvolvimento Social – FAS, visando “dar apoio financeiro a programas e
projetos de caráter social, que se enquadrem nas diretrizes e prioridades da estratégia de
desenvolvimento social dos Planos Nacionais de Desenvolvimento”. A LBA passou a
ser financiada com recursos do FAS (LIMA, 1994, p. 19).
O Ministério da Previdência e Assistência havia sido criado em 01 de maio de
1974 pela Lei n. 6.036. Em 1º de setembro de 1977, a Lei n. 6.439 instituiu o Sistema
Nacional de Previdência e Assistência Social – SINPAS, formado por diversas
entidades, cujas receitas compunham o Fundo de Previdência e Assistência Social –
FPAS110. A LBA foi integrada ao SINPAS, juntamente com outras entidades.
economia brasileira. A piora na distribuição de renda foi alvo de debates e de críticas, inclusive
internacionais, ao modelo de crescimento brasileiro, uma vez que a maior parte dos ganhos de
crescimento econômico ficaram concentrados nas mãos de poucos dentro da sociedade. O debate surge
em princípios de 1972 com base nos resultados do Censo de 1970 que mostraram que os índices de
concentração de renda foram agravados entre 1960-1970” (BOARATI, 2003, p. 20).
110
“Art 4º - Integram o SINPAS as seguintes entidades:
I - Instituto Nacional de Previdência Social - INPS;
II - Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social - INAMPS;
III - Fundação Legião Brasileira de Assistência - LBA;
IV - Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor FUNABEM;
V - Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social - DATAPREV;
VI - Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social - IAPAS.
§ 1º - Integra, também, o SINPAS, na condição de órgão autônomo da estrutura do MPAS, a Central de
Medicamentos - CEME.[...]
Art 19 - A receita das entidades do SINPAS constituirá o Fundo de Previdência e Assistência Social FPAS, de natureza contábil e financeira, que será administrado por um colegiado integrado pelos
dirigentes daquelas entidades sob a presidência do Ministro da Previdência e Assistência Social.
Parágrafo único - Ao colegiado a que se refere o ‘caput’ deste artigo compete:
I - pronunciar-se sobre as propostas orçamentárias das entidades do SINPAS e respectivas alterações;
Il - aprovar previamente o Plano Plurianual de Custeio do SINPAS;
100
A Lei n. 6.439/77 atribuiu à LBA competência para “prestar assistência social à
população carente, mediante programas de desenvolvimento social e atendimento às
pessoas”. Isso incluía a função de prover serviços de assistência complementar não
prestados diretamente pelo Instituto Nacional de Previdência Social – INPS e pelo
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS,
responsáveis pela previdência e pela saúde, respectivamente111.
A atribuição dos “serviços de assistência complementar” à assistência social
mostra que esta política era concebida como mecanismo de simples complementação de
outros programas. De todo modo, a vinculação da LBA ao MPAS acarretou um
aumento de 100% em seus recursos (SPOSATI; FALCÃO, 1989, p. 26 apud LIMA,
1994, p. 24), o que permitiu dinamizar o funcionamento da instituição (VIEIRA, 1986,
p. 209 apud LIMA, 1994, p. 24).
Porém, a preocupação demonstrada pelas medidas que reformularam a
assistência social no âmbito do aparato governamental, não chegou a representar uma
demonstração de autocrítica do governo; antes, representou uma “via de reaproximação
do Estado com a sociedade” (PEREIRA, 2006, p. 144). Tais medidas surgiram com o
propósito de conter e desmobilizar reações ao regime militar. Exemplo desse propósito
de desarticulação foi o Decreto-Lei n. 1.632/78, conhecido como “Lei de Greve”, que
dispunha sobre a proibição de greve em serviços públicos e atividades essenciais de
interesse da segurança nacional112.
III - aprovar os programas de aplicação patrimonial e financeira do SINPAS e respectivas alterações;
IV - aprovar programas especiais de previdência e assistência social.
Art 20 - A receita de cada entidade do SINPAS será representada pelos recursos que lhe forem
atribuídos no Plano Plurianual de Custeio do SINPAS para custeio dos programas e atividades a seu
cargo.” Lei n. 6.439, de 1º de setembro de 1977.
111
“Art 9º - A LBA compete prestar assistência social à população carente, mediante programas de
desenvolvimento social e de atendimento às pessoas, independentemente da vinculação destas a outra
entidade do SINPAS.
Parágrafo único - Os serviços de assistência complementar não prestados diretamente pelo INPS e pelo
INAMPS aos seus beneficiários poderão ser executados pela LBA conforme se dispuser em
regulamento.”
Lei
n.
6.439,
de
1º
de
setembro
de
1977.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6439.htm>. Acesso em: 27 mar. 2011.
112
As atividades abrangidas pelo esse Decreto-Lei estavam delineadas em seu artigo 1º, a saber:
“Art 1º - São de interesse da segurança nacional, dentre as atividades essenciais em que a greve é proibida
pela Constituição, as relativas a serviços de água e esgoto, energia elétrica, petróleo, gás e outros
combustíveis, bancos, transportes, comunicações, carga e descarga, hospitais, ambulatórios,
maternidades, farmácias e drogarias, bem assim as de indústrias definidas por decreto do Presidente da
República.
§ 1º Compreendem-se na definição deste artigo a produção, a distribuição e a comercialização.
§ 2º Consideram-se igualmente essenciais e de interesse da segurança nacional os serviços públicos
federais, estaduais e municipais, de execução direta, indireta, delegada ou concedida, inclusive os do
Distrito Federal” Decreto-Lei n. 1.632, de 4 de agosto de 1978.
101
Ainda no tocante à LBA, o Decreto n. 83.148, de 08 de fevereiro de 1979,
aprovou alterações nos estatutos da entidade, incluindo a ampliação de sua finalidade,
que passou a ser a de “promover, mediante o estudo do problema e o planejamento das
soluções, a implantação e execução da política nacional de assistência social, bem como
orientar, coordenar e supervisionar outras entidades executoras dessa política (art. 2º).
O artigo 8º desse Decreto consagrou como objetivo principal da LBA “a
prestação de assistência social à população carente, mediante programas de
desenvolvimento social e de atendimento às pessoas, independentemente da vinculação
destas a outra entidade do SINPAS”.
Porém, esse mesmo dispositivo, ao definir as diretrizes de atuação manteve a
preferência pelo atendimento indireto e a mescla entre assistência social e filantropia. A
propósito, destacaram-se as previsões de convênio com entidades públicas ou privadas
para execução de atividades de assistência social (art. 8º, IV); “campanhas para solução
de problemas sociais de natureza temporária, cíclica, intermitente ou que possam ser
debelados ou erradicados por essa forma” (art. 8º, VI); convênios com escolas,
empresas, municipalidades, associações e instituições assistenciais e filantrópicas para
execução de programas de assistência social (art. 8º, VIII); e de incentivo a iniciativas
locais, “com ênfase no trabalho do voluntariado” (art. 8º, X)113.
Ao lado das medidas impulsionadas pelos PNDs persistiu a regulamentação da
filantropia. Nesse sentido, o Decreto n. 76.186, de 02 de setembro de 1975, tratou da
isenção do imposto de renda e da dedutibilidade de doações efetuadas às entidades
filantrópicas. Por outro lado, o Decreto n. 1.572, de 01 de setembro de 1977, ao revogar
a Lei n. 3.577/69114, colocou um importante limite ao financiamento público das
entidades privadas de assistência.
113
A título de comparação, registram-se ações semelhantes no Município de São Paulo, inclusive com a
estratégia de conferir a entidades sociais a execução de diversas atividades. A partir da década de 1970,
fortaleceram-se atividades de educação básica de assistência ao trabalho – com cursos de capacitação de
mão de obra –, de atendimento à infância – do que as creches são o principal exemplo – e de atendimento
à demanda por habitação. Em relação à habitação – demanda por moradias –, em 1978, a Prefeitura
chegou a incumbir os assistentes sociais de remover novos núcleos de favelas, reafirmando o tratamento
da pobreza por medidas policialescas (cf. SPOSATI, 1987, p. 419-438).
114
“Art. 1º Fica revogada a Lei nº 3.577, de 4 de julho de 1959, que isenta da contribuição de previdência
devida aos Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões unificados no Instituto Nacional de
Previdência Social – INPS, as entidades de fins filantrópicos reconhecidas de utilidade pública, cujos
diretores não percebam remuneração.
§ 1º A revogação a que se refere este artigo não prejudicará a instituição que tenha sido reconhecida como
de utilidade pública pelo Governo Federal até à data da publicação deste Decreto-lei, seja portadora de
certificado de entidade de fins filantrópicos com validade por prazo indeterminado e esteja isenta daquela
contribuição.
102
2.6.5 Os últimos anos do regime militar
Caminhando para o final da ditadura militar, resta analisar a legislação do
governo Figueiredo (15 mar. 1979 - 15 mar. 1985).
Nesse governo, o Decreto-Lei n. 1940, de 25 de maio de 1982, criou o Fundo
de
Investimento
Social
–
FINSOCIAL,
gerido
pelo
Banco
Nacional
de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Esse fundo tinha por fim “dar apoio
financeiro a programas e projetos de caráter assistencial relacionados com alimentação,
habitação popular, saúde, educação e amparo ao pequeno agricultor” (art. 3º). O
FINSOCIAL coexistiu com outros fundos, como o FAS e o FPAS, o que favorece a
desarticulação e a sobreposição de iniciativas.
Já no que tange ao incentivo à filantropia, destaca-se o lançamento do
Programa Nacional do Voluntariado – PRONAV em 1979. Além disso, registram-se
outras medidas, como a Lei n. 7.113/83, que dispôs sobre a atualização do valor do selo
previsto pela Lei n. 909/49, e o Decreto n. 91.030/85, que versou sobre o regulamento
aduaneiro e dispôs sobre isenção de taxas de importação às instituições de assistência
social.
Cumpre observar, por fim, que durante o governo Figueiredo, aprovou-se o
Terceiro Plano Nacional de Desenvolvimento – III PND, por meio da Resolução n. 1 do
Congresso Nacional, de 20 de maio de 1980. Esse plano deveria abranger o período de
1980 a 1985, mas foi abandonado no segundo semestre de 1980 (MATOS, 2002, p. 69).
Segundo Matos (2002, p. 70), “o III PND não pode ser considerado como um plano de
desenvolvimento, mas como uma simples declarações de intenções pelo governo”.
§ 2º A instituição portadora de certificado provisório de entidade de fins filantrópicos que esteja no gozo
da isenção referida no caput deste artigo e tenha requerido ou venha a requerer, dentro de 90 (noventa)
dias a contar do início da vigência deste decreto-lei, o seu reconhecimento como de utilidade pública
federal continuará gozando da aludida isenção até que o Poder Executivo delibere sobre aquele
requerimento.
§ 3º O disposto no parágrafo anterior aplica-se às instituições cujo certificado provisório de entidade de
fins filantrópicos esteja expirado, desde que tenham requerido ou venham a requerer, no mesmo prazo, o
seu reconhecimento como de utilidade pública federal e a renovação daquele certificado.
§ 4º A instituição que tiver o seu reconhecimento como de utilidade pública federal indeferido, ou que
não o tenha requerido no prazo previsto no parágrafo anterior deverá proceder ao recolhimento das
contribuições previdenciárias a partir do mês seguinte ao do término desse prazo ou ao da publicação do
ato que indeferir aquele reconhecimento.” Decreto-Lei n. 1.572, de 1º de setembro de 1977.
103
2.7
O período pré-Constituição Federal de 1988
Em 1985, depois de mais de duas décadas sob o regime militar, o país voltou a
ter um governo civil, eleito de forma indireta, tendo José Sarney como Presidente.
No período de transição da ditadura para o período de redemocratização do
país, conhecido como “Nova República”, grande parte da população brasileira vivia em
situação de pobreza ou indigência115.
Lançou-se, nessa época, o Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento da
Nova República – I PND-NR, concentrado nos seguintes temas: crescimento econômico;
combate à pobreza, à desigualdade e ao desemprego; educação, alimentação, saúde,
saneamento, habitação, previdência e assistência social; justiça e segurança pública
(MATOS, 2002, p. 72). Portanto, somente nessa ocasião a assistência social apareceu
como um tema diretamente relacionado ao desenvolvimento do país. Todavia, inúmeros
reveses econômicos inviabilizaram a implantação do I PND-NR (MATOS, 2002, p. 73).
A LBA, nessa fase, buscou se firmar como agência de desenvolvimento social
(LIMA, 1994, p. 25). Com esse intuito, adotou discurso favorável à revisão do papel da
assistência social no Brasil e ao incremento de seu papel como instrumento de
cidadania. Em 1987, a atuação fundada na identificação das categorias atendidas –
idosos, crianças, mães, pessoas com deficiência etc. – foi substituída pela regionalização
de programas. O propósito da mudança era fomentar associações comunitárias aptas a
prestar serviços e celebrar convênios com a LBA (SPOSATI; FALCÃO, 1989, p. 31
apud LIMA, 1994, p. 25).
Porém, o serviço prestado à população contradizia a pretensão da LBA de
promover desenvolvimento social.
Os recursos aplicados nos programas de atendimento, além de insuficientes,
variavam sobremaneira. Um levantamento feito por Lima (1994, p. 51) indica que a
transferência mensal feita pela LBA para atendimento de 8 horas em creches foi de 2,42
dólares per capita em 1985, 26,50 dólares em 1986, 10,63 dólares em 1987, 8,72
dólares em 1988 e 12,38 dólares em 1989. Mesmo considerando as oscilações da moeda
115
Mestriner (1992, p. 11, notas de rodapé 1 e 2) faz alusão a um estudo do Fundo das Nações Unidas
para a Agricultura e Alimentação, publicado em dezembro de 1990, dando conta de que, no final da
década, 40% da população do país vivia em situação de pobreza e 18% vivia em situação de indigência. A
autora também menciona dado extraído da Pesquisa Nacional Sobre Saúde e Nutrição dando conta de
que, em 1986, 61% dos casos de mortalidade infantil eram causados por desnutrição.
104
e a desvalorização da moeda brasileira frente ao dólar, pode-se perceber que, em alguns
anos, o valor dessa transferência mal permitiria a alimentação das crianças atendidas nas
creches.
Teoricamente, esses recursos deveriam ser complementados com valores
arrecadados junto às comunidades em que as unidades de atendimento estivessem
instaladas. A propalada associação entre governo e sociedade civil deveria servir para
este fim. Desse modo, as transferências governamentais, por meio da LBA, seriam
“meros” incentivos para a articulação local.
Porém, mais do que uma estratégia de incentivo à organização e emancipação
local, essa expectativa representa a reiteração da ideia de que as comunidades devem
dar conta da necessidade de seus membros e de que os beneficiários da assistência
devem ofertar contrapartida pelo que recebem. Na prática, esse fomento ao
protagonismo das comunidades levava muitas famílias de usuários dos serviços a
oferecerem contraprestações como recursos materiais, trabalho gratuito ou subremunerado, compensando o baixo aporte de recursos (LIMA, 1994, p. 53-54). Por trás
dessa prática, havia um claro propósito de promover um atendimento de baixo custo,
convertendo a população que historicamente foi credora de serviços de qualidade em
devedora desses mesmos serviços.
Essa racionalidade não só falhou em relação aos resultados esperados como
estigmatizou ainda mais as comunidades em situação precária. Isso porque não se levou
em conta que uma comunidade é considerada “carente” exatamente pela falta de
recursos materiais e humanos à disposição de seus membros para desenvolverem suas
potencialidades e participarem da vida comunitária. Justificando o sucesso ou insucesso
dos programas com base na maior ou menor adesão das comunidades, reforçava-se a
crença de que aqueles que vivem precariamente são os principais causadores de suas
condições de vida, sem se levarem em conta as reais possibilidades de que o
envolvimento da comunidade ocorresse e fosse bem sucedido.
Sobre esse discurso, Lima (1994, p. 45) apresenta a seguinte crítica:
Esta estratégia assumiu perspectiva sistêmica no discurso proferido
para justificar a expansão de programas de massa a baixo custo. O uso
da palavra justificativa [...] não ocorre por acaso. Ela tem demarcado a
perspectiva interpretativa de que o discurso não antecede a prática da
LBA, mas a sucede, justificando-a. Ela mais parece ter uma função de
argumento para justificar a implantação junto a esferas da
105
administração central e técnicas locais, do que para a clientela
“parceira” de suas ações.
Ele mais parece preservar o “nós, normais”, criando uma unidade de
justificativas racionalizadoras para uma atuação pobre, se não
paupérrima. O discurso sobre a pobreza, na LBA, vem justificando um
atendimento pobre [...].
A respeito dessa forma de condução da assistência social, Sposati (1987,
p. 315-316) afirma:
É possível ser formulada uma tautologia, a pobreza dos brasileiros é
tão grande que possibilita até uma pobre concepção do pobre e da
pobreza. Com isto, qualquer sinalização como, a exemplo, minorar a
desnutrição, já aparece como uma medida de ‘combate à pobreza’.
Esquece-se que uma condição de vida de tal modo caracterizada por
subnutrição, analfabetismo e doença constitui a concepção de pobreza
absoluta, que se coloca à parte de qualquer definição razoável de
decência humana (World Bank, 1980).
O combate à pobreza é entendido comumente a partir do rebaixamento
das condições de vida, o que termina levando a que propostas
governamentais, ou não, dirigidas aos pobres sejam operadas como
“pobres soluções”. Os pobres terminam, também, sendo mais pobres
pela pobreza dos serviços com que contam. Além da ausência
numérica de serviços frente à demanda, eles contam com suas
“ausências qualitativas genéticas” na medida em que se dirigem aos
segmentos mais pobres da população.
Em suma: havia um discurso que prestigiava políticas sociais. Porém, a prática
governamental contrariava a preocupação externalizada nos discursos.
Diante disso, não causa estranheza que a LBA tenha vivido sua segunda
ameaça de extinção durante os trabalhos da Assembleia Constituinte. Essa extinção
havia sido defendida pelos que criticavam a estrutura da instituição e pelos que
defendiam a municipalização da assistência social. Em contraste, funcionários e
políticos que se beneficiavam da estrutura da LBA defendiam sua manutenção (LIMA,
1994, p. 17).
2.8
Uma síntese da assistência social até a Constituição Federal de 1988
Após traçar essa evolução, pode-se concordar com a afirmação de Mestriner
(2011, p. 16) de que, até 1988, o Estado brasileiro resistiu a tratar a assistência social como
política, o que explica o porquê de os deveres do Estado nessa seara serem pouco claros.
106
Na verdade, a assistência social voltou-se a atendimentos pontuais e
emergenciais, limitados a alguns grupos de indivíduos, mas não aos grandes
contingentes de pessoas em situação de pobreza.
O exame da legislação brasileira denota que a ação estatal em matéria de
assistência social consistiu, essencialmente, na disciplina do apoio financeiro às
organizações privadas (MESTRINER, 2011, p. 17) e no atendimento indireto ao público
(LIMA, 1994, p. 11).
Chama a atenção ainda a ausência de coordenação entre os níveis federativos.
A falta de coordenação se reflete tanto na sobreposição de ações, quanto na ausência de
programas de assistência. Para esse quadro concorrem fatores como a falta de
sistematização da assistência social e um sistema tributário que favorece o poder
central, deixando instâncias locais sem capacidade financeira para fazerem frente a
encargos sociais.
Ainda sobre a falta de capacidade financeira das instâncias locais, ressalta-se
que as instâncias municipais, pela sua proximidade com a população, acabam sendo
bastante solicitadas para atenderem demandas relativas ao bem-estar da população.
Como muitas dessas demandas podem ser subsumidas ao significado da expressão
peculiar interesse – a reger as competências municipais –, abre-se ensejo a que os
Municípios – seja para incorporar reivindicações populares, seja para reforçar
práticas populistas e clientelistas –, prestem serviços que estariam a cargo da
União116. No entanto, sem a contrapartida orçamentária, esses investimentos são
prejudicados pela baixa qualidade e pela descontinuidade dos serviços prestados e se
tornam fontes de embates internos na burocracia municipal e entre os outros níveis
federativos (cf. SPOSATI, 1987, p. 156-174).
116
Sobre os percalços advindos da discrepância entre competências e fontes de financiamento de
investimentos sociais, Sposati (1987, p. 173) avalia que: “[à] medida que, conforme mostra Cipollari, as
transferências intergovernamentais de recursos tendem a ser descontínuas, ou ainda, como diz José
Afonso, dependentes ‘de negociação, geralmente casuística (o que) compromete a possibilidade de
sustentação futura dos níveis de atendimento de alguns programas sociais’ (Afonso, 1985, p. 38), é de se
inferir o peso que tais pressões populares representam nessas negociações. Assim, órgãos municipais que
gerenciam encargos sociais, principalmente em conjunturas de expansão de serviços, serão palco de
possíveis turbulências.
Há uma fragilidade na continuidade do financiamento dos encargos sociais municipais e, com isso, eles se
rederem mais a acertos de caráter casuístico e emergencial, que não garantem de imediato sua
permanência, senão por forte pressão popular. [...]
Assim, possivelmente, os encargos sociais tendam a se conformarem de modo diferencial entre as gestões
municipais devido à capacidade e à forma de administrar a pressão popular dos diferentes grupos do
poder”.
107
No tocante ao conteúdo dos programas de assistência, verifica-se que o
combate à pobreza ia pouco além do necessário à sobrevivência física da população
destinatária dessas medidas. Preocupações com participação na vida comunitária,
autonomia das populações atendidas e mudanças estruturais nas relações sociais não se
fizeram presentes nas práticas governamentais.
A seu turno, a atuação da LBA se fez com o reforço de estigmas em torno da
população pobre, especialmente feminina, com a concessão de ajudas individuais e com
o recurso às “sobras” – de recursos materiais, de tempo ocioso e de trabalho – das
comunidades. Porém, as práticas desenvolvidas no seio desta instituição evidenciam
falta de planejamento e de fixação de padrões mínimos de qualidade no atendimento
prestado, de forma direta ou indireta. Persistiu assim a concepção da pobreza como
fruto de fracassos individuais, a ser remediada por medidas pontuais de apoio a mães e
crianças pequenas (LIMA, 1994, p. 34).
É bem verdade que a LBA passou por diversas alterações estatutárias. Porém,
segundo Lima (1994, p. 23), essas mudanças mostram o propósito “de a instituição se
adequar a cada momento da conjuntura do País, como se a pobreza no Brasil fosse de
natureza conjuntural”. A autora ressalta ainda que essas sucessivas mudanças de
orientação eram acompanhadas de discursos de negação e crítica ao que vinha sendo
desenvolvido, mostrando que não havia projeto de médio e longo prazo.
A propósito dos discursos da LBA, Lima (1994, p. 28) afirma:
Estes discursos, via de regra, anunciam uma prática nova, justificam
ou criticam a prática anterior. Não parecem discursos orientadores de
uma ação programática, mas, ao contrário, justificadores. Podemos
entender a diversidade de discursos: foram emitidos em diversas
épocas, por diversos autores, para diversos interlocutores. Um dos
recortes mais marcantes dessa diversidade discursiva pode ser
detectado na concepção de assistência social que vem sendo veiculada
pela instituição. A cada nova gestão, a cada novo estatuto o discurso
muda. Mas há elementos estruturais constantes: critica-se o velho e
postula-se o novo. A LBA ressurge, ilesa da fogueira crítica em que se
queimou o passado. E a instituição permanece e sobrevive. Os erros
são do passado e a esperança é nova.
Ao lado da má organização dos serviços, o insucesso das políticas de
assistência social deveu-se a questões estruturais, relacionadas ao modo pelo qual
ocorria a produção e distribuição de recursos econômicos. Significa afirmar que
medidas de enfrentamento à pobreza não foram conjugadas com outras medidas de
108
redistribuição de renda, necessárias à redução da pobreza estruturalmente constituída.
Isso mostra a opção política por um perfil de distribuição de renda gerador de níveis de
desigualdade social.
Nesse contexto, é fácil compreender porque as políticas sociais e, de modo
particular, políticas de assistência social – por serem concebidas exatamente para os
grupos mais gravemente destituídos de meios de sobrevivência –, não ultrapassaram a
medida estritamente necessária à sobrevivência física das populações mais pobres e não
chegaram a entrar em rota de colisão com a acumulação de riquezas e de poder pelas
elites econômicas e políticas do país.
Em meio a um cenário absolutamente desfavorável, deve-se à criação dos
cursos de serviço social a defesa de uma atuação mais técnica e racional em matéria de
assistência social. Porém, nem sempre esse trabalho mais criterioso e fundado na
solidariedade social teve espaço no Poder Público, antagonizando o trabalho fundado da
filantropia e no apelo à solidariedade individual do qual o chamado “primeirodamismo” é exemplo. Isso explica o porquê de muitos profissionais do serviço social
terem buscado espaços de militância política – e não postos de trabalho técnicos
existentes no aparelho governamental –, para defender uma prática mais transformadora
da assistência social.
No Brasil, essa mudança de perspectiva foi favorecida a partir da década de
1980, no período que antecedeu a nova ordem constitucional e, mais intensamente, a
partir da nova ordem constitucional.
De todo modo, não se pode afirmar que o Estado brasileiro tenha tratado da
assistência social como parte de um direito à proteção social em algum momento
anterior à Constituição Federal de 1988.
3
DIRETRIZES DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988
3.1
Considerações iniciais
O período que antecedeu a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi
profícuo em debates sobre direitos sociais e o direito à assistência social foi um dos
temas discutidos.
Embora desde a década de 1970 houvesse um forte movimento pela revisão do
papel adjutório117 da assistência social, foi na década de 1980 que essas propostas
encontram meios de se traduzirem em novas instituições e nova regulação das relações
entre Estado e sociedade civil. Nessa transição, a assistência social se distanciou da
filantropia, passou por um período de coexistência de concepções em certos pontos
antagônicas – uma preocupada com o atendimento de situações de emergência, por
meio de ações privadas e caritativas; outra voltada para a conquista de direitos – e se
encaminhou para a consolidação da assistência como política pública118. Como
resultado, as preocupações relativas à assistência social deixaram de gravitar em torno
de questões pontuais relativas à pobreza119 (cf. DRAIBE, 1990, p. 19 apud LIMA, 1994,
p. 3) e se voltaram para a concretização de direitos básicos de cidadania, especialmente
igualdade, segurança econômica, participação política e autonomia.
117
Sposati (1987, p. 337) aponta que o caráter adjutório da assistência social se reflete na maneira como
suas ações são empreendidas e na destinação de recursos financeiros, materiais e humanos. Além disso,
critica a autora, “[a] irresponsabilidade que tal caráter confere a esta área de ação não a faz merecedora de
qualquer sanção pública. Aliás, não há opinião pública a seu respeito. Seu público ‘a outra humanidade’
não tem voz reconhecida na sociedade burguesa” SPOSATI (1987, p. 337).
118
Como marca desse reposicionamento, o termo promoção social é empregado no lugar de assistência
social (MESTRINER, 2011, p. 169).
119
Ao tratar de abordagens teóricas das políticas sociais, Coimbra (1987, p. 65-104), citando Ramesh
Mishra, descreve o modelo que chama de “perspectiva do serviço social”. Cuida-se de um modelo de
caráter empírico e pragmático – cujo foco de atenção é o estudo de problemas locais, com pouca atenção
para aspectos generalizantes e comparativos –, que se afasta de preocupações teóricas e especulativas.
Para o autor, essa perspectiva padeceria de um “empirismo ingênuo”, limitadora de análises mais críticas
sobre sua própria prática. Evitando generalizações em relação aos profissionais do serviço social, o autor
se preocupa em não confundir a “perspectiva” do serviço social com a “profissão” do serviço social.
Porém, salienta que, ao longo de anos, uma e outra estiveram bastante ligadas, até que essa perspectiva
passou a ser criticada e foi substituída por outras referências. A partir da análise apresentada pelo autor, é
possível entrever na mudança de atuação dos profissionais do Serviço Social a preocupação em ampliar a
análise crítica das necessidades sociais, ao invés de buscar apenas soluções pontuais para questões
atinentes à pobreza.
110
No período de 1985 a 1990, aponta Carro (2008, p. 172), a assistência social
foi amplamente debatida e a articulação entre intelectuais e profissionais dessa área
resultou em propostas de ação construídas coletivamente120. O tratamento constitucional
da assistência social como tema de responsabilidade pública foi, evidentemente, o
resultado mais importante dessa mobilização.
O processo de reconquista de um novo regime foi tão longo e árduo,
que legitimá-lo, significava torná-lo realidade institucional. Era como
se, pela via da nova Constituição estar-se-iam solucionando os graves
problemas vividos pelo país, recuperando a dívida social acumulada
no período ditatorial e avançando no resgate da cidadania do povo
brasileiro. (MESTRINER, 1992, p. 09)
E foi no bojo da Constituição Federal de 1988 que se delineou um Estado de
Bem-Estar e se consagrou um rol de direitos sociais do qual a assistência social faz
parte. Apesar dos antagonismos sobre o papel do Estado que marcaram a Constituinte e
que perduram até hoje, e apesar dos inúmeros percalços ainda enfrentados na
implantação dos direitos sociais, os fundamentos das políticas sociais foram
substancialmente alterados. No campo específico da assistência social, a mudança de
paradigma foi de tal ordem que exige um árduo esforço de ruptura com a cultura da
filantropia vigente até 1988.
Neste capítulo, pretende-se identificar na Constituição Federal de 1988 as
disposições que devem pautar a compreensão e a efetivação do direito à assistência no
país. Para tanto, serão analisadas as normas que condicionam as políticas sociais como
um todo, bem como as normas que delineiam o sistema de seguridade social e, no
âmbito desse sistema, as que tratam especificamente da assistência.
3.2
Estado de Bem-Estar
A Constituição Federal de 1988 consagra um modelo de Estado de Bem-Estar,
razão pela qual importa analisar como surgiu esse modelo e qual é seu significado atual.
120
A experiência acumulada no trabalho dos órgãos assistenciais, o contato com movimentos da
sociedade civil e o próprio amadurecimento teórico dos profissionais do serviço social devem ser sempre
ressaltados. Atentos ao agravamento da crise social e do autoritarismo, esses profissionais e estudiosos,
ao lado de segmentos da sociedade civil, vinham discutindo a assistência social sob a perspectiva da
“dinâmica contraditória das respostas do Estado à questão social” (RAICHELIS, 2011, p. 21). Portanto,
havia um ambiente propício à crítica das práticas desenvolvidas no âmbito da burocracia estatal
(MESTRINER, 2011, p. 164).
111
O processo histórico que resultou na formação do Estado de Bem-Estar
desenvolveu-se na Europa e nos Estados Unidos entre as últimas décadas do século XIX
e a primeira metade do século XX. No interregno compreendido entre as duas Guerras
Mundiais, intensificou-se a participação estatal na proteção ao emprego e no
atendimento de necessidades básicas da população121. Finalmente, na década de 1940,
após a Segunda Guerra Mundial, chegou-se às fórmulas mais bem acabadas do Estado
de Bem-Estar.
Esse fenômeno resulta de um conjunto de causas. Impulsionadas pelas
disfunções da sociedade industrial e pela difusão do pensamento marxista, as lutas
sociais ganharam corpo e mudaram significativamente as condições de vida do
proletariado à época (ROSANVALLON, 1995, p. 07), com destaque para a expansão de
direitos trabalhistas. Somam-se a esses fatores os resultados de duas Guerras Mundiais,
que impulsionaram esforços de reconstrução social e econômica, mediante a promoção
do acesso à saúde, à educação, à assistência, à previdência etc.
Nesse cenário, o Estado de Bem-Estar se caracteriza pela maior intervenção do
Estado nas relações sociais. Essa intervenção, como aponta Rosanvallon (1995, p. 7),
tem como objetivo central livrar a sociedade da necessidade e proteger o indivíduo
contra os principais riscos da existência. Para a consecução desse fim, a intervenção
estatal destinada a prover necessidades da população e oferecer proteção social constitui
direito dos cidadãos – não benesse.
O Estado de Bem-Estar representa o fim da oposição entre direitos civis e
políticos, de um lado, e, de outro, direito à subsistência (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 2004, p. 417). Essa oposição ficara muito clara na experiência das
Workhouses – em que a perda da liberdade era contrapartida dos mínimos de
subsistência. Nesse novo cenário, as garantias de acesso a bens econômicos, sociais ou
121
“Os anos 20 e 30 assinalam um grande passo para a constituição do Welfare State. A Primeira Guerra
Mundial, como mais tarde a Segunda, permite experimentar a maciça intervenção do Estado, tanto na
produção (indústria bélica), como na distribuição (Gêneros alimentícios e sanitários). A grande crise de
29, com as tensões sociais criadas pela inflação e pelo desemprego provoca em todo o mundo ocidental
um forte aumento das despesas públicas para a sustentação do emprego e das condições de vida dos
trabalhadores. Mas as condições institucionais em que atuam tais políticas são radicalmente diversas:
enquanto nos países nazifascistas a proteção ao trabalho é exercida por um regime totalitário, com
estruturas de tipo corporativo, nos Estados Unidos do New Deal, a realização das políticas assistenciais se
dá dentro das instituições políticas liberal-democráticas, mediante o fortalecimento do sindicato
industrial, a orientação da despesa pública à manutenção do emprego e à criação de estruturas
administrativas especializadas na gestão dos serviços sociais e do auxílio econômico aos necessitados.”
(BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 417).
112
culturais representam o desenvolvimento dos direitos civis e políticos, não sua
contraposição.
A partir das décadas de 1970 e – sobretudo – 1980, retornaram com mais força
os problemas de privação e insegurança social que o Estado Providência buscou
contornar. Porém, as causas desses fenômenos contemporâneos são diversas daquelas
que resultaram no desenvolvimento dos modelos de bem-estar social. Por isso, as
soluções para esses problemas não podem ser encontradas com a mera repetição de
fórmulas já empregadas.
Rosanvallon (1995, p. 10-11) assevera que o Estado Providência tradicional
opera compensando disfunções passageiras e o compara a uma “máquina de indenizar”.
Em um cenário de desocupação em massa e de aumento de exclusão, prossegue o autor,
os mecanismos compensatórios dos direitos sociais se mostram inadequados para lidar
com situações de desagregação estruturais e estáveis. Daí se falar em crise do Estado
Providência.
Ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988, portanto, muitos
países já tratavam dessa crise e adotavam medidas de cunho liberal para diminuir a
responsabilidade estatal na promoção do bem-estar social.
Ocorre que o discurso e as políticas favoráveis ao retorno ao Estado mínimo e à
desregulação da economia foram incorporados às agendas de países periféricos. Mesmo
países que não chegaram a caminhar no sentido da implantação de um modelo de bemestar social passaram a ter suas políticas pautadas pela noção de crise do Estado
Providência. Como afirma Santos (2009, p. 155), “esses países assumem a ideia de crise
do Estado Providência sem nunca terem usufruído verdadeiramente deste”.
Aplicada à realidade brasileira, a observação de Santos recomenda cautela na
adoção de discursos e práticas fundados na necessidade de “enxugar” a máquina estatal.
Embora a crise do Estado Providência esteja ligada a questões globais, que atingem
países periféricos e desenvolvidos, as soluções encontradas para contornar essa crise
são, no mais das vezes, calcadas em experiências inaplicáveis à realidade nacional. E,
nesse sentido, as medidas de desregulação da economia e redução de políticas sociais
concebidas para países desenvolvidos não podem ser aplicadas de forma acrítica aos
países periféricos, sob pena de acirramento da exclusão social e ruptura de tecidos
sociais já frágeis.
113
Além disso, tanto nos países desenvolvidos como nos periféricos, é cada vez
mais evidente que não se pode prescindir de formas de intervenção pública visando
promover proteção social exatamente contra as necessidades sociais e contra a
insegurança social.
Portanto, os propósitos que resultaram na concepção de Estados de Bem-Estar,
assim como seus objetivos centrais, não perderam sua atualidade. O que mudou foram
as questões a serem enfrentadas e, por isso mesmo, os mecanismos que podem ou não
lograr êxito no enfrentamento das novas expressões da insegurança social.
Frente a las fracturas sociales que se agravaron durante los años
ochenta, la intervención pública, en efecto, recuperó toda su
justificación. La ideología del Estado ultramínimo posó de moda. A
partir de entonces, todo el mundo reconoció el papel insoslayable del
Estado providencia para mantener la cohesión social. Lo importante es
ahora repensarlo de modo que pueda seguir desempeñando
positivamente su papel. La refundación intelectual y moral del Estado
providencia se ha convertido en la condición de su supervivencia.
(ROSANVALLON, 1995, p. 10)
3.3
Cidadania, dignidade humana e valor social do trabalho como fundamentos
da República Federativa do Brasil
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, incisos II e III, estabelece a
cidadania e a dignidade humana entre os fundamentos da República. São estas as bases
sobre as quais as relações entre Estado e indivíduos ou apenas entre indivíduos devem
ser estruturadas.
Cidadania e dignidade humana implicam-se reciprocamente (ARAUJO;
NUNES JÚNIOR, 2010, p. 123) e comportam variadas definições. Sem a pretensão de
exaurir a discussão sobre tais definições, interessa identificar em que sentido essas
expressões são empregadas.
3.3.1 Cidadania
O vocábulo cidadania, mesmo se analisado sob um viés estritamente jurídicopositivo, comporta diversas acepções
114
Esse termo pode ser empregado como referência à nacionalidade ou à
titularidade de direitos políticos. Quando a Constituição Federal, por exemplo, assegura
que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular” (art. 5º, LXXIII),
adota essa acepção, pois considera cidadão o “nacional no gozo de direitos políticos”
(SILVA, 2005, p. 463). Quando Ferreira Filho (1997, p. 112) refere-se à “cidadania em
sentido estrito” e a define como “o status de nacional acrescido dos direitos políticos
(stricto sensu), isto é poder participar do processo governamental, sobretudo pelo voto”,
também segue essa linha mais restritiva. Por fim, Carvalho (2006, p. 461) também
enfatiza que cidadania é o “status do nacional para o exercício dos direitos políticos”.
Por outro lado, cidadania é expressão que também se relaciona a um conjunto
mais amplo de direitos. Nesse sentido, correlaciona-se com dignidade da pessoa
humana, igualdade material e formal, bem como participação na vida social e política.
No artigo 1º da Constituição Federal, o vocábulo cidadania é empregado com este
último significado, ligado ao conjunto de direitos (e deveres) atribuídos a todos os
membros da sociedade. Confira-se a propósito, o que ensina Silva (2005, p. 104):
A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de titular de
direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o
reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade
estatal (art. 5º, LXXVII).
No mesmo sentido, Araujo e Nunes Júnior (2010, p. 123) comentam o artigo 1º
da Constituição Federal nos seguintes termos:
A expressão cidadania, aqui indicada como fundamento da República,
parece não se resumir à posse de direitos políticos, mas, em acepção
diversa, parece galgar significado mais abrangente, nucleado na ideia,
expressa por Hanna Arendt, do direito a ter direitos.
Na linha desse posicionamento mais amplo sobre cidadania, convém analisar
duas referências esclarecedoras que têm em comum o fato de estabelecerem um liame
entre cidadania, igualdade e acesso a um conjunto de direitos.
A primeira delas é a concepção de cidadania como “direito a ter direitos”, na
forma cunhada por Hannah Arendt. Essa definição – que, ressalte-se, não foi elaborada
com vistas à discussão sobre direitos sociais – sintetiza a importância da garantia de
acesso a direitos como aspecto principal da cidadania. Esse pensamento, sintetizado em
uma expressão simples e categórica, influenciou a reflexão em torno dos direitos
fundamentais.
115
A segunda referência está na obra de Thomas Humphrey Marshall, que se
aprofunda na relação entre cidadania e igualdade, inaugurando uma concepção de
cidadania atrelada à democracia e à noção de classes sociais122. O autor destaca ainda
um aspecto de particular importância para o estudo da assistência social: o direito a um
patamar mínimo de bem-estar e segurança como componente da cidadania.
3.3.1.1 Cidadania como direito a ter direitos
Refletindo sobre a condição dos apátridas e refugiados no século XX, com
especial destaque para o período iniciado pela Segunda Mundial, Arendt (1989) realçou
de forma singular a importância da cidadania para a proteção ou desproteção dos seres
humanos.
Na segunda parte de Origens do Totalitarismo, a autora destaca como o
pertencimento do ser humano a uma comunidade organizada se mostrou
imprescindível, exatamente, à proteção de sua condição humana. Em contraste,
demonstrou que a perda de direitos nacionais leva à perda de direitos humanos
(ARENDT, 1989, p. 325-326). A perda do vínculo jurídico com um Estado, por meio
da privação da nacionalidade, implica a perda de vínculos com a ordem jurídica
internacional e a impossibilidade de estabelecer vínculos com outro Estado, ou a
extrema dificuldade em fazê-lo. Nas palavras da autora:
A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro
e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo [...]. Algo mais
fundamental do que a liberdade e a justiça, que são os direitos do
cidadão, está em jogo quando deixa de ser natural que um homem
pertença à comunidade em que nasceu, e quando o não pertencer a ela
não é um ato da sua livre escolha, ou quando está numa situação em
que, a não ser que cometa um crime, receberá um tratamento
independente do que ele faça ou deixa de fazer. [...]
Só conseguimos perceber a existência de um direito a ter direitos (e
isto significa viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e
122
“Embora o tema da cidadania tenha sido central no pensamento político e social do Ocidente, tendo
origem na Grécia, a moderna concepção de direitos, associada à democracia e às classes sociais, foi
efetivamente obra de Marshall. Foi ele quem preencheu uma lacuna na teoria política ocidental,
elaborando uma das mais bem concatenadas e sugestivas reflexões sobre as razões sociais e históricas da
emergência do Estado de Bem-Estar do segundo pós-guerra e dos motivos morais que o justificam.”
(PEREIRA, 2009, p. 95).
116
opiniões) e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade
organizada, quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido
esses direitos e não podiam recuperá-los devido à nova política global.
O problema não é que essa calamidade tenha surgido não de alguma
falta de civilização, atraso ou simples tirania, mas sim que ela não
pudesse ser reparada, porque já não havia qualquer lugar
“incivilizado” na terra, pois, queiramos ou não, já começamos
realmente a viver num Mundo Único. Só com uma humanidade
completamente organizada, a perda do lar e da condição política pode
equivaler a sua expulsão da humanidade. (ARENDT, 1989, p. 330)
Portanto, a perda do estatuto político acarreta a perda da possibilidade de um
ser humano ser tratado como um semelhante por outros seres humanos.
Se um ser humano perde o seu status político, deve, de acordo com as
implicações dos direitos inatos e inalienáveis do homem, enquadrar-se
exatamente na situação que a declaração desses direitos gerais previa.
Na realidade, o que acontece é o oposto. Parece que o homem que nada
mais é que um homem perde todas as qualidades que possibilitam aos
outros tratá-lo como semelhante. (ARENDT, 1989, p. 334)
Demonstra-se, assim, que a perda da cidadania implica também a privação de
direitos e a perda do direito à vida pública, a um espaço na comunidade. É a percepção
da relevância da cidadania como pertencimento a uma comunidade organizada, que leva
à afirmação de que o primeiro direito humano é o direito a ter direitos123. Nessa medida,
a cidadania é um pressuposto de outros direitos124.
Lafer (1988, p. 152) explica ainda que, na linha do que afirma Paolo Flores
d’Arcais, a concepção arendtiana de participação na esfera pública pressupõe um
mínimo de igualdade material. Para o autor há “um ideal redistributivo necessário para
reduzir, na esfera do privado, as diferenças sociais derivadas da desigualdade
123
Lafer (1988, p. 153-154) explica: “É justamente para garantir que o dado da existência seja
reconhecido e não resulte apenas do imponderável da amizade, da simpatia ou do amor no estado de
natureza, que os direitos são necessários. É por essa razão que Hannah Arendt realça, a partir dos
problemas jurídicos suscitados pelo totalitarismo, que o primeiro direito humano é o direito a ter direitos.
Isto significa pertencer, pelo vínculo da cidadania, a algum tipo de comunidade juridicamente organizada
e viver numa estrutura onde se é julgado por ações e opiniões, por obra do princípio da legalidade. A
experiência totalitária é, portanto, comprobatória, no plano empírico, da relevância da cidadania e da
liberdade pública enquanto condição de possibilidade, no plano jusfilosófico de asserção da igualdade,
uma vez que a sua carência fez com que surgissem milhões de pessoas que haviam perdido seus direitos e
que não puderam recuperá-los devido à situação política do mundo, que tornou supérfluos os expulsos da
trindade Estado-Povo-Território”.
124
“O que ela afirma é que os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas como fato e um
meio, mas sim como um princípio, pois a privação da cidadania afeta substantivamente a condição
humana, uma vez que o ser humano privado de suas qualidades acidentais – o seu estatuto político – vê-se
privado de sua substância, vale dizer: perde a sua qualidade substancial, que é de ser tratado pelos outros
como um semelhante.” (LAFER, 1988, p. 151).
117
econômica à escala do razoável e permitir aos homens que não sejam apenas diferentes,
mas possam ter condições para distinguir-se na esfera pública”.
A concepção de cidadania como “o direito de ter direitos, ou o direito de cada
indivíduo de pertencer à humanidade” (ARENDT, 1989, p. 332), comporta diversas
aplicações e, até por isso, não perde sua atualidade. As ideias desenvolvidas pela autora
conduzem à necessidade de garantir a todos os indivíduos o acesso ao conjunto de
direitos que o tornem membro de uma comunidade organizada e igualitária125. A ideia
de cidadania nos termos expostos por Arendt comporta a noção de igualdade de acesso
a direitos, o que demanda igualdade formal e material.
3.3.1.2 Cidadania como conjunto de direitos
Também após a Segunda Guerra Mundial, mas com preocupações diferentes
das de Hannah Arendt, Marshall explorou a relação entre cidadania e igualdade em uma
obra que rapidamente se tornou referência no assunto.
Trata-se de uma teoria elaborada no fim da década de 1940, originalmente
apresentada como uma conferência intitulada “Cidadania e classe social” (Citizenship
and Social Class). Esse trabalho de Marshall influenciou estudos relativos à política
social e “ajudou a dimensionar a compreensão da política social para além de uma visão
paternal ou contratual” (PEREIRA, 2009, p. 95). Dada a relevância da obra como
justificativa do modelo de Estado de Bem-Estar – ainda que possa ser considerada
insuficiente para dar conta de todos os problemas de desigualdade e exclusão social
contemporâneos –, há que se reconhecer seu impacto na base dos movimentos que
marcaram a elaboração da Constituição Federal de 1988.
Marshall conceitua cidadania como “um status concedido àqueles que são
membros integrais de uma comunidade”126. Ele afirma ainda que esse conceito
125
“O grande perigo que advém da existência de pessoas forçadas a viver fora do mundo comum é que
são devolvidas, em plena civilização, à sua elementaridade natural, à sua mera diferenciação. Falta-lhes
aquela tremenda equalização de diferenças que advém do fato de serem cidadãos de alguma comunidade
[...]” (ARENDT, 1989, p. 335).
126
Vale transcrever toda a passagem: “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros
integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e
obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum princípio universal que determine o que estes direitos e
obrigações serão, mas as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam
118
subdivide-se em três elementos, correspondentes a três “blocos” de direitos: civis,
políticos e sociais. Segundo ele, antes de existir distinção entre as funções do Estado,
essas três ordens de direitos estariam fundidas. Com a especialização das funções
estatais e das instituições responsáveis pelo seu exercício, esses conjuntos de direitos
se distanciaram e se desenvolveram em ritmo diverso. Por isso, durante séculos
estiveram afastados uns dos outros e a reaproximação seria um fenômeno próprio do
século XX127.
Nessa concepção tripartite do conceito de cidadania, o elemento civil é
composto pelos “direitos necessários à liberdade individual” e sua formação remonta ao
século XVIII. O elemento político, a seu turno, consiste no “direito de participar no
exercício do poder político” e seu desenvolvimento teria ocorrido, segundo o autor, no
século XIX. Por fim, o elemento social “se refere a tudo o que vai desde o direito a um
mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar na herança social e
levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na
sociedade” e seria uma formação do século XX (MARSHALL, 1967, p. 63-64)128.
As ideias de Marshall se destacam exatamente no que tange ao conjunto de
direitos sociais e sua interação com a noção de cidadania.
A definição de direitos sociais – “tudo o que vai desde o direito a um mínimo
de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar na herança social e levar a
vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” – é
uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e em relação à qual a
aspiração pode ser dirigida. A insistência em seguir o caminho assim determinado equivale a uma
insistência por uma medida efetiva de igualdade, um enriquecimento da matéria-prima do status e um
aumento no número daqueles a quem é conferido o status.” (MARSHALL, 1967, p. 76).
127
“Nos velhos tempos, êsses três direitos estavam fundidos num só. Os direitos se confundiam porque as
instituições estavam amalgamadas [...] os direitos sociais do indivíduo igualmente faziam parte do mesmo
amálgama e eram originários do status que também determinava que espécie de justiça êle podia esperar e
onde podia obtê-la, e a maneira pela qual podia participar da administração dos negócios da comunidade à
qual pertencia. Mas esse status não era de cidadania no moderno sentido da expressão. Na sociedade
feudal, o status era a marca distintiva de classe e a medida de desigualdade. [...]
Sua evolução envolveu um processo duplo, de fusão e de separação.
[...] quando as instituições, das quais os três elementos da cidadania dependiam, se desligaram, tornou-se
possível para cada um seguir seu caminho próprio, viajando numa velocidade própria sob a direção de
seus próprios princípios peculiares. Antes de decorrido muito tempo, estavam distantes um do outro, e
somente no século atual, na verdade, eu poderia dizer apenas nos últimos meses, é que os três corredores
se aproximaram um dos outros.
[...] Quando os três elementos da cidadania se distanciaram uns dos outros, logo passaram a parecer
elementos estranhos entre si.” (MARSHALL, 1967, p. 64-65).
128
Coimbra (1987, p. 82) salienta, com razão, que essas indicações temporais dizem respeito à história da
Inglaterra, e não à história da sociedade moderna em geral, pois o desenvolvimento da cidadania ocorreu
em épocas muito diferentes em muitos outros países. O autor ressalta ainda que, no caso dos países
socialistas, houve uma ruptura da ordem exposta por Marshall – e que ele “aparentemente supunha
necessária” –, com a afirmação nos direitos sociais em primeiro lugar.
119
bastante imprecisa. Porém, a importância de sua obra não está na definição, mas sim no
destaque conferido aos direitos sociais para a configuração da cidadania (COIMBRA,
1987, p. 83-85). Dessa forma, Marshall demonstra uma relação indissociável entre
cidadania e igualdade129, tanto em seu aspecto formal quanto material130.
Como resultado dessa construção, tem-se que a cidadania pressupõe o acesso a
um mínimo de bens e serviços disponíveis em cada sociedade, sem os quais as condições
de vida são consideradas intoleráveis. Nas palavras de Oliveira (RAICHELIS, 2011,
Prefácio, p. 18), Marshall mostra que a cidadania “é a arma insubstituível para a
erradicação da miséria e da indignidade que grassam na sociedade brasileira”. A
conclusão de Marshall não é diferente da afirmação de Castel (2011, p. 107), para quem o
pleno exercício da cidadania social “exige um mínimo de recursos e de direitos sociais
que estão na base da independência social dos indivíduos”.
Essa concepção, além de influenciar a definição de quais serviços e benefícios
devem ser disponibilizados, exige atenção na definição de como e mediante quais
requisitos os direitos sociais serão efetivados, uma vez que cidadania exige também que
nenhum estigma derive do uso de serviços sociais131. Nas palavras de Parker:
Defender uma distribuição de serviços e recursos baseada nos
princípios da cidadania é afirmar que as condições individuais de vida
devem ser protegidas por decisões políticas que garantam níveis
aceitáveis de cuidados médicos e sociais, de educação, de renda e
assim por diante, independentemente do poder de barganha de cada
indivíduo. Todos teriam de ter os mesmos direitos de compartilhar
tudo aquilo que fosse fornecido, nos mesmos termos que qualquer
outra pessoa. Necessidades iguais teriam de receber tratamento igual,
sem nenhuma discriminação a favor ou contra quaisquer grupos
sociais, econômicos, políticos e raciais. A idéia de cidadania implica
129
Essa relação pode ser ilustrada por um exemplo brasileiro: as Constituições de 1824 e 1891, que
restringiam o direito ao voto, também silenciavam quanto a garantias individuais de acesso a serviços e
prestações para atender necessidades humanas básicas.
130
Marshall considera, contudo, aceitável a desigualdade decorrente de fatores como propriedade,
educação e sistema econômico, insurgindo-se apenas contra o grau dessa desigualdade. É que se
depreende dos excertos: “É verdade que a classe social ainda funciona. Considera-se a desigualdade
social como necessária e proposital. Oferece o incentivo ao esforço e determina a distribuição de poder.
Mas não há nenhum padrão geral de desigualdade no qual se associe um valor adequado, a priori, a cada
nível social. A desigualdade, portanto, embora necessária pode tornar-se excessiva.” (MARSHALL,
1967, p. 77) e “desigualdades podem ser toleradas numa sociedade fundamentalmente igualitária desde
que não sejam dinâmicas, isto é, que não criem incentivos que se originam do descontentamento e do
sentimento de que “este tipo de vida não me agrada”, ou “estou decidido a fazer tudo para que meu filho
não passe pelo que passei” (MARSHALL, 1967, p. 108).
131
Marshall (1967, p. 93) analisa a experiência britânica da Poor Law e Old Age Pension Act para
apontar que a igualdade econômica poderia, conforme o caso, provocar um estigma ou discriminação: “a
igualação econômica poderia ser acompanhada de discriminação de classe de natureza psicológica. O
estigma atribuído à Poor Law fêz de ‘pobreza’ um termo pejorativo definindo uma classe”.
120
que nenhum estigma seja associado ao uso dos serviços sociais, quer
seja por atitudes populares de condenação da dependência, quer
originados de práticas administrativas ou padrões inferiores de
previsão de serviços. A qualidade dos serviços públicos teria de ser a
melhor possível, levando-se em conta a escassez dos recursos públicos
(PARKER, 1979, p. 85 apud COIMBRA, 1987, p. 85).
No que se relaciona com o tema da assistência social, essa concepção resulta
no rompimento com as formas caritativas de assistência, que colocam seus destinatários
em posições de subalternidade.
3.3.2 Dignidade da pessoa humana
O Estado brasileiro tem a dignidade da pessoa humana como fundamento
constitucional (CF, art. 1º, III).
Intuitivamente muitas situações de dignidade ou indignidade são facilmente
identificadas. Todavia, definir em que consiste a dignidade da pessoa humana é tarefa
bem mais complexa, dado o conteúdo indeterminado da expressão.
Não é difícil compreender o porquê dessa indeterminação. Como salienta Vieira
(2006, p. 63), “a dignidade é multidimensional, estando associada a um grande conjunto
de condições ligadas à existência humana, a começar pela própria vida, passando pela
integridade física e psíquica, integridade moral, liberdade, condições materiais de bemestar etc.”. A percepção desse aspecto multidimensional – que faz a preservação da
dignidade humana depender de muitos outros direitos para se concretizar – leva
exatamente a essa dificuldade conceitual.
Tal dificuldade, contudo, não pode levar ao esvaziamento desse postulado. Ao
contrário, cabe ao intérprete compatibilizar a leitura de outros direitos com o valor
dignidade humana. Cabe-lhe ainda evitar que a má compreensão de seu significado
transforme o apelo à dignidade em mero recurso retórico132.
132
Com razão, Silva alerta para o que chama de “inflação no uso da dignidade humana no discurso
forense” nos seguintes termos: “No Brasil, no entanto, em decorrência de uma banalização do uso da
garantia da dignidade da pessoa humana, muitos casos de restrição a direitos fundamentais – às vezes,
nem isso – tendem a ser considerados como uma afronta a essa garantia. [...] A inflação no uso da
dignidade humana no discurso forense não tem ligação direta com a realidade social do país, e é um
fenômeno limitado exclusivamente ao discurso jurídico. [...] Esse não é, contudo, um fenômeno apenas
brasileiro. Em outros países a garantia da dignidade humana tem também servido como um recurso
121
Nesse esforço conceitual, muitos doutrinadores que se dedicam ao tema
justificam que todas as pessoas têm um valor intrínseco que resulta em “uma esfera
fundamental de seu bem-estar e de seus interesses protegida” (VIEIRA, 2006, p. 65). Na
verdade, a ideia de um “valor intrínseco” resulta de uma construção teórica sedimentada
ao longo de séculos. É muito importante que esse aspecto fique claro, pois argumentos
deduzidos da “natureza” humana tanto podem ser invocados para justificar uma
condição de liberdade e igualdade, quanto para manter situações de desigualdade e
dominação. Não por outra razão, Bobbio (2004, p. 128) afirma “que os homens nasçam
livres e iguais é uma exigência da razão, não uma constatação de fato ou um dado
histórico”.
Também enfatizando que a dignidade da pessoa humana é uma construção, e
não um dado, Vieira (2006, p. 66) ensina que:
A idéia de que as pessoas têm um valor que lhes é “intrínseco” não é,
portanto, natural, mas uma construção de natureza moral. Assim,
ninguém nasce com algum valor que lhe seja inerente. Este valor é
artificialmente conferido às pessoas. Artificialmente, aqui, no sentido
de que é um valor construído socialmente, e não presente na Natureza
ou na ordem cósmica [...] A dignidade é, portanto, um princípio
derivado das relações entre as pessoas; e o direito à dignidade está
associado à proteção daquelas condições indispensáveis para a
realização de uma existência que faça sentido para cada pessoa.
Quanto ao conteúdo do princípio da dignidade humana, adota-se o conceito de
Nunes Júnior (2009, p. 114):
postulado ético que, incorporado ao ordenamento jurídico, consubstancia
o princípio segundo o qual o ser humano, quer nas suas relações com
seus semelhantes, quer nas suas relações com o Estado, deve ser tomado
como um fim em si mesmo, e não como um meio, o que o faz dignitário
de um valor absoluto.
A aplicação dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal
brasileira, ou decorrentes da aplicação dos parágrafos 2º e 3º de seu artigo 5º, sempre
impõe alguma reflexão sobre a ideia de dignidade.
universal para a solução de problemas jurídicos que poderiam ser resolvidos com o recurso a outros
direitos. [...] se talvez não seja um grande problema o recurso constante à garantia da dignidade por parte
dos litigantes que têm o dever de defender, com o máximo de argumentos, os seus pontos de vista, o
mesmo não se aplica para os juízes e para a doutrina. Isso porque, com o passar do tempo, quanto mais se
recorre a um argumento sem que ele seja necessário, maior é a chance de uma banalização de seu valor. É
o que vem ocorrendo com a dignidade humana. É por isso, que, de uns tempos para cá, o entusiasmo com
a garantia da dignidade da pessoa humana vem dando lugar, em alguns círculos acadêmicos, a um
movimento por uma certa parcimônia no recurso à proteção da dignidade” (SILVA, 2009, p. 193-195,
destaques no original).
122
No plano dos direitos e garantias individuais, não é possível debater temas
como restrições às penas de morte e de caráter perpétuo, penas cruéis, tortura e outras
forma de caráter degradante, sem tratar da dignidade da pessoa humana como uma
premissa.
No plano dos direitos sociais ocorre o mesmo. Questões relativas à
alimentação, saúde, moradia e assistência remetem rapidamente à discussão sobre a
ideia de vida digna. Porém, é também no plano dos direitos sociais que se colocam
grandes dilemas sobre os limites da implementação de direitos sociais e as exigências de
observância ao postulado ético em questão.
3.3.3 Valor social do trabalho
No artigo 1º, inciso IV, da Constituição Federal são eleitos os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos da República. No artigo 170, reiterase que a ordem econômica é “fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa”. Finalmente, no artigo 193 preceitua-se que “a ordem social tem como base o
primado do trabalho”.
Nos capítulos anteriores, demonstrou-se que a assistência social configurou-se
como instrumento primordialmente destinado ao atendimento das situações de não
trabalho. Nessa evolução, a assistência surgiu como mecanismo de atenção subsidiária a
qualquer outra proteção decorrente do trabalho. A subsidiariedade resultou no
desenvolvimento do princípio da menor elegibilidade das prestações assistenciais.
A relação estabelecida entre a proteção advinda do trabalho e a proteção
advinda da assistência social é decisiva para a configuração do sistema de seguridade
social. Essa relação mostra o modo pelo qual a sociedade compreende a existência de
pessoas e grupos vulneráveis e se reflete no nível de bem-estar social que o Estado
oferece a seus membros. Por isso é fundamental refletir sobre o significado do valor
social do trabalho e seus reflexos no direcionamento da assistência social.
Ensina Silva (2005, p. 788) que a valorização do trabalho humano, enunciada
juntamente com a livre iniciativa, significa que “embora capitalista, a ordem econômica
dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da
123
economia de mercado”. Disso resulta que o Estado deve proteger o exercício do
trabalho, o que vai além da proteção do vínculo de emprego.
Da mesma maneira, ao disciplinar a ordem econômica e a ordem social, o
Estado deve buscar a redução das taxas de desemprego e a oferta de oportunidades para
que os cidadãos tenham empregabilidade, isto é, tenham habilidades que permitam sua
absorção pelo mercado de trabalho. Não há como vislumbrar desenvolvimento social e
econômico sem trabalho humano desempenhado em condições dignas, com respeito aos
direitos do trabalhador e remuneração adequada.
A valorização do trabalho, todavia, não significa que sistemas de proteção
social possam ser construídos apenas em torno desta forma de inserção social, tampouco
autoriza soluções residuais para as situações de não trabalho.
Compreender o emprego como “uma chave – a chave – para a solução dos
problemas ao mesmo tempo da identidade pessoal socialmente aceitável, da posição
social segura, da sobrevivência individual e coletiva, da ordem social e da reprodução
sistêmica” (BAUMAN, 2005, p. 19) pode levar ao acirramento de exclusão social. Isso
porque as mudanças sociais e econômicas decorrentes da globalização – que “liberou e
pôs em movimento quantidades enormes e crescentes de seres humanos destituídos de
formas e meios de sobrevivência” (BAUMAN, 2005, p. 14) – contrariam a ideia de que a
todos é dada a oportunidade de prover as próprias necessidades pelo esforço individual ou
familiar. Ao contrário: há uma grande parcela da população sem perspectivas de prover
suas necessidades de forma autônoma, o que inclui a falta de perspectiva de colher os
frutos de seu trabalho. São as pessoas retratadas por Bauman (2005) como refugadas e
supranumerárias133 por Castel (2010).
A impossibilidade de uma parcela crescente da população contar com a
clássica segurança advinda do trabalho – seja porque não acessam postos de trabalho,
seja porque o fazem em condições cada vez mais precárias – faz crescer a necessidade
133
Castel identifica no surgimento desses grupos “uma nova questão social”, afirmando que: “os
supranumerários nem sequer são explorados, pois, para isso, é preciso possuir competências conversíveis
em valores sociais. São supérfluos. Também é difícil ver como poderiam representar uma força de
pressão, um potencial de luta, se não atuam diretamente sobre nenhum setor nevrálgico da vida social.
Assim, inauguram sem dúvida uma problemática teórica e prática nova. Se, no sentido próprio do termo,
não são mais atores porque não fazem nada de socialmente útil, como poderiam existir socialmente? No
sentido, é claro, de que existir socialmente equivaleria a ter, efetivamente, um lugar na sociedade. Porque,
ao mesmo tempo, eles estão bem presentes – e isso é o problema, pois são numerosos demais.
Nisso há uma profunda ‘metamorfose’ relativa à questão anterior que era saber como um ator social
subordinado e dependente poderia tornar-se um sujeito social pleno. A questão, agora, sobretudo, é
amenizar essa presença, torná-la discreta a ponto de apagá-la [...]” (CASTEL, 2010, p. 33, destaques no
original).
124
de reflexão sobre sistemas de proteção social não contributivos, incluindo a assistência
social. As diversas formas de propiciar segurança social, vinculadas e desvinculadas do
trabalho, não podem ser vistas como antagônicas ou autossuficientes. Ao contrário, o
valor social do trabalho precisa ser visto de forma mais ampla do que a busca do pleno
emprego ou do emprego formal, ao mesmo tempo em que o não acesso ao trabalho não
pode ser visto como resultado de fracassos individuais.
Por tudo isso, duas observações devem ser registradas. A primeira é a de que a
valorização do trabalho humano não pode resultar em medidas residuais134 ou quase
punitivas para os que não conseguem prover suas necessidades básicas com seus
próprios meios. A segunda é a de que a valorização do trabalho humano não pode ser
vista apenas como valorização do trabalho formal. Em síntese: “o enfraquecimento da
condição salarial” (CASTEL, 2010, p. 495) reclama a revisão da histórica tensão entre
trabalho e assistência135.
3.4
Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil
Quatro são os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
consagrados pela Constituição Federal: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”
(art. 3º, I); “garantir o desenvolvimento nacional” (art. 3º, II); “erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III); e “promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação” (art. 3º, IV).
134
Soluções residuais em matéria de proteção social – o que inclui a assistência social – são parte do que
Castel descreve como a inadequação dos sistemas clássicos de proteção social para atender às demandas
de um cenário de desemprego em massa, instabilidade das situações de trabalho e “multiplicidade de
indivíduos que ocupam na sociedade uma posição de supranumerários, ‘inempregáveis’, inempregados ou
empregados de um modo precário, intermitente” (CASTEL, 20120, p. 21).
135
Boschetti (2003, p. 58) afirma que “a relação de atração e rejeição entre assistência e trabalho
predominante no capitalismo, tem origem anterior à consolidação da sociedade de mercado”. Ainda
segundo a autora (BOSCHETTI, 2003, p. 47): “Trabalho e a assistência assim, mesmo quando
reconhecidos como direitos sociais, vivem uma contraditória relação de tensão e atração. Tensão porque
aqueles que têm o dever de trabalhar, mesmo quando não conseguem trabalho, precisam da assistência,
mas não têm direito a ela. O trabalho, assim, obsta a assistência social. E atração porque a ausência de um
deles impele o indivíduo para o outro, mesmo que não possa, não deva, ou não tenha direito. Em uma
sociedade em que o direito à assistência é limitado e restritivo, como será demonstrado adiante, e o
trabalho, embora reconhecido como direito, não é assegurado a todos, esta relação se torna excludente e
provocadora de iniqüidades sociais”.
125
Nesse rol estão presentes as marcas de movimentos da sociedade civil que,
durante a Constituinte, trouxeram à baila questões relacionadas com as muitas facetas
de temas como igualdade e justiça social. Por outro lado, tais objetivos revelam que a
Constituição deu continuidade ao discurso governamental em prol do “combate” à
pobreza e do desenvolvimento do país, há muito tempo em voga no país. Existe,
portanto, uma mescla entre propósitos genuinamente novos e a repetição de um discurso
bastante difundido.
Estado e sociedade civil devem se guiar por esses objetivos. É claro que para
um e outro, as responsabilidades que advêm desse comando são diferentes. No entanto,
ambos são afetados e envolvidos por esses vetores. Como diz Arzabe:
A Constituição é clara ao não restringir tais objetivos com seu
direcionamento apenas ao Estado. Ao dispor serem os objetivos da
República, a Constituição os aplica ao Estado, aos cidadãos e aos
agentes sociais e econômicos. Esse entendimento se dá em virtude do
artigo 1º da Carta Magna, que assenta a República, entre outros
aspectos, na cidadania e na dignidade da pessoa, o que nos envia à
idéia de pessoa dotada de autonomia pública e privada, bem como nos
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, remetendo-nos, aqui,
ao funcionamento da Ordem Econômica e seus agentes. Os objetivos
fundamentais são, portanto, da República, desdobrada nos seus
cidadãos, nos agentes sociais e econômicos e no Estado.
Esses objetivos trazem para o Direito os fins do Estado, delimitando
juridicamente sua esfera de atuação. Direcionam tanto a ação do
Estado como dos agentes operando na sociedade. Representam, em
suma, os parâmetros de justiça que regem a sociedade brasileira, isto
é, constituem os parâmetros de ação prática erigidos como bons e
justos para nortear essa sociedade. A sociedade brasileira, para ser
justa, deve ter todo o aparato estatal, por seus três Poderes e nos três
níveis de governo, todos os agentes econômicos e todas as pessoas
ajustando suas ações para a realização dos objetivos dessa grande
polis. (ARZABE, 2001, p. 135-136)
Os objetivos consagrados nos incisos I, III e IV são os que influenciam de
forma mais incisiva as reflexões do presente estudo. Esses dispositivos abrem espaço
para a elaboração de políticas estruturais e compensatórias voltadas à promoção de
igualdade, autonomia e integração social. Além disso, há um estreito vínculo entre os
objetivos inscritos no artigo 3º e os objetivos da assistência social136.
136
Para Carvalho (2006, p. 1025), “há uma relação estreita entre cada um dos objetivos da assistência
social com o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, expresso no art. 3º, III, da
Constituição, qual seja, a erradicação da pobreza”. Em que pese o acerto da afirmação, entende-se que
essa consideração deve ser estendida também aos objetivos constantes dos incisos I e IV. Da mesma
maneira, Rocha e Baltazar Júnior (2007, p. 26) ensinam que “[a] seguridade social é, em última análise,
um instrumento através do qual se pretendem alcançar os objetivos fundamentais da República Federativa
126
Esses objetivos exigem “sofisticação” das medidas de proteção social, pois
reconhecem que a desproteção e o isolamento decorre de rupturas (SPOSATI, 2009,
p. 25). Isso significa que questões relacionadas à satisfação de necessidades humanas
não podem ser guiadas apenas por considerações atinentes à sobrevivência física dos
cidadãos, como também não podem girar apenas em torno da renda. Conquanto estes
dois aspectos sejam imprescindíveis, políticas sociais também devem contemplar
participação política, construção de vínculos familiares e comunitários, possibilidade de
vida autônoma etc.
Portanto, práticas paternalistas ou medidas de segregação de grupos
qualificados como “carentes”137 devem ser rechaçadas. Em lugar disso, impõe-se a
articulação de medidas de intervenção internalizadora, destinada a corrigir relações
jurídicas distorcidas, e externalizadora, destinada a suprir necessidades de pessoas em
situação de vulnerabilidade, sem alterar as relações sociais que ensejam tais
vulnerabilidades (ZACHER, 2002, p. 120). Somente assim – e lembrando que o
potencial de transformação das medidas de intervenção internalizadora tende a ser
maior, mas nem sempre resolve todas as situações de necessidades sociais desatendidas
– a consecução dos objetivos traçados na Constituição Federal se torna factível.
3.5
Objetivos da Ordem Social
O artigo 193 da Constituição Federal dispõe que “a ordem social tem como
base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.
As considerações sobre o primado do trabalho foram apresentadas quando se
discorreu sobre o valor social do trabalho inscrito no artigo 1º da Constituição Federal
(cf. supra 3.3.3 Valor social do trabalho), cabendo agora tratar desses dois objetivos.
Na Constituição brasileira, os objetivos de bem-estar e justiça sociais não estão
previstos apenas no artigo 193. Constam do Preâmbulo entre os “valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Estão presentes ainda nos
do Brasil, arrolados no art. 3º da Constituição, quais sejam: ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária;
erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos’”.
137
Reitera-se aqui a observação feita no tópico 1.2 A ausência de práticas institucionalizadas de
proteção social.
127
objetivos da República traçados no artigo 3º, por força das previsões de construção de
uma sociedade justa (art. 3º, I) e de promoção do bem de todos, “sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV).
Ao tratar de ordem econômica, prevê-se ainda o escopo de “assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170).
Esses objetivos condicionam todo o exercício das funções legislativa,
administrativa e jurisdicional. A construção da seguridade social, nos termos
concebidos por Beveridge há quase 70 anos, se fez exatamente em função deles.
Especificamente em relação à assistência social, as preocupações com o bem-estar e a
justiça sociais não apenas justificam a existência de um sistema de proteção social como
também condicionam o conteúdo das políticas públicas.
3.5.1 Bem-estar social na Constituição Federal de 1988
No início deste capítulo (cf. supra 3.2 Estado de Bem-Estar) afirmou-se, com
amparo em Rosanvallon (1995, p. 07), que o objetivo central do Estado de Bem-Estar é
livrar a sociedade da necessidade e proteger o indivíduo contra os principais riscos da
existência.
Na esteira dessa afirmação, o objetivo de bem-estar social corresponde à
finalidade de resguardar a sociedade e cada um de seus membros de situações de
necessidade e riscos.
Contudo, os elementos que compõem esse quadro de bem-estar social são
variáveis. A forma de satisfação de necessidades é mutável, como também o são os
riscos que mais afetam determinados indivíduos ou grupos. A concepção de bem-estar
é, portanto, marcada por fatores históricos que resultam na positivação de normas
jurídicas consentâneas com o ideal de bem-estar.
Dessa forma, a despeito de possíveis alterações nos caminhos para a
consecução desse objetivo, existem marcos jurídicos que mostram as prestações que
devem ser afiançadas para que se configure uma situação de bem-estar social.
No âmbito da ordem constitucional brasileira, pode-se afirmar que os objetivos do
artigo 3º da Constituição Federal representam a síntese do ideal de bem-estar. Já os artigos
6º e 7º indicam quais direitos deverão ser afiançados para que se alcance esse ideal.
128
Como ressalta Santos (2003, p. 105), a Constituição, em seu artigo 7º, inciso
IV, expõe as necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, a serem
supridas pelo salário mínimo: moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário,
higiene, transporte e previdência social. Embora a norma se refira à remuneração paga
em troca do trabalho, os bens indicados no referido inciso são comuns a trabalhadores e
não trabalhadores, o que se conclui a partir da observação de que familiares de
trabalhadores também devem ter acesso a tais prestações.
Corroboram essa afirmação a previsão de que “nenhum benefício que substitua
o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal
inferior ao salário mínimo” (CF, art. 201, § 2º) e a garantia do benefício assistencial de
prestação continuada no valor de um salário mínimo à pessoa idosa ou com deficiência
que demonstrem sua hipossuficiência individual ou familiar (CF, art. 203, V). Mais do
que assegurar o valor da renda, essas duas previsões permitem o acesso ao conjunto de
bens sociais, econômicos e culturais que a própria Constituição Federal considera
essenciais.
Portanto, a partir da conjugação entre os artigos 6º e 7º, inciso IV,
anteriormente mencionados, conclui-se que a Constituição Federal indica como
componentes do bem-estar que deve ser propiciado a todo membro da comunidade:
alimentação, assistência social, educação, higiene, lazer, moradia, previdência social,
proteção à infância, proteção à maternidade, saúde, segurança, trabalho, transporte e
vestuário138-139.
3.5.2 Justiça social na Constituição Federal de 1988
Na Constituição Federal brasileira, o propósito de assegurar justiça social está
na base da existência de direitos sociais e da adoção de um modelo de Estado de BemEstar. Não por outra razão, o termo justiça social é diuturnamente empregado nas
138
Recorde-se que a garantia de direitos sociais pressupõe que direitos civis e políticos sejam respeitados.
Nesse ponto, retoma-se a observação de que o surgimento do Estado de Bem-Estar está atrelado à
efetivação dos direitos civis e políticos.
139
Frisa-se a afirmação de que esses são componentes do bem-estar expressamente positivados pela
Constituição Federal. Não significa, contudo, que se trata de uma relação completa e sistematizada de
necessidades sociais básicas, tampouco que possa prescindir da efetivação de outros direitos igualmente
previstos na Constituição Federal. Como será exposto adiante, as necessidades sociais básicas e seus
mecanismos de satisfação – também chamados de necessidades sociais intermediárias – comportam outra
forma de sistematização, mais sofisticada e de vocação universal. A respeito desse tema, cf. infra 3.8.1
Conceito de seguridade social tendo o atendimento às necessidades sociais como eixo estruturante.
129
discussões sobre direitos e políticas sociais. Porém, como não há consenso sobre o
significado de sociedade justa, esse objetivo da ordem social é bastante controvertido.
Leciona Silva (2005, p. 789) que “um regime de justiça social será aquele em
que cada um deve poder dispor dos meios materiais para viver confortavelmente
segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política”. Essa explicação traz
como primeira observação a proximidade entre justiça social e igualdade, tanto formal
quanto material. Como no sistema capitalista a igualdade material não decorre
naturalmente das relações sociais e econômicas estabelecidas entre os membros da
sociedade, a promoção dessa igualdade passa pela dissociação entre o econômico e o
social (ROSANVALLON, 1995, p. 11), o que significa que a justiça social deve ser
construída, pois não decorre naturalmente das relações sociais e econômicas
estabelecidas entre os membros da sociedade. No âmbito dos Estados, estabelecer o que
é uma sociedade justa – ou, dizendo de outro modo, estabelecer o que é devido a cada
membro da comunidade e, por conseguinte, quanto de desigualdade é tolerável – é
questão afeta ao ordenamento jurídico, em especial ao ordenamento constitucional.
Avançando nessas reflexões encontra-se em Nancy Fraser uma leitura
abrangente sobre justiça social. Para a autora a essência da justiça social está na
paridade participativa (FRASER, 2009, p. 20), o que significa que “superar a injustiça
significa desmantelar os obstáculos institucionalizados que impedem alguns sujeitos de
participarem, em condições de paridade com os demais, como parceiros integrais da
interação social” (FRASER, 2009, p. 11).
Originalmente, as reivindicações por justiça social foram agrupadas em duas
grandes categorias: demandas relativas à redistribuição socioeconômica e demandas
relativas ao reconhecimento legal ou cultural (FRASER, 2009, p. 11). Posteriormente –
e sem negar essas duas dimensões – a autora incluiu o elemento político como mais uma
dimensão da justiça (FRASER, 2009, p. 18-19). É somente a partir da conjugação
dessas dimensões que se pode compreender a justiça social em sua totalidade.
À dimensão econômica da redistribuição correspondem demandas em torno da
desigual repartição de recursos econômicos. Nesse caso, entram em pauta as injustiças
decorrentes da estrutura econômica e política da sociedade (FRASER, 1995, p. 70). As
medidas redistributivas buscam neutralizar ou reduzir as diferenças sociais entre grupos
(FRASER, 1995, p. 82) e, nessa medida, têm caráter universalizante.
130
À dimensão do reconhecimento correspondem demandas por igualdade de
status ou reconhecimento de identidades. Cuida-se aqui de problemas como dominação
cultural, não reconhecimento ou desrespeito (FRASER, 1995, p. 71). As demandas
ligadas ao reconhecimento insurgem-se contra injustiças culturais ou simbólicas,
decorrentes de padrões de representação, interpretação e comunicação e, nesse caso, as
medidas de promoção de justiça passam pelo destaque e valorização das diferenças
(FRASER, 1995, p. 82).
À dimensão política140, correspondem os loci em que as demandas por
distribuição e reconhecimento se desenvolvem e as regras de resolução dessas disputas.
Essa dimensão – que envolve questões de pertencimento e de procedimento (FRASER,
2009, p. 19) – tem ainda o condão de expor que o direcionamento de demandas apenas
aos espaços domésticos nos Estados nacionais é insuficiente para atender às
reivindicações por justiça (FRASER, 2009, p. 24).
As medidas de promoção de justiça social subdividem-se em políticas
afirmativas e políticas transformativas. As primeiras voltam-se à correção dos
resultados de relações sociais anti-isonômicas sem intervir na estrutura que enseja as
desigualdades. As segundas procuram corrigir essas relações mediante a alteração das
estruturas que produzem a desigualdade (FRASER, 1995, p. 82).
Nessa distinção, os remédios de redistribuição afirmativa correspondem às
fórmulas do Estado de Bem-Estar e seriam compatíveis com as medidas de
reconhecimento afirmativo, uma vez que ambos tendem a promover a diferenciação de
grupos. As medidas afirmativas, contudo, implicariam o risco de estigmatizar seus
destinatários (FRASER, 1995, p. 86).
140
A autora explica em que sentido emprega o termo político, distinguindo-o da dimensão de distribuição
ou reconhecimento, na seguinte passagem: “distribuição e reconhecimento são políticos por natureza, no
sentido de serem contestados e permeados por poder; e eles, frequentemente, têm sido tratados como
elementos que demandam a tomada de decisão do Estado. Mas eu considero o político em um sentido
mais específico, constitutivo, que diz respeito à natureza da jurisdição e das regras de decisão pelas quais
ele estrutura as disputas sociais. O político, nesse sentido, fornece o palco em que as lutas por distribuição
e reconhecimento são conduzidas. Ao estabelecer o critério de pertencimento social, e, portanto,
determinar quem conta como um membro, a dimensão política da justiça especifica o alcance daquelas
outras dimensões: ela designa quem está incluído, e quem está excluído, do círculo daqueles que são
titulares de uma justa distribuição e reconhecimento recíproco. Ao estabelecer regras de decisão, a
dimensão política também estipula os procedimentos de apresentação e resolução das disputas tanto na
dimensão econômica quanto na cultural: ela revela não apenas quem pode fazer reivindicações por
redistribuição e reconhecimento, mas também como tais reivindicações devem ser introduzidas no debate
e julgadas” (FRASER, 2009, p. 19).
131
As medidas de redistribuição transformativa são aquelas voltadas à
transformação das estruturas produtoras de desigualdade, mediante adoção de políticas
de caráter universal e tendentes a eliminar distinções de classe. Tais medidas são
identificadas pela autora com o pensamento socialista e seriam compatíveis com
medidas de reconhecimento transformativo, que buscam desconstruir as distinções que
resultam nas estigmatizações (FRASER, 1995, p. 83).
No que tange à dimensão política da justiça, as medidas afirmativas “buscam
redesenhar as fronteiras dos Estados territoriais existentes ou, em alguns casos, criar
novas fronteiras” (FRASER, 2009, p. 27). Depreende-se ainda que as medidas
transformativas são vocacionadas a redefinir o espaço político em que as demandas por
justiça social são veiculadas e dirimidas, e que também estão destinadas a rever as
regras que pautam a solução dessas disputas.
A compreensão de justiça social apresentada pela autora a partir da
identificação de três dimensões diferentes e inter-relacionadas contribui para que o tema
não seja artificialmente simplificado ou reduzido a um único aspecto. Ao incluir a
dimensão política nas reflexões sobre justiça social, a autora demonstra ainda as
insuficiências do Estado nacional para lidar com todas as questões relacionadas à
injustiça social, evidenciando o equívoco de se tentar dirimir todas essas questões da
mesma forma e na mesma instância.
Essa compreensão de justiça social fornece valiosos parâmetros de avaliação
das políticas públicas de assistência social141. Mostra que políticas que prestigiem
apenas uma das dimensões analisadas ou que estejam desconectadas de abordagens
intersetoriais têm grandes chances de falharem e perpetuarem situações de desvantagem
participativa. Revela ainda os limites das medidas afirmativas na promoção de justiça
social e propicia uma leitura crítica sobre os limites do Estado de Bem-Estar.
141
Fraser (1995, p. 85) menciona a assistência pública entre as medidas afirmativas – medidas que não
teriam o condão de alterar as estruturas que promovem desigualdade –, o que sugere que a autora também
compreende a assistência social apenas como remédio afirmativo. Mesmo concordando com as
proposições da autora sobre justiça social, é possível discordar da inserção da assistência social apenas
como política afirmativa. O enquadramento dessa política como afirmativa ou transformativa muda
conforme a configuração que receba em cada ordenamento jurídico. No caso da Constituição Federal de
1988, os objetivos traçados no artigo 3º permitem que a assistência social, como os demais direitos
sociais, seja reconhecida como medida afirmativa e transformativa.
132
3.6
O direito social à segurança e à assistência aos desamparados
Remonta ao final do século XIX a constatação, nas palavras de Marshall (1967,
p. 83), de “um interesse crescente pela igualdade como um princípio de justiça social e
uma consciência do fato de que o reconhecimento formal de uma capacidade legal no
que diz respeito aos direitos não era suficiente”.
Exatamente a partir da constatação registrada pelo sociólogo, surgiram e
ganharam força os direitos sociais, os quais acarretaram “mudanças significativas ao
princípio igualitário como expresso na cidadania” (MARSHALL, 1967, p. 88). Essas
mudanças conformaram os Estados de Bem-Estar no século XX. Como já ressaltado
anteriormente, esse desenvolvimento não se deu de forma linear, não foi igual em países
capitalistas e socialistas e, menos ainda, em países mais ou menos desenvolvidos. Apesar
das disparidades, trata-se, sim, de um movimento marcante no século XX. do século XX.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 apresenta um rol de direitos
fundamentais de cunho social142 em seu artigo 6º e dedica um título específico à
disciplina da ordem social. Originalmente, esse rol era composto por educação, saúde,
trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e
assistência aos desamparados. Por força da Emenda Constitucional n. 26, de 14 de
fevereiro de 2000, o direito à moradia passou a integrar o dispositivo. Por fim, a
Emenda Constitucional n. 64, de 04 de fevereiro de 2010, incluiu a alimentação entre
esses direitos.
Para o escopo deste trabalho, destacam-se o direito à segurança e o direito à
assistência aos desamparados.
3.6.1 O direito social à segurança
A expressão direito à segurança evoca ideias relacionadas à segurança jurídica
ou à segurança pública. No entanto, essa primeira impressão deve ser colocada em
142
Neste trabalho, adota-se a definição de normas de direitos sociais apresentada por Novais (2010,
p. 41-42), assim elaborada: “entre a multiplicidade de normas constitucionais jusfundamentais,
respeitam a direitos sociais aquelas que, na sua dimensão objectiva principal, impõem ao Estado
deveres de garantia aos particulares de bens económicos, sociais ou culturais fundamentais a que só se
acede mediante contraprestação financeira não negligenciável”.
133
dúvida quando se constata que o direito à segurança é apresentado como um direito
social e integra o artigo 6º da Constituição Federal.
Da mesma forma, deve-se recordar que a palavra segurança comporta diversos
significados, como expõe Silva (2005, p. 777) em um excerto de grande valia:
Na teoria jurídica a palavra “segurança” assume o sentido geral de
garantia, proteção, estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de
sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidos em
determinada relação jurídica, esta mantém-se estável, mesmo se se
modificar a base legal sob a qual se estabeleceu. “Segurança social”
significa a previsão de vários meios que garantam aos indivíduos e
suas famílias condições sociais dignas; tais meios se revelam
basicamente no conjunto de direitos sociais. A Constituição, nesse
sentido, preferiu o espanholismo seguridade social, como vimos
antes. “Segurança nacional” refere-se às condições básicas de defesa
do Estado. “Segurança pública” é a manutenção da ordem pública
interna.
O cotejo entre o mencionado pelo artigo 6º, que alude ao direito à segurança, e
os dispositivos constitucionais que aludem à seguridade social (arts. 22, XXIII, 165, § 5º,
III, 167, § 8º, 194, 195, 198, § 1º, 203 e 204) pode, de fato, dar a impressão de que são
conceitos diversos. Admitindo-se que a Constituição de 1988 não equipara os conceitos
de segurança social e seguridade social, impõe-se a procura de um novo significado
para o direito social à segurança, significado dissociado da seguridade social. Por outro
lado, pode-se admitir que o direito social à segurança inscrito no artigo 6º corresponde,
sim, à seguridade social.
A despeito de eventuais críticas à ausência de uniformidade terminológica, há
que se concluir pela segunda alternativa: o artigo 6º da Constituição Federal versa sobre
o direito à segurança social, de modo que segurança social e seguridade social são
empregadas como expressões sinônimas143.
Com efeito, nem a segurança pública, nem a segurança jurídica podem ser
qualificadas como direitos sociais. A segurança pública como sinônimo de “preservação
da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (ARAUJO; NUNES
143
A expressão seguridade foi alvo críticas por parte daqueles que entendiam que se tratava de um
“estrangeirismo” e que, em português, seria mais correto empregar o vocábulo segurança (IBRAHIM,
2010, p. 5; MESTRINER, 1992, p. 16). Leite (2002, p. 16) anota que seguridade é vocábulo vernáculo
que já teve uso corrente, mas acabou desaparecendo do vocabulário cotidiano. Ainda segundo este autor,
dicionários da língua portuguesa do século XIX apresentam o termo seguridade com o sentido de
tranquilidade e segurança. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2004, p. 1821) apresenta o
vocábulo seguridade e coloca a segurança entre seus significados. Reforça-se assim a convicção de que a
segurança mencionada no artigo 6º é, de fato, segurança ou seguridade social.
134
JÚNIOR, 2010, p. 459) não guarda relação com o escopo de promover igualdade
material e justiça social, preocupações que pautam os direitos sociais (cf. ZOCKUN,
2009, p. 152). Ademais, tanto a segurança jurídica quanto a segurança individual, no
sentido de incolumidade física, estão muito mais relacionadas aos direitos civis e
políticos do que aos direitos sociais e já são tratados pelo artigo 5º da Constituição
brasileira. Não há razão, portanto, para supor que o artigo 6º simplesmente repete o que
já foi tratado a fundo no dispositivo que o antecede.
E como bem salienta Zockun (2009, p. 152-153), tampouco se pode
circunscrever o direito social à segurança ao campo do direito do trabalho, seja no
sentido de estabilidade da relação jurídica de cunho trabalhista, seja no sentido de
segurança no local de trabalho. Isso porque, como afirma a autora, as garantias de
segurança próprias das relações de trabalho estão tratadas no artigo 7º, incisos I e XXII,
do texto constitucional:
[...] não há uma intervenção direta por parte do Estado no que tange à
segurança no local do trabalho, sendo seu papel o de fiscalizador do
cumprimento das normas de segurança pelos empregadores. Não se
está, pois, diante de um direito social, na medida em que este exige,
para sua implementação, a formação de uma relação jurídica direta
entre Estado e particular – o que não se dá na hipótese vertente.
Também não é a proteção do emprego medida a ser concretizada pelo
Estado, já que, como visto no tópico do direito ao trabalho, não cabe
ao Estado ser o fornecedor dos postos de trabalho em nosso sistema.
Ademais, há previsão constitucional que alberga precisamente a idéia
de segurança no trabalho e no emprego.
[...]
Assim, se já existe disposição constitucional expressa no sentido de
garantir ao trabalhador a proteção relativa ao emprego e à segurança
no local de trabalho, não faz sentido considerar que o termo
“segurança” no art. 6º da CF signifique exatamente o mesmo do que
foi consagrado no art. 7º, I e XXII.
[...] se se reputar que o termo “segurança” foi utilizado como
sinônimo de “segurança no trabalho” esvaziar-se-á o contido no art.
6º, na medida em que a prescrição garantidora do direito social à
segurança seria inócua, já que mera repetição do disposto no art. 7º, I
e XXII.
Assim, não se pode considerar que “segurança” no art. 6º é o mesmo
que “segurança nas relações trabalhistas”.
Ainda, em favor da nossa posição concorre também o fato de que os
direitos sociais são conferidos a todos os cidadãos indistintamente, e
não apenas à classe dos trabalhadores. Entender que a “segurança” do
art. 6º significa “segurança no trabalho” e restringir indevidamente o
mandamento constitucional, que assegura a todos, homens, mulheres,
jovens ou crianças, os direitos fundamentais sociais, e não somente a
uma classe deles. (ZOCKUN, 2009, p. 153-154)
135
Quanto ao significado do direito à segurança, explica Sposati (2009, p. 21) que
a segurança tanto representa uma “exigência antropológica de todo indivíduo” quanto
uma necessidade da sociedade de garantir uma ordem social segura a seus membros.
Segurança (ou seguridade) social abrange, pois, as seguranças necessárias à vida
autônoma e sadia, o que inclui exigências de segurança econômica, segurança de
convívio e promoção da saúde. Sendo assim, cabe à seguridade social proporcionar
condições de sobrevivência digna a seus membros, sobretudo quando lhes faltam os
meios para fazerem-no por suas próprias forças.
3.6.2 O direito social à assistência aos desamparados
Sob a égide da Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na história
constitucional brasileira, a assistência foi elevada à categoria de direito fundamental.
A exemplo do que se disse sobre falta de uniformidade na terminologia
empregada ao tratar-se de segurança e seguridade social, observa-se uma grande
variedade nas referências à assistência presentes no texto constitucional.
O artigo 6º da Constituição Federal aponta a assistência aos desamparados
como direito social. Mais adiante, no artigo 23, inciso II, estabelece-se ser competência
comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios cuidar da assistência pública.
Finalmente, no capítulo relativo à seguridade social, emprega-se o termo assistência
social144.
A despeito dessa diversidade, todas essas expressões podem ser reconduzidas
ao conceito de assistência social.
O emprego do adjetivo “desamparados” no artigo 6º da Constituição Federal
denuncia a convivência entre propósitos novos e concepções antigas das formas de
144
Stuchi (2010, p. 157-158) também observa a falta de uniformidade terminológica no texto
constitucional, registrando que: “a assistência social aparece no texto constitucional com expressões
diferenciadas. No art. 6º, aparece como ‘assistência aos desamparados’, termo de carga semântica que
remete à lógica do favor e da benesse. Depois, no art. 23, aparece como ‘assistência pública’, que poderia
caracterizar outras políticas, como a assistência jurídica, a assistência à saúde, etc. Ela não é mencionada
em artigos importantes como os arts. 21 e 24, que tratam das competências legislativas, nos quais a
Seguridade Social é competência privativa da União e a saúde e a previdência social, competência
concorrente entre os entes.
Somente a partir do Capítulo da Seguridade Social seu tratamento se torna mais uniforme”.
136
assistência. O termo desamparo denuncia a compreensão dos destinatários da
assistência como pessoas e grupos identificados pelo que não são e pelo que não têm.
Em outras palavras: o emprego de expressões como desamparados e carentes, por si só,
revela resquícios das velhas formas de caridade e expõe o modo como a sociedade
compreende a existência de pessoas e grupos vulneráveis145.
A ideia de proteção é mais adequada do que a de amparo. Como distingue
Sposati (2009, p. 21), o amparo “indica um estancamento da condição de deterioração”,
ao passo que proteção indica “o impedimento de que ocorra a destruição”, o que impõe
uma atuação mais vigilante. O destaque à vertente preventiva da assistência impõe
coberturas mais abrangentes das situações de necessidade social, cuja intervenção não
seja apenas reparadora.
Mas o adjetivo desamparados oferece o primeiro recorte dos destinatários da
assistência social. Diferentemente do que se observa a propósito da saúde e da
educação, por exemplo, a assistência social não é garantida a todos, mas aos que dela
tenham necessidade (BOSCHETTI, 2003, p. 45). A ideia de necessidade é retomada no
artigo 203, caput, da Constituição Federal.
De todo modo, os aspectos favoráveis do tratamento da assistência como
direito social superam em muito essas vicissitudes, que não deixam de servir como
registro de um momento de transição. O simples fato de a assistência social ter recebido
status de direito social gera uma consequência para seu regime jurídico: a criação de um
dever para o Estado, ao qual se atribui o protagonismo das ações relacionadas à
assistência social. Rompe-se a subsidiariedade do papel do Poder Público em relação ao
papel da sociedade civil – parâmetro que sempre pautou os programas de assistência no
Brasil – e impõe-se uma redefinição das relações entre as esferas pública e privada no
que concerne à assistência.
O detalhamento da disciplina constitucional desse direito encontra-se no título
Da Ordem Social, que trata da assistência social como política pública integrante da
seguridade social, juntamente com os subsistemas de saúde e previdência social,
sujeitos a disciplina legal.
145
Sobre a identificação dos grupos sociais atendidos pela assistência, Sposati aponta uma certa perda de
identidade como consequência da exclusão social, haja vista que “as pessoas, os segmentos sociais, são
conhecidos apenas pelo ‘os que não são’, ‘não têm’, ‘não sabem’, ‘não fazem’. Como resultado, chega-se
à leitura dos carentes, aqueles que, para serem reconhecidos vêm processada a medição das ausências que
possuem” (SPOSATI, 1987, p. 317).
137
3.7
Competências constitucionais em matéria de assistência social
O artigo 22, inciso XXIII, e o artigo 23, incisos II e X, da Constituição
Federal disciplinam a competência dos entes federativos em matéria de assistência
social. Por força dessas regras, compete privativamente à União legislar sobre
seguridade social. No tocante às competências materiais, cabe a União, Estados e
Municípios cuidar da assistência pública (CF, art. 23, II), e “combater as causas da
pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores
desfavorecidos” (CF, art. 23, X). As competências materiais provocam ainda o
surgimento de competência legislativa concorrente imprópria em matéria de
assistência, isto é, competência legislativa exercida com vistas a implementar as
competências materiais (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2010, p. 299).
A superposição das competências atribuídas aos diversos entes federativos por
meio da previsão de competências materiais comuns em relação à assistência não é, por
si só, boa ou má. A existência de regras de competência comum impõe que todos
envidem esforços para atender à demanda da assistência, o que é positivo. Em um país
como o Brasil, a ausência de uma divisão rígida de competências pode ser
compreendida como uma qualidade do federalismo, pois permite à União e aos Estados
membros desempenhar uma função de calibragem entre regiões ou Municípios com
graus de organização e desenvolvimento díspares, buscando superar desigualdades e
erradicar a pobreza. A propósito, Almeida (2000, p. 1) afirma que:
não há nada de errado com o modelo federativo brasileiro, no que
concerne à proteção social. E mais: a superposição de competências e
atribuições está longe de ser uma distorção. Ela não só corresponde a
um tipo específico de federalismo, praticado em outras partes do
mundo, como também parece adequada à diversidade de situações e
capacidades dos níveis subnacionais de governo no Brasil.
No entanto, esse modelo implica um risco. Pode-se criar um quadro de
indefinição das responsabilidades de cada ente federativo, favorecendo omissões e falta
de coordenação entre os entes, o que pode significar um grave entrave aos programas de
assistência.
Como salienta Bercovici (2004, p. 62), a grande crítica que se pode fazer às
competências comuns arroladas no artigo 23 da Constituição Federal é a não inclusão
138
do planejamento entre as matérias ali previstas. Para o autor, a ênfase dada à União no
tocante ao planejamento, ignora o papel dos Estados membros e Municípios na
elaboração de planos. Confunde-se, pois, preponderância da União com alijamento dos
demais entes.
Um dos fatores essenciais para o sucesso de uma política social é a estratégia
adotada para estabelecer as atribuições de cada ente federativo, o que inclui a criação de
instâncias de deliberação e pactuação entre todos os entes envolvidos.
No que tange à assistência social, observa-se que o artigo 204, inciso I, da
Constituição Federal complementa as disposições dos artigos 22 e 23. De acordo com
esse inciso, cabe à esfera federal coordenar e elaborar normas gerais relativas às ações
governamentais na área da assistência social. Já a coordenação e a execução dos
respectivos programas são atribuídas às esferas estadual e municipal e às entidades
beneficentes e de assistência social.
Essa divisão não afasta o desafio de se criar uma concepção nacional de
assistência social, questão que Sposati (2009, p. 15) aponta como problema geral do
sistema de seguridade. Parte desse desafio é transitória, pois está relacionada ao fato de
que a assistência social como um tema de interesse nacional e regional é tema ainda
novo; com o amadurecimento das instituições incumbidas de elaborar e executar a
política de assistência social, algumas dessas dificuldades tendem a desaparecer.
Porém, há controvérsias que persistirão. Dada a heterogeneidade do Brasil, é
inviável uma regulamentação nacional que discipline todas as peculiaridades regionais,
especialmente em um tema marcado pela capilaridade das redes de atendimento. Nesse
sentido, Sposati tece importantes ponderações e conclui que um modelo nacional de
assistência social exigirá algum grau de generalização de seus termos:
É preciso atentar que vivemos em uma federação, e por mais que se
tente captar as diversidades, a tendência é manter um nível de
generalização que certamente terá de ser adequado às particularidades
das regiões do país, dos estados, dos municípios e das microrregiões,
especialmente nas áreas metropolitanas.
A concretização do modelo de proteção social sofre forte influência da
territorialidade, pois ele só se instala, e opera, a partir de forças vivas e
de ações com sujeitos reais. Ele não flui de uma fórmula matemática,
ou laboratorial, mas de um conjunto de relações e de forças em
movimento. (SPOSATI, 2009, p. 17)
139
Encerrando o tópico destinado ao estudo da repartição constitucional de
competências em matéria de assistência social, chama-se atenção para o artigo 204,
caput e inciso I da Constituição Federal:
Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão
realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art.
195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:
I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as
normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos
programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades
beneficentes e de assistência social;
A leitura desse dispositivo revela que se está diante de uma norma de definição
de competências legislativas e materiais. Porém, a repartição de competências não
envolve apenas os entes federativos, incluindo também entidades beneficentes e de
assistência social. Desse modo, essas entidades aparecem no texto constitucional com
atribuições iguais às dos Estados e Municípios.
Essa norma indica a resistência por parte do Poder Público em assumir a
responsabilidade pelas políticas públicas de assistência social e a dificuldade em definir
a relação entre Poder Público e entidades privadas nessa matéria.
A título de comparação, observa-se que as normas constitucionais sobre o
papel da iniciativa privada em matéria de saúde e educação – direitos também
efetivados por medidas de caráter universal – são completamente diferentes do que se
dispõe sobre assistência. Em matéria de saúde (CF, art. 199) e educação (CF, art. 209),
o Estado afirma sua responsabilidade, prevendo que agentes privados também atuem
nessas áreas. Em matéria de assistência, as entidades privadas são apresentadas como
agentes tão importantes quanto o Estado, o que não condiz com a responsabilidade
estatal pela efetivação desse direito146.
É certo que a descentralização administrativa pode conduzir ao exercício de
atividades administrativas por particulares. Porém, isso pressupõe que as competências
de cada ente federativo estejam bem definidas para que só então se cogite a
transferência de atribuições. No caso do artigo 204, inciso I, da Constituição Federal,
faltou essa delimitação.
146
A propósito, Sposati (2010, p. 29) afirma que a cidadania só será incorporada pela assistência social
quando esta última for “efetivamente incorporada como política pública por anterioridade a qualquer
relação de partilha entre Estado e sociedade”.
140
3.8
Seguridade Social
O Título VIII da Constituição Federal trata da Ordem Social. O Capítulo II
desse título, aprovado por unanimidade durante os trabalhos da Constituinte
(MESTRINER, 1992, p. 15-16), dedica-se à disciplina da Seguridade Social147.
No início desse capítulo, o universo da seguridade social é delineado como
“conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade,
destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”
(CF, art. 194).
Rocha e Baltazar Júnior (2007, p. 26) explicam o significado da seguridade
social no ordenamento constitucional brasileiro:
a expressão seguridade social, como está posta na nossa Carta de
Princípios, é o termo genérico utilizado pelo legislador constituinte
para designar o sistema de proteção que abrange os três programas
sociais de maior relevância: a previdência, a saúde e a assistência
social, espécies do gênero seguridade social. Cada uma destas áreas,
atualmente, tem a sua política elaborada por um Ministério específico.
O sistema de seguridade social, em seu conjunto, visa a garantir que o
cidadão se sinta seguro e protegido ao longo de toda sua existência,
tendo por fundamento a solidariedade humana.
Mestriner também capta o significado do sistema da seguridade social para o
direcionamento do Estado brasileiro:
Num grande salto de qualidade, o fenômeno da Seguridade Social
surge então, como expressão de um direito social. Ainda que o
indivíduo tenha um direito subjetivo, que se expressa por um
benefício ou serviço, este será sempre outorgado em função de um
direito social. Ou seja, é a proteção social, os interesses da sociedade
que estão em jogo e não a proteção do indivíduo. Não é o doente ou o
pobre, o objeto de preocupação do Estado, mas sim a doença, a
pobreza.
Dessa forma a Seguridade Social só pode ser pesada na perspectiva de
um Estado de Direito Social, o que significa que suas políticas
componentes – saúde, previdência e assistência social, terão que ter a
mesma direção. (MESTRINER, 1992, p. 22, destaques no original)
147
O termo seguridade social só surge no ordenamento jurídico brasileiro com a promulgação da
Constituição de 1988, mas a partir de entrevistas realizadas, Mestriner (1992, p. 18-19) registra que
“proposta semelhante surgira anteriormente, no período da Nova República, quando no Ministério da
Previdência e Assistência, gestão Waldir Pires e em seguida Rafael de Almeida Magalhães, possibilitouse a um grupo de técnicos e sanitaristas, um diagnóstico da situação da área e a elaboração de uma
proposta de reestruturação. Pelo depoimento do Professor Aloisio Teixeira, foi neste contexto que se
forjaram os alicerces da Proposta de Seguridade Social [...]. Naquele grupo de trabalho, segundo Aloisio
Teixeira, já se adotava o termo Seguridade Social, para prever um amplo Sistema de Proteção Social”.
141
De forma inédita, o sistema de proteção social unifica vertentes não
contributivas – saúde e assistência social – com uma vertente contributiva – a
previdência social. Com isso cria-se uma rede que não tem como único eixo protetivo os
direitos decorrentes de uma relação contributiva de vinculação ao sistema de seguridade
social. Ao contrário, busca-se assegurar que todo o grupo social possa contar com
alguma forma de proteção contra a necessidade e a marginalização.
Um sistema de proteção social abrangente, composto por mecanismos
contributivos e não contributivos, só pode existir sob uma lógica de solidariedade
social. A solidariedade é essencial quando se trata do financiamento da política de
seguridade social: os membros da sociedade contribuem segundo sua capacidade
econômica (ALMANSA PASTOR, 1991, p. 61) para criar uma rede que ampare toda a
coletividade, inclusive propiciando cooperação entre diferentes gerações. Da mesma
forma, é a noção de solidariedade que garante a todos os membros da sociedade a
possibilidade de usufruir de prestações da seguridade social na medida de suas
necessidades (CARDONE, 1990, p. 31), ainda que sua capacidade contributiva seja
diminuta ou inexistente.
A ideia de segurança social como uma construção coletiva vai ao encontro da
cidadania como relação de pertencimento a uma comunidade organizada. Essa mesma
ideia denota que a satisfação de necessidades humanas não é apenas do interesse e
responsabilidade de cada indivíduo isoladamente considerado, mas também da
comunidade em que este indivíduo se insere.
3.8.1 Conceito de seguridade social tendo o atendimento às necessidades sociais
como eixo estruturante
Há doutrinadores que entendem que a seguridade social está estruturada em
torno da ideia de risco. Essa parece ser a posição defendida por Balera (1997, p. 188) ao
afirmar que “todas as pessoas, em todas as situações de risco social, fazem jus à
proteção do sistema de seguridade social” (destacou-se) e por Sposati (2009, p. 33),
quando afirma ser preciso “caracterizar os riscos sociais a serem enfrentados pela
política de assistência social conforme a natureza do ciclo de vida, a dignidade humana
e a equidade” (destacou-se).
142
A abordagem fundada na noção do risco se coaduna com as origens da
seguridade social, particularmente com as primeiras formas de proteção de
trabalhadores. O desenvolvimento dessa noção teve o mérito de unificar o tratamento
conferido a uma gama muito diversificada de acontecimentos, como doença, velhice,
desemprego e acidentes (ROSANVALLON, 1995, p. 24). Nessa medida, contribuiu
para a sistematização do Direito da Seguridade Social.
Ocorre que a ideia de risco como pilar da seguridade social está superada. A
primeira causa dessa superação é o avanço da disciplina jurídica do tema. Segundo
Almansa Pastor (1991, p. 221-223), as relações jurídicas constituídas no bojo da
seguridade social têm seu foco nas consequências de um determinado evento, não em
sua causa. Protegem-se, inclusive, situações preexistentes à formação da relação jurídica
de seguridade social148 e eventos previstos e desejados pelos destinatários da
seguridade149. Em um sistema que não se limita à cobertura de eventos futuros, incertos
e que não dependam apenas da vontade dos sujeitos da relação jurídica, o risco deixa de
ser elemento essencial da relação jurídica, tal como seria em um contrato de seguro.
Além disso, a ideia de risco não capta a complexidade dos fenômenos sociais e
econômicos que as políticas sociais, incluindo a seguridade, devem enfrentar. O risco
evoca ideias como aleatoriedade, imprevisibilidade etc., as quais não se coadunam com
relações econômicas e sociais que produzem necessidades, privações e vulnerabilidades
de forma contínua e inexorável. Em outras palavras, o crescente número de pessoas que
se tornam “sem lugar na sociedade” mostra que a seguridade social deve lidar com
situações que nada têm de aleatórias ou de imprevistas150.
Em contraposição a essas noções, ganha força a ideia de necessidade social como
eixo ordenador do sistema de seguridade social, como sustenta Almansa Pastor (1991),
seguido no Brasil por Santos (2001)151. O autor parte de um sentido impreciso da
palavra necessidade – compreendida como “falta das coisas necessárias à conservação
148
É o caso de prestações que amparam filhos nascidos antes de qualquer filiação de seus genitores ao
sistema da seguridade (ALMANSA PASTOR, 1991, p. 221).
149
As normas de proteção à maternidade e da concessão de benefícios programados, especialmente no
caso dos segurados facultativos do RGPS exemplificam essa hipótese.
150
Como afirma Rosanvallon (1995, p. 27): “Lo social ya no puede aprehenderse únicamente en términos
de riesgo. Los fenómenos de exclusión, de desempleo de larga duración, desgraciadamente definen a
menudo estados estables. Se pasa así de un enfoque aleatorio y circunstancial de los ‘desperfectos
sociales’ a una visión más determinista, en la cual se advierte la más débil reversibilidad de las
situaciones de ruptura”.
151
A importância desse conceito para a seguridade social, em consonância com a obra de Almansa Pastor
(1991), foi mencionada em trabalho anterior de mesma autoria (SALES, 2010).
143
da vida” – em busca de um significado mais técnico e mais preciso. Neste passo, chega
à definição de necessidade como “carência ou escassez de um bem, unida ao desejo de
sua satisfação”.
A necessidade contém em seu bojo um aspecto negativo e outro positivo. A
situação de carência ou escassez de um determinado bem – entendido como “coisa ou
objeto, material e imaterial, que contribui para o desenvolvimento da personalidade
humana” – corresponde ao aspecto negativo da necessidade. Seu aspecto positivo
corresponde ao “desejo subjetivo de superá-la mediante provisão de bens, como
consciência (‘mentalización’) universal da exigência de sua satisfação” (ALMANSA
PASTOR, 1991, p. 30).
No que concerne ao adjetivo social, Almansa Pastor (1991, p. 30) pontua que a
situação de necessidade pode incidir sobre o indivíduo ou sobre a coletividade, no todo
ou em parte. Baseado em Von Stein, o autor afirma que “a vida social se move em torno
da cobertura das necessidades humanas, cuja satisfação verdadeira só é possível dentro
da sociedade”. Ao final, frisa que o adjetivo social designa necessidades individuais que
repercutem na coletividade e adquirem também a essência do social152.
Discorrendo sobre o significado da proteção social não contributiva, Sposati
também oferece subsídios para a compreensão do adjetivo social. Suas considerações
mostram que as necessidades são sociais porque “se constituem nas relações em
sociedade” e se ocupam “das condições objetivas de acesso aos modos de reprodução
social (condições de vida) como componentes da dignidade humana, da justiça social e
dos direitos e da vigilância social” (SPOSATI, 2009, p. 20).
Resta justificar por que o conceito de necessidade social é referência para a
compreensão da seguridade social.
A primeira razão é o fato de essa construção considerar a seguridade social um
instrumento de libertação do indivíduo em relação às necessidades sociais (ALMANSA
PASTOR, 1991, p. 32). A segunda é justamente o reconhecimento da existência de
necessidades materiais e imateriais, o que atende à exigência de “sofisticação” das
medidas de enfrentamento à pobreza e à exclusão social mencionada anteriormente
(cf. supra 3.4 Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil).
152
No mesmo sentido, pondera Leite (2002, p. 21) “As necessidades essenciais de cada indivíduo, a que
a sociedade deve atender, tornam-se na realidade necessidades sociais, pois, quando não são atendidas
repercutem sobre os demais indivíduos e sobre a sociedade inteira”.
144
Afirmar que a seguridade social visa satisfazer necessidades sociais conduz a
dois questionamentos: quais são essas necessidades e como a seguridade social deve
atuar. Para encontrar essa resposta e, com isso, buscar conceituar a seguridade social,
vale trazer à tona a teoria das necessidades humanas construída por Doyal e Gough
(1991). Contrapondo-se a concepções relativistas153, esses autores defendem a
existência de necessidades básicas comuns a todos os seres humanos, delimitadas
objetivamente e dotadas de caráter universal: saúde física e autonomia154. Apontam
ainda que o atendimento a essas necessidades não é um fim em si mesmo, mas uma
situação indispensável para o desempenho de qualquer outra atividade em qualquer
cultura155. Como explica Pereira (2006, p. 68), são precondições para a consecução de
objetivos universais de participação social156.
Saúde física e autonomia são necessidades básicas e universais porque
constituem aquilo que todos os seres humanos devem obter para evitar graves e
duradouros prejuízos (DOYAL; GOUGH, 1991, p. 50). Os graves prejuízos (serious
harm), traduzidos por Pereira como sérios prejuízos, são “impactos negativos cruciais
que impedem ou põem em sério risco a possibilidade objetiva dos seres humanos de
viver física e socialmente em condições de poder expressar a sua capacidade de
participação ativa e crítica” (PEREIRA, 2006, p. 67). Eis, portanto, o critério de
distinção das necessidades básicas em relação a outras necessidades e preferências.
Doyal e Gough (1991, p. 155) ponderam que, embora as necessidades sejam
universais, sua satisfação varia culturalmente. Ainda assim, avançam na identificação de
153
Sob uma óptica relativista, as necessidades sociais seriam historicamente determinadas, variáveis de
uma sociedade para outra e, mesmo dentro de cada comunidade, não se poderia falar em necessidades
uniformemente reconhecidas. Dessa forma, haveria um grau de subjetivismo que fragilizaria qualquer
tentativa de se estabelecer um rol de necessidades a serem amparadas.
154
A autonomia, segundo Doyal e Gough (1991, p. 59-69), resulta de habilidades cognitivas (cognitive
skills), saúde mental e oportunidades para o desempenho de atividades socialmente significativas. Pereira
aprofunda esse conceito, ensinando que a autonomia básica refere-se à “capacidade do indivíduo de
eleger objetivos e crenças, de valorá-los com discernimento e de pô-los em prática sem opressões”
(PEREIRA, 2006, p. 70), ao passo que a “autonomia crítica é um estágio mais avançado de autonomia,
que deve estar ao alcance de todos. Revela-se como a capacidade das pessoas de não apenas saber eleger
e avaliar informações com vista à ação, mas de criticar e, se necessário, mudar as regras e práticas da
cultura a que pertencem” (PEREIRA, 2006, p. 74).
155
“[...] since physical survival and personal autonomy are the preconditions for any individual action in
any culture, they constitute the most basic human needs – those which must be satisfied to some degree
before actors can effectively participate in their form of life to achieve any other valued goals” (DOYAL;
GOUGH, 1991, p. 54).
156
Essa teoria não passa ao largo das preocupações com os direitos civis e políticos. Ao contrário, o
respeito aos direitos civis e políticos é precondição para que as necessidades básicas sejam atendidas e
otimizadas, o que é coerente com a ênfase conferida ao desenvolvimento da autonomia como caminho
para a participação social de todos os indivíduos.
145
bens, serviços, atividades e relações que reforçam a saúde física e a autonomia humana
em todas as culturas, ainda que providos de formas diferentes. Esses mecanismos são
chamados de satisfiers157 universais ou necessidades intermediárias (DOYAL;
GOUGH, 1991, p. 157).
As necessidades intermediárias subdividem-se em onze categorias não
hierarquizadas, a saber: (a) alimentação nutritiva e água potável; (b) habitação protetora;
(c) ambiente de trabalho não perigoso; (d) ambiente físico não perigoso; (e) cuidados de
saúde apropriados; (f) segurança na infância; (g) relações primárias significativas158;
(h) segurança física; (i) segurança econômica159; (j) educação apropriada; (k)
planejamento familiar, gestação e parto seguros160.
É certo que essas categorias não afastam a possibilidade de cada comunidade
possuir necessidades específicas tão ou mais importantes do que a relação apresentada
no parágrafo anterior. Nesse caso, afirma Pereira (2006, p. 76) “há que,
secundariamente, se identificarem ‘satisfadores específicos’, os quais poderão melhorar
as condições de vida e de cidadania das pessoas em situações sociais particulares”. Em
outras palavras, às onze necessidades intermediárias apontadas, podem ser agregadas
outras necessidades específicas.
A formulação teórica de Doyal e Gough (1991) tem atributos que justificam ser
tomada como referência para a compreensão da seguridade social no Brasil. O trabalho
dos autores permite identificar um conjunto de necessidades cujo atendimento deve
pautar a formulação da seguridade social – como de resto de todas as políticas públicas –
exigindo uma cuidadosa interpretação do significado de mínimos sociais. Trata-se de
uma construção pluralista, pois comporta demandas de minorias ou grupos em situação
157
Pereira (2006, p. 75) traduz satisfiers como “satisfadores”.
A definição de relações primárias significativas apresentada por Doyal e Gough (1991, p. 207) é
traduzida por Pereira (2006, p. 79) como: “uma rede de apoios individuais que podem oferecer um
ambiente educativo e emocionalmente seguro”. Como será visto no próximo capítulo, a assistência social
tem entre seus propósitos o fortalecimento da família, núcleo privilegiado de desenvolvimento dessas
relações de apoio.
159
Toma-se, mais uma vez a tradução que Pereira (2006, p. 80) faz da obra original (DOYAL; GOUGH,
1991, p. 211), em que insegurança econômica é definida como “risco objetivo de um declive inaceitável
no nível de vida de uma pessoa, no qual o ‘inaceitável’ refere-se à ameaça à sua capacidade de
participação”.
160
Para maior clareza, segue a relação em inglês: nutritional food and clean water; protective housing; a
non-harzadous work environment; a non-harzadous physical environment; appropriate health care;
security in childhood; significant primary relationships; physical security; economic security; appropriate
education; safe birth control and child-bearing (DOYAL; GOUGH, 1991, p. 157-158) Embora os autores
empreguem a expressão clean water, a tradução como água potável (PEREIRA, 2006, p. 76) é mais
adequada para a compreensão do termo.
158
146
de desvantagem social e reconhece que o atendimento às necessidades intermediárias
pode se dar por formas variadas161. Além disso, a sistematização das necessidades
básicas e intermediárias, pautada pelo objetivo maior de promover participação social,
oferece um instrumento racional da análise das hipóteses de intervenção da seguridade
social.
Partindo dessa teoria das necessidades humanas, compreende-se que a
seguridade social deve buscar o atendimento das necessidades básicas de saúde física e
autonomia em grau que permita a participação social de seus destinatários. Para tanto,
cabe aos três sistemas que integram a seguridade social brasileira atender as
necessidades intermediárias162 – tanto as de caráter universal, quanto as necessidades
específicas previstas no ordenamento jurídico.
Entretanto, não cabe à seguridade social prover diretamente o atendimento das
onze categorias de necessidades intermediárias acima elencadas. Sendo uma política
específica da ordem social, é preciso delimitar as hipóteses em que a seguridade atua
como protagonista – ainda que sem exclusividade – e as hipóteses em que desempenha
papel coadjuvante de outras políticas.
Com isso pretende-se dizer que a seguridade social ora supre diretamente as
necessidades intermediárias, ora cria condições para que os indivíduos o façam por seus
próprios meios ou então sejam alcançados por outras políticas sociais163. No primeiro
caso, está-se diante do campo específico de atuação da seguridade social. Nos outros
casos, está-se diante do campo de atuação de outras políticas públicas, em que a
seguridade social oferece algum tipo de suporte.
161
Afirmar que existem necessidades comuns à humanidade não implica afirmar que o atendimento delas
seja invariável, tampouco implica negar que possam ser demandadas condições adicionais para que
alguns grupos atinjam sua saúde física e sua autonomia.
162
Tanto as necessidades básicas quanto as intermediárias constituem necessidades sociais, pois sua
origem e sua satisfação estão atreladas à dinâmica da vida em sociedade.
163
Vale ilustrar a afirmação com alguns exemplos. O primeiro: não compete à seguridade social
promover a educação escolar, mas compete-lhe prover cuidados de saúde necessários para que os
membros da sociedade tenham condições físicas, psíquicas e materiais de serem alcançados pelas
políticas de educação. O segundo: a ocupação de vagas de emprego ou cargos públicos por pessoas com
deficiência passa por medidas de proteção do trabalho dessas pessoas e, conforme o caso, por políticas
econômicas de geração de postos de trabalho. Todavia, os cuidados médicos, os serviços de habilitação e
reabilitação e a garantia de renda quando essas pessoas ainda não têm condições de exercer atividade
laborativa são essenciais para que as políticas de inclusão das pessoas com deficiência no mercado de
trabalho possam funcionar a contento. Não menos importante é consignar que essa função de “suporte”
para o exercício de outros direitos também se aplica aos direitos civis e políticos, bastando recordar que a
falta de acesso à saúde ou a precariedade financeira comprometem a capacidade de avaliar e eleger
valores e preferências relativas ao exercício desses direitos.
147
Uma leitura atenta da Constituição Federal de 1988 em cotejo com o rol de
necessidades intermediárias traçado por Doyal e Gough (1991) mostra que a seguridade
social deve prover prestações relativas a: (a) alimentação nutritiva e água potável164;
(b) cuidados de saúde apropriados; (c) segurança na infância; (d) relações primárias
significativas; (e) segurança econômica; (f) planejamento familiar, gestação e parto
seguros. Além disso, o artigo 203 da Constituição Federal prevê um “adicional
específico de satisfiers” (PEREIRA, 2006, p. 85) ao prever específica proteção de
pessoas adolescentes, idosas ou com deficiência165. Essas necessidades intermediárias
universais e específicas podem ser sintetizadas em saúde física e psíquica, segurança
econômica e segurança de convívio166.
Quanto ao atendimento das necessidades de habitação protetora, ambiente de
trabalho não perigoso, ambiente físico não perigoso, segurança física167 e educação
apropriada, a seguridade social tem um papel coadjuvante. Isso significa que as
prestações de saúde, assistência social e previdência social se refletem no acesso a esses
satisfiers. Porém, nesse caso, já não se está na seara da seguridade social e sim de outras
políticas sociais.
Feita essa distinção, conclui-se que a seguridade social deve afiançar as
proteções relativas a saúde física e psíquica, segurança econômica e segurança de
164
As necessidades de alimentação nutritiva e acesso à água potável são questões afetas à seguridade
social, pois se referem ao que é essencial para a saúde e o desenvolvimento de qualquer ser humano.
Além do mais, a falta desses bens dificilmente pode ser dissociada de um quadro de insegurança
econômica. No entanto, há que se registrar que o acesso à alimentação e à água potável passa por
questões estruturais relacionadas à política agrícola e ambiental, que assumem um papel importantíssimo
no atendimento a essas demandas. Por isso mesmo, embora a distribuição de alimentos seja uma medida
“clássica” de assistência social, é um erro conceber medidas de segurança alimentar e fornecimento de
água potável como ações exclusivas da assistência social.
165
Entre as onze necessidades intermediárias indicadas por Doyal e Gough (1991) somente as previsões
relativas às crianças e às mulheres são dotadas de especificidade. A Constituição Federal de 1988 vai
além, pois reconhece que o atendimento às necessidades básicas de adolescentes, idosos e pessoas com
deficiência também demanda o suprimento de necessidades intermediárias específicas desses grupos.
166
O Informe Mundial Sobre a Seguridade Social divulgado pela OIT, relativo aos anos de 2010 e 2011,
enuncia que o conceito de seguridade social adotado naquele documento possui duas dimensões
fundamentais: seguridade de ingressos e acesso à assistência médica. A Constituição Federal brasileira
ultrapassa essas duas dimensões. A uma porque garante a saúde e não apenas a assistência médica. A duas
porque elege o convívio – pela participação na comunidade ou na vida familiar – como uma dimensão
muito importante da seguridade social, como se depreende da leitura de seu artigo 203, incisos III e IV.
Embora esses dois dispositivos digam respeito à assistência social, a promoção do convívio também é
característica da saúde e da previdência social, pois ambas promovem serviços voltados ao
desenvolvimento de habilidades físicas e psíquicas, que permitem a seus destinatários participarem
plenamente da vida familiar e social.
167
Como explica Pereira (2006, p. 80), Doyal e Gough (1991, p. 212-214) tratam da segurança física com
o sentido de proteção contra ameaças arbitrárias oriundas da sociedade ou do Estado. Portanto, de acordo
com essa acepção, seria um satisfier ligado ao respeito aos direitos e garantias individuais, com destaque
para a segurança pública.
148
convívio. Para tanto, cabe ao Direito determinar a medida de atendimento dessas
necessidades pela seguridade social168, fixar as prestações devidas aos seus
destinatários169 e estabelecer os requisitos de acesso a essa proteção170. Porém, como se
cuida sempre de promover a participação social de todos os membros da coletividade e
como a saúde física e a autonomia são igualmente relevantes, constata-se que não se
deve proteger apenas a sobrevivência biológica do ser humano, mas também prover
prestações básicas à vida digna em sociedade.
Estabelecidas as finalidades da seguridade social – satisfação de necessidades
sociais básicas – e identificados os meios disponibilizados pelo constituinte para sua
consecução – elaboração e implementação de programas de saúde, previdência e
assistência social, tendo em vista as necessidades sociais intermediárias a serem
atendidas –, estão definidos os contornos essenciais da seguridade social brasileira.
Como resultado de todas essas considerações, pode-se conceituar seguridade
social como política pública de proteção social, composta pelas políticas de saúde,
assistência social e previdência social, que visa satisfazer necessidades sociais básicas
de saúde física e autonomia e, com isso, promover a participação social de todos os
indivíduos, tendo como objeto prestações que assegurem saúde física e psíquica,
segurança econômica e segurança de convívio.
O destaque para a ideia de necessidades sociais como aspecto central da
construção da seguridade social será de grande valia para o estudo das normas que
tratam especificamente da assistência social no ordenamento brasileiro.
168
Ao tratar da seguridade social espanhola, Almansa Pastor (1991, p. 227) faz um apontamento
aplicável à realidade brasileira. O autor afirma que as situações de necessidade social são protegidas
quando previstas pelo ordenamento jurídico. As situações não previstas pelo legislador, por conseguinte,
não são consideradas ensejadoras de proteção social.
169
Como bem recorda Almansa Pastor (1991, p. 64), a proteção pela via da seguridade social consiste em
um direito dos cidadãos, no que se diferencia de qualquer sistema de beneficência.
170
A satisfação de necessidades sociais pode ser condicionada à demonstração de alguma contingência
selecionada pelo legislador, hipótese em que se perquire sobre a causa produtora da necessidade. Para
Almansa Pastor (1991, p. 230), a previsão de contingências possui dupla função: antes da produção da
necessidade a ser coberta (“momento ex ante da relação protetora”), delimita o aporte de contribuições e o
conjunto de ingressos financeiros com que a seguridade social conta para efeito de equilíbrio
orçamentário; após a produção da necessidade, (“momento ex post da relação protetora”), permite
identificar as situações que encontram guarida no ordenamento jurídico. Para o autor, quando a proteção
prescinde da demonstração das causas da necessidade, atentando apenas para os efeitos, tem-se uma
seguridade social mais assistencial do que contributiva. Essa lição mostra ser comum a estruturação da
assistência social em torno da necessidade isoladamente considerada – e não de suas causas –
característica aplicável ao ordenamento jurídico brasileiro. Corrobora essa afirmação o ensinamento de
Santos (2003, p. 199), que, tratando da assistência social na Constituição Federal, sustenta não haver
seletividade de contingências, pois não importam para a assistência social as causas de necessidades, mas
sim a “seletividade das necessidades protegidas e a distributividade dos beneficiários”.
149
3.8.2 Disposições gerais relativas à seguridade social
O parágrafo único do artigo 194 da Constituição Federal apresenta os
objetivos da seguridade social, a saber: (a) universalidade da cobertura e do
atendimento; (b) uniformidade e equivalência de benefícios e serviços às populações
urbanas e rurais; (c) seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e dos
serviços; (d) irredutibilidade do valor dos benefícios; (e) equidade na forma de
participação no custeio; (f) diversidade da base de financiamento; (g) caráter
democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com
participação dos trabalhadores, empregadores, aposentados e Governo nos órgãos
colegiados.
Em que pese o artigo em comento utilizar o vocábulo objetivos, a mera leitura
desses objetivos revela que se está diante dos princípios171 norteadores da seguridade
social. São estes, portanto, os vetores que devem pautar a organização da saúde, da
assistência social e da previdência social.
A seu turno, o artigo 195 da Constituição Federal versa sobre o financiamento
e a alocação de recursos da seguridade social, já demonstrando em seus incisos e
parágrafos a aplicação dos princípios do artigo 194.
Segue um breve apanhado desses princípios, com destaque para aqueles que
exercem maior influência sobre o tema da assistência social.
3.8.2.1 Universalidade da cobertura e do atendimento
O
princípio
da
universalidade
direciona
a
produção
normativa
infraconstitucional, a elaboração de políticas públicas e a interpretação das normas
relativas à seguridade social.
171
Para fundamentar essa asserção, recorda-se o conceito de princípio elaborado por Bandeira de Mello:
“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia
sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a
tônica e lhe dá sentido harmônico” (BANDEIRA DE MELLO, 2003, p. 817-818).
150
A ideia ínsita a esse princípio consiste em que todos tenham acesso à proteção
social. Nesse sentido, a seguridade social deve se orientar para o atendimento de
situações de necessidade social relacionadas a saúde, assistência social e previdência
social. Fortemente relacionada com isonomia e dignidade da pessoa humana, a
universalidade veda a criação de situações de injustificada desigualdade no acesso à
proteção social e rechaça tratamentos estigmatizantes aos usuários dos sistemas
protetivos172.
No campo da seguridade social, a universalidade apresenta uma dimensão
objetiva – a da cobertura – e outra subjetiva – a do atendimento (IBRAHIM, 2010, p. 71).
A universalidade da cobertura indica que todas as situações de necessidade
social que se inserem no campo da seguridade social encontram proteção atendimento
integral ou, como ensina Santos (2003, p. 213), recebem cobertura que “compreende as
etapas de prevenção, proteção e recuperação”.
Alguns autores afirmam que a universalidade da cobertura alcança “todos os
riscos sociais que possam gerar estado de necessidade” (IBRAHIM, 2010, p. 71) ou as
“contingências que geram necessidade” (SANTOS, 2003, p. 213). Porém, como nem
toda a cobertura proporcionada pela seguridade social está condicionada à demonstração
de uma contingência específica (cf. supra 3.8.1 Conceito de seguridade social tendo o
atendimento às necessidades sociais como eixo estruturante), não se pode concordar
integralmente com essas afirmações. Ao contrário, entende-se que a universalidade não
diz respeito às contingências, mas à amplitude das situações de necessidade protegidas.
A universalidade de atendimento, a seu turno, denota que todos os membros da
sociedade têm direito à proteção social em igualdade de condições. Desse princípio,
172
Sobre a universalidade na efetivação dos direitos sociais, ensina (PEREIRA, 2003, p. 1-2): “O
princípio da universalidade é o que melhor contempla e exige a relação entre políticas públicas e direitos
sociais, sem descartar naturalmente os direitos individuais (civis e políticos). Uma razão histórica
fundamental para a adoção desse princípio foi o objetivo democrático de não discriminar cidadãos no seu
acesso a bens e serviços que, por serem públicos, são indivisíveis e devem estar à disposição de todos.
Não discriminar, na perspectiva desse princípio, significa não estabelecer critérios desiguais de
elegibilidade, que humilhem, envergonhem, estigmatizem e rebaixem o status de cidadania de quem
precisa de proteção social pública. Significa também não encarar a política pública (especialmente a
política social e dentro desta a assistência) como um fardo governamental ou um desperdício a ser
cortado a todo custo. Além disso, uma outra justificação histórica importante para a adoção do princípio
da universalidade decorreu da descoberta feita por várias forças sociais em pugna pela democracia, da
idéia de prevenção nele contida. [...]
Associado à prevenção prevista no princípio da universalidade, o conceito de direitos sociais se impôs
como antídoto a toda sorte de agressões e constrangimentos impingidos aos pobres no processo de
satisfação de suas necessidades básicas e como arma de luta coletiva por melhores condições de vida e de
cidadania” (destaques no original).
151
entretanto, não resulta um direito genérico a toda e qualquer proteção social. A
seguridade social cuida de necessidades sociais estabelecidas à luz de sua relevância
para o indivíduo e para a comunidade em que ele se insere. O ordenamento jurídico visa
atender a essas necessidades – nem mais, nem menos. Saúde, assistência social e
previdência social têm limites decorrentes de suas finalidades e de seus respectivos
regimes jurídicos173. Nessa medida, a fixação de um regime jurídico de seguridade
social, com critérios de acesso, não representa necessariamente mitigação da
universalidade.
A questão é: uma vez reconhecido o dever estatal de fazer frente a determinadas
necessidades, a proteção ofertada deve ser abrangente e, portanto, universal. Assim, todos
aqueles que se enquadram nas hipóteses previstas na Constituição Federal ou norma
infraconstitucional fazem jus à cobertura prevista ou, dizendo de outro modo, toda a
população visada pela política social deve ser efetivamente alcançada. Disso decorre a
obrigatoriedade de atuação abrangente – preventiva, protetiva e reparadora – e igualitária.
Há que se ter especial atenção à aplicação do princípio da universalidade ao
campo da assistência social, pois a aplicação desse princípio evita equívocos na
compreensão e na disciplina da assistência.
A universalidade de cobertura indica que a assistência social não deve atuar
apenas para remediar situações pontuais. Ao invés disso, deve ser preventiva e atuar de
forma abrangente sobre as situações de necessidade. Prestigiando-se a cobertura
preventiva e protetiva, afasta-se a noção de que a assistência social só intervém em
situações de desproteção já instaladas (SPOSATI, 2009, p. 21).
Sob o prisma do atendimento assistencial, a universalidade permite avaliar
positiva ou negativamente a forma pela qual se delimita o público atendido. Em muitos
casos, é mais adequado tratar das necessidades protegidas do que identificar as pessoas
a serem atendidas174, pois o que se pretende é fazer frente à necessidade, qualquer que
173
É evidente que, contrariando ideais de satisfação de necessidades sociais básicas ou de à igualdade, a
disciplina infraconstitucional da seguridade social poderá incorrer em violação a este princípio
constitucional.
174
Deve-se recordar que a assistência social não se destina apenas às situações de necessidade financeira
e que qualquer pessoa pode vir a precisar de proteção estatal, sendo oportuna a transcrição da crítica feita
por Stuchi a uma parte da doutrina: “Ao definir a assistência social pelo seu público, a doutrina faz um
recorte a priori da sociedade, dividindo entre cidadãos ricos, amparados, suficientes e o público da
assistência social (pobre, desamparado, hipossuficiente), sem considerar que as vulnerabilidades e riscos
podem ser circunstanciais e não permanentes, o que contradiz o princípio da universalidade. Se o Estado
brasileiro tem como fundamento a cidadania (art. 1º) e como objetivo erradicar a pobreza e a
152
seja o sujeito envolvido. Em outras situações, a identificação de grupos específicos
permite uma atuação voltada para a promoção de justiça e bem-estar social175, pois se
tem claro que a universalidade pressupõe que se corrija uma situação de desigualdade.
Em qualquer hipótese, a universalidade é incompatível com ideias como a do
“amparo ao pobre usuário” – presente, por exemplo, nas práticas da LBA – e dá lugar à
compreensão de que são serviços e prestações disponibilizados aos cidadãos. Disso
também decorre que o acesso às redes de proteção não pode estabelecer discriminações
ou reforçar estigmas.
3.8.2.2 Uniformidade e equivalência de benefícios e serviços às populações urbanas
e rurais
O princípio da uniformidade e equivalência de benefícios e serviços às
populações urbanas e rurais assegura tratamento isonômico às populações rurais e
urbanas perante a seguridade social.
Embora essa diretriz possa ser extraída até mesmo do artigo 5º da Constituição
Federal, a previsão é oportuna, pois afasta qualquer resquício do tratamento desigual
dispensado às populações rurais na ordem constitucional anterior a 1988. Como recorda
Ibrahim (2010, p. 72), esse princípio não afasta a aplicação do princípio geral da
isonomia, especialmente da igualdade material, que pode determinar alguma parcela de
diferenciação entre populações urbanas e rurais.
marginalização, reduzir as desigualdades sociais, e promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 2º), e os direitos sociais
devem ter caráter de inclusão e emancipação social, não se pode definir previamente os cidadãos
brasileiros que, em circunstâncias da vida, venham a necessitar de algum serviço o benefício
socioassistencial” (STUCHI, 2010, p. 168).
175
A mescla entre políticas universalistas e políticas específicas marca toda a evolução dos direitos
humanos. Trata-se do processo de especificação do sujeito da proteção que Bobbio identifica como uma
das formas de multiplicação dos direitos do homem ao ensinar que: “a passagem ocorreu do homem
genérico – do homem enquanto homem – para o homem específico, ou tomado na diversidade de seus
diversos status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (o sexo, a idade, as condições
físicas), cada um dos quais revela diferenças específicas, que não permitem igual tratamento e igual
proteção. A mulher é diferente do homem; a criança, do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o
doente temporário, do doente crônico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos
deficientes, etc.” (BOBBIO, 2004, p. 84).
153
3.8.2.3 Distributividade e seletividade na prestação dos benefícios e dos serviços
Organizar o aparato administrativo e definir critérios de alocação de recursos
escassos são tarefas que orientam as escolhas legislativas na construção da seguridade
social. No universo de escolhas possíveis, são eleitas as necessidades a serem protegidas
e direciona-se a prestação estatal às situações de maior relevância. Disso resultam
outros dois princípios da seguridade social: a distributividade e a seletividade.
Como ensina Santos (2003, p. 180), cabe ao legislador escolher as
contingências geradoras de necessidade a serem sanadas e, ato contínuo, fixar o grau de
proteção visando atingir o maior número possível de destinatários.
tendo em vista a conjuntura econômica e o universo de necessidades a
eliminar, o legislador tem de escolher as contingências geradoras de
necessidades que deverão ter proteção pela seguridade. E, após,
estabelecer a medida dessa proteção, de modo a atingir o maior
número possível de beneficiários.
[...] A seletividade diz quais são as contingências-necessidades objetos
da relação jurídica de seguridade social. A distributividade fixa o grau
de proteção a que terão direito os beneficiários das prestações
previamente selecionadas.(SANTOS, 2003, p. 180)
O princípio da seletividade, nas palavras de Ibrahim (2010, p. 72-73), impõe a
“concessão e manutenção das prestações sociais de maior relevância, levando-se em
conta os objetivos constitucionais de bem-estar e justiça social”.
A seletividade indica que as prestações da seguridade social deverão ser
destinadas aos que realmente estejam em situação de necessidade. Desse princípio
extrai-se também um mandamento de adequação entre a prestação seja adequada ao
objeto da proteção, pois as prestações devem ser orientadas em função da finalidade
buscada. Em suma: por força desse princípio selecionam-se as prestações mais
relevantes e adequadas às necessidades protegidas pelo ordenamento.
É também por força desse princípio que a Lei Orgânica de Assistência Social –
LOAS conta com quatro mecanismos de implantação da assistência social (benefícios,
serviços, programas e projetos de enfrentamento da pobreza).
Ao contrário do que se pode depreender de uma primeira leitura da
Constituição Federal, os princípios de universalidade e seletividade não são
154
antagônicos176, mas estão imbricados. A universalidade diz respeito às situações de
necessidade protegidas e ao conjunto de pessoas que receberão a proteção social. A
seletividade diz respeito à identificação dessas necessidades e dos sujeitos que terão
acesso aos direitos da seguridade social177 e, por conseguinte, à adequação das
prestações às necessidades.
Cabendo à seletividade direcionar corretamente a atenção socioassistencial,
cabe a ela também concretizar ou contrariar a universalidade. Em outras palavras: se a
seletividade resulta em atenção restrita a situações pontuais, sem medidas de
fortalecimento da condição do cidadão, há incompatibilidade com a ideia de
universalidade e, mais ainda, com os objetivos expressos no artigo 3º da Constituição
Federal. A atenção precária ou parcial ao cidadão resulta igualmente em medidas
inadequadas à necessidade, fragilizando a cobertura universal. Por fim, a aplicação do
critério da menor elegibilidade, via de regra178, pode resultar na inadequação da
prestação ofertada em relação à necessidade a ser suprida e, por conseguinte, em
cobertura insuficiente.
Em suma, concebida como focalização ou, conforme o caso, como menor
elegibilidade, a seletividade contraria a universalidade. A focalização representa um
desvirtuamento da seletividade como demonstra Pereira (2003, p. 02-03):
A focalização afigura-se, assim, como um princípio antagônico ao da
universalização – ao contrário da seletividade, que poderá manter
176
Ugatti, por exemplo, compreende a seletividade como mitigação do princípio da universalidade, como
se extrai do excerto a seguir: “A proteção social constitucional dispensada à assistência social insere o
conceito de necessitado para sua efetiva atuação. Nessa área de proteção social, o princípio da
universalidade do atendimento e da cobertura (item 4.1, infra) é mitigado pelo texto constitucional, em
seu artigo 203, caput e incisos I e V [...]. Os próprios objetivos traçados nos incisos I a V do mencionado
dispositivo constitucional, decorrentes da seletividade e distributividade na prestação de benefícios e
serviços (item 4.3, infra), delimitam o alcance da universalidade da cobertura e do atendimento, traçando
as hipóteses que de forma prioritária merecerão proteção por parte do legislador ordinário” (UGATTI,
2003, p. 27).
177
Em sentido contrário, ao tratar da seletividade na assistência social, Boschetti (2003, p. 85-86)
entende que a seletividade não guarda relação com a priorização de situações e usuários potencialmente
protegidos. Para a autora, a seletividade não tem por objetivo estabelecer estratégias para ampliar o acesso
aos direitos; busca apenas definir quem passará pelo crivo do acesso aos direitos, esgotando-se em si
mesma.
178
O princípio da menor elegibilidade deliberadamente coloca o cidadão que se vale da assistência social
em situação pior do que estaria se dependesse de seu trabalho. Há um aspecto perverso nesse raciocínio,
que ignora as reais possibilidades oferecidas ao usuário da assistência social e, não raro, pressupõe que o
cidadão prefere viver às expensas do Estado, o que nem sempre corresponde à verdade. Nessa medida, é
uma noção criticável. Todavia, não se pode afirmar que todas as medidas pautadas pela menor
elegibilidade contrariam o princípio da seletividade. Ao menos em tese, pode-se cogitar a existência de
prestações da assistência social que, mesmo piores do que os recursos oriundos de outras fontes, atendam
adequadamente as necessidades sociais do cidadão que as recebe. Daí a afirmação de que o critério da
menor elegibilidade, via de regra (mas não necessariamente) resulta em cobertura insuficiente.
155
relações dinâmicas com este – não só no plano operacional, mas
também teórico e ideológico. Trata-se, a focalização, de uma tradução
dos vocábulos ingleses targeting ou target-oriented, oriundos dos
Estados Unidos e adotados pelos governos conservadores europeus,
principalmente o da ex-primeira ministra inglesa Margareth Thatcher
– que concebem a pobreza como um fenômeno absoluto, e não
relativo, com todas as implicações políticas que tal concepção
acarreta, dentre as quais ressaltam: a restrição do papel do Estado na
proteção social; o apelo à generosidade dos ricos e afortunados para
ajudarem os mais pobres; a ênfase na família e no mercado, como
principais agentes de provisão de bem-estar; a proclamação da
desigualdade social como um fato natural. E mais: significa desviar a
atenção pública da satisfação das necessidades sociais – dado o seu
caráter complexo e multideterminado – para a adoção de soluções
técnicas focalizadas, tidas como inovadoras, neutras e facilmente
controláveis.
Sposati (2009, p. 24) também se posiciona contra a ideia de focalização:
Talvez por força de agentes financiadores internacionais, usa-se o
termo focalização, que é aplicado desde o Consenso de Washington.
De fato, a perspectiva em direcionar corretamente o programa para a
demanda trouxe o desafio de construir-se várias ferramentas de análise
da realidade, principalmente sobre a exclusão social. O fato de se
aproximar os serviços da demanda deve ser referenciado a um
processo de inclusão, de ampliação de acessos, e não de apartação,
segregação, que o sentido de focalização, ao se contrapor à
universalização, traz.
Poder-se-ia contra-argumentar que a focalização é necessária para a promoção
da igualdade. Desde que a focalização signifique seletividade – como adequação da
prestação à necessidade – e igualdade material, pode-se concordar com essa
afirmação179. O que se critica é a focalização como forma de estabelecer uma cobertura
residual e ínfima.
O princípio da distributividade orienta a adoção de critérios que abranjam o
maior número possível de beneficiários. Segundo Santos (2003, p. 180), “presentes as
contingências-necessidades, o legislador escolherá as que merecerão proteção, e a
escolha deverá recair sobre aquelas que tiverem maior potencial distributivo”. Esse
princípio coloca a superação de desigualdades no horizonte da seguridade social e
orienta a fixação de prestações pelo ente que as provê, que deverá levar em conta esse
princípio em cotejo com suas possibilidades econômicas.
179
Veja-se um exemplo desse uso: “o enfrentamento da pobreza e da desigualdade é feito de forma
distinta. Enquanto um pressupõe a garantia de direitos universais para assegurar que nenhuma pessoa
chegue ou permaneça no status da pobreza, o outro necessita de ações focalizadas baseadas na idéia de
equidade, para que aqueles que estão em situação de desigualdade se aproximem dos patamares
socioeconômicos daqueles em melhor situação. A pobreza e a desigualdade podem coexistir em uma
mesma sociedade, como acontece no Brasil, e as estratégias para seu enfrentamento também precisam ser
conjugadas” (TRIVELINO, 2006, p. 45-46).
156
Segundo Pontes (2006, p. 144) “a distribuição de renda própria da
distributividade, é um meio eficaz, ainda que parcialmente, de se procurar reduzir as
desigualdades sociais e proporcionar uma maior homogeneidade social em termos
econômico-financeiros, o que se reverterá em uma solidariedade social mais intensa e
com maior coesão e harmonia em sociedade”.
Entre todos os princípios da seguridade social, seletividade e distributividade
são os princípios que de forma mais contundente determinam o caráter emancipador ou
não das políticas de assistência social.
3.8.2.4 Irredutibilidade do valor dos benefícios
A irredutibilidade do valor dos benefícios representa um desdobramento do
princípio da segurança jurídica, impedindo que os benefícios sejam diminuídos e
privem seus titulares de rendimentos que, muitas vezes, são essenciais à sua
sobrevivência. Além de preservar o valor nominal, cuida-se de um comando voltado a
preservar o valor real dos benefícios pagos no âmbito da seguridade social.
Esse princípio não impede que benefícios erroneamente calculados sejam
revistos, inclusive com eventual cobrança de valores pagos a mais, uma vez que a
atenção à legalidade também é inafastável. Para tanto, porém, deve atentar para os
prazos para revisão dos atos de que decorram efeitos favoráveis aos destinatários
(Decreto n. 20.910/32, art. 1º, Lei n. 8.213/91, art. 103-A e Lei n. 9.784/99, arts. 53 e 54).
3.8.2.5 Equidade na forma de participação no custeio
A equidade na forma de participação no custeio destina-se a respeitar, em
primeiro lugar, a capacidade contributiva de todos os agentes responsáveis pelo
financiamento da seguridade social. Em segundo lugar, permite que alguns agentes
contribuam em maior medida, conforme o risco da atividade exercida, por exemplo.
Nisso há também expressão da solidariedade que rege a seguridade social, já que parte
157
dos destinatários desse sistema não chega a contribuir – ao menos não diretamente –
para o custeio do sistema.
3.8.2.6 Diversidade da base de financiamento
A diversidade da base de financiamento impõe que a seguridade social seja
financiada por uma pluralidade de fontes. Essa pluralidade é essencial para a higidez do
sistema, resguardando-o em caso de oscilações que atinjam um ou alguns segmentos
específicos. Ademais, trata-se de princípio essencial para que os serviços de saúde e
assistência social sejam prestados em caráter universal e independentemente de
contribuição.
Na esteira desse princípio, o artigo 195, caput, da Constituição Federal preceitua que a
seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante
recursos orçamentários da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e das
contribuições sociais indicadas em seus incisos. Ao dispor dessa maneira, o constituinte
retoma a ideia de solidariedade que orienta o sistema de seguridade social. Ao
estabelecer que a sociedade financiará toda a seguridade – e não apenas o sistema
previdenciário, que é contributivo – resgata-se a necessidade de Estado e sociedade civil
proporcionarem proteção a todos os seus membros.
Segundo Ibrahim (2010, p. 77), por força do princípio da diversidade da base
de financiamento, “qualquer proposta de unificação das contribuições sociais em uma
única, como se tem falado, é evidentemente inconstitucional, além de extremamente
perigosa para a seguridade social”.
3.8.2.7 Caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão
quadripartite,
com
participação
dos
trabalhadores,
empregadores,
aposentados e Governo nos órgãos colegiados
O último princípio inscrito no artigo 194 da Constituição Federal diz respeito
ao caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão
158
quadripartite, com participação dos trabalhadores, empregadores, aposentados e
governo nos órgãos colegiados.
A Constituição Federal ampliou os canais de representação de interesses de
diversos segmentos da sociedade civil e criou mecanismos de democratização dos
espaços de formulação de políticas públicas, os quais não se resumem aos tradicionais
instrumentos da democracia representativa.
Emblemáticos dessa inovação são os órgãos colegiados incumbidos da
formulação e do monitoramento de políticas públicas. Por meio desses canais, surgem
importantes espaços de mediação política, debate de ideias e busca de transparência nas
ações do Estado. Isso evidencia também que não há favor em discutir e efetivar direitos
sociais, única explicação que poderia justificar a falta de abertura desses espaços e a
exclusão de sujeitos diretamente interessados na implementação desses direitos.
No âmbito da seguridade social, há diversos órgãos colegiados envolvidos na
formulação e execução das políticas públicas: o Conselho Nacional de Previdência
Social – CNPS (Lei n. 8.213/91, art. 3º), o Conselho Nacional de Assistência Social –
CNAS (Lei n. 8.742/93, art. 17) e os Conselhos de Saúde (Lei n. 8.028/90, art. 23, III, a,
Lei n. 8.080/90, art. e Lei n. 8.142/90, art. 1º, II).
Não menos importante, é a previsão contida no artigo 195, § 2º, da
Constituição Federal:
a proposta de orçamento da seguridade social será elaborada de forma
integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde, previdência social e
assistência social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na lei
de diretrizes orçamentárias, assegurada a cada área a gestão de seus recursos.
3.9
Comentários aos artigos 203 e 204 da Constituição Federal
3.9.1 A definição de assistência social à luz da Constituição Federal
A previsão do direito à assistência social na Constituição Federal de 1988
representou avanço ímpar, tanto no sentido de promoção de igualdade e justiça social,
quanto de superação de preconceitos e confusão entre assistência social e caridade.
159
Esse caráter inovador deve-se ao tratamento da assistência social como
conteúdo de política pública, não como atividades e atendimentos eventuais; à rejeição
da subsidiariedade das ações estatais em relação às iniciativas da sociedade civil e da
família; e ao reconhecimento de um novo campo de efetivação dos direitos sociais
(SPOSATI, 2009, p. 14).
Entretanto, os dois únicos dispositivos constitucionais inteiramente dedicados à
assistência social (arts. 203 e 204) têm caráter sucinto e bastante genérico. De forma
não exauriente e pouco sistematizada, identificam os grupos a serem atendidos, traçam
objetivos a serem alcançados e apresentam diretrizes sobre a organização e o
financiamento da assistência social. Com exceção do benefício de prestação continuada,
não há especificação das prestações a serem instituídas ou do nível de segurança social
que se quer alcançar.
Essa falta de clareza na cobertura e no grau de proteção a serem propiciados
pela assistência social é característica que não pode ser dissociada do momento
histórico em que esse direito se consagrou. À época da promulgação da Constituição
Federal, o tema não estava suficientemente amadurecido para que se formasse consenso
a respeito de aspectos específicos dessa política.
Isso não significa, contudo, a impossibilidade de se buscar uma definição para
assistência social à luz da Constituição Federal. Neste passo, cumpre retomar as
considerações apresentadas sobre o conceito de seguridade social, com destaque para o
conceito-chave de necessidades sociais, e conjugá-las com a previsão contida no artigo
203 da Constituição Federal, cujo caput enuncia que “a assistência social será prestada a
quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”.
Pois bem. A assistência social, como integrante da seguridade social, é política
pública de proteção social. Essa política pública possui uma característica que se
apresentou em diversas épocas e sob diversas disciplinas jurídicas: o caráter não
contributivo. Em outras palavras: o acesso aos benefícios, serviços, programas e
projetos da assistência social dispensam qualquer contrapartida pecuniária por parte dos
destinatários dessas prestações.
Passando ao largo de questões relativas à prévia filiação e prévio custeio, a
investidura na titularidade de direitos socioassistenciais pauta-se por outro critério,
igualmente previsto no caput do artigo 203 da Constituição Federal: a necessidade.
160
De fato, a previsão de que “a assistência social será prestada a quem dela
necessitar” elege a necessidade social como critério geral de acesso à assistência, sem
prejuízo de outros requisitos previstos em normas constitucionais e infraconstitucionais.
Isso revela que essa política está comprometida com a satisfação de necessidades
sociais básicas de saúde física e autonomia, passo indispensável à promoção da
participação social de todos os membros da sociedade. Para alcançar esse fim, cabe à
assistência social prover a satisfação de necessidades sociais intermediárias.
Partindo da afirmação feita anteriormente de que a seguridade social deve
protagonizar o atendimento de necessidades intermediárias de promoção de saúde física
e psíquica, segurança econômica e segurança de convívio, cabe verificar se essas três
categorias estão diretamente afetas à assistência social ou se, diversamente, algumas
delas devem ser assumidas por outras políticas da seguridade social.
Segurança econômica e segurança de convívio são necessidades intermediárias
que devem ser atendidas pela assistência social, o que significa que devem servir como
referências para a formulação da política de assistência social.
A segurança econômica é apresentada por Doyal e Gough (1991, p. 210) como
uma necessidade a ser suprida para que a autonomia de um indivíduo seja preservada e
ampliada. Isso porque, segundo os mesmos autores, o desenvolvimento da autonomia
pressupõe que cada pessoa possa planejar seu futuro e buscar os meios para concretizar
esse plano, bem como que possa fazê-lo levando em conta regras, recompensas e
relações que presumivelmente não sofrerão grandes alterações em curto prazo. A
proteção contra a insegurança econômica representa, nessa medida, a proteção contra o
risco objetivo de uma queda inaceitável no padrão de vida de uma pessoa, entendendose como “inaceitável” a situação de ameaça à capacidade de essa pessoa participar da
vida em sociedade (DOYAL; GOUGH, 1991, p. 211)180.
No artigo 203 da Constituição Federal, o escopo de proporcionar segurança
econômica se faz pela promoção da integração ao mercado de trabalho, pela habilitação
e reabilitação de pessoas com deficiência e, de forma mais acentuada, pela garantia de
um salário mínimo às pessoas idosas ou com deficiência sem recursos pessoais ou
familiares para prover a própria manutenção. Aqui, reafirma-se que a diminuição da
segurança econômica propiciada pelo trabalho e pela previdência social resulta no
180
“Let us define economic insecurity as the objective risk of an unacceptable decline in someone’s
standard of living, where ‘unacceptable’ refers to a threat to their capacity to participate in their form of
life” (DOYAL;GOUGH, 1991, p. 211).
161
aumento da demanda pela assistência social, como forma de proteção não contributiva
que mitiga situações de insegurança econômica.
A segurança de convívio – bastante enfatizada na atual redação da Lei
Orgânica de Assistência Social e da Política Nacional de Assistência Social – diz
respeito à participação na vida familiar e comunitária.
A previsão de proteção à infância é uma das manifestações dessa segurança,
recordando-se, a propósito, que Doyal e Gough (1991, p. 204-207) tratam da segurança
na infância como uma categoria específica de necessidades intermediárias. De igual
modo, as previsões concernentes à família, à adolescência e à velhice estão atreladas à
consolidação de redes de apoio próximas, isto é, de relações primárias significativas
(DOYAL; GOUGH, 1991, p. 207-210). As medidas de proteção à maternidade – que se
refletem intensamente no grau de autonomia das mulheres e não se esgotam em medidas
de assistência à saúde de mães e filhos – dizem respeito tanto à opção pela maternidade,
quanto ao apoio dispensado às mães. Já a previsão de integração das pessoas com
deficiência à vida comunitária representa um mandamento no sentido de propiciar o
convívio social em igualdade de condições com o restante da sociedade.
Em todos esses casos, busca-se criar ambientes propícios ao desenvolvimento
da autonomia de cada indivíduo. Tanto situações involuntárias de excessivo isolamento,
quanto de excessiva exposição são fatores de vulnerabilidade que a assistência social
procura contornar. Para isso, não se recorre apenas a medidas de segurança econômica,
pois as necessidades básicas de autonomia e saúde física não são supridas apenas com
recursos financeiros181.
De outra senda, as prestações voltadas diretamente à promoção de saúde física e
psíquica estão afetas, primordialmente, à política pública de saúde, organizada sob a
forma do Sistema Único de Saúde – SUS. Não se trata de desprezar os fatores que elevam
ou reduzem os níveis de saúde da população, como alimentação, moradia, saneamento
básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer e acesso aos bens e
serviços essenciais, previstos expressamente pelo artigo 3º da Lei n. 8.080/90, o que seria
incompatível com o conceito de saúde adotado pela Organização Mundial de Saúde –
OMS (WHO, 1946), a saber: “completo estado de bem-estar físico, mental e social e não
181
A corroborar a constatação de que a assistência social não é destinada apenas às situações de grave
necessidade financeira, recorda-se que o critério de necessidade financeira só está previsto no artigo 203,
inciso V, da Constituição Federal. Nos demais incisos do artigo 203, há um amplo escopo de proteção e
inclusão social. Portanto, ainda que a necessidade de renda seja levada em conta, a necessidade não pode
ser tomada apenas com esse sentido.
162
apenas ausência de doença ou enfermidade”182. Trata-se, sim, de reconhecer a existência
de uma política específica, dotada de técnicas próprias e concebida exatamente para
oferecer cuidados de saúde apropriados a indivíduos e grupos. Conquanto a assistência
social possa oferecer suporte a essa política, não deve encampá-la183.
Dessa forma, a assistência social na Constituição Federal de 1988 corresponde
a uma política pública de proteção social não contributiva, integrante da seguridade
social, que visa prover segurança econômica e segurança de convívio a indivíduos e
grupos, como forma de satisfazer necessidades básicas de saúde física e autonomia e,
com isso, promover a participação social de todos os membros da sociedade184.
Assentadas essas considerações, passa-se a um exame mais detalhado dos
artigos 203 e 204 da Constituição Federal.
3.9.2 As espécies de normas veiculadas no artigo 203 da Constituição Federal
A Constituição Federal apresenta os objetivos da assistência social da seguinte
maneira:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por
objetivos:
182
Dallari e Nunes Júnior (2010, p. 10) destacam a importância do conceito de saúde adotado pela OMS,
nos seguintes termos: “A contribuição conceitual trazida pela Constituição da Organização Mundial de
Saúde é inegável, servindo de referência à operacionalização de diversas leis em matéria sanitária.
Primeiro, porque, ao associar o conceito de saúde ao bem-estar social e psíquico, exprime a idéia do ser
humano em relação com o seu meio. Segundo, porque enaltece a saúde como um bem jurídico não só
individual, mas também coletivo e, nessa medida, de desenvolvimento, acenando para a necessidade da
preservação presente e futura, tanto do indivíduo – tomado isoladamente – como da humanidade.
Assim sendo, muito embora existam objeções teóricas a apontar eventuais inconsistências das asserções
constantes da Constituição da Organização Mundial de Saúde [...], é certo que os dois pontos de partida
apontados cumprem, ainda hoje, relevante função hermenêutica”.
183
Nesse ponto, reconhece-se que, embora a promoção de saúde caiba precipuamente à política pública
de saúde, cabe à assistência social propiciar, por exemplo, rendimentos para que cada pessoa ou família
possa cuidar da própria saúde, buscar atendimento junto ao SUS etc. Por outro lado, a assistência social
não deve ser transformada em uma extensão de políticas de saúde incompletas. É o que ocorre, por
exemplo, quando se espera que a assistência social forneça próteses e órteses às pessoas que não podem
obtê-las, bens que deveriam ser parte do tratamento oferecido pelo sistema de saúde (cf. Lei n. 8.080/90,
arts. 19-M e 19-N).
184
Reiterando a afirmação feita no tópico 3.8.1 a propósito de toda seguridade social, há que se ter claro
que o atendimento a essas necessidades intermediárias pela assistência social deve ser feito de modo a
criar condições para que os indivíduos atendam, por seus próprios meios, suas outras necessidades sociais
ou estejam em condições de serem alcançados por outras políticas sociais.
163
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à
velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência
e a promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios
de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família,
conforme dispuser a lei.
As normas estampadas nos incisos I a V desse artigo têm natureza
programática. Esses incisos estabelecem um escopo geral de proteção social, indicando
situações e grupos que devem receber atenção prioritária. Porém, deixam ao legislador a
tarefa de estabelecer como esses objetivos serão concretizados.
O inciso V, a seu turno, é norma de eficácia limitada (SILVA, 2008), pois
depende de regulamentação infraconstitucional para produzir efeitos. Neste dispositivo,
são identificados os potenciais titulares do benefício e estabelecida a renda mensal que
lhes será devida. Porém, a expressão “conforme dispuser a lei” evidencia a necessidade
de regulamentação infraconstitucional.
3.9.3 O artigo 203 da Constituição Federal e a identificação dos destinatários da
assistência social
A identificação dos sujeitos que serão atendidos pela assistência social é
expressão do princípio da universalidade de atendimento, que impõe a identificação
daqueles que, em igualdade de condições, receberão a mesma proteção social. De outro
giro, as situações de necessidade que ensejarão essa mesma proteção refletem a
aplicação dos princípios de universalidade de cobertura e de seletividade às prestações
da assistência social (cf. supra 3.8.2.1 Universalidade da cobertura e do atendimento e
3.8.2.3 Distributividade e seletividade na prestação dos benefícios e dos serviços).
A descrição das necessidades a serem cobertas pela assistência social ocupa
espaço diminuto no artigo 203 da Constituição Federal: há uma menção genérica no
caput e outra específica no inciso V, esta última tratando da necessidade de renda. No
mais, o artigo 203 prestigia a identificação do público-alvo da assistência social,
164
indicando grupos em condições de vida consideradas vulneráveis, tanto em decorrência
de situações específicas e transitórias, quanto de quadros permanentes. Isso mostra que
os objetivos traçados pelo artigo 203 estão pautados em função dos sujeitos que se quer
atender, e não da cobertura vislumbrada pelo constituinte.
Na identificação do público-alvo da assistência social, é forçoso observar que o
fator de discrímen subjacente ao artigo 203 é fundado na aptidão ou inaptidão para o
trabalho, como aponta Boschetti (2003, p. 46):
a proteção, o amparo, a habilitação e a garantia de uma renda mínima
destinam-se especificamente àqueles cuja situação não lhes permite
trabalhar: maternidade, infância, adolescência, velhice, deficiência.
Àqueles que não se inserem nestas situações, o objetivo é outro: não
assistir, mas promover a integração ao mercado de trabalho.
Assim, o reconhecimento legal da assistência social como direito
retoma e mantém uma distinção entre assistência e trabalho, entre
capazes e incapazes que estrutura secularmente a organização social.
Todavia, o princípio da universalidade, somado ao critério geral de necessidade
como requisito de intervenção da assistência social, conduz à conclusão de que o rol do
artigo 203 não é taxativo. Não se pode afirmar, portanto, que a assistência social se
restringe ao fornecimento de recursos materiais mínimos aos que não podem trabalhar e
fomentar a integração no mercado de trabalho dos que possuam condições para tal185.
Como ensina Silva (2009, p. 95), a interpretação da norma que busca a intenção original
do constituinte resulta na “impossibilidade de atualização do âmbito de proteção dos
direitos fundamentais em uma realidade cambiante” (destaque no original).
A abertura para as hipóteses não contempladas nos incisos do artigo 203 está
no próprio texto constitucional, como aponta Arzabe:
o desamparado mencionado no artigo 6º é toda pessoa que necessite
de alguma espécie de assistência, visto determinar o artigo 203 que a
assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição à seguridade social, residindo aí o
preceito que impõe a universalização da assistência social. A par do
critério genérico da necessidade, que não se resume, mas inclui a
insuficiência de renda, são também índices de atribuição do direito à
assistência a idade – se criança, adolescente ou idoso – a maternidade,
a diretriz de integração social e no mercado de trabalho de todos,
especialmente da pessoa com deficiência. (ARZABE, 2001, p. 195)
185
A título de ilustração, anota-se que a assistência social exerce papel fundamental no atendimento à
população em situação de rua, extremamente vulnerável e desprovida de bens materiais e imateriais para
satisfazer suas necessidades mais elementares, sem exigir o “enquadramento” dessas pessoas entre os
grupos identificados no texto constitucional.
165
A despeito da não taxatividade do rol do artigo 203 da Constituição Federal186,
é essencial compreendê-lo, pois as indicações constantes dos cinco incisos do
dispositivo em comento têm sua razão de ser: identificam grupos e situações de maior
vulnerabilidade. Para tanto, propõe-se a divisão dos objetivos traçados no artigo 203
entre as hipóteses de proteção a grupos considerados vulneráveis e hipóteses orientadas
para a promoção de convívio familiar e social desatreladas de características específicas
do sujeito protegido.
Principia-se pelos grupos identificados por sua maior vulnerabilidade.
Crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência e pessoas à margem do
mercado de trabalho estão mais sujeitas às privações de condições materiais e imateriais
para sobreviver dignamente. Não raro, esses grupos dispõem de poucos instrumentos
para contornar situações de privação material, abandono, maus-tratos e insegurança, que
podem provocar danos irreversíveis. É por isso que não se pode conceber política de
proteção social não contributiva que deixe de lado esses grupos.
A referência a crianças e adolescentes está em consonância com o princípio de
proteção integral às crianças e adolescentes, traçado pelo artigo 227 da Constituição
Federal, com as alterações introduzidas pela Emenda Constitucional n. 65, de 13 de
julho de 2010. No plano infraconstitucional, esse princípio rege o Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei n. 8.069/90).
A Constituição Federal inovou ao dispor sobre a proteção das pessoas idosas
nos artigos 203 e 230187. Entre as novidades, está a criação de um mecanismo de
transferência de renda para essas pessoas: a garantia de um salário mínimo mensal ao
idoso que não possua meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família188. Esse benefício permite tanto o atendimento de necessidades materiais, quanto
a preservação da autonomia dos idosos em relação a terceiros.
186
Nesse sentido, cf. SALES, 2010.
A proteção foi ainda aprofundada pela Política Nacional do Idoso (Lei n. 8.842/94) e pelo Estatuto do
Idoso (Lei n. 10.741/03).
188
Em um estudo sobre conhecimento de idosos a respeito de seus direitos, Martins e Massarollo (2010,
p. 484) destacam que “[p]ossuir renda própria constitui um dos principais instrumentos sociais de
proteção aos idosos. É através dela que o idoso suprirá suas necessidades diárias, manterá sua
independência e garantirá o acesso a outros direitos como a alimentação. O EI [Estatuto do Idoso] rege
que se ‘o idoso ou seus familiares não possuírem condições econômicas de prover o seu sustento, impõese ao Poder Público esse provimento, no âmbito da assistência social’. A melhor forma de prover o
sustento do idoso é garantindo que ele não dependa de outra pessoa para uma atividade tão elementar
como a alimentação, isto é, que ele tenha renda suficiente para viver dignamente”.
187
166
Essas previsões se mostram essenciais no Brasil, pois, à medida que a
população envelhece, ficam nítidas as más condições de vida de muitos idosos, a
insuficiência dos recursos materiais com que contam e as situações de discriminação,
isolamento e violência que vivenciam.
As mesmas considerações concernentes aos idosos são aplicáveis às pessoas
com deficiência, mencionadas nos incisos IV189 e V do artigo 203. A importância do
atendimento às necessidades materiais e imateriais – algumas delas específicas da
deficiência – para a sobrevivência digna e sem isolamento do convívio familiar e social,
enseja a garantia de habilitação e reabilitação. No mesmo sentido, tem-se a garantia do
benefício de prestação continuada que, bem aplicado, contribui para romper o círculo
vicioso em que pobreza e deficiência se retroalimentam.
No que tange à proteção da maternidade, os elogios devem ser acompanhados
de algumas ponderações.
A proteção à maternidade se justifica por se tratar de um ciclo de vida em que a
segurança é fundamental para mães e filhos e porque a maternidade pode interferir na
autonomia e na saúde das mulheres (cf. DOYAL; GOUGH, 1991, p. 217). Além disso,
é medida essencial para promoção de igualdade de gênero, pois contribui para que a
mulher-mãe obtenha meios materiais e imateriais para cuidar de si e de sua prole e seja
inserida em redes de serviços voltadas ao seu desenvolvimento e ao desenvolvimento de
sua prole. Nesse sentido, encontra-se em consonância com a teoria de Doyal e Gough
(1991), que incluem planejamento familiar, gestação e parto seguros entre as
necessidades intermediárias que reforçam a saúde física e a autonomia individual em
todas as culturas.
No entanto, a ausência de disposição análoga relativa à figura paterna ou à
paternidade responsável, inclusive em consonância com o artigo 226, § 7º, da
Constituição Federal, reforça padrões culturais que conferem à mulher maior
responsabilidade pelo cuidado com a família. Com isso, há que se evitar que as medidas
de proteção à maternidade contenham resquícios das práticas protagonizadas pela LBA,
189
A previsão contida no inciso IV poderia ser tratada entre as hipóteses orientadas para a promoção do
convívio familiar e social. Todavia, como é uma hipótese voltada para a proteção de um grupo específico
– o das pessoas com deficiência – optou-se pela inclusão desse inciso na primeira categoria da divisão
proposta.
167
que viam na educação das mães solução para grande parte dos problemas do país. Essa
ambiguidade é captada no registro abaixo:
A mulher, principalmente a mulher-mãe, tem sido a maior responsável
pelos cuidados dos membros da família. Por essa razão, o trabalho
social deve ter presente as relações de gênero e o papel da mulher no
sistema de proteção social.
É preciso considerar que quase 1/3 das famílias brasileiras são
chefiadas por mulheres, e, ao mesmo tempo, é a mulher que
comumente busca serviços sociais públicos, especialmente, no campo
da proteção social, tarefa atribuída na sociedade à figura feminina. [...]
Contudo, ao mesmo tempo em que se observa o importante
reconhecimento da titularidade das mulheres nas Políticas Públicas, é
necessário problematizar o elevado nível de pressão e expectativa da
sociedade quanto às tarefas e funções a serem desempenhadas pela
figura feminina no âmbito familiar. Assim, ingressar na questão de
gênero requer analisar os condicionantes que limitam a participação
masculina e sobrecarregam a mulher e as implicações para o
desenvolvimento do trabalho social no âmbito dos Cras, que precisa
construir espaços de participação e engajamento também da figura
masculina (YAZBEK et al., 2010, p. 173-174).
Prosseguindo, verificam-se hipóteses orientadas para o convívio familiar e social.
A proteção à família prevista no artigo 203, inciso I, se coaduna com as demais
disposições constitucionais que tratam da família como base da sociedade, prevendo
que o Estado dispensar-lhe-á especial proteção. Essa previsão tem como primeira
finalidade proporcionar segurança no âmbito das relações familiares. Além disso, visa
proporcionar segurança entre as famílias e a comunidade em que estão inseridas.
O enfoque na família coloca a matricialidade sociofamiliar como eixo de
atuação da assistência social190, suscitando dúvidas e controvérsias a respeito da forma
pela qual a matricialidade deve ser trabalhada nas políticas de proteção social191.
Ensina Sposati (2009, p. 43) que a matricialidade sociofamiliar:
parte da concepção de que a família é o núcleo protetivo
intergeracional, presente no cotidiano e que opera tanto o circuito de
relações afetivas como de acessos materiais e sociais. Fundamenta-se
no direito à proteção à proteção social das famílias, mas respeitando
seu direito à vida privada.
O modelo de trabalho social com famílias exige o aclaramento prévio
sobre qual é o conceito de capacidade protetiva da família. Ou, ainda,
190
Esse eixo é reforçado pela Política Nacional de Assistência Social – PNAS, analisada adiante.
Bronzo (2009, p. 171) assevera que, embora seja reconhecida a necessidade de se colocar a família
como foco de programas de proteção social, não há conhecimento acumulado o bastante para o
enfrentamento de dois pontos cruciais: quais são os modelos de política de proteção social mais efetivos e
como trabalhar tendo as famílias como foco.
191
168
se o trabalho social com famílias é, em si mesmo, uma das aquisições
do processo de proteção social ou um administrador de acessos
sociais.
Portanto, o reconhecimento de que a família é o primeiro espaço de interação e
proteção do indivíduo deve ser feito em conjunto com a constatação de que muitas
situações de vulnerabilidade do núcleo familiar não decorrem de problemas endógenos.
Neste aspecto, enfatiza-se a importância do desenvolvimento da vida laboral,
como se depreende das previsões de integração ao mercado de trabalho, bem como de
habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à
vida comunitária.
O propósito de inserção dos destinatários da assistência social no mercado de
trabalho, previsto no inciso III do artigo 203, é relevante porque atenta para a
importância do trabalho para o desenvolvimento da sociedade e de cada um de seus
membros. O desempenho de uma atividade laborativa é forma de participação social
que contribui para a autonomia e inclusão social dos trabalhadores e suas famílias.
Desse modo, a qualificação para o trabalho deve ser um dos norteadores da assistência
social.
O problema identificado nesse artigo não está naquilo que ele prevê, mas
naquilo que ele não prevê. Acreditar que a inserção profissional é o horizonte de
qualquer política de assistência social, exceto quando se estiver diante de uma
impossibilidade biológica de trabalhar, é ignorar o desafio que os inempregáveis
representam para as políticas sociais. E quando se fala em inempregabilidade, fala-se de
um fenômeno que atinge pessoas com e sem qualificação profissional, em que pese
atingir estes últimos de forma mais intensa e extensa.
Nesse ponto, cita-se novamente Castel (2010, p. 516), que qualifica como
“expressão de um otimismo superado” a representação do desemprego como um
fenômeno passível de erradicação “à custa de um pouco de boa vontade e de
imaginação”. A constatação de que nem todos conseguirão se integrar ao mercado de
trabalho – a despeito de esforços do Poder Público e dos cidadãos – reforça a
importância da assistência social como mecanismo de compensação do desemprego
estrutural. Ao mesmo tempo, exige reflexão sobre os limites dessa política e os arranjos
necessários para que não se coloquem essas pessoas em situações de quase exclusão.
169
3.9.3.1 Estrangeiros como destinatários da assistência social
Finalizando as considerações pertinentes aos destinatários da assistência social,
cabe dedicar algumas linhas sobre a possibilidade de estrangeiros serem atendidos por
essa política no Brasil.
Ao tratar do direito de pessoas estrangeiras acessarem benefícios, serviços,
programas e projetos da assistência social, percebe-se a persistência de temas que
existem desde os primórdios da assistência à pobreza. Mais uma vez, o aspecto
territorial e a nacionalidade surgem como fatores relevantes para o acesso ou não a
esses direitos.
No âmbito da assistência social, essa questão não deve ter tratamento diverso
daquele que já é dispensado a outros direitos sociais.
Sobre o tema, Silva (2005, p. 339) salienta que a Constituição Federal
expressamente assegura aos estrangeiros residentes no país os direitos individuais
previstos no caput do artigo 5º. O constitucionalista ensina que, embora não trate
explicitamente do acesso aos direitos sociais, a Constituição Federal tampouco os
restringe apenas aos brasileiros. Em suma: o que se pode depreender de sua doutrina é
que estrangeiros residentes no país estão em situação de igualdade com os brasileiros no
que tange ao gozo de direitos sociais.
Tratando especificamente da assistência social, Ibrahim (2010, p. 25-26)
defende a proteção aos estrangeiros residentes no país. O primeiro argumento invocado
é o de que essas pessoas foram acolhidas pelo Estado brasileiro e sua exclusão
vulneraria a necessária abrangência do sistema de seguridade social, fragilizando um
grupo que frequentemente necessita da seguridade social. Outro argumento do autor é o
de que esses estrangeiros participam do custeio do sistema, consumindo produtos ou
eventualmente auferindo renda, isto é, contribuindo direta ou indiretamente com os
tributos que custeiam a seguridade social. Todavia, em sendo estritamente necessário ao
equilíbrio do sistema, admite o autor que a nacionalidade seja invocada como critério de
distinção (IBRAHIM, 2010, p. 26).
Feitos esses registros, que servem como parâmetros para início de reflexão,
entende-se que a análise desta controvérsia deve ir além do que propõem os autores
mencionados.
170
Em relação aos estrangeiros residentes no país – sobretudo quando se trata dos
portugueses que gozam de isonomia de tratamento na forma do artigo 12, § 1º, da
Constituição Federal –, a disciplina constitucional sequer abre espaço para celeuma.
O caráter universal da seguridade social impõe o atendimento a todos os
membros da sociedade brasileira, nacionais ou estrangeiros192. Se o critério de acesso à
assistência social é o da situação de necessidade social e se o atendimento a essas
necessidades está diretamente relacionado com a dignidade da pessoa humana, não há
fundamento constitucional para que a nacionalidade seja o fator de discrímen. As
distinções de tratamento entre nacionais e estrangeiros, no que tange aos direitos
fundamentais, já estão estabelecidas no texto constitucional e não podem ser
validamente modificadas por norma infraconstitucional.
Por conseguinte, ao contrário do que sustenta Ibrahim, nem mesmo a busca do
equilíbrio do sistema pode justificar a adoção da nacionalidade como critério de
distinção. Nesse sentido, sequer é pertinente discutir se os estrangeiros residentes
contribuem direta ou indiretamente para o custeio do sistema. O caráter não contributivo
da assistência social deve afastar qualquer discussão a esse respeito de quem, de fato,
contribui ou não para o custeio de suas ações.
Tampouco é possível sustentar a restrição com base no Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, cujo artigo 2º, inciso III, permite aos países
em desenvolvimento delimitar em que medida direitos econômicos serão assegurados
aos não nacionais193. Isso porque, à luz do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, o
tratado internacional não poderia ser invocado para restringir o espectro de proteção de
um direito fundamental já traçado em sede constitucional.
Chama-se a atenção para o fato de que as normas que elegem a nacionalidade
como requisito de acesso à assistência social são mais rigorosas do que as formas de
proteção fundadas no princípio do domicílio, existentes desde as primeiras formas de
assistência (CASTEL, 2010, p. 69-75). Além disso, essas normas desconsideram a
importância dos movimentos migratórios na composição da sociedade brasileira,
192
Esse parece ser o posicionamento de Santos (2003, p. 173) ao afirmar que “[a] universalidade do
atendimento refere-se ao campo subjetivo da seguridade social, isto é, ao universo de sujeitos de direito à
proteção. São todos aqueles que vivem no território brasileiro” (destaque no original). Como se nota, a
autora não estabelece distinção de nacionalidade ou regularidade da situação do estrangeiro no país.
193
“Art. 2º. 3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos
humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que medida garantirão direitos
econômicos reconhecidos no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais”.
171
movimento esse fomentado pelo Estado brasileiro no interesse de seu crescimento
econômico (ALARCÓN; DINIZ, 2007, p. 48-49).
Na realidade, os argumentos que alimentam essa controvérsia são de ordem
pragmática e financeira, mas não jurídica. O que realmente parece orientar práticas e
interpretações restritivas é a dificuldade de controlar a concessão do benefício
assistencial de prestação continuada em regiões de fronteira com outros países e o
receio do impacto econômico da concessão desses benefícios. Em outras palavras, a
preocupação com fraudes que dizem respeito ao benefício de prestação continuada é o
que provoca a celeuma.
No ordenamento jurídico brasileiro, sucessivos decretos vêm estabelecendo
previsões que, além de inconstitucionais, contrariam o artigo 95 do Estatuto do
Estrangeiro, segundo o qual “o estrangeiro residente no Brasil goza de todos os direitos
reconhecidos aos brasileiros, nos termos da Constituição e das leis”. Essas previsões
excluem os não nacionais do rol de potenciais titulares do benefício de prestação
continuada.
O Decreto n. 6.214/07, na redação original de seu artigo 7º, indicava que
poderia obter benefício de prestação continuada “o brasileiro naturalizado, domiciliado
no Brasil”. Apesar das alterações promovidas pelo Decreto n. 6.564/08, manteve-se a
redação que, interpretada a contrario sensu, exclui o estrangeiro do rol de possíveis
titulares do benefício. Recentemente, o Decreto n. 7.617/11, tornou a modificar a
redação desse artigo e claramente restringiu a proteção aos brasileiros domiciliados no
país, dispondo que “é devido o Benefício de Prestação Continuada ao brasileiro,
naturalizado ou nato, que comprove domicílio e residência no Brasil e atenda a todos os
demais critérios estabelecidos neste Regulamento”.
No Poder Judiciário, diversos precedentes reconhecem aos estrangeiros
residentes no país o direito ao benefício assistencial. As decisões estão fundamentadas
na igualdade entre brasileiros e estrangeiros residentes no país (CF, art. 5º, caput), na
não obrigatoriedade da naturalização do estrangeiro (CF, art. 5º, II), na promoção do
bem de todos sem discriminação quanto à origem (CF, art. 3º, IV) e na universalidade
como princípio de regência da seguridade social. A controvérsia chegou ao Supremo
Tribunal Federal – STF que, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 587.970-4/SP,
172
reconheceu a existência de repercussão geral em torno da matéria, mas ainda não se
pronunciou sobre o tema194.
Mas não basta enfrentar a questão levando em conta apenas os estrangeiros
residentes no Brasil. É necessário refletir sobre a situação dos estrangeiros em situação
irregular no País.
A necessidade de concatenar a assistência social com os objetivos e as
possibilidades do Estado brasileiro poderia conduzir, como primeira resposta, à conclusão
pela impossibilidade de serem essas pessoas beneficiárias da assistência social.
Todavia, o grande número de pessoas que saem de seus países em busca de
melhores condições de vida, ingressam ilegalmente no território nacional e, não raro,
são submetidas às piores condições de vida imagináveis, impõe outro olhar para essa
situação. Negar a assistência social às pessoas que estão no território nacional em
situação irregular equivale a transferir para a assistência social a solução para a
fiscalização inadequada ou insuficiente do ingresso de pessoas no país.
Semelhante posicionamento é incompatível com os compromissos assumidos
pelo Estado brasileiro perante a ONU contra o crime organizado internacional. O país
ratificou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional,
promulgada no país pelo Decreto n. 5.015/04, e os protocolos adicionais a esta
convenção, relativos ao combate ao tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e
aérea e à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres
e Crianças, promulgados, respectivamente pelos Decretos n. 5.016/04 e 5.017/04. No
artigo 4º dos dois protocolos há previsão de que, além da prevenção, investigação e
repressão das infrações definidas em cada um deles, haverá proteção às vítimas dessas
infrações.
Para concluir o tema em pauta, vale citar as considerações tecidas por Alarcón
e Diniz (2007, p. 58) sobre o Estatuto do Estrangeiro e sobre o anteprojeto para suas
alterações, as quais se aplicam perfeitamente ao tema em pauta:
Voltando ao Estatuto brasileiro [Estatuto do Estrangeiro, Lei n. 6.815,
de 19.08.1980], a redação do seu artigo 95 ainda estabelece uma
discriminação que não se sustenta tendo em vista a Constituição em
194
ASSISTÊNCIA SOCIAL – GARANTIA DE SALÁRIO MÍNIMO A MENOS AFORTUNADO –
ESTRANGEIRO RESIDENTE NO PAÍS – DIREITO RECONHECIDO NA ORIGEM – Possui
repercussão geral a controvérsia sobre a possibilidade de conceder a estrangeiros residentes no país o
benefício assistencial previsto no artigo 203, inciso V, da Carta da República. (Repercussão Geral no
Recurso Extraordinário n. 587.970-4/SP. Relator: Min. Marco Aurélio. Data da decisão: 25 jun. 2009.
Diário da Justiça Eletrônico 186, 01 out. 2009. Publicação em: 02 out. 2009). Informação atualizada em:
01 mar. 2012.
173
vigor. Diz o artigo que “O estrangeiro residente no Brasil goza de
todos os direitos reconhecidos aos brasileiros, nos termos da
Constituição e das Leis”. Na verdade, uma hermenêutica ampliativa,
ancorada na Carta Magna de 1988, indica que todo estrangeiro, seja
residente ou portador de qualquer das modalidades de visto permitidas
pelo próprio Estatuto e, ainda, aquele que carece de documentos – este
último com maior razão, pois sua fragilidade é ainda maior – deve ser
amparado pelo Estado diante de qualquer arbitrariedade, facilitando-se
os meios, recursos e garantias necessárias para fazer valer seus
direitos fundamentais.
Interessa lembrar que desde o ano 2003 tramita um Anteprojeto de lei,
apresentado pelo Executivo, para modificação do Estatuto do
Estrangeiro. Embora a proposta contenha modificações importantes,
algumas questões merecem críticas. Nesse sentido, assunto polêmico
encontra-se no artigo 11 do Anteprojeto, que permite a concessão de
visto para estudo, para o artista ou desportista, para trabalho com
vínculo empregatício ou funcional, correspondente de jornal, revista,
rádio ou televisão, ministro de confissão religiosa, voluntário de
organização não-governamental ou assistentes técnicos para
transferência de tecnologia ou marítimo, sem vínculo empregatício no
Brasil.
Observe-se que a concessão do visto leva em conta uma certa
atividade da qual se deduz que o indivíduo, ainda que sem vínculo
empregatício, apresenta condições de participar, sob uma condição
prevista, na sociedade brasileira. Deve-se considerar, entretanto, a
preocupação com os estrangeiros que não possuem qualificação
alguma, muitos deles contratados em regime de escravidão ou de
semi-escravidão e que não podem ser abandonados a sua sorte. O
Estatuto deve oferecer uma saída a tal situação, porque sua força de
trabalho já se encontra inserida no contexto brasileiro, gerando
riquezas. Não é possível retirar deles o seu caráter de participantes da
comunidade de esforços para o progresso brasileiro.
3.9.4 O caráter não contributivo da assistência social
Ao contrário do que se passa no âmbito do Regime Geral de Previdência Social,
o acesso às prestações da assistência, assim como da saúde, independe de prévia filiação
e contribuição por parte do beneficiário ou do instituidor do benefício.
Porém, como adverte Sposati (2009, p. 22), o caráter não contributivo não
significa uma doação financiada com recursos públicos. A autora registra que a
assistência social nasceu sob inspiração liberal, concepção segundo a qual os recursos
públicos só podem ser destinados a uma pessoa quando ela própria já não tenha
condições pessoais de suprir as próprias necessidades e esteja em situação de risco. E,
174
mesmo se superadas visões residuais da assistência social, permanece a necessidade de
justificar os critérios de alocação de recursos escassos, o que remete novamente à
aplicação do princípio da seletividade das prestações da assistência social. Dizendo de
outro modo, o caráter não contributivo é contrabalanceado pela identificação objetiva
das situações de necessidade social e pela seletividade das prestações.
3.9.5 A subsidiariedade da assistência social: um princípio inadequado
O princípio da subsidiariedade situa a assistência social como sistema de apoio
residual em relação aos rendimentos decorrentes do trabalho, da previdência social ou
de outras fontes, como o apoio familiar. Sob essa óptica, a assistência social só seria
passível de acionamento quando as demais possibilidades de sobrevivência digna já
tivessem sido exauridas.
Embora historicamente consagrada como característica da assistência social195,
a subsidiariedade não é expressa no texto constitucional. Por isso, cabe verificar se há
normas constitucionais que sustentam esse postulado.
A consagração do valor social do trabalho como fundamento da República
Federativa do Brasil (CF, art. 1º, IV) e do primado do trabalho como base da ordem
social (CF, art. 193) poderia, em princípio, levar à afirmação de que a assistência social
só tem lugar quando exauridas as possibilidades de satisfação de necessidades sociais
por meio do trabalho, da previdência social e do apoio familiar196.
195
Olea e Plaza (2000, p. 589-590) identificam a subsidiariedade em relação a outras formas de
satisfação de necessidades como uma das características da assistência social. Como afirmado na
introdução deste trabalho, discorda-se da adoção da subsidiariedade como traço obrigatório da assistência
social. Desse modo, há mudança de posicionamento quanto a esse aspecto em contraste com trabalho
anterior de mesma autoria (SALES, 2010).
196
Eis porque boa parte os programas de assistência social, quando não voltados aos incapazes para o
trabalho, têm por objetivo inserir seus beneficiários no mercado de trabalho. Isso explica também porque
programas assistenciais são concebidos de forma a oferecer a seus destinatários condições materiais
piores do que as que seriam obtidas mediante trabalho: o pressuposto de que haveria alternativa à
disposição daqueles que se valem da assistência social. Como afirma Sposati (1987, p. 12), “o horizonte
de alguns serviços considerados de assistência social é o de fazer seu usuário deixar de ser usuário. Há
uma lógica invertida, se comparada à dos demais serviços públicos, onde o usuário deve cultivar o hábito
de sê-lo: não faltar à escola, comparecer às consultas médicas, obedecer ao calendário de vacinas, etc.”
175
Pressupõe-se aqui que o sustento proveniente do trabalho de cada pessoa ou de
seu núcleo familiar constitui a regra; a exceção seria o não trabalho ou a insuficiência de
ganhos, mesmo quando houvesse trabalho.
Corroborando o entendimento favorável à subsidiariedade, poderiam ainda ser
invocados argumentos como a ausência de contribuição direta do beneficiário para o
custeio da assistência social. Nesse ponto, chama a atenção que o caráter não
contributivo seja invocado como argumento em prol da subsidiariedade da assistência
social, mas não de outras políticas destinadas à efetivação de direitos sociais.
De fato, políticas como saúde e educação públicas – que prescindem de
contrapartida por parte do destinatário de suas prestações –, não são objeto de reflexões
que privilegiem a capacidade financeira como critério de acesso. Embora todas sejam
políticas orientadas pelo critério da universalidade, assim como a assistência social,
parece que apenas nesta última o caráter não contributivo é destacado. Além da
comparação nem sempre apropriada em relação à previdência social, o que se manifesta
é também a ideia de que a assistência social ainda é uma versão da filantropia.
Essa compreensão da assistência social como um sistema de “reserva” precisa
ser revista. A uma, porque a ausência de trabalho para todos e a suficiência dos ganhos
obtidos por aqueles que desempenham algum labor destroem o pressuposto da
subsidiariedade. Conforme o desemprego se torna estrutural e cresce o contingente de
pessoas não absorvidas pelo sistema capitalista, não se pode supor que todo indivíduo
adulto tem, de fato, a possibilidade de obter renda por seus próprios meios. Esse é,
como mencionado na introdução, um dos grandes desafios das políticas sociais. A duas,
porque a subsidiariedade só leva em conta a situação de falta ou insuficiência de rendas.
Assim, é ideia inadequada para lidar com as outras necessidades e, por conseguinte,
com as outras seguranças que a assistência social deve enfrentar. Além do mais, a falta
ou insuficiência de renda reconduz à assistência social ao papel de reparação de danos,
mas nada esclarece sobre o papel de prevenção a ser desempenhado.
Quando se afirma que a seguridade social está estruturada para atender
necessidades sociais básicas e a assistência de forma ainda mais explícita, conclui-se
que não há cobertura sem demonstração de necessidade. A seguridade social só é
acionada quando faltam os meios para fazer frente à escassez. Nessa medida, pode-se
entender que qualquer intervenção da seguridade social vem depois que falham as
tentativas de suprir necessidades básicas.
176
Portanto, se se retomar a noção de necessidade social com os parâmetros dados
por Almansa Pastor (1991) e Sposati (2009) – escassez de um bem, associada ao desejo
de superação, que tem origem nas relações em sociedade e visa ao acesso às condições
de vida componentes da dignidade humana, da justiça social e dos direitos e da
vigilância social –, somada à preocupação específica de prevenir ou contornar situações
de escassez e precariedade, a ideia de subsidiariedade se mostra supérflua na
compreensão da assistência social e, mais do que isso, leva a percepções equivocadas.
Quer-se dizer com isso que os princípios de universalidade e seletividade, em
cotejo com a finalidade da seguridade social – propiciar a satisfação de necessidades
sociais –, já são bastantes para a compreensão da assistência social à luz do sistema
constitucional brasileiro. Por conseguinte, a subsidiariedade deve ser afastada como
critério de análise, seja por não trazer nenhum dado que contribua para a compreensão
desse tema, seja pelo risco de ofuscar o papel da assistência social no Brasil.
3.9.6 O Artigo 204 da Constituição Federal
O artigo 204 da Constituição Federal versa sobre o financiamento e a
organização da assistência social. Como algumas de suas disposições foram tratadas em
passagens anteriores deste trabalho, o presente tópico visa apenas retomar os conteúdos
abordados e registrar as previsões que ainda não foram abordadas.
Esse dispositivo constitucional inova ao prever fontes de custeio para a
assistência social, dispondo que o custeio das ações governamentais da assistência
social deve ser feito com recursos do orçamento da seguridade social. Ressalva ainda a
possibilidade de outras fontes de custeio adicionais.
Independentemente do caput do artigo 204, a conclusão de que a assistência
social é custeada com recursos do orçamento da seguridade social já decorreria do
artigo 195 da Constituição Federal. Saliente-se, porém, que o artigo 167, inciso XI, da
Carta Magna, introduzido pela Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de
1998, veda a “utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata
o art. 195, I, a, e II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios
177
do regime geral de previdência social de que trata o art. 201”197. Como o dispositivo
trata de pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, há,
de antemão, uma restrição aos recursos destinados à saúde e à assistência social.
Ainda no que concerne ao financiamento da assistência, o parágrafo único do
artigo 204 faculta aos Estados e Distrito Federal a vinculação de até cinco décimos por
cento de sua receita tributária líquida a programas de apoio à inclusão e promoção social.
Essa vinculação foi prevista pela Emenda Constitucional n. 42, de 19 de dezembro de
2003, que, para assegurar a efetiva destinação desses percentuais às políticas de
assistência, vedou a aplicação de tais recursos para pagamento de: (a) “despesas com
pessoal e encargos sociais”; (b) “serviço da dívida”; (c) “outra despesa corrente não
vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados” (CF, art. 204, p.ú., I, II e III).
No tocante à organização da assistência social, o artigo 204, inciso I, reafirma o
caráter democrático e descentralizado da gestão, tema abordado anteriormente (cf. supra
3.8.2.7 Caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão
quadripartite, com participação dos trabalhadores, empregadores, aposentados e
Governo nos órgãos colegiados). Além disso, esse artigo veicula uma regra de
repartição de competências pouco ortodoxa, que atribui funções análogas às esferas
estadual e municipal e às entidades beneficentes e de assistência social (cf. supra 3.7
Competências constitucionais em matéria de assistência social).
Essa previsão indica a importância que a esfera privada teve e tem em matéria
de assistência social, papel esse que deve ser prestigiado e respeitado. Porém, o
reconhecimento de um direito social à assistência social impõe a repactuação da relação
entre o Estado e essas entidades. Para tanto, o primeiro passo é reconhecer a
responsabilidade estatal pelas políticas púbicas de assistência social, ainda que também
se reafirme a importância das entidades privadas.
Em outras palavras: a atuação do Estado em matéria de assistência social deve
se distanciar definitivamente das práticas assistencialistas e de benemerência. Conceber
a assistência social como política pública exige a rejeição de práticas que se aproximem
da lógica do favor, seja pelo Estado, seja por quem lhe faça as vezes. Esse é, por certo,
um dos grandes desafios que surgem nessa seara.
197
Antes mesmo dessa Emenda Constitucional, Balera (1997, p. 189) já se posicionava contra a medida,
sustentando que: “Não se conforma com o objetivo primeiro do sistema de seguridade social a
especialização das fontes de financiamento, segundo a qual a receita proveniente da folha de salários
deverá financiar somente a previdência social enquanto as contribuições sobre o lucro líquido e sobre o
faturamento custeariam dispêndios outros”.
178
Por outro lado, destaca-se a participação da população na organização e
execução dessas ações.
A coordenação das ações da assistência social pela esfera federal e o
financiamento dessas atividades com recursos provenientes do orçamento da seguridade
contribuem para que a assistência se concretize em todas as unidades da federação. A
atribuição do papel de coordenação e elaboração de normas gerais à esfera federal
revela-se essencial para a criação de uma concepção nacional de assistência. De outro
giro, a elaboração de medidas que levem em conta peculiaridades regionais é essencial
ao desenvolvimento de políticas de assistência. Essencial, pois a descentralização,
observadas as diretrizes nacionais, permite o desenvolvimento de estratégias locais e
possibilita maior controle pela população diretamente interessada.
4
A DISCIPLINA INFRACONSTITUCIONAL DA ASSISTÊNCIA
SOCIAL NA VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988
4.1
O período de 1988 a 1993
A positivação do direito à assistência social na Constituição Federal encerrou o
ciclo da luta por seu reconhecimento como direito e abriu um novo ciclo, visando à sua
regulamentação e consequente efetivação. Na nova fase, os obstáculos enfrentados
tornaram a mostrar a coexistência de concepções díspares e conflituosas sobre a
assistência social. Ademais, indicaram que essa política era considerada menos
importante do que as demais políticas da seguridade social.
A promulgação da lei orgânica de assistência social representou, por si só, uma
grande batalha198.
O artigo 59 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT
estipulou o prazo máximo de seis meses para apresentação dos projetos de lei atinentes
à organização da seguridade social e aos planos de custeio e benefícios. O Congresso
Nacional teria então seis meses para apreciar esses projetos que, após aprovados, seriam
implantados progressivamente nos dezoito meses subsequentes. Ao todo, o Estado
brasileiro teria trinta meses para implantar o novo sistema de seguridade social, prazo
encerrado em 05 de abril de 1991.
Contudo, todas as leis orgânicas da seguridade social foram promulgadas após
os prazos previstos no ADCT. Sua implantação, igualmente, extrapolou o prazo de
dezoito meses. Ainda assim, a assistência social ficou em pior situação do que a saúde e
a previdência.
A Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080) é de 19 de setembro de 1990. O Plano de
Custeio da Seguridade Social e o Plano de Benefícios da Previdência Social (Leis n. 8.212
e n. 8.213, respectivamente) datam de 24 de julho de 1991199. Já a promulgação da Lei
198
O registro dessas dificuldades é essencial para que se tenha clareza sobre o significado de cada
conquista da assistência social no Brasil; com menor profundidade, discorreu-se sobre esse tema em
trabalho anterior de mesma autoria (cf. SALES, 2011, p. 4).
199
Quanto ao Plano de Benefícios da Previdência Social, os efeitos da demora em sua aprovação foram
mitigados pela previsão contida em seu artigo 145, prevendo que os efeitos da nova lei retroagiriam a 05
180
Orgânica de Assistência Social – LOAS (Lei n. 8.742) ocorreu em 07 de dezembro de
1993, mais de cinco anos depois da promulgação da Constituição Federal.
As dificuldades, contudo, não se resumiram à demora na aprovação da LOAS.
Antes de 1993, tentou-se a aprovação do Projeto de Lei n. 3.099/89. Elaborado
sob coordenação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, do Instituto de
Planejamento de Gestão Governamental – IPLAN e da Universidade de Brasília
(NEPPOS-NESP/CEAM) (PEREIRA, 1996, p. 70), o projeto procurava definir a
assistência social e seus beneficiários, conectando-os com os objetivos previstos na
Constituição Federal.
O artigo 1º do projeto definia assistência social como “política social que
provê, a quem necessitar, benefícios e serviços para o acesso à renda mínima e o
atendimento das necessidades humanas básicas, historicamente determinadas”. Seu
artigo 2º estabelecia que “as ações da assistência social devem cumprir, no âmbito de
sua competência, os objetivos constitucionais de erradicação da pobreza e de proteção à
família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice e à pessoa portadora de
deficiência, entre outros”. Já o artigo 3º indicava como “beneficiário da assistência
social todo cidadão em situação de incapacidade ou impedimento permanente ou
temporário, por razões sociais, pessoais ou de calamidade pública, de prover para si e
sua família, ou ter por ela provido, o acesso à renda mínima e aos serviços sociais
básicos”.
O projeto foi apresentado pelo Deputado Raimundo Bezerra, que justificou sua
iniciativa com o não cumprimento, pelo Poder Executivo, do prazo previsto no artigo 59
do ADCT200. O texto sofreu modificações, com a apresentação de substitutivo pelo
Deputado Nelson Seixas201. Após sua aprovação no Congresso Nacional, o Presidente
da República, à época Fernando Collor de Mello, vetou integralmente o Projeto de Lei.
O teor do veto denota a concepção da assistência social como política residual,
destinada apenas aos casos extremos de necessidade:
Entre as razões ponderáveis que justificam o veto, sobressai a da
existência, na proposição, de dispositivos contrários aos princípios de
uma assistência social responsável, que se limite ao auxílio às
camadas mais carentes da população, sem, contudo, comprometer-se
de abril de 1991, com o consequente recálculo dos benefícios de prestação continuada concedidos pela
Previdência Social a partir daquela data.
200
Diário do Congresso Nacional, Seção I, 28.06.1989, p. 5614.
201
Diário do Congresso Nacional, Seção I, 27.10.1989, p. 12447 apud RAICHELIS, 2011, p. 97, nota de
rodapé n. 35.
181
com a complementação de renda, papel este de uma ação voltada à
maior disponibilidade de empregos e salários dignos.
Na verdade, além de ampliar a concessão do benefício de renda
mensal vitalícia para carentes, idosos ou deficientes, estes sem limite
de idade, o projeto cria um abono-família mensal, com característica
de complemento da renda familiar, incompatível com os fins da
assistência social, de complexa operacionalização e absorvedor de
uma gama de recursos que afetaria a dotação para outras ações mais
condizentes com os princípios insculpidos na Constituição202.
Esse veto não foi recebido com placidez pelas entidades e movimentos
organizados em torno da assistência social (GOMES, 2000, p. 23). Prova dessa
afirmação foi o fato de que, em 08 de novembro de 1993, um grupo de pessoas com
deficiência impetrou o Mandado de Injunção n. 448-0/RS insurgindo-se contra a falta de
norma regulamentadora do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal. A ação foi só
foi julgada em 05 de setembro de 1994, após a promulgação da LOAS, ocasião em que
a mora foi reconhecida, dando-se ciência ao Congresso Nacional. A proximidade entre a
data de impetração do mandado de injunção e a promulgação da LOAS demonstra que a
provocação do STF catalisou a aprovação da lei.
À dificuldade na implementação da nova política, agrega-se a corrosão da
antiga estrutura. Em 1991, a LBA viveu outra crise, desencadeada por denúncias de
corrupção e desvios de recursos203. Iniciaram-se então medidas de redimensionamento
de seu quadro de pessoal, com remanejamento de parte dos cargos para os quadros de
outros órgãos públicos, o que ocorreu até sua extinção em 1995.
Em meio a essa movimentação, passou despercebida a definição de assistência
social contida no artigo 4º do Plano de Custeio da Seguridade Social (Lei n. 8.212/91), a
saber: “política social que provê o atendimento das necessidades básicas, traduzidas em
proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice e à pessoa
portadora de deficiência, independentemente de contribuição à Seguridade Social”.
Trata-se de definição formulada em conformidade com a Constituição Federal, que
reconhece a assistência social como política de satisfação de necessidades básicas, sem
aludir à controvertida noção de mínimos sociais. Essa norma não teve desdobramentos
relevantes, tendo sido somente em 1993 que a assistência social se estruturou sob a nova
ordem constitucional.
202
Mensagem de Veto n. 672, publicada no Diário Oficial da União, 18 set. 1990, p. 1782, destacou-se.
Citando uma notícia do Jornal do Brasil, veiculada em 11 de abril de 1993, Lima (1994, p. 33) registra
ainda que “avaliação efetuada pelo então Presidente da LBA, Paulo Sotero, revela corrupção e
empreguismo, apontando a existência de um índice de 25% de servidores ociosos na instituição”.
203
182
4.2
A Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS
4.2.1 Observações iniciais
A promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei n. 8.742/93) em 07
de dezembro de 1993 resultou de intensa mobilização e debates em torno do modelo de
assistência social a ser construído no país (GOMES, 2000, p. 22-23).
Observa Pereira (1996, p. 66) que as oposições e embates que precederam a
aprovação da lei transparecem nos dispositivos promulgados, especialmente nas
imprecisões existentes em seu texto, por exemplo, no que tange aos serviços
assistenciais, programas de assistência social e projetos de enfrentamento de pobreza.
Comparada ao texto do Projeto de Lei n. 3.099/89, a redação original da LOAS
apresenta menor grau de detalhamento no tocante às prestações devidas no âmbito da
assistência social, objetivos e destinatários.
Foram necessários ainda outros dezoito anos para que o país avançasse na
regulamentação da assistência social. As mudanças substanciais dessa LOAS, com
detalhamento das ações de assistência social e estruturação de um sistema de assistência
social, somente ocorreram com a promulgação das Leis n. 12.435, de 06 de julho de
2011, e n.12.470, de 31 de agosto de 2011204. Esses dois diplomas incorporaram
definições, objetivos e diretrizes extraídos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência, nas Conferências de Assistência Social, na Política Nacional de
Assistência Social de 2004 (PNAS/2004) e na Norma Operacional Básica da
Assistência Social (NOB/SUAS).
Portanto, embora a LOAS atualmente estabeleça uma estrutura complexa e
bastante avançada em termos de proteção social, há que se considerar que as principais
normas responsáveis por esse progresso são muito recentes. Dizendo de outro modo – e
recordando que o escopo deste estudo é examinar a trajetória da assistência social no
204
Como já informado na Introdução, as principais inovações promovidas por essas duas leis foram
tratadas em um artigo publicado em outubro de 2011, sob o título A construção da assistência social no
Brasil: notas sobre as Leis n. 12.435/11 e 12.470/11. Nesse trabalho, discorreu-se sobre a LOAS antes e
depois dessas alterações, buscando estabelecer uma comparação entre os textos (SALES, 2011). Já o
artigo A assistência social na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Assistência Social (SALES,
2010) foi elaborado muito antes de tais alterações legislativas.
183
Brasil –, constatar que atualmente a LOAS contém uma boa disciplina da assistência
social não deve encobrir o fato de que durante quase duas décadas essa regulamentação
não existiu.
Atualmente, a LOAS reproduz dispositivos constitucionais e detalha a política
de assistência social ao longo de seis capítulos, subdivididos em: definições e objetivos;
princípios e diretrizes; organização e gestão; benefícios, serviços, programas e projetos
de assistência social; financiamento da assistência social; e disposições gerais e
transitórias.
4.2.2 Definições e objetivos
A assistência social é definida na LOAS da seguinte forma:
Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é
Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos
sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de
iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às
necessidades básicas.
Em consonância com o texto constitucional, essa definição ratifica a assistência
social como um direito e seu atendimento como um dever estatal. Importa mencionar
também que, tratando da assistência social como política, rejeitam-se soluções ad hoc.
Da mesma forma, o dispositivo reafirma a participação da sociedade que constava do
artigo 204 da Constituição Federal.
Desse
dispositivo,
extraem-se
dois
elementos
fundamentais
para
a
compreensão da segurança que a assistência social deve proporcionar: mínimos sociais e
necessidades básicas.
A ideia de mínimos sociais sempre oferece dificuldades, pois não há clareza
sobre o que significam os “mínimos” que devem ser assegurados. Mesmo quando se
trata de provisões cuja necessidade não se discute – como alimentação, moradia e
vestuário –, não há consenso sobre as formas de seu atendimento. Encerra-se a
discussão sobre quais direitos são assegurados e abre-se o debate em torno da extensão
dessa proteção.
184
Com percuciência, Novais (2010, p. 205) aponta que mínimos sociais, mais do
resolver problemas, servem como ponto de partida para controvérsias sobre o conteúdo
de direitos sociais:
este modelo do mínimo social acaba por funcionar como menor
denominador comum das várias aproximações ao tema da dimensão
positiva dos direitos sociais ou como momento de confluência que
esconde divergências mais profundas no domínio dos direitos sociais.
Na realidade, mais que resolução do problema, o modelo funciona
como compromisso ou pausa no desacordo, já que tudo acaba por ser
remetido para os planos nunca perfeitamente esclarecidos do que se
entende por mínimo social e, sobretudo, de como deve o poder
judicial, no respeito pela separação de poderes, chegar à respectiva
fixação num processo de competição/controlo relativamente às
escolhas alternativas da responsabilidade do poder político. Apelos ou
remissões convergentes para o princípio da dignidade da pessoa
humana, como critério ou padrão da delimitação de um tal mínimo,
inscrevem-se nas mesmas dificuldades, uma vez que obrigam, a
seguir, a apurar quais as exigências e sentido normativo do princípio
da dignidade da pessoa humana neste domínio.
Em grande medida, o modelo funciona bem nos casos extremos,
produzindo resultados na base de um controlo de evidência, o que, não
deixando de ser positivo, tem um alcance jurídico-constitucional
relativamente reduzido, na medida em que os casos extremos ou as
chamadas violações grosseiras são, regra geral, em Estado de Direito
democrático, resolúveis no quadro e através dos meios do debate e
luta política, sem necessidade de recurso à via judicial.
Analisando o artigo 1º da LOAS, Pereira (2006, p. 26-27) direciona uma dura
crítica à ideia de mínimos, fazendo questão de apontar a diferença entre mínimo e
básico. Em síntese, a autora sustenta que os mínimos estão relacionados a prestações
ínfimas, ao passo que o adjetivo básico designa aquilo que é primordial. Ao final,
conclui que a proteção social só cumpre sua finalidade quando os mínimos dão lugar às
prestações básicas. Nas palavras da autora (PEREIRA, 2006, p. 26-27):
Mínimo e básico são, na verdade, conceitos distintos, pois, enquanto o
primeiro tem conotação de menor, de menos, em sua acepção mais
ínfima, identificada com patamares de satisfação de necessidades
básicas que beiram a desproteção social, o segundo não. O básico
expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base
de sustentação indispensável e fecunda ao que a ela se acrescenta. Por
conseguinte, a nosso ver, o básico que na LOAS qualifica as
necessidades a serem satisfeitas (necessidades básicas) constitui o prérequisito ou as condições prévias suficientes para o exercício da
cidadania em acepção mais larga. Assim, enquanto o mínimo
pressupõe supressão ou cortes de atendimentos, tal como propõe a
185
ideologia liberal, o básico requer investimentos sociais de qualidade
para preparar o terreno a partir do qual maiores atendimentos podem
ser prestados e otimizados. Em outros termos, enquanto o mínimo
nega o “ótimo” de atendimento, o básico é a mola mestra que
impulsiona a satisfação básica de necessidades em direção ao ótimo.
Sendo assim, mínimo e básico, ao contrário do que tem sido apressada
e mecanicamente inferido do texto da LOAS, são noções assimétricas,
que não guardam, do ponto de vista empírico, conceitual e político,
compatibilidades entre si. Isso nos leva a concluir que, para que a
provisão social prevista na LOAS seja compatível com os
requerimentos das necessidades que lhe dão origem, ela tem que
deixar de ser mínima ou menor, para ser básica, essencial ou
precondição à gradativa otimização da satisfação dessas necessidades.
Só então será possível falar em direitos fundamentais, perante aos
quais todo cidadão é titular, e cuja concretização se dá por meio de
políticas sociais correspondentes.
Essa acurada crítica mostra a dificuldade em se conceber prestações mínimas
que possam resultar em medidas de proteção social, emancipação e redução de
desigualdades.
Aliás, não parece ser sem razão que o texto da LOAS utiliza um conceito
controvertido e até antagônico em relação ao conceito de necessidades básicas.
Um forte indício de que o emprego do termo mínimos sociais serviu como a
“pausa no desacordo”, para usar as palavras de Novais (2010, p. 205), é o fato de que a
definição de assistência social adotada pelo Projeto de Lei n. 3.099/89 empregava os
conceitos de renda mínima e atendimento de necessidades humanas básicas, mas não se
referia a mínimos sociais. O artigo 4º da Lei n. 8.212/91 também se vale da expressão
necessidades básicas, sem qualquer menção a mínimos sociais. Essas duas definições
ofereciam menor margem para interpretações restritivas da assistência social e a
mensagem de veto ao Projeto de Lei n. 3.099/89 claramente reagiu à proposta de uma
política social abrangente. Portanto, como dito anteriormente, a redação do artigo 1º da
LOAS representou o consenso possível, não a proposta ideal.
De toda sorte, a previsão de mínimos sociais contida na lei exige
interpretação
compatível
com
as
outras
disposições
constitucionais
e
infraconstitucionais que tratam da proteção social. Embora Pereira (2006, p. 26-27)
sustente que a noção de mínimo social não se coaduna com a de necessidades básicas
– e sendo certo que não são expressões equivalentes – entende-se ser imprescindível
conferir àquela expressão um significado que não vá de encontro aos objetivos da
186
República Federativa do Brasil. Em suma: é realmente necessário buscar uma
interpretação que concilie os dois conceitos205.
Nesse esforço interpretativo, mínimos sociais devem ser dimensionados de
forma a assegurarem o atendimento de necessidades básicas. As necessidades básicas,
a seu turno, correspondem às necessidades sociais básicas, sem as quais não se pode
falar em exercício de cidadania e vida autônoma.
Na linha do que se defende neste trabalho, Stuchi (2010, p. 168) sustenta que
os mínimos sociais correspondem a “um conjunto de direitos prestacionais que visam a
condições dignas de sobrevivência” e não a prestações ínfimas. Segundo essa autora,
haveria uma distorção da ideia de mínimo social do que resultaria a concepção de que
“qualquer serviço ou benefício que o Estado ou as entidades de assistência social
ofertassem, deveria ser considerado suficiente, ainda que não fosse suficiente para
garantir acesso a outros direitos ou a uma existência digna”.
Com relação aos objetivos da assistência social, originalmente o artigo 2º da
LOAS reproduzia o artigo 203 da Constituição Federal. Com o advento da Lei
n. 12.435/11, definiu-se que a assistência social tem por objetivo promover proteção
social, vigilância socioassistencial e defesa de direitos. Analisados adiante (cf. infra
4.2.4.2 Proteção social, defesa de direitos e vigilância socioassistencial na LOAS), esses
três vetores estavam enunciados na PNAS/2004 sob a forma de referências para
organização dos serviços socioassistenciais no Sistema Único de Assistência Social –
SUAS. As finalidades constantes do artigo 203 estão agora indicadas como formas
prioritárias de proteção social.
O parágrafo único do artigo 2º da LOAS – tanto na redação original, quando na
atual redação – prevê a intersetorialidade da assistência social, visando “ao
enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos sociais, ao provimento de condições
para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais”. Trata-se, na
205
“Supõe-se que o legislador, e também o escritor do Direito, exprimiram o seu pensamento com o
necessário método, cautela, segurança; de sorte que haja unidade de pensamento, coerência de idéias;
todas as expressões se combinem e harmonizem. Militam as probabilidades lógicas no sentido de não
existirem, sobre o mesmo objeto, disposições contraditórias ou entre si incompatíveis, em repositório, lei,
tratado, ou sistema jurídico.
Não raro, à primeira vista duas expressões se contradizem; porém, se as examinarmos atentamente (subtili
animo), descobrimos o nexo culto que as concilia. É quase sempre possível integrar o sistema jurídico;
descobrir a correlação entre as regras aparentemente antinômicas.
Sempre que descobre uma contradição, deve o hermeneuta desconfiar de si; presumir que não
compreendeu bem o sentido de cada um dos trechos ao parecer inconciliáveis, sobretudo se ambos se
acham no mesmo repositório” (MAXIMILIANO, 2005, p. 110).
187
realidade, não de um objetivo da assistência social, mas sim de uma diretriz de
organização da assistência social. Sendo assim, a previsão estaria melhor situada no
artigo 5º da LOAS.
Segundo Chaves (2008, p. 101), a intersetorialidade nos programas da
seguridade social é exigência que decorre do artigo 194 da Constituição Federal. Tratase, segundo ele, de característica acentuada na assistência social, o que favorece ações
transformadoras. Porém – prossegue o autor –, essa característica permite concepções
de assistência social como mecanismo supletivo, influenciadas por uma concepção
paternalista arraigada. Nas palavras do autor (CHAVES, 2008, p. 109):
A intersetorialidade se refere a uma característica marcante das ações
de assistência social que é a aglutinação de outras políticas públicas
para sua realização satisfatória. A vantagem está na possibilidade de
ações mais complexas e transformadoras da realidade de cidadãos
materialmente excluídos. A desvantagem localiza-se no fato de que,
devido sua compreensão histórica, a assistência social é vista como
tendo um papel supletivo e secundário, quando deveria ser vista como
um instrumento de coordenação de outras políticas para consecução
de suas finalidades emancipatórias.
Já no artigo 3º, ao invés de definições relativas à assistência social
propriamente dita, foram definidos os agentes dessas políticas, a saber: entidades e
organizações de assistência social. Originalmente essas entidades foram definidas como
“aquelas que prestam, sem fins lucrativos, atendimento e assessoramento aos
beneficiários abrangidos pela lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de seus
direitos”. Com a alteração da Lei n. 12.435/11 a definição foi aclarada, para fazer
constar que o atendimento e assessoramento em questão poderiam ser prestados
“isolada ou cumulativamente” por essas entidades e organizações, não sendo obrigatório
que se dirigissem apenas aos beneficiários abrangidos pela LOAS. Além disso, foram
também definidas entidades de atendimento, de assessoramento e de defesa e garantia
de direitos206.
206
“Art. 3o Consideram-se entidades e organizações de assistência social aquelas sem fins lucrativos que,
isolada ou cumulativamente, prestam atendimento e assessoramento aos beneficiários abrangidos por esta
Lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de direitos. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 1o São de atendimento aquelas entidades que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam
serviços, executam programas ou projetos e concedem benefícios de prestação social básica ou especial,
dirigidos às famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade ou risco social e pessoal, nos termos
desta Lei, e respeitadas as deliberações do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), de que
tratam os incisos I e II do art. 18. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)“.
§ 2o São de assessoramento aquelas que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços e
executam programas ou projetos voltados prioritariamente para o fortalecimento dos movimentos sociais
188
A nova redação do artigo 3º deixa claro o propósito de zelar para que entidades
e organizações de assistência social atuem em consonância com as diretrizes do
Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, passo essencial para que a política
de assistência social se desenvolva de forma ordenada, eficiente e atenta à sua natureza
de direito social.
4.2.3 Princípios e diretrizes
O artigo 4º da LOAS enuncia quatro princípios da assistência social.
O primeiro deles é a supremacia do atendimento às necessidades sociais.
Trata-se de um desdobramento da dignidade da pessoa humana como fundamento da
República. Reconhece-se que a identificação e satisfação de necessidades sociais
básicas não podem ser realizadas pela perspectiva de rentabilidade econômica, como
também não podem ser relegadas à iniciativa privada ou à sorte da população. Esse
princípio impõe cuidado na apropriação, pelo setor público, de práticas da iniciativa
privada voltadas à redução de custos ou à alocação lucrativa de recursos econômicos.
O segundo princípio é a universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o
destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas. A partir da
análise de Boschetti (2003, p. 83), a universalização “indica que a assistência social
deve ser entendida e implementada tendo como horizonte a redução das desigualdades
sociais”, o que significa que “é preciso agir no sentido de buscar a inclusão de cidadãos
no universo de bens, serviços e direitos que são matrimônio de todos”.
Esse princípio pressupõe o reconhecimento de que a satisfação de necessidades
sociais básicas é essencial para que indivíduos, famílias e grupos possam ser inseridos
nas redes de proteção de outros direitos sociais. Externa-se aqui o intento de criarem-se
condições para a plena participação na vida comunitária, à noção de cidadania
estampada no artigo 1º da Constituição Federal.
e das organizações de usuários, formação e capacitação de lideranças, dirigidos ao público da política de
assistência social, nos termos desta Lei, e respeitadas as deliberações do CNAS, de que tratam os incisos I
e II do art. 18. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 3o São de defesa e garantia de direitos aquelas que, de forma continuada, permanente e planejada,
prestam serviços e executam programas e projetos voltados prioritariamente para a defesa e efetivação
dos direitos socioassistenciais, construção de novos direitos, promoção da cidadania, enfrentamento das
desigualdades sociais, articulação com órgãos públicos de defesa de direitos, dirigidos ao público da
política de assistência social, nos termos desta Lei, e respeitadas as deliberações do CNAS, de que tratam
os incisos I e II do art. 18. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
189
O terceiro princípio é o respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao
seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e
comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade. A ideia
expressa nessa norma representa outra ruptura com antigos padrões da assistência
social. Ao se reforçar a autonomia, impede-se que a assistência social ostente papel
moralista, voltado a incutir padrões de comportamento considerados “desejáveis” em
seus destinatários. O estímulo ao convívio familiar e comunitário favorece o
desenvolvimento de potencialidades, rejeita medidas segregacionistas e indica respeito à
vida privada e aos laços construídos pelos cidadãos usuários da assistência. A proibição
de medidas vexatórias significa o fim de práticas estigmatizantes ou de modernas
versões das “provas de indigência” aplicadas na seleção das pessoas assistidas nas
Workhouses (cf. supra 1.4 A evolução do modelo britânico de proteção social).
O quarto princípio veiculado é a igualdade de direitos no acesso ao
atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às
populações urbanas e rurais. Esse postulado decorre do texto constitucional, que
determina a observância desses princípios em relação a toda a seguridade social. Tem-se
aqui mais uma forma de prestígio à isonomia.
O quinto princípio é a ampla divulgação dos benefícios, serviços, programas e
projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos
critérios para sua concessão. Eis uma importante garantia de aplicação dos princípios
de publicidade e impessoalidade que regem a administração pública. E – mais
importante – trata-se da imposição da adoção de medidas que levem ao conhecimento
dos cidadãos a existência de direito à proteção social não contributiva, reconhecendo-a
como um dever estatal e não de qualquer benesse.
O artigo 5º da LOAS estabelece ainda três diretrizes. As duas primeiras
correspondem ao artigo 204 da Constituição Federal: descentralização políticoadministrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e comando único
das ações em cada esfera de governo, bem como participação da população, por meio
de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações
em todos os níveis. A terceira delas – primazia da responsabilidade do Estado na
condução da política de assistência social em cada esfera de governo –, embora
decorra do simples fato de a assistência social ser um direito social, tem grande valor
simbólico, pois evidencia que eventuais articulações entre Estado e sociedade civil não
implicam desresponsabilização do primeiro.
190
4.2.4 Organização e gestão
O terceiro capítulo da LOAS é dedicado à organização e à disciplina da gestão
da assistência social em todo o país. Neste capítulo concentram-se as principais
mudanças efetuadas pela Lei n. 12.435/11, concernentes à instituição do Sistema Único
de Assistência Social – SUAS. Destaque-se que a criação e a implantação desse sistema
foi prevista na Política Nacional de Assistência Social de 2004 – PNAS/2004 e na
Norma Operacional Básica da Assistência Social de 2005 – NOB/SUAS; portanto a
criação do SUAS antecede a alteração legislativa.
4.2.4.1 A gestão das ações na área da assistência social
Esse capítulo se inicia com o artigo 6º, que retoma as diretrizes de
descentralização e participação na organização de assistência social, a qual deverá ser
estruturada sob a forma do Sistema Único de Assistência Social – SUAS207.
O SUAS é composto pelos entes federativos, por seus respectivos conselhos de
assistência social e pelas entidades e organizações de assistência social abrangidas pela
LOAS (art. 6º, § 2º). As ações a serem desenvolvidas deverão ser voltadas para proteção
à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, tendo o território como
base de organização (art. 6º, § 1º).
A gestão operacionalizada pelo SUAS visa definir responsabilidades e
promover ações articuladas, o que significa uma resposta à dispersão e superposição de
ações anteriormente criticada.
A ideia de articulação fica clara a partir do exame dos objetivos do SUAS, a
saber: (a) consolidação da gestão compartilhada, do cofinanciamento e da cooperação
207
Considerando o propósito de demonstrar a difícil construção da assistência social como um direito no
Brasil, observa-se que o SUAS, embora previsto na PNAS/2004 e regulamentado pela NOB/SUAS em
2005, só foi incorporado ao texto da LOAS no ano de 2011, por força da Lei n. 12.435/11. Em
comparação, o Sistema Único de Saúde encontra-se previsto na Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080)
desde 1990, como se depreende de seu artigo 4º, caput (“Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde,
prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e
indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS)”).
191
técnica entre os entes federativos que operam a proteção social não contributiva (art. 6º, I);
(b) integração da rede pública e privada de serviços, programas, projetos e benefícios de
assistência social (art. 6º, II); (c) fixação de responsabilidades dos entes federativos na
organização, regulação, manutenção e expansão das ações de assistência social (art. 6º,
III); (d) definição dos níveis de gestão, respeitadas as diversidades regionais e
municipais (art. 6º, IV); (e) implementação da gestão do trabalho e a educação
permanente na assistência social (art. 6º, V); (f) fixação de gestão integrada de
serviços e benefícios (art. 6º,. VI); (g) garantia de vigilância socioassistencial e de
direitos (art. 6º, VII).
Originalmente, o parágrafo único do artigo 6º estabelecia que a coordenação da
Política Nacional de Assistência Social – PNAS caberia ao Ministério do Bem-Estar
Social. Com a extinção desse ministério em 1995, essa atribuição passou ao Ministério da
Previdência e Assistência Social. Atualmente, a União coordena essa política por meio do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS (art. 6º, § 3º).
Fruto da Lei n. 12.435/11, os artigos 6-A a 6-E da LOAS absorveram diversos
postulado da PNAS de 2004. Os novos artigos estabelecem níveis de proteção social
diferenciados conforme a situação de necessidade, em clara expressão do princípio da
seletividade das prestações da seguridade social. Ademais, disciplinam de que modo a
proteção será ofertada pelo Poder Público e entidades privadas de assistência social.
4.2.4.2 Proteção social, defesa de direitos e vigilância socioassistencial na LOAS
Na organização da rede socioassistencial impõe-se a observância dos três
objetivos mencionados no artigo 2º da LOAS, isto é, promoção de proteção social,
vigilância socioassistencial e defesa de direitos.
O objetivo de proteção social está relacionado “à garantia da vida, à redução de
danos e à prevenção da incidência de riscos” (art. 2º, I) e tem em mira a consecução das
finalidades previstas no artigo 203 da Constituição Federal. Para tanto, a assistência
social deverá ser organizada em consonância com o tipo de atenção proporcionada.
No atual sistema, a proteção social está subdividida em básica e especial. A
proteção social básica corresponde ao “conjunto de serviços, programas, projetos e
192
benefícios208 da assistência social que visa a prevenir situações de vulnerabilidade e
risco social por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do
fortalecimento de vínculos familiares e comunitários” (art. 6º-A, I). A proteção social
especial corresponde ao “conjunto de serviços, programas e projetos que tem por
objetivo contribuir para a reconstrução de vínculos familiares e comunitários, a defesa
de direito, o fortalecimento das potencialidades e aquisições e a proteção de famílias e
indivíduos para o enfrentamento das situações de violação de direitos” (art. 6º-A, II).
A diferença fundamental entre a cobertura proporcionada pela proteção social
básica e pela proteção social especial está na complexidade da situação a ser enfrentada.
No nível básico, a intervenção da assistência é preventiva, ao passo que, no nível
especial, tem viés reparador. Em vista da diferença entre as necessidades a serem
atendidas, as formas de atuação devem ser diferentes nesses níveis, mas ambas adotam
estratégias de desenvolvimento de potencialidades e aquisições, bem como de
valorização de vínculos familiares e comunitários.
A cada tipo de proteção social corresponde um tipo diferente de unidade de
atendimento; os Centros de Referência de Assistência Social – CRAS e os Centros de
Referência Especializados de Assistência Social – CREAS (art. 6º-C) são responsáveis,
respectivamente, pela proteção social básica e pela proteção social especial. Essas
unidades devem contar com instalações adequadas ao atendimento prestado (art. 6º-D) e
equipes de referência dimensionadas de acordo com o tamanho da população atendida e
com o atendimento assegurado (art. 6º-E, p.ú.).
O CRAS é definido como “unidade pública municipal, de base territorial,
localizada em áreas com maiores índices de vulnerabilidade e risco social, destinada à
articulação dos serviços socioassistenciais no seu território de abrangência e à prestação
de serviços, programas e projetos socioassistenciais de proteção social básica às
famílias” (art. 6º-C, § 1º).
O CREAS é “unidade pública de abrangência e gestão municipal, estadual ou
regional, destinada à prestação de serviços a indivíduos e famílias que se encontram em
208
Observe-se que os benefícios da assistência social integram o nível básico de proteção social. Isso
quer dizer que a concessão dos diversos tipos de benefícios assistenciais não deve estar condicionada à
demonstração de que o requerente se encontra em situação de penúria ou de completa ruptura de vínculos
com sua família e sua comunidade. A prova de uma situação que pode resultar em desproteção social
deveria ser o bastante para que o direito a essas prestações fosse reconhecido.
193
situação de risco pessoal ou social, por violação de direitos ou contingência, que
demandam intervenções especializadas209 da proteção social especial” (art. 6º-C, § 2º).
O objetivo de defesa de direitos “visa a garantir o pleno acesso aos direitos no
conjunto das provisões socioassistenciais” (art. 2º, III). Vale dizer que a rede
socioassistencial não deve apenas respeitar, mas deve também promover os direitos dos
cidadãos. Portanto, no interior dessa rede, o atendimento deve se pautar pela perspectiva
do direito e não do favor, do que resulta a especial atenção para os princípios do artigo
4º da LOAS.
Por fim, a vigilância socioassistencial atua como uma função exercida com o
intuito de promover os objetivos de proteção social e a defesa de direitos.
Nos termos da LOAS, a vigilância socioassistencial “visa a analisar
territorialmente a capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de
vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos” (art. 2º, II). Como explica
Sposati (2009, p. 41), o termo designa a “capacidade de detectar, monitorar as
ocorrências de vulnerabilidade e fragilidade que possam causar a desproteção, além da
ocorrência de riscos e vitimizações”. Portanto, não se trata de uma atuação policialesca
ou de controle dos cidadãos, mas sim de monitoramento das situações que ensejam a
proteção assistencial.
Apesar de ser identificada como objetivo da assistência social, a vigilância não
é um fim em si mesmo. É uma atividade exercida com o fito de identificar as hipóteses
de intervenção da assistência, orientada a partir de análises territoriais, para então
acionar as medidas de proteção ou defesa de direito pertinentes. A vigilância é função,
dotada de caráter instrumental, e não um objetivo.
É de se ressaltar que esse artigo reafirma a territorialização da política de
assistência social, traço presente desde as primeiras formas de assistência. Contudo, ao
contrário do que se verificava nos primórdios da assistência, a intervenção no território
atualmente não visa isolar ou confinar os destinatários da assistência em seus locais de
domicílio. O escopo dessas medidas é concentrar esforços e recursos nas regiões onde
as vulnerabilidades são maiores, visando superar situações de desvantagens que atingem
comunidades inteiras – e não tratar as situações de necessidade como casos isolados –,
conferindo a seus habitantes “a possibilidade de mobilizar-se para não permanecerem
209
Um exemplo de especialização dessas unidades é o “Centro-Pop” – Centro de Referência
Especializado para População em Situação de Rua, unidade destinada ao atendimento de pessoas em
situação de rua.
194
eternamente cativos deste ambiente” (CASTEL, 2011, p. 107)210. Além disso, uma
intervenção mais ativa, com a criação de soluções para problemas específicos de cada
região e busca, pelo Poder Público, dos potenciais destinatários da assistência social
recomenda essa proximidade.
4.2.4.3 As competências dos entes federativos na área da assistência social
Além da União, Estados, Municípios e Distrito Federal devem fixar suas
Políticas de Assistência Social (LOAS, art. 8º). Porém, essa disposição se faz
acompanhar de previsões destinadas a evitar desarticulação de ações socioassistenciais
entre os entes federativos.
Nesse sentido, o artigo 11 prevê que “as ações das três esferas de governo na
área de assistência social realizam-se de forma articulada”. Prevê ainda que, nessas
ações, a coordenação e elaboração de normas gerais competem à esfera federal, ao
passo que a coordenação e execução dos programas competem aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios, em suas respectivas esferas. O final desse dispositivo
reproduz parcialmente o inciso I do artigo 204 da Constituição Federal, deixando de
aludir às entidades beneficentes e de assistência social. Nesse ponto, a lei corretamente
reafirma a primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de
assistência social.
As competências entre os entes federativos estão nos artigos 12 a 15 da LOAS,
que tratam, respectivamente, das competências da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios.
Nos termos do artigo 12, incumbe à União: (a) conceder e manter os
benefícios de prestação continuada previstos no artigo 203, inciso V, da Constituição
Federal211 (inciso I); (b) cofinanciar o aprimoramento da gestão, serviços, programas e
210
Essas afirmações são feitas com amparo na análise de CASTEL (2011) a respeito de problemas
enfrentados pelas minorias étnicas na França. Depreende-se de suas considerações que a territorialização
de políticas sociais, além de beneficiar grupos nas piores posições da estrutura social, torna visíveis as
relações entre questão social e questão racial, consideração que pode ser ampliada para as relações entre
questão social e outras formas de discriminação. Respondendo às críticas a estas políticas, o autor afirma
que o que se deve criticar “é a insuficiência de seus meios e de suas modalidades excessivamente
limitadas de aplicação” (CASTEL, 2011, p. 105) e não seus princípios.
211
O artigo 35 da LOAS estabelece que o órgão da Administração Pública Federal responsável pela
coordenação da PNAS – atualmente, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – é
195
projetos da assistência social em âmbito nacional, assegurando-se que esse
cofinanciamento se faça por transferências automáticas (inciso II); (c) prestar ações
assistenciais de caráter emergencial juntamente com os demais entes federativos
(inciso III); (d) monitorar e avaliar a política de assistência social e assessorar os
demais entes federativos para seu desenvolvimento (inciso IV).
Dentro da estrutura da Administração Pública Federal, a PNAS está incluída no
âmbito de competência do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(Lei n. 10.683/03, art. 27, II, “c”), a quem incumbe, nos termos do artigo 19 da LOAS:
(a) coordenar e articular as ações no campo da assistência social; (b) propor a PNAS ao
Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, suas normas gerais, bem como os
critérios de prioridade e de elegibilidade, além de padrões de qualidade na prestação de
benefícios, serviços, programas e projetos; (c) prover recursos para o pagamento dos
benefícios de prestação continuada; (d) elaborar e encaminhar a proposta orçamentária
da assistência social, em conjunto com as demais da Seguridade Social; (e) propor os
critérios de transferência dos recursos de que trata a LOAS; (f) proceder à transferência
dos recursos destinados à assistência social, na forma prevista na lei; (g) encaminhar à
apreciação do CNAS relatórios trimestrais e anuais de atividades e de realização
financeira dos recursos; (h) prestar assessoramento técnico aos Estados, ao Distrito
Federal, aos Municípios e às entidades e organizações de assistência social; (i) formular
política para a qualificação sistemática e continuada de recursos humanos no campo da
assistência social; (j) desenvolver estudos e pesquisas para fundamentar as análises de
necessidades e formulação de proposições para a área; (k) coordenar e manter
atualizado o sistema de cadastro de entidades e organizações de assistência social, em
articulação com os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; (l) articular-se com os
órgãos responsáveis pelas políticas de saúde e previdência social, bem como com os
demais responsáveis pelas políticas socioeconômicas setoriais, visando à elevação do
patamar mínimo de atendimento às necessidades básicas; (m) expedir os atos
responsável por operar os benefícios de prestação continuada previstos na lei. Esse dispositivo permite
ainda que a operacionalização se faça com o concurso de outros órgãos do Governo Federal, conforme
disponha o regulamento da lei. Nessa atribuição, destaca-se o papel do INSS, responsável por conceder e
manter esse benefício desde o advento de seu primeiro regulamento (Decreto n. 1.744/95, art. 7º), o que
inclui as atribuições de avaliar a condição de deficiência e de hipossuficiência dos requerentes, bem como
de realizar as reavaliações periódicas previstas na LOAS (art. 20, § 3º). Por isso mesmo, há anos a
jurisprudência brasileira entende que o INSS é o único legitimado para demandas que versem sobre a
concessão desse benefício, afastando a legitimidade da União para integrar o polo passivo dessas
demanda.
196
normativos necessários à gestão do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS, de
acordo com as diretrizes estabelecidas pelo CNAS; (n) elaborar e submeter ao CNAS os
programas anuais e plurianuais de aplicação dos recursos do FNAS.
Os Estados, cujas atribuições estão previstas no artigo 13, têm atribuições de
apoio técnico e financeiro a outros agentes responsáveis pela implantação das políticas
de assistência social, mas não são responsáveis pelo pagamento de benefícios
assistenciais. Quanto ao financiamento, os Estados são responsáveis por destinar
recursos financeiros aos Municípios visando ao custeio dos benefícios eventuais (inciso
I). Também por transferências automáticas, devem cofinanciar o aprimoramento da
gestão, os serviços, os programas e os projetos de assistência social em âmbito regional
ou local (inciso II). Ainda conforme dito anteriormente, ações assistenciais de caráter de
emergência também cabem à esfera estadual (inciso III).
A cooperação que os Estados devem manter com outros atores da política de
assistência social está prevista nos incisos IV e VI do artigo 13. O primeiro estabelece
que os Estados devem estimular e apoiar técnica e financeiramente as associações e
consórcios municipais na prestação de serviços de assistência social; o outro inciso
dispõe que os Estados devem monitorar e avaliar a política de assistência social e
assessorar os Municípios para seu desenvolvimento.
Passando-se ao artigo 15, chega-se às competências municipais. Os Municípios
concorrem com os demais entes federativos nas ações assistenciais de caráter de
emergência (inciso IV). Ao lado dos Estados e Distrito Federal, são responsáveis pelo
aporte de recursos para custeio dos benefícios eventuais (inciso I), ao que se agrega a
incumbência de pagar os benefícios de auxílio-natalidade e auxílio-funeral (inciso II).
São ainda competentes para executar os projetos de enfrentamento da pobreza (inciso III)
– com ou sem parceria com entidades da sociedade civil –, prestar os serviços
assistenciais previstos no artigo 23 da LOAS (inciso V), cofinanciar o aprimoramento da
gestão, os serviços, os programas e os projetos de assistência social em âmbito local
(inciso IV) e realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social em
seu âmbito (inciso VII).
No artigo 14, encontram-se as competências do Distrito Federal, equivalentes
às dos Municípios.
197
4.2.4.4 Entidades e organizações da assistência social
A LOAS regulamenta a atuação das entidades e organizações da assistência
social, explicitando a primazia estatal na definição das políticas de assistência.
Em seu artigo 10º, prevê que os entes federativos podem celebrar convênios
com entidades e organizações de assistência social. Porém, esses convênios devem estar
em harmonia com os Planos de Assistência Social aprovados pelos Conselhos de
Assistência Social do ente federativo que pretende celebrar o convênio. Além disso, a
atuação dessas entidades e organizações deverão se pautar pelas normas estabelecidas
pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS (art. 7º).
Quanto ao funcionamento dessas entidades, o artigo 9º, caput, da LOAS exige
prévia inscrição no Conselho de Assistência Social do Município ou do Distrito Federal,
os quais devem fiscalizar tais entidades (§ 2º). No caso de entidades que atuem em mais
de um Município no mesmo Estado, ou em mais de um Estado ou Distrito Federal, a
inscrição e funcionamento será objeto de regulamento na esfera federal (§ 1º). O § 4º do
artigo 9º garante às entidades e organizações de assistência social o direito de recorrer
aos Conselhos Nacional, Estaduais, Municipais e do Distrito Federal para tratar de
direitos relativos às sua inscrição e funcionamento.
As entidades privadas podem tanto podem proporcionar serviços e ações de
proteção social básica quanto especial. Em todos os casos deverão estar vinculadas ao
SUAS, o que pressupõe o preenchimento de todos os requisitos previstos na LOAS. A
integração ao SUAS se faz mediante convênios, contratos, acordos ou ajustes com o
Poder Público e isso garante a tais entidades o acesso ao financiamento de suas ações
pelo Poder Público (art. 6º-B).
A irregularidade na aplicação dos recursos públicos transferidos a essas
entidades é sancionada com o cancelamento de sua vinculação ao SUAS, sem prejuízo
de apuração de eventual responsabilidade civil e criminal (art. 36).
4.2.4.5 As instâncias deliberativas do SUAS
A Constituição Federal assegurou a participação da sociedade civil nos loci de
definição e monitoramento das políticas públicas, fazendo-o de forma expressa no
tocante à seguridade social.
198
Em relação à assistência social, a participação foi garantida nas três esferas de
governo e se materializou por meio da criação dos Conselhos de Assistência Social.
Esses conselhos foram originalmente definidos pelo artigo 16 da LOAS como
“instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo de assistência social,
de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil”.
Atualmente, são identificados como “instâncias deliberativas do SUAS, de caráter
permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil”.
Existem, portanto, quatro instâncias, todas elas vinculadas aos respectivos
órgãos gestores da assistência social: o Conselho Nacional de Assistência Social –
CNAS, os Conselhos Estaduais de Assistência Social, o Conselho de Assistência Social
do Distrito Federal e os Conselhos Municipais de Assistência Social.
A instituição dos Conselhos Estaduais de Assistência Social, do Conselho de
Assistência Social do Distrito Federal e dos Conselhos Municipais de Assistência Social
deve ser feita por lei específica dos respectivos entes federativos (art. 17, § 3º).
Os conselhos têm competência para acompanhar a execução da política de
assistência social, e apreciar e aprovar a proposta orçamentária, levando em
consideração as diretrizes das conferências de assistência social de sua esfera de atuação
(art. 17, § 4º). Todavia, a LOAS interfere na composição desses órgãos ao condicionar o
repasse de recursos à existência e funcionamento de Conselho de Assistência Social,
composto por governo e sociedade civil de forma paritária (art. 30, I).
Na esfera federal, podem ser identificados dois fóruns de participação na política
de assistência social: o CNAS e as Conferências Nacionais de Assistência Social.
4.2.4.5.1 O Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS
Instituído pelo artigo 17 da LOAS, o CNAS é o órgão superior de deliberação
colegiada da Política Nacional de Assistência Social.
Trata-se de órgão de composição paritária, que conta com 18 membros e seus
suplentes. Nessa composição, estão presentes dois grandes grupos: 9 representantes
governamentais – incluindo um representante dos Estados e outro dos Municípios – e 9
representantes da sociedade civil, escolhidos entre representantes dos usuários,
199
organizações de usuários, entidades e organizações de assistência social, bem como
trabalhadores do setor. A escolha dos representantes da sociedade civil deve ser feita
“em foro próprio sob fiscalização do Ministério Público Federal” (art. 17, § 1º, II).
Os representantes assim escolhidos são indicados ao órgão da Administração
Pública Federal responsável pela coordenação da Política Nacional de Assistência
Social e nomeados pelo Presidente da República para mandatos de dois anos, sendo
permitida uma recondução. Entre esses integrantes, um é eleito para presidir o CNAS
em mandato anual, também sendo permitida uma recondução. O CNAS conta ainda
com uma Secretaria Executiva (art. 17, § 3º).
Raichelis (2011, p. 43) ressalta que a composição paritária de uma instância
deliberativa representa um grande avanço, sobretudo quando comparada com os
conselhos consultivos ou não paritários, desprovidos de competência para deliberar
sobre matérias concernentes a seu campo de ação e não representativos dos segmentos
organizados da sociedade civil. Segundo a autora (RAICHELIS, 2011, p. 44), a
implantação dos conselhos de assistência social:
pode significar um impulso na publicização dessa política, na medida
em que se consiga deslocar a assistência social do campo da regulação
ad hoc, em que sempre esteve, para a cena pública e que se contemple
a definição de regras e critérios públicos, mediadores das relações
entre o público-estatal e o público-privado.
As competências do CNAS estão proclamadas no artigo 18 da LOAS, mas
também se fazem presentes em outras disposições esparsas dessa lei.
Parte substancial dessas atribuições está relacionada com a formulação e
implementação da Política Nacional de Assistência Social, a saber: (a) aprovar a PNAS;
(b) normatizar as ações e regular a prestação de serviços de natureza pública e privada
no campo da assistência social; (c) zelar pela efetivação do sistema descentralizado e
participativo de assistência social; (d) desde a realização da II Conferência Nacional de
Assistência Social em 1997, convocar ordinariamente a cada quatro anos212 a
Conferência Nacional de Assistência Social, que tem a atribuição de avaliar a situação
da assistência social e propor diretrizes para o aperfeiçoamento do sistema; (e) apreciar
e aprovar a proposta orçamentária da Assistência Social a ser encaminhada pelo órgão
da Administração Pública Federal responsável pela coordenação da Política Nacional de
212
Na redação original da LOAS, a convocação teria periodicidade bienal. Com a Lei n. 9.720, de 30 de
novembro de 1998, a periodicidade passou a ser quadrienal.
200
Assistência Social; (f) aprovar critérios de transferência de recursos para os Estados,
Municípios e Distrito Federal; (g) acompanhar e avaliar a gestão dos recursos, bem como
os ganhos sociais e o desempenho dos programas e projetos aprovados; (h) estabelecer
diretrizes, apreciar e aprovar os programas anuais e plurianuais do Fundo Nacional de
Assistência Social – FNAS; (i) por decisão da maioria absoluta de seus membros,
respeitados o orçamento da seguridade social e a disponibilidade do FNAS, propor ao
Poder Executivo a alteração dos limites de renda mensal per capita definidos no § 3º do
artigo 20 da LOAS (art. 39)213.
Há competências relacionadas à organização e funcionamento do CNAS,
como: (a) indicar o representante do CNAS junto ao Conselho Nacional da Seguridade
Social (art. 18, XII); (b) elaborar e aprovar seu regimento interno (art. 18, XIII);
(c) divulgar, no Diário Oficial da União, todas as suas decisões, bem como as contas
do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS e os respectivos pareceres emitidos
(art. 18, XIV).
Outro importante grupo de atribuições refere-se à disciplina das atividades das
entidades e organizações da assistência social, o que significa competência para:
(a) acompanhar e fiscalizar o processo de certificação das entidades e organizações de
assistência social no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (art. 18,
III); (b) apreciar relatório anual que conterá a relação de entidades e organizações de
assistência social certificadas como beneficentes e encaminhá-lo para conhecimento dos
Conselhos de Assistência Social dos Estados, Municípios e do Distrito Federal (art. 18,
IV). Tais atribuições resultam de alteração legislativa relativamente recente. Na redação
original dos incisos III e IV, incumbia ao CNAS “fixar normas para a concessão de
registro e certificado de fins filantrópicos às entidades privadas prestadoras de serviços
e assessoramento de assistência social” e “conceder atestado de registro e certificado de
entidades de fins filantrópicos”. A assunção dessa competência era de se esperar, pois a
LOAS extinguiu o CNSS (art. 33) e previu a transferência de suas atividades para o
CNAS, de forma que não houvesse solução de continuidade. Com isso, além da
atribuição de conceder atestado de registro e certificado para entidades de fins
filantrópicos que visem obter isenções fiscais e celebrar convênios (art. 18, IV, na
213
Cumpre observar que o artigo 39 da LOAS dispõe sobre “alteração dos limites de renda mensal per
capita definidos no § 3º do art. 20 e caput do art. 22”. Todavia, com a alteração promovida pela Lei n.
12.435/11, que deixou de prever qualquer limite per capita no caput do artigo 22, a aplicabilidade da
regra contida no artigo 39 passou a se restringir ao benefício de prestação continuada.
201
redação original), o CNAS recebeu como “herança” do CNSS a incumbência de revisar
os processos de registro e certificado de entidade de fins filantrópicos das entidades e
organização de assistência social.
Essa “função cartorial” trazida do CNSS (GOMES, 2000, p. 23) acabava por se
sobrepor à função de planejamento da política de assistência social e, por isso, sempre
foi criticada. A primeira tentativa de alterar essas funções foi promovida pela Medida
Provisória n. 446, de 07 de novembro de 2008, que acabou sendo rejeitada no
Congresso Nacional. Pouco tempo depois, a Lei n. 12.101, de 27 de novembro de 2009,
conferiu nova redação aos incisos III e IV e distribuiu entre os ministérios responsáveis
pelas políticas de saúde, assistência social e educação a competência para análise e
decisão dos requerimentos de concessão ou renovação dos certificados das entidades
beneficentes de assistência social (art. 21).
Essas alterações “liberaram” o CNAS para o exercício das funções de
elaboração, implementação e acompanhamento da política de assistência social. Tratase de um avanço significativo, pois demonstra a compreensão de que a assistência social
não deve se ocupar primordialmente da filantropia privada. Além disso, a veiculação de
notícias de fraudes envolvendo a concessão desses títulos214 impulsionaram a revisão do
modelo concebido há mais de 70 anos.
4.2.4.5.2 As Conferências Nacionais de Assistência Social
As Conferências Nacionais de Assistência Social foram concebidas com a
função de se avaliar a situação da assistência social e proporem-se diretrizes para o
aperfeiçoamento do sistema. Na redação original da LOAS, artigo 18, inciso VI, as
conferências ordinárias eram bienais e as extraordinárias dependiam de deliberação da
maioria absoluta dos membros do CNAS. Após alteração introduzida pela Lei n. 9.720,
de 30 de novembro de 1998, a convocação ordinária passou a ser quadrienal.
214
No ano de 2008, a Polícia Federal deflagrou a Operação Fariseu, que visava apurar supostas
irregularidades na concessão de Certificados de Entidades Beneficentes de Assistência Social. Cf.
WOLFF, Adriana. Operação Fariseu: União aciona duas supostas entidades beneficentes e exconselheiros
do
CNAS.
19
out.
2010.
Disponível
em:
<http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=151099&id_site=844>. Acesso
em: 06 fev. 2012; PF DEFLAGRA operação contra grupo que obtinha títulos falsos de filantropia. Folha
Online,
13
mar.
2008.
Disponível
em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u381516.shtml>. Acesso em: 06 fev. 2012.
202
Essas conferências constituem um importante fórum de debate público sobre a
política de assistência social e representam clara manifestação contrária à construção de
decisões a “portas fechadas”.
Ao convocar as conferências, o CNAS define os temas que serão discutidos.
Esses temas são transmitidos como diretrizes aos Estados que, por sua vez, os
transmitem aos Municípios. São realizadas, então, as Conferências Municipais, cujas
conclusões subsidiam as Conferências Estaduais. Por fim, a Conferência Nacional reúne
e sistematiza as discussões e propostas provenientes das Conferências Estaduais, para
cumprir sua função prevista no artigo 18, inciso VI, da LOAS.
Até o presente foram realizadas oito conferências – a última delas em
dezembro de 2011 – e os temas escolhidos sempre retratam as discussões mais
candentes de cada época na área de assistência social.
Ocorrida em 1995, a I Conferência tratou do tema Assistência Social – Direito
do Cidadão e Dever do Estado. Houve à época uma firme defesa do comando único da
assistência social. Nessa perspectiva, deliberou-se a extinção do recém-criado Programa
Comunidade Solidária e de outros programas e organismos governamentais com
atuação paralela na área da assistência social. Defendeu-se ainda mais controle sobre o
financiamento da assistência social, sem a concessão de repasses ou subvenções por
mecanismos alheios aos Conselhos, Fundos e Planos municipais e estaduais de
assistência social. Como sintetiza Madeira (2006, p. 62):
Desta feita, esta I Conferência trouxe essencialmente para o debate
público as contradições em relação ao tipo de Assistência Social
assinalada pelo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso,
quando institui uma Secretaria Nacional de Assistência Social com a
competência de executar a política de assistência social e
concomitantemente cria o Programa Comunidade Solidária, com total
autonomia na condução desta política.
Também nessa ocasião deliberou-se que a Conferência operacionalizasse e
aprovasse indicativos para a definição dos mínimos sociais, referidos no artigo 1º da
LOAS, estabelecendo-se a garantia de acesso a educação, saúde, habitação, saneamento,
trabalho, lazer, transporte urbano e terra215.
215
CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Relatório Final da I Conferência Nacional
de Assistência Social. Brasília, 20 a 23 de novembro de 1995. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/i-conferencia-nacional/iconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012.
203
A II Conferência – O Sistema descentralizado e participativo da Assistência
Social: Construindo a Inclusão, Universalizando Direitos (1997) – buscou avaliar o
sistema descentralizado a participativo que começava a se instalar. Seus trabalhos foram
divididos em cinco eixos: inclusão social, descentralização, participação popular,
financiamento e controle social na assistência social, e assistência como política. Como
sintetiza Madeira (2006, p. 73), essa Conferência expôs a precariedade da rede de
assistência social, a falta de interlocução entre os atores da assistência e entre esses
atores e os conselhos de outras políticas públicas, bem como a dificuldade em se definir
a entidade de assistência social216.
Na III Conferência – Política de Assistência Social: Uma Trajetória de
Avanços e Desafios (2001) – foram enfatizados aspectos de gestão, financiamento e
controle social Madeira (2006, p. 80-88). Os debates e deliberações desse evento
mostraram que o maior desafio da assistência social ainda era seu reconhecimento como
política pública sob comando único, com a extinção de programas precários. Não por
outra razão, delibera-se novamente o fim de “programas que ferem o comando único e
se contrapõem à LOAS como o Comunidade Solidária” e a adoção de medidas para
evitar que recursos da seguridade social sejam alocados em outras áreas217.
A IV Conferência – Assistência Social como Política de Inclusão: uma nova
agenda para a cidadania - LOAS 10 anos (2003) – avaliou os dez anos de vigência da
LOAS e, como aspecto mais importante, logrou a proposição e aprovação do Sistema
Único de Assistência Social – SUAS, conferindo novo desenho institucional à política
de assistência social218.
Na V Conferência, SUAS – PLANO 10: Estratégias e Metas para a
Implantação da Política Nacional de Assistência Social (2005), – adotou-se uma
posição prospectiva em relação à assistência social. Já com a perspectiva de
216
CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Anais da II Conferência Nacional de
Assistência Social. Brasília, 9 a 12 de dezembro de 1997. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/ii-conferencia-nacional/iiconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012.
217
CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Deliberações da III Conferência Nacional
de Assistência Social. Brasília, 4 a 8 de dezembro de 2001. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/iii-conferencia-nacional/iiiconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012.
218
CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Relatório da IV Conferência Nacional de
Assistência Social. Brasília, 7 a 10 de dezembro de 2003. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/iv-conferencia-nacional/ivconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012.
204
implantação do SUAS, a conferência aprovou um plano decenal de metas da assistência
social no país, acompanhado de um rol de compromissos éticos que deverão nortear a
dinâmica da política de assistência social219.
Em 2007, a VI Conferência teve o tema Compromissos e Responsabilidades
para Assegurar Proteção Social pelo Sistema Único da Assistência Social (SUAS). A
partir das metas deliberadas em 2005, essa conferência avaliou os primeiros resultados
na implantação do SUAS e abordou as dificuldades para implantação dos direitos
socioassistenciais. Foram definidos seis subtemas para debate e deliberações, a saber: o
plano decenal; direitos socioassistenciais; controle social e protagonismo dos usuários;
financiamento; gestão do trabalho; e intersetorialidade entre as políticas sociais e destas
com o desenvolvimento econômico220.
Por fim, em 2009, a VII Conferência versou sobre Participação e Controle
Social no Sistema Único de Assistência Social – SUAS. O mote dos debates foi a
participação popular e o controle social sobre as ações de assistência. Foram deliberados
temas atinentes à representatividade dos Conselhos de Assistência Social, à criação de
Fóruns Permanentes de Assistência Social, ao aumento do controle social na política de
assistência social, à participação do usuário nas conferências de assistência social, bem
como à ampliação da infraestrutura e dos espaços públicos destinados aos serviços
socioassistenciais221.
A VIII Conferência versou sobre o tema Avançando na Consolidação do
Sistema único de Assistência Social com a Valorização dos Trabalhadores e a
Qualificação da Gestão dos Serviços, Programas e Projetos e Benefícios. As 65
deliberações aprovadas na plenária final dessa conferência foram divididas em quatro
subtemas, a saber: estratégias para a estruturação da gestão do trabalho no SUAS;
reordenamento e qualificação dos serviços socioassistenciais; fortalecimento da
participação e do controle social; e a centralidade do SUAS na erradicação da extrema
pobreza no Brasil.
219
CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Anais da V Conferência Nacional de
Assistência Social. Brasília, 5 a 8 de dezembro de 2005. Disponível em: <
http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/v-conferencia-nacional/vconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012.
220
O Relatório Final da VI Conferência Nacional de Assistência Social, assim como as metas e
estratégias deliberadas na Conferência e as metas específicas do Governo Federal estão disponíveis em:
<http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais>. Acesso em: 3 jul. 2011.
221
As deliberações da VII Conferência Nacional de Assistência Social foram divulgadas por meio da
Resolução do CNAS n. 105, de 3 de dezembro de 2009, e publicadas no Diário Oficial da União, Seção 1,
de 10 de dezembro de 2009; além disso, constam dos Anais da VII Conferência Nacional de Assistência
Social. Ambos estão disponíveis em: < http://www.mds.gov.br/cnas/vii-conferencia-nacional>. Acesso
em: 3 jul. 2011.
205
Nas propostas aprovadas na VIII Conferência, sobressaem temas como: (a)
valorização dos recursos humanos dedicados ao SUAS; (b) melhoria das condições
materiais disponíveis para a prestações dos serviços socioassistenciais, incluindo a
garantia do recebimento de recursos orçamentários; (c) divulgação e expansão das ações
de assistência social, incluindo divulgação sobre a PNAS para a população; (d) fomento
a estudos que possam orientar essa política; (e) criação de mecanismos que permitam
maior conhecimento acerca da realidade com a qual a assistência social deve lidar e
melhor avaliação sobre os custos e resultados das ações da assistência social;
(f) fortalecimento do papel das Secretarias de Assistência Social; (g) fomento ao
controle e fiscalização do efetivo cumprimento da legislação que trata dos Conselhos de
Assistência Social; (h) aproximação entre os órgãos responsáveis pelas ações
socioassistenciais e as sociedade civil, com destaque para associações de moradores e
movimentos sociais; (i) estratégias de inclusão produtiva dos destinatários da assistência
social; modificação dos critérios de elegibilidade do benefício de prestação continuada
previsto na LOAS; fomento ao caráter intersetorial e transversal da Política de
Assistência Social; (j) reafirmação da centralidade do SUAS na erradicação da pobreza
extrema no país222.
Ainda na VIII Conferência foi deliberado que o tema da IX Conferência será A
gestão e o financiamento da efetivação do SUAS.
4.2.5 Benefícios, serviços, programas e projetos de assistência social
O Capítulo IV da LOAS é dedicado aos mecanismos de implantação da
assistência social: benefícios, serviços, programas e projetos de enfrentamento da
pobreza.
222
As deliberações da VIII Conferência Nacional de Assistência Social foram divulgadas por meio da
Resolução do CNAS n. 1, de 9 de janeiro de 2012, e publicadas no Diário Oficial da União, Seção 1, de
10 de janeiro de 2012. Esse documento está disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/viiiconferencia-nacional>. Acesso em: 9 fev. 2012.
206
4.2.5.1 Benefícios da assistência social
Os benefícios consistem em provisões concedidas mediante preenchimento de
requisitos específicos. A LOAS prevê duas categorias de benefícios: benefícios de
prestação continuada e benefícios eventuais. Os primeiros são custeados pela União; os
segundos, por Estados, Distrito Federal e Municípios.
Embora não seja e não deva ser a única forma de prestação assistencial, a
previsão de pagamento de determinadas quantias ao cidadão é essencial para a criação
de um sistema de assistência social. A uma, porque assegura o direito subjetivo a um
rendimento mínimo. A duas, porque o pagamento de benefícios confere maior liberdade
ao cidadão, que decide como empregar tais rendimentos. A três, por significar uma
regulação em matéria de assistência social de amplo alcance e com critérios claramente
definidos em lei.
4.2.5.1.1 Benefício de prestação continuada
A Constituição Federal inaugurou um programa de transferência direta de
renda sem precedentes na história no país223 ao prever, em seu artigo 203, inciso V, “a
garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e
ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la
provida por sua família, conforme dispuser a lei”.
223
Antes de 1988, existia um benefício previdenciário com alguns traços semelhantes ao do benefício
assistencial. Trata-se da Renda Mensal Vitalícia – RMV, criada pela Lei n. 6.179, de 11 de dezembro de
1974 e que continuou integrando o rol de benefícios da Previdência Social até a efetivação da garantia
contida no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, por expressa disposição da Lei n. 8.213/91 (art.
139). A RMV consistia numa renda equivalente à metade do maior salário mínimo vigente, arredondada
para a unidade de cruzeiro imediatamente superior, não podendo ultrapassar 60% do valor do saláriomínimo do local de pagamento. Nos termos dos artigos 1º e 2º da Lei n. 6.179/74, era devida aos idosos
com mais de 70 anos ou inválidos de forma definitiva, mediante comprovação de: (a) impossibilidade de
prover o próprio sustento ou tê-lo provido pela família; (b) renda inferior a 60% do salário mínimo; (c)
período mínimo de filiação ao INPS, com posterior perda de qualidade de segurado, ou exercício de
atividade abrangida pelo INPS ou FUNRURAL , ainda que sem filiação. Nos termos do artigo 40 da
LOAS, a RMV foi extinta em 1º de janeiro de 1996. A despeito das semelhanças nos critérios de
concessão, há diferenças substanciais em relação ao benefício assistencial, que se caracteriza por sua
matriz constitucional, seu caráter não contributivo e renda equivalente a um salário mínimo.
207
O exercício do direito subjetivo ao benefício de prestação continuada ficou,
portanto, condicionado à disciplina legislativa224. Essa disciplina foi traçada pela LOAS,
mas o benefício só foi implementado em 1996, nos termos do artigo 40 do Decreto
n. 1.744/95.
Alguns autores entendem que o único aspecto o inciso V do artigo 203 passível
de regulamentação por lei ordinária seria o da necessidade financeira, haja vista que os
beneficiários já estariam identificados na própria Constituição Federal (NUNES
JÚNIOR, 2009; ARZABE, 2001).
Embora a redação do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal desperte
dúvidas sobre quais seriam os aspectos passíveis de regulamentação, este não parece ser
o maior problema que dificulta a efetivação do direito ao benefício de prestação
continuada. O exercício de um direito fundamental pode ser regulamentado e, nessa
medida, pode sofrer algum tipo de restrição. O maior risco à efetivação do direito ao
benefício assistencial não está na possibilidade de lei ordinária dispor sobre os
requisitos para sua concessão, mas na possibilidade de esse conteúdo esvaziar o
propósito de atendimento às situações de necessidade social estampadas na Constituição
Federal.
Examinando o texto da LOAS, percebe-se que os aspectos negativos dessa lei
decorrem da falta de sintonia entre seus termos e os propósitos da assistência social.
Não por outra razão, a regra cuja constitucionalidade foi debatida de forma mais intensa
diz respeito a um tema que o legislador evidentemente estava autorizado a disciplinar: a
comprovação da necessidade financeira.
Os tópicos que se seguem procuram esmiuçar de que forma a LOAS tratou
dessa garantia de renda mínima.
4.2.5.1.1.1 Destinatários do benefício assistencial: idosos e pessoas com deficiência
A Constituição Federal identificou claramente os titulares do benefício
assistencial: idosos e pessoas com deficiência. Quanto aos primeiros, a Constituição
Federal não define o limite etário para que uma pessoa seja considerada idosa. Na LOAS,
224
Em razão do impacto financeiro que adviria da implantação do benefício de prestação continuada,
pode-se encontrar aqui mais uma explicação para a demora na aprovação da LOAS e um dos motivos do
veto ao primeiro Projeto de Lei.
208
esse limite foi inicialmente fixado em 70 anos e reduzido para 67 anos a partir de 01 de
janeiro de 1998225. A partir de 01 de janeiro de 2004, por força do Estatuto do Idoso (Lei
n. 10.741/03, arts. 34 e 118), o direito ao benefício foi reconhecido aos idosos a partir de
65 anos226. Esse critério ainda vige e, por força da Lei n. 12.435/11, foi integrado ao caput
do artigo 20 da LOAS.
Quanto ao segundo grupo, até 2011 a disciplina foi bastante rigorosa e
extravasou o propósito de definir pessoa com deficiência.
Na redação original do artigo 20, § 2º, considerava-se pessoa com deficiência
aquela incapacitada para o trabalho e para a vida independente. Não bastava assim a
prova de uma restrição sensorial, motora ou mental com repercussões na prática de um
ou mais atos da vida cotidiana. Tampouco bastava a prova de incapacidade laborativa,
por si só ensejadora de inúmeras restrições para o atendimento das necessidades
elementares de uma pessoa. Exigia-se a demonstração de graves restrições que
tornassem a pessoa dependente de terceiros.
Com a menção à incapacidade para a vida independente, os titulares do
benefício praticamente se restringiam às pessoas com vida vegetativa ou que
demandassem assistência de outra pessoa para atos cotidianos. Esses critérios sequer
levavam em conta que a pessoa incapaz para o trabalho dificilmente terá como prover
suas necessidades mais elementares, como alimentação, moradia, vestuário, educação,
saúde etc. A exigência de incapacidade para o trabalho e para a vida independente
favorecia uma situação paradoxal, pois tornava a habilitação e reabilitação uma
verdadeira ameaça para as pessoas com deficiência que necessitassem do benefício para
sobreviver.
De forma até incomum, o regulamento do benefício de prestação continuada,
Decreto n. 6.214/07, atenuou a rigidez dos critérios legais. Coube ao decreto reconhecer
que a incapacidade não é apenas critério médico, mas também socioeconômico227,
225
Na redação original do artigo 38 da LOAS, previa-se que a idade mínima para pleitear o benefício
seria reduzida para 67 anos e 65 anos, respectivamente após 24 e 48 meses do início de sua concessão.
Porém, por meio da Lei n. 9.720, de 30 de novembro de 1998, o artigo 38 teve sua redação alterada
apenas para manter que o limite etário seria de 67 anos a partir de 01 de janeiro de 1998. Eliminou-se,
naquele momento, a perspectiva de redução gradual do requisito etário.
226
É necessário observar que o Estatuto do Idoso considera idosas as pessoas com mais de 60 anos (art.
1º), mas o benefício só foi destinado às pessoas a partir dos 65 anos.
227
Nesse sentido, merece destaque a criação de metodologia de avaliação de deficiência contemplando
critérios médicos e sociais, prevista no artigo 16 do Decreto n. 6.214/07. Esse instrumento de avaliação
foi desenvolvido e instituído pela Portaria Conjunta MDS/ INSS n. 01, de 29 de maio de 2009, publicada
integralmente do Diário Oficial da União de 02 de junho de 2009, seção 1, p. 50-59.
209
definindo-a como “fenômeno multidimensional que abrange limitação do desempenho
de atividade e restrição da participação, com redução efetiva e acentuada da capacidade
de inclusão social, em correspondência à interação entre a pessoa com deficiência e seu
ambiente físico e social” (art. 3º, III).
Esse diploma também sanou impasses para a concessão do benefício a crianças
e adolescentes. Não sendo admissível tomar a incapacidade para o trabalho como
parâmetro de avaliação nesses casos, ex vi o artigo 7º, inciso XXXIII, da Constituição
Federal, estabeleceu-se que a necessidade de avaliar o impacto da deficiência “na
limitação do desempenho de atividade e restrição da participação social, compatível
com a idade, sendo dispensável proceder à avaliação da incapacidade para o trabalho”.
Esses critérios de avaliação de deficiência foram mantidos mesmo com a
promulgação da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, por meio do Decreto
n. 3.956, de 08 de outubro de 2001, que definiu deficiência como “uma restrição física,
mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de
exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo
ambiente econômico e social” (art. 1º).
Em 2008, a aprovação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência da ONU, com status de emenda constitucional, deveria ter sido bastante
para que se reconhecesse a revogação tácita do artigo 20, § 2º, da LOAS. Eis a definição
de pessoa com deficiência veiculada pela Convenção:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo
prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação
plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as
demais pessoas.
Todavia, foram necessários mais alguns anos para que essa definição fosse
assimilada pela LOAS. Da mesma forma, consoante será demonstrado no Capítulo 5,
essa definição não encontrou grande repercussão no Poder Judiciário.
Com a promulgação da Lei n. 12.435/11, a LOAS adotou a definição de pessoa
com deficiência como “aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (art. 20, § 2º, I).
210
No entanto, manteve a exigência de incapacidade para a vida independente e para o
trabalho por, no mínimo, dois anos (art. 20, § 2º, II).
Essa definição é semelhante à prevista pela Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência (art. 1º). No entanto, alude à “participação plena e efetiva na
sociedade com as demais pessoas”, ao passo que a Convenção trata da “participação
plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Ocorre que essa omissão é significativa, pois um dos aspectos mais importantes da
proteção de pessoas com deficiência refere-se à promoção da igualdade.
o patrimônio jurídico das pessoas com deficiência se resume no
cumprimento do direito à igualdade, quer apenas cuidando de
resguardar a obediência à isonomia de todos diante do texto legal,
evitando discriminações, quer colocando as pessoas com deficiência
em situação privilegiada em relação aos demais cidadãos, benefícios
perfeitamente justificados e explicados pela própria dificuldade de
inclusão natural desse grupo de pessoas. (ARAUJO, 2011)
Somente com a promulgação da Lei n. 12.470/11 é que se alterou o artigo 20, § 2º,
da LOAS, adotando-se a definição trazida pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência em sua íntegra. Finalmente a exigência de incapacidade para a vida
independente e para o trabalho foi suprimida. No lugar dessas exigências instituiu-se a
avaliação do potencial de cada pessoa com deficiência participar plena e
igualitariamente da vida em sociedade. Isso representa um inegável avanço da
assistência social no sentido de sua universalização.
No que concerne à duração e natureza dos impedimentos que caracterizam a
deficiência, o artigo 20, § 10º, passou a dispor que “considera-se impedimento de longo
prazo, para os fins do § 2º deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo
de 2 (dois) anos”.
A concessão do benefício sempre demandou avaliação médica, como se
depreende das quatro redações até hoje atribuídas ao artigo 20, § 6º, da LOAS. A Lei
n. 12.435/11 agregou a avaliação social para a aferição do grau de deficiência e da
incapacidade. Por fim, a Lei n. 12.470/11, passou a prever que as perícias médica e
socioeconômica devem recair sobre o grau de deficiência e de impedimento, não mais
de incapacidade.
211
4.2.5.1.1.2 A aferição da necessidade financeira como requisito para concessão do
benefício assistencial de prestação continuada
Dentre os critérios de elegibilidade previstos na LOAS para concessão do
benefício de prestação continuada, consta a renda per capita familiar inferior a um
quarto do salário mínimo por mês (art. 20, § 3º).
Duas são as questões que emergem dessas previsões. A primeira diz respeito à
fixação de um quarto do salário mínimo por membro da família como critério de aferição
de hipossuficiência. A segunda, diz respeito à metodologia de cálculo para se chegar ao
valor da renda per capita.
O limite de renda per capita inferior a um quarto de salário mínimo constitui um
claro exemplo de falha na aplicação do princípio da seletividade e distributividade das
prestações da seguridade social. Essa falha acarreta a desproteção de um grande contingente
de pessoas idosas ou com deficiência em situação de necessidade social. Em outras
palavras, tem-se uma restrição inconstitucional a um direito fundamental.
É que, como afirmam Penalva, Diniz e Medeiros (2010, p. 63), o critério legal
“não tem fundamentação técnica que vincule sua origem aos princípios constitucionais que
guiam a assistência”. Os autores sublinham que esse montante é inferior às linhas de
pobreza adotadas no Brasil para monitoramento e pesquisa, o que torna o benefício não “um
programa para pessoas pobres, mas para pessoas extremamente pobres” (PENALVA;
DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 63).
Na mesma linha, Santos (2003, p. 202) demonstra que o fator de discrímen
empregado na seleção e distribuição dessa prestação da assistência social é inconstitucional.
A autora sustenta que, ao adotar o limite de renda em questão, “o legislador admitiu que há
possibilidade de sobreviver sem os mínimos essenciais” (SANTOS, 2003, p. 202). E, com
razão, aponta a criação de “um universo de necessitados, marginalizados, que não tem
proteção previdenciária nem assistencial” (SANTOS, 2003, p. 202). Não é diferente a
crítica feita por Branco (2007, p. 102) de que “o corte feito pela norma alcança apenas
situações de gravidade tão extrema, que a ajuda fará pouca diferença na miserabilidade do
grupo”.
Ainda em 1995, o tema foi levado ao STF por meio da ADI n. 1.232-1/DF.
A ação foi ajuizada pelo Procurador-Geral da República, visando à declaração de
212
inconstitucionalidade do artigo 20, § 3º, da LOAS. Argumentava-se que o dispositivo
restringia o direito à assistência social assegurado pela Constituição Federal, deixando
desprotegida grande parte das pessoas que o constituinte tinha em mira.
O pedido de suspensão cautelar desse dispositivo foi indeferido. Entendeu-se que a
pretendida suspensão seria mais danosa do que a manutenção de sua eficácia, pois
impossibilitaria a concessão administrativa de benefícios até o julgamento final da ação228.
Em 1998, o pedido formulado na ADI n. 1.232-1/DF foi julgado
improcedente229. Prevaleceu o entendimento do Ministro Nelson Jobim no sentido de
que a Constituição Federal remetera a fixação dos critérios de concessão ao legislador
ordinário, não havendo indevida restrição do direito230. Como sintetiza Branco (2007,
p. 103), essa decisão baseou-se no pressuposto de que, por se tratar de norma de
eficácia limitada, o legislador poderia decidir como quisesse a propósito desse direito, o
que não se coaduna com uma interpretação sistemática da Constituição.
É de se destacar que o relator, Ministro Ilmar Galvão, foi vencido no
julgamento. Propugnando uma interpretação conforme a Constituição, o Ministro votou
pelo acolhimento parcial da ação para reconhecer a constitucionalidade da norma, sem
prejuízo do reconhecimento da miserabilidade por outros meios de prova231. Isso
possibilitaria o exame da capacidade financeira em cada caso concreto.
Depois do julgamento da ADI n. 1.232-1/DF, decisões judiciais em todo o país
continuaram reconhecendo o direito ao benefício mesmo quando superado o critério
legal da renda per capita (cf. Capítulo 5). Boa parte dessas decisões sustentava o
entendimento estampado no voto vencido do Ministro Ilmar Galvão de que a renda
228
Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.232-1/DF. Relator: Min. Maurício
Corrêa. Tribunal Pleno. Data da decisão: 22 mar. 1995. Diário da Justiça, 26 maio 1995, p. 15154.
229
Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.232-1/DF. Relator: Min. Ilmar Galvão. Relator para o
Acórdão: Min. Nelson Jobim. Tribunal Pleno. Data da decisão: 27 ago. 1998. Diário da Justiça, 01 jun.
2001, p. 75.
230
Extrai-se do voto vencedor a afirmação de que “compete à lei dispor a forma da comprovação. Se a
legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da própria lei. O gozo do
benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar dessa forma. Portanto não
há interpretação conforme possível porque, mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de
direito algum, pois depende da existência da lei, da definição”.
231
Em seu voto, o Ministro Ilmar Galvão assevera que “não se pode vislumbrar inconstitucionalidade no
texto legal, posto revelar ele uma verdade irrefutável, seja, a de que é incapaz de prover a manutenção da
pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda per capita seja inferior a ¼ do salário
mínimo.
A questão que resta é a de saber se com a hipótese prevista pela norma é a única suscetível de caracterizar
a situação de incapacidade econômica da família do portador de deficiência ou do idoso inválido.
Revelando-se manifesta a impossibilidade da resposta positiva, que afastaria grande parte dos
destinatários do benefício assistencial previsto na Constituição, outra alternativa não resta senão
emprestar ao texto impugnado interpretação segundo a qual não limita ele os meios de prova da condição
de miserabilidade da família do necessitado deficiente ou idoso”.
213
inferior a um quarto do salário mínimo não impediria a demonstração da necessidade
financeira por meio de outros elementos de prova.
Em razão disso, recursos e reclamações foram levados ao STF tratando dos
limites da previsão legal e da extensão do julgado proferido na ADI n. 1.232-1/DF. Durante
algum tempo, a Corte sustentou o entendimento de que a concessão do benefício à pessoa
com renda familiar superior ao limite estabelecido na LOAS contrariava a decisão proferida
no julgamento232.
Emblemática desse posicionamento é decisão que deu provimento à Reclamação
n. 2.303-6/RS, julgando prejudicado o agravo regimental interposto pela parte autora,
representada pela Defensoria Pública. Neste feito, que teve como relatora a Ministra Ellen
Gracie, reconheceu-se que o entendimento de que a necessidade financeira poderia ser
demonstrada por meios de prova diversos da renda per capita inferior à quarta parte do
salário mínimo restara vencido no julgamento da ADI n. 1.232-1/DF. A relatora afirmou
ainda que “a decisão do Supremo Tribunal Federal foi exatamente a de fixar como
parâmetro objetivo a ocorrência, a existência ou não deste limitador de ganhos da família:
um quarto do salário mínimo”.
A relatora consignou em seu voto que o afastamento do critério objetivo da renda
implicaria conferir “ao juiz do Juizado Especial o direito de criar e aumentar benefício”,
“deixando de indicar a fonte de custeio, exigência que se faz até àqueles que têm
competência legislativa”. A esse respeito, Penalva, Diniz e Medeiros (2010, p. 57) apontam
que essa reclamação foi decidida com base em um “argumento orçamentário” e que “a
argumentação prevalecente teve como pressuposto a compreensão de que os critérios de
elegibilidade para a concessão do benefício assistencial só poderiam ser fixados na esfera
política” (PENALVA; DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 55).
De fato, a discussão sobre a adequação do critério legal às diretrizes
constitucionais da assistência social – o que implicaria discutir o significado das
necessidades a serem atendidas e contempladas pelo legislador, e não a evidente
possibilidade de lei ordinária dispor sobre a matéria – não teve destaque.
Porém, no âmbito do próprio STF, vislumbra-se a possibilidade de revisão
desse entendimento. Ao indeferir o pedido de liminar na Reclamação n. 4.374/PE, o
232
Nesse sentido, as decisões proferidas nos seguintes feitos: Agravo Regimental na Reclamação n.
2.303-6/RS, Relatora: Min. Ellen Gracie. Tribunal Pleno. Data da decisão: 13 maio 2004. Diário da
Justiça, 01 abr. 2005, p. 05; Reclamação n. 2.323-1/PR, Relator: Min. Eros Grau. Tribunal Pleno. Data da
decisão: 07 abr. 2005. Diário da Justiça, 20 maio 2005, p. 08; Agravo Regimental na Medida Cautelar na
Reclamação n. 4.427-1/RS. Relator: Min. Cezar Peluso. Tribunal Pleno. Data da decisão: 06 jun. 2007.
Diário da Justiça Eletrônico 047, 28 jun. 2007. Publicação em: 29 jun. 2007.
214
Ministro Gilmar Mendes chamou a atenção para a legislação mais recente contendo “novos
critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais” e para os
casos concretos levados àquela corte, demonstrando “que os critérios objetivos
estabelecidos pela Lei n. 8.742/93 são insuficientes para atestar que o idoso ou o
deficiente não possuem meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por
sua família”. O Ministro afirma ainda que a manutenção do entendimento constante da
Reclamação n. 2.303-6/RS “ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do
§ 3o do art. 20 da Lei n. 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o
deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la
provida por sua família, como exige o art. 203, inciso V, da Constituição”.
Há, portanto, claras perspectivas de alteração da jurisprudência da mais alta
corte do país. Confirmando-se essa possibilidade, aumentará a probabilidade de a
legislação ordinária incorporar critérios mais elásticos para aferir a necessidade
financeira. Reitera-se aqui afirmação feita em trabalho anterior no sentido de que,
considerando a polêmica existente em torno do critério da renda e o impacto
orçamentário que decorreria da ampliação das hipóteses de concessão do benefício,
eventuais alterações legislativas relacionadas a esse critério serão influenciadas pelo
pronunciamento do STF (SALES, 2011, p. 23)233.
Quanto ao segundo aspecto suscitado no início deste tópico – a metodologia de
aferição da renda – percebe-se que a legislação sobre benefício assistencial de prestação
continuada posterior à Lei n. 8.742/93 não mudou o critério da renda. Porém, foram
instituídas metodologias de cálculo mais benéficas a alguns dos potenciais titulares do
benefício, aplicáveis em determinadas hipóteses. Basicamente, a metodologia consiste
em desprezar algumas receitas antes de se aferir se a renda é ou não inferior a um quarto
do salário mínimo.
O Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03) contém uma dessas hipóteses:
Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não
possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por
sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) saláriomínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas.
233
Em resposta ao que chamam de “argumento orçamentário” da Reclamação n. 2.303-6/RS, Penalva,
Diniz e Medeiros (2010) analisam o impacto da elevação do critério de elegibilidade para meio salário mínimo
e concluem que essa elevação seria compatível com as capacidades orçamentárias do Estado brasileiro. Os
autores concluem ainda que “devido a atuais erros de focalização da política, a expansão de custos será inferior
ao aumento no tamanho da população legalmente elegível” (PENALVA; DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 53).
215
Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da
família nos termos do caput não será computado para os fins do
cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas.
A previsão permite a idosos integrantes do mesmo núcleo familiar receberem
benefícios assistenciais de forma concomitante. Isso porque o benefício concedido a um
idoso não é considerado no cálculo da renda do outro idoso que também pleiteia o
benefício234. Com isso, ampliou-se a população elegível para o recebimento do
benefício.
A Lei n. 12.470/11, de igual modo, estabeleceu metodologias de cálculo mais
favoráveis aos potenciais destinatários do benefício, com nítido propósito de fomentar a
participação social de jovens com deficiência, estimulando seu ingresso no mercado de
trabalho.
O novo artigo 20, § 9º, da LOAS determina que a remuneração da pessoa com
deficiência na condição de aprendiz não seja considerada para cálculo da renda per
capita familiar.
Já o artigo 21-A, § 2º, dispõe que “a contratação de pessoa com deficiência
como aprendiz não acarreta a suspensão do benefício de prestação continuada, limitado
a 2 (dois) anos o recebimento concomitante da remuneração e do benefício”.
A medida é relevante para o desenvolvimento pessoal dos beneficiários, pois
possibilita a inserção profissional desses adolescentes no mercado de trabalho, nos
termos do artigo 203, inciso III, da Constituição Federal. Ao mesmo tempo, sugere a
preocupação do Poder Público com a expressiva quantidade de jovens que recebem esse
benefício em razão de alguma deficiência, demonstrando uma tentativa de evitar que
todos eles passem suas vidas recebendo esse benefício. Porém, seu êxito dependerá
ainda do adequado cumprimento das cotas de empregos a serem destinadas às pessoas
reabilitadas ou com deficiência (Lei n. 8.213/91, art. 93) e da promoção do direito à
acessibilidade.
234
Conforme será analisado no capítulo seguinte, o Poder Judiciário vem se pronunciando sobre algumas
questões suscitadas por essa norma, sobretudo no que tange à aplicação analógica desse dispositivo. No
STF, reconheceu-se a repercussão geral da questão concernente à interpretação extensiva do artigo 34 da
Lei n. 10.741/03, sem pronunciamento quanto ao mérito da controvérsia (Cf. Repercussão Geral no
Recurso Extraordinário n. 580.963/PR. Relator: Min. Gilmar Mendes. Data da decisão: 16 set. 2010.
Diário da Justiça Eletrônico 190, 07 out. 2010. Publicação em: 08 out. 2010) Informação atualizada em:
01 mar. 2012.
216
4.2.5.1.1.3 A definição de família para efeito de concessão do benefício assistencial
de prestação continuada
Ao prever como requisito para concessão do benefício assistencial a
impossibilidade de o idoso ou a pessoa com deficiência proverem o próprio sustento ou
tê-lo provido por sua família, a LOAS reconhece a família como primeira responsável
pela proteção e atendimento de necessidades de seus membros, em consonância com as
demais diretrizes da assistência social.
Por conta disso, a definição de família adotada para aferição da necessidade
financeira torna-se crucial para a concessão ou não do benefício assistencial. E esse é
um ponto bastante delicado, haja vista a dificuldade em se estabelecer uma definição
que comporte os múltiplos arranjos familiares possíveis. A dificuldade explica porque,
até a presente data, o artigo 20, § 1º, da LOAS apresentou três definições distintas de
família, convergentes em um só ponto: a concepção da família como grupo de pessoas
vivendo sob o mesmo teto.
Originalmente, definiu-se família “a unidade mononuclear, vivendo sob o
mesmo teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes”. Com o
advento da Lei n. 9.720/98, o termo passou a ser definido como “conjunto de pessoas
elencadas no art. 16 da Lei n. 8.213/91, desde que vivam sob o mesmo teto”. Desde a
promulgação e entrada em vigor da Lei n. 12.435/11, a família representa o conjunto
composto pelo “requerente [do benefício assistencial], o cônjuge ou companheiro, os
pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos
e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto”.
Todavia, a definição adotada pela LOAS é insuficiente para assegurar a
proteção de idosos ou pessoa com deficiência pela via da assistência social. Esse critério
revela-se, ademais, incompatível com a proteção à família prevista pela Constituição
Federal. Por isso, justifica-se a crítica à regra vigente e a defesa de outro critério de
identificação do grupo familiar, contida nos parágrafos que se seguem.
A Constituição de 1988 não elegeu um modelo único de entidade familiar
merecedor de proteção, o que, aliás, seria contrário ao objetivo de promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação (art. 3º, IV).
217
É certo que seu artigo 226 reconhece as entidades familiares formadas pelo
casamento e união estável, como também reconhece entidades monoparentais e sua
descendência. Contudo, essas três entidades familiares não são as únicas que fazem jus
à proteção constitucional, inclusive pela via da assistência social. Ao contrário, existem
outras entidades familiares igualmente protegidas e não se extrai do citado artigo
nenhuma previsão que impeça o reconhecimento ou que autorize tratamento antiisonômico a entidades familiares que não estejam expressamente descritas na
Constituição Federal235.
E não poderia ser de outra forma. A noção de família não se resume à ideia de
núcleo econômico e reprodutivo; ao contrário, comporta também a ideia de unidade
socioafetiva. Com isso, “as entidades familiares tornam-se plurais, já que existem ou não
em razão do sentimento (afeto) dos membros que as compõem” (GALIA, 2007, p. 05).
Na esteira de uma concepção pluralista de família, a atual redação da LOAS
merece elogios, pois reconhece que padrastos, madrastas, enteados e menores tutelados,
vivendo sob o mesmo teto, constituem o mesmo núcleo familiar. Dessa forma, essas
pessoas não são mais artificialmente desconsideradas para o cálculo da renda per capita,
como ocorria na redação anterior do artigo 20, § 1º, da LOAS.
Além do mais, ao mencionar o companheiro, a lei não estabelece distinção
entre pessoas do mesmo sexo e pessoas de sexos opostos. Contempla-se, assim, o
tratamento igualitário dispensado às entidades familiares constituídas a partir de uniões
heteroafetivas e homoafetivas, tal como resultou do julgamento da ADI n. 4.277/DF e
da ADPF n. 132 pelo STF.
Por outro lado, há aspectos negativos que não podem ser ignorados. A
primeira observação é a de que a definição contida na LOAS é diferente da definição
adotada para o acesso a outros programas sociais que também têm a família como
foco de intervenção – discrepância criticável por indicar falta de sistematização e
uniformidade quanto a conceitos essenciais para a operacionalização de políticas
sociais236. A segunda – e mais importante – observação é de que se toma como
235
No julgamento da ADI n. 4.277/DF e da ADPF n. 132/RJ, que trataram do reconhecimento das uniões
homoafetivas, o voto do Ministro Ayres Brito, relator, sintetiza essa ideia ao afirmar que “nossa Magna
Carta não emprestou ao substantivo ‘família’ nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica.
Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do
ser”.
236
Diversos programas sociais implementados no país a partir de 1997 adotaram definições de família
desvinculadas de um rol taxativo de laços de parentesco, o que se aproxima da redação original do artigo
20, § 1º, da LOAS. Como afirmado em outras passagens deste trabalho, há uma tendência a se reconhecer
218
referência um modelo específico de entidade familiar, em detrimento de muitas
organizações familiares que de fato existem e merecem proteção. A definição
estampada na LOAS pressupõe relações familiares enxutas, aglutinadas em torno de
uma estrutura monoparental ou conjugal. Além disso, o foco de análise da capacidade
econômica é estreito: priorizam-se relações de parentesco de primeiro grau; as relações
de parentesco de segundo grau são restritas aos irmãos solteiros.
Essa estrutura, todavia, não dá conta da complexidade e pluralidade das
organizações familiares. A identificação do potencial protetivo e a delimitação das
responsabilidades familiares são tarefas bem mais complexas do que se pode supor pelo
exame do rol de pessoas indicado na lei. As simplificações da definição de família, por
mais necessárias ou convenientes que se mostrem, não poderiam resultar em prejuízo
para a identificação do universo de pessoas que precisam da assistência social ou que,
diversamente, dela podem prescindir.
A previsão do artigo 20, § 1º, da LOAS, não permite, por exemplo,
compreender a real situação de núcleos familiares compostos por pessoas de diversas
gerações da mesma família, isto é, famílias ampliadas pela presença de parentes em
linha reta e colateral. Da mesma forma, não apresenta uma resposta para as hipóteses de
crianças colocadas sob a guarda e adultos sob a curatela de pessoas com quem não
mantenham os vínculos de parentesco previstos na lei.
A presença de outros familiares vivendo sob o mesmo teto – seja contribuindo
para o sustento do grupo, seja demandando do grupo o atendimento de suas
necessidades básicas – acaba sendo ignorada. Se a pessoa excluída do cálculo da renda
per capita possuir rendimentos, a aplicação do artigo 20, § 1º, favorecerá o interessado
em obter o benefício, pois a operação resultará em uma renda inferior à que seria obtida
com a inclusão do referido familiar237. Se, ao invés de possuir renda, a pessoa a ser
que todas as pessoas unidas por um laço de parentesco e que residam sob o mesmo teto integram o
mesmo grupo familiar (cf. infra 4.2.5.3.1 Programas de assistência social desenvolvidos entre a
promulgação da LOAS e a aprovação da PNAS/2004 e 4.2.5.3.2 Programas de transferência de renda de
paralelos à política de assistência social). A pluralidade de definições mostra que o legislador brasileiro
reconhece não ser adequada a identificação do grupo familiar a partir de relações de parentesco
predefinidas, como consta da LOAS.
237
A título de exemplo, tome-se um grupo familiar assim composto: uma mulher (A), com renda de um
salário mínimo; seu cônjuge (B), sem renda; três filhos solteiros (C, D e E), sem renda; e o pai dessa
mulher (F), com rendimentos equivalentes a cinco salários mínimos. Adotando-se a regra prevista na
LOAS, considerar-se-ia como família as pessoas A, B, C, D e E, de modo que o cálculo da renda per
capita familiar resultaria em um quinto (20%) do salário mínimo, valor sugestivo de uma condição de
extrema pobreza. Porém, de fato, esse núcleo familiar teria a renda per capita de um salário mínimo. Na
hipótese, a discrepância entre a situação real e a situação contemplada pela norma resultaria no
219
excluída do cálculo demandar apoio financeiro de outros membros da família, a
aplicação do artigo 20, § 1º, indicará que o requerente do benefício tem uma renda
superior àquela que realmente é disponibilizada para sua manutenção238.
Levando-se em conta, inclusive, que situações mais agudas de necessidade
financeira ensejam arranjos familiares mais amplos239, percebe-se que a previsão legal
não é suficiente para captar a situação de boa parte do público que seria atendido pela
assistência social. Por isso mesmo, está correta a crítica de Fortes (2009, p. 268) no
sentido de que a noção de família não promove a efetivação de direitos de cunho
assistencial quando concebida de forma estanque, pouco contribuindo para a superação
da profunda desigualdade que assola o país.
Também é problemático o fato de serem consideradas apenas as pessoas que
vivem sob o mesmo teto240.
favorecimento do grupo, pois atenderiam ao critério previsto na LOAS, apesar de não haver uma situação
real de necessidade.
238
A título de exemplo, tome-se um grupo familiar assim composto: uma mulher (A), com renda de um
salário mínimo; seu cônjuge (B), sem renda; um filho solteiro (C), sem renda; o pai e a mãe dessa mulher
(D e E), ambos desprovidos de renda. Adotando-se a regra prevista na LOAS, considerar-se-ia como
família as pessoas A, B e C, de modo que o cálculo da renda per capita familiar resultaria em um terço
(33,33%) do salário mínimo, valor que retiraria essa família do âmbito de proteção da norma. Porém,
efetivamente, o núcleo familiar em questão teria a renda per capita de um quinto do salário mínimo
(20%). Nesse caso, a discrepância entre a situação real e a situação contemplada pela norma resultaria em
prejuízo ao grupo, a despeito de real necessidade.
239
É pertinente transcrever as considerações apresentadas por Fortes (2009, p. 273-274): “Em especial
nas famílias de menor renda, o agrupamento de pessoas constitui-se em forma que encontram para melhor
fazer face ao contingenciamento da vida, para tentar reunir recursos conjuntos e depender de um único
local para habitar. [...] no permanente esforço para afastar o espectro da fome, as famílias pobres
desenvolvem arranjos para gerar renda, garantindo a sobrevivência, produzindo-se uma solidariedade no
grupo doméstico que vai além da família nuclear, constituindo a “família extensa”, obrigando à
cooperação não somente de todos os membros da família conjugal, como de outros parentes e agregados,
de forma que a renda familiar conta com contribuição substancial de todos.
Assim, não se podem desconsiderar outros parentes, como, por exemplo, filhos maiores e netos, e mesmo
pessoas não vinculadas por consanguinidade ou afinidade, cuja parentalidade é dada a partir da
afetividade do grupo, pois evidentemente também fazem parte da família, o que promove como
consequência que tanto a renda que eventualmente tiverem deve ser somada à renda familiar, quanto que
devem ser considerados como usuários da renda do grupo”.
240
As ponderações ora tecidas a respeito desse assunto já foram apresentadas em outro trabalho de
mesma autoria, em excerto aqui reproduzido: “[...] a ideia de ‘pessoas sob o mesmo teto’ mantida no art.
20, § 1º, da LOAS apresenta aspectos criticáveis, favoráveis e desfavoráveis aos potenciais titulares desse
benefício.
Como ponderação que pode implicar no não-reconhecimento do direito ao benefício de prestação
continuada, frisa-se que o dever de sustento entre familiares não se limita àqueles que vivem sob o
mesmo teto. A Constituição Federal elege a paternidade responsável como um dos princípios do
planejamento familiar (CF, art. 226, § 7º) e prevê o dever de assistência entre pais e filhos, bem como em
relação aos idosos (CF, arts. 229 e 230). Além disso, o Código Civil (arts. 1694 e ss.) disciplina o dever
de alimentos entre ascendentes, descendentes e irmãos, sem ressalvas quanto à existência ou não de
domicílio em comum.
Por outro lado, a concepção de família adotada na LOAS pode acarretar o agravamento ou a manutenção
de situações de vida precárias. A noção de família quase identificada com a noção de domicílio pode
220
Ao estabelecer que a capacidade financeira familiar seja aferida a partir dos
ganhos das pessoas que vivem sob o mesmo teto, pressupõe-se que a responsabilidade
pelo sustento do idoso ou da pessoa com deficiência é primordialmente dos familiares
com quem coabitam, contanto que integrem o rol do artigo 20, § 1º.
Ocorre que limitar o exame da capacidade financeira da família à mera soma
dos rendimentos das pessoas que vivem sob o mesmo teto pode impor cobranças mais
acentuadas sobre aqueles que se agregam até mesmo para enfrentar situações de
precariedade financeira. Quando um benefício é indeferido em razão da renda de um
dos componentes da família, subentende-se que aquela pessoa pode e deve prestar
assistência ao familiar idoso ou com deficiência. Porém, sem os devidos
temperamentos, essa ideia pode ensejar distorções.
Pode-se afirmar, portanto, que, à luz da LOAS, a cobrança de colaboração
financeira é mais incisiva sobre os que residem com os idosos ou pessoas com
deficiência, pois é a renda daquelas pessoas que determinará a concessão ou não do
benefício pleiteado. O resultado disso é o risco de perpetuar-se a situação de pessoas
que sacrificam o atendimento das próprias necessidades e o desenvolvimento de suas
potencialidades para prover necessidades básicas de seus familiares. Essa situação é
particularmente grave quando envolve pessoas que ainda precisam cuidar da própria
formação intelectual e profissional, já que o estudo tende a ser sacrificado pelo ingresso
precoce no mercado de trabalho241. Ao invés de ruptura, tem-se a perpetuação do círculo
vicioso de reprodução da pobreza.
Portanto, mesmo para considerar as pessoas vivendo sob o mesmo teto, seria
necessária mais atenção para com as necessidades de despesas com educação, saúde,
habitação do requerente do benefício e seus familiares, sob pena de se negar a
concessão do benefício às famílias que ainda precisam utilizar seus rendimentos para se
emanciparem e desenvolverem as potencialidades de seus membros.
implicar exigências excessivas em relação às pessoas que vivem sob o mesmo teto. Isso pode impor, por
exemplo, que jovens ingressem precocemente no mercado de trabalho para auxiliar o sustento de
familiares, abdicando ou negligenciando o investimento na própria educação, o que, a médio e longo
prazo, pode se refletir negativamente nas condições de vida de toda a família”. (SALES, 2011, p. 22).
241
A título de ilustração, recorda-se a situação de jovens que ingressam precocemente no mercado de
trabalho para sustentar pais e irmãos com deficiência. Muitos deixam de investir na formação intelectual e
profissional que, no futuro, poderia trazer melhores condições para si e para seus familiares. Exatamente
pela falta de qualificação, acabam exercendo atividades mal remuneradas e submetendo-se a jornadas de
trabalho extenuantes.
221
Além disso, a análise é incompleta quando se ignora a situação financeira das
pessoas que têm dever de sustento para com seus familiares idosos ou com deficiência,
mas vivem em outro domicílio242.
A paternidade responsável (CF, art. 226, § 7º), o dever de assistência entre pais
e filhos (CF, art. 229), o dever de assistência aos idosos (CF, art. 229) e o dever de
alimentos entre ascendentes, descendentes e irmãos (CC, art. 1694 e ss.) independem do
domicílio comum. O ordenamento jurídico não admite que familiares se esquivem da
prestação de alimentos aos que deles necessitem, tanto assim que existe a figura típica
penal de abandono material prevista no Código Penal (art. 244). Por uma questão de
coerência interna do sistema, além da situação de um núcleo familiar, seria necessário
considerar a situação das pessoas juridicamente obrigadas a prestarem assistência a seus
familiares.
Como se verifica, as distorções na aplicação do artigo 20, § 1º, da LOAS
podem resultar em prejuízo tanto aos requerentes do benefício de prestação continuada,
quanto ao Poder Público. Assim, não se trata de defender uma definição que, a priori,
possa aumentar ou reduzir o número de potenciais destinatários do benefício de
prestação continuada, pois as distorções podem operar nos dois sentidos. A questão é,
antes de tudo, pensar em um critério compatível com o caráter dinâmico das estruturas
familiares e permeável “às inflexões que os acordos sociais pragmáticos operam”
(FORTES, 2009, p. 267).
A identificação do grupo familiar em cada caso concreto evitaria distorções,
tanto na concessão quanto no indeferimento do benefício e seria mais condizente com a
diretriz constitucional de proteção à família por meio da assistência social. No entanto,
essa proposta poderia se mostrar inviável e, inclusive, resultar em falta de uniformidade
nos critérios de concessão do benefício, com franca quebra de isonomia. A excessiva
abertura ao caso concreto poderia criar dificuldades adicionais de planejamento nas
ações concernentes a esse benefício, pela impossibilidade de prever o contingente de
pessoas elegíveis.
242
Mais uma vez, é pertinente citar Fortes (2009, p. 273): “Efetivamente, a exigência de coabitação
acaba, muitas vezes, por encobrir renda familiar que poderia, de fato, enfrentar a contingência, de acordo
com os pertinentes ditames do Código Civil”.
222
4.2.5.1.1.4 Uma alternativa aos critérios previstos no artigo 20, § § 1º e 2º, da LOAS
As críticas apresentadas nos tópicos anteriores demonstram que os atuais
critérios adotados pela LOAS carecem de aprimoramento.
A aferição da situação financeira não deveria se resumir a duas operações
aritméticas de soma e divisão, tampouco é suficiente considerarem-se as relações
familiares presumidas na LOAS para prover proteção ao indivíduo. Em outras palavras,
uma análise mais completa da capacidade econômica do idoso ou da pessoa com
deficiência e de sua família passa pelo desenvolvimento de instrumentos de análise
melhor elaborados.
Fatores como a variação do custo de vida nas diversas regiões do país, as
demandas pessoais específicas daqueles que requerem o benefício, a natureza e o valor
das despesas da família deveriam ser sopesados na análise. A presença de pessoas em
idade escolar ou com baixa escolaridade é exemplo de um fator que deveria ser levado
em conta na avaliação socioeconômica, pois indica a necessidade de algum grau de
investimento em formação. Da mesma maneira, a adequabilidade de condições de
moradia, alimentação, acesso à saúde etc. interfere na maior ou menor vulnerabilidade
social.
Uma alternativa ao atual critério seria a reunião dessas e de outras variáveis
para compor um índice apto a demonstrar a situação socioeconômica individual e
familiar de cada interessado na obtenção do benefício assistencial243. A criação de um
índice evitaria que situações de necessidade ensejadoras do benefício assistencial
fossem identificadas exclusivamente em função da renda per capita244. Da mesma
forma, evitaria subjetivismos e arbitrariedade no exame das hipóteses de concessão do
benefício.
243
A proposta de criação desse índice é fruto de maior reflexão e busca de parâmetros racionais e
objetivos para lidar com a questão em exame, representando, pois, uma análise mais detida e cuidadosa
em contraste com afirmação mais singela apresentada em trabalho anterior, no sentido de que “mais
adequado seria a adoção de metodologias de avaliação que contemplassem variáveis como as
necessidades específicas do idoso ou da pessoa com deficiência que solicita o benefício, o custo de vida
nas diversas cidades brasileiras” (SALES, 2011, p. 23).
244
A título de comparação, recorda- se que o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH foi concebido
para permitir que o exame do nível de desenvolvimento de uma população não se restringisse ao exame
de riqueza econômica. Ainda que não deixe de representar uma forma simplificada de analisar uma
determinada sociedade, a pluralidade de variáveis que compõem o índice favorece a compreensão dessa
sociedade de forma mais aprofundada do que a análise meramente econômica, frequentemente ancorada
no Produto Interno Bruto – PIB. Cf. informações disponíveis em: <http://www.pnud.org.br/idh/>. Acesso
em: 22 dez. 2011.
223
Para que essa proposta pudesse avançar, porém, seria relevante a expansão dos
CRAS e CREAS, a valorização dos profissionais do serviço social e a consolidação de
bancos de dados com informações dos cidadãos atendidos pela rede socioassistencial,
de modo a se obterem subsídios para a realização dessa forma de avaliação.
Já no tocante à identificação da família, propõe-se também a adoção de outro
critério. Como ponto de partida, seria adequado tomar a definição de família contida na
Lei n. 10.836/04, que instituiu o Programa Bolsa Família, a saber: “unidade nuclear,
eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco
ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se
mantém pela contribuição de seus membros” (art. 2º, § 1º, I). A esse núcleo, deveriam
ser agregadas as pessoas que, embora vivendo em outros domicílios, têm dever de
alimentos para com o requerente do benefício. A partir dessa conjugação, ter-se-ia um
diagnóstico mais preciso sobre a capacidade de uma determinada família assegurar o
atendimento das necessidades de seus membros.
4.2.5.1.1.5 Manutenção, suspensão e cessação do benefício assistencial de prestação
continuada
A concessão do benefício de prestação continuada é ato administrativo
vinculado. Sua concessão depende da demonstração dos requisitos previstos em lei,
expostos nos tópicos anteriores. Sua manutenção, da mesma maneira, depende da
persistência das condições que ensejaram a concessão do benefício.
Nesse diapasão, dispõe o artigo 21 da LOAS que a continuidade das condições
que deram origem ao benefício devem ser revistas a cada dois anos. Ocorrendo a
superação dessas condições ou em caso de morte do titular, o benefício cessa (art. 21, § 1º).
Além disso, o benefício será cessado se constatada irregularidade em sua concessão – o
que decorre do princípio da legalidade e da natureza vinculada do ato administrativo de
concessão – ou em sua utilização (art. 21, § 2º).
A irregularidade na utilização do benefício não é definida na LOAS nem no
Decreto n. 6.214/07. O Decreto prevê a cessação do benefício por irregularidade em sua
concessão ou manutenção, sem definir o que se considera “irregularidade em
224
utilização”. Como o benefício de prestação continuada não exige contrapartidas, não
pode haver ingerência na forma de utilização desse rendimento por seu titular, sob pena
de se ferir o princípio de respeito à autonomia do cidadão (LOAS, art. 4º, III).
Também no que tange à manutenção e cessação do benefício, verifica-se que as
últimas alterações da LOAS tendem a atenuar a dinâmica que, ao invés de reduzir,
acaba por aumentar a dependência de muitas pessoas em relação à assistência social. O
artigo 21 passou a prever, em seu § 3º, que “o desenvolvimento das capacidades
cognitivas, motoras ou educacionais e a realização de atividadesnão remuneradas de
habilitação e reabilitação, entre outras, não constituem motivo de suspensão ou cessação
do benefício da pessoa com deficiência”.
Além disso, seu § 4º, com redação dada pela Lei n. 12.470/11, estabelece que a
cessação do benefício concedido à pessoa com deficiência não impede nova concessão
do benefício, desde que presentes os requisitos previstos em regulamento. No curto
tempo em que vigeu com redação conferida pela Lei n. 12.435/11, esse parágrafo previa
que tal possibilidade seria assegurada inclusive quando a cessação fosse motivada pelo
ingresso no mercado de trabalho. No entanto, a supressão da expressão “inclusive em
razão do seu ingresso no mercado de trabalho” não altera o sentido da norma.
O novo artigo 21-A prevê a suspensão do benefício pelo desempenho de
atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual. Ao
mesmo tempo, cria mecanismos para que titulares de benefício assistencial transitem para
o mercado de trabalho com mais segurança, dispondo em seu parágrafo primeiro que:
§ 1º Extinta a relação trabalhista ou a atividade empreendedora de que
trata o caput deste artigo e, quando for o caso, encerrado o prazo de
pagamento do seguro-desemprego e não tendo o beneficiário
adquirido direito a qualquer benefício previdenciário, poderá ser
requerida a continuidade do pagamento do benefício suspenso, sem
necessidade de realização de perícia médica ou reavaliação da
deficiência e do grau de incapacidade para esse fim, respeitado o
período de revisão previsto no caput do art. 21.
Note-se que o dispositivo trata da suspensão do benefício e não de sua
cessação, o que permite às pessoas compreendidas na hipótese prevista nesse parágrafo
voltarem a receber o benefício sem ter de demonstrar novamente o preenchimento dos
requisitos.
225
4.2.5.1.2 Benefícios eventuais
Na redação original da LOAS, o artigo 22 fazia referência ao pagamento de
benefícios assistenciais de natureza eventual. Sua concessão deveria estar atrelada aos
eventos nascimento ou morte de integrantes de famílias com renda per capita inferior a
um quarto do salário mínimo. Além dessas hipóteses, facultava-se a instituição de
outros benefícios eventuais para atender situações de vulnerabilidade temporária e
calamidade pública.
Aparentemente benéficas, essas previsões foram aplicadas de forma prejudicial
a muitos cidadãos no início de vigências da LOAS. Isso porque, até 1993, os benefícios
eventuais tinham natureza previdenciária e eram custeados com os recursos arrecadados
na forma do Plano de Custeio da Seguridade Social, destinados à Fazenda Federal. A
mudança de natureza jurídica e ente mantenedor promovida pela LOAS, contudo, não
foi acompanhada por mudanças na arrecadação. Assim, o Instituto Nacional do Seguro
Social – INSS e, posteriormente, a União continuaram arrecadando as verbas que antes
eram destinadas ao custeio de benefícios eventuais, mas sem o dever de fazê-lo.
Estados, Distrito Federal e Municípios, por sua vez, receberam a incumbência de pagar
esses benefícios, mas não a correspondente fonte de custeio.
Em tese, o atendimento à população não seria prejudicado. O artigo 40 da
LOAS previu uma transição entre os regimes, além de determinar que “a transferência
dos beneficiários do sistema previdenciário para a assistência social deve ser
estabelecida de forma que o atendimento à população não sofra solução de
continuidade”245.
No entanto, isso não ocorreu. O Decreto n. 1.744, de 08 de dezembro de 1995,
extinguiu o auxílio-natalidade, o auxílio-funeral e a renda mensal vitalícia a partir de 01
de janeiro de 1996 (art. 39). De outro lado, os benefícios eventuais devidos em razão
dos eventos nascimento e morte não foram regulamentados, como também não
existiram iniciativas visando à criação de outros benefícios eventuais (BOSCHETTI,
2003, p. 89).
245
A disposição constou tanto do parágrafo único do artigo 40, em sua redação original, quanto do
parágrafo primeiro desse dispositivo após a alteração promovida pela Lei n. 9.711, de 20 de novembro
de 1998.
226
A simples constatação de que um decreto determinou a extinção de benefício
previsto em lei ordinária demonstra a inconstitucionalidade da medida. A corroborar
essa assertiva, frisa-se que, em 10 de dezembro de 1997, a Lei n. 9.528 alterou a
redação da Lei n. 8.213/91, novamente prevendo a extinção desses benefícios, desta vez
por norma de mesma hierarquia. Essa observação revela a forma pouco técnica com que
temas atinentes à assistência social foram tratados mesmo após a Constituição Federal.
Atualmente, por força das alterações de 2011, o artigo 22 define benefícios
eventuais não apenas como “pagamentos”, mas como “provisões suplementares e
provisórias que integram organicamente as garantias do SUAS”. Com algumas
alterações de redação, foram mantidas as quatro hipóteses de concessão previstas desde
1993 – nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade
pública – e foi suprimido o critério da renda per capita inferior a um quarto de salário
mínimo.
Ao contrário do benefício de prestação continuada, esses benefícios são
instituídos e custeados por Estados, Distrito Federal e Municípios, com base em
parâmetros fixados por seus Conselhos de Assistência Social (art. 22, § 1º). No âmbito
federal, o CNAS apenas pode propor a instituição de benefícios subsidiários no valor de
até um quarto de salário mínimo por criança de até 6 anos de idade (art. 22, § 2º). Nesta
hipótese, os benefícios são inacumuláveis com os pagamentos decorrentes do Programa
Bolsa Renda e do Auxílio Emergencial Financeiro, instituídos, respectivamente, pelas
Leis n. 10.458/02 e n. 10.954/04 (art. 22, § 3º).
4.2.5.2 Serviços assistenciais
O artigo 23 da LOAS define serviços assistenciais como atividades
continuadas que visem à melhoria de vida da população, com ações voltadas para o
atendimento de necessidades básicas, e que observem os parâmetros da LOAS.
A disciplina desses serviços deve ser feita em regulamento (art. 23, § 1º). De
antemão, porém, são indicados dois grupos que necessariamente devem ser atendidos na
organização desses serviços: crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e
social, bem como pessoas vivendo em situação de rua (art. 23, § 2º).
227
4.2.5.3 Programas de assistência social
Os programas de assistência social estão previstos no artigo 24 da LOAS como
“ações integradas e complementares com objetivos, tempo e área de abrangência
definidos para qualificar, incentivar e melhorar os benefícios e os serviços
assistenciais”. O que se depreende dessa definição é a finalidade de atendimento às
situações de necessidade social que exijam intervenção mais intensa, potencializando-se
o resultado de benefícios e serviços.
Cabe aos Conselhos de Assistência Social definir esses programas, que devem
atender a duas diretrizes: a prioridade para a inserção profissional e social (§ 1º) e, no
caso dos programas voltados aos idosos e pessoas com deficiência, a articulação com o
benefício de prestação continuada (§ 2º).
4.2.5.3.1 Programas de assistência social desenvolvidos entre a promulgação da
LOAS e a aprovação da PNAS/2004
A partir de 1996, e com mais intensidade a partir do ano 2000, houve um
incremento de programas de assistência social.
Boschetti (2003, p. 90)246 registra o surgimento de três novos programas entre
1996 e 1998. O primeiro deles foi o programa “Brasil Criança Cidadã”, que vigeu entre
1996 e 1999. O segundo foi o “Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI”,
instituído em 1996 e atualmente incorporado ao texto da LOAS, com alterações de
regramento em relação à disciplina original. O terceiro foi o programa “Sentinela”,
instituído em 1997 e destinado ao Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de
Crianças e Adolescentes.
Ainda em 1997, a Lei n. 9.533 autorizou a União a conceder apoio financeiro
aos Municípios que instituíssem programas de garantia de renda mínima associados a
246
A principal referência bibliográfica em relação ao período de 1996 a 2002 é o trabalho de Boschetti
(2003), que analisou a Política de Assistência Social implementada pelo governo do período 1994-2002.
228
ações socioeducativas247. Regulamentado pelo Decreto n. 2.609, de 02 de junho de
1998, e posteriormente pelo Decreto n. 3.117, de 13 de julho de 1999, previu-se que os
recursos orçamentários destinados a esse apoio seriam alocados no FNAS. A concessão
desse apoio, contudo, era feita por meio do Ministério da Educação e do Desporto e,
segundo Boschetti (2003, p. 91), “suas diretrizes nunca foram submetidas ao Conselho
Nacional de Assistência Social”.
O programa criado pela Lei n. 9.533/97 foi substituído pelo outro Programa
Nacional de Renda Mínima vinculada à educação – “Bolsa Escola”, criado pela Medida
Provisória n. 2.140, de 13 de fevereiro de 2001, a qual foi reeditada pela Medida
Provisória n. 2.140-1, de 14 de março de 2001 e convertida na Lei n. 10.219, de 11 de
abril de 2001248. A partir de então, seu financiamento passou a seu feito pelo Fundo de
Erradicação e Combate à Pobreza (BOSCHETTI, 2003, p. 91).
Boschetti (2003, p. 91) registra que a partir de 2000, com a aprovação do Plano
Plurianual de 2000-2003, a condução desses programas passou por mudanças. Criou-se
o Projeto Alvorada, que focaliza sua atuação em locais de menor Índice de
Desenvolvimento Humano – IDH.
Também em 2000, o Programa Brasil Jovem foi implantado, com o
desenvolvimento de Centros da Juventude e do projeto Agente Jovem de
Desenvolvimento Social. Boschetti (2003, p. 90-91) explica que o projeto Agente
Jovem consistia em um programa de transferência de renda, custeado com recursos do
FNAS, que visava capacitar jovens “agentes sociais” em suas comunidades. Entre os
requisitos para a seleção dos beneficiários estava a renda per capita familiar de até meio
salário mínimo por mês.
247
Entre as regras que pautavam esse apoio financeiro, previu-se que os recursos federais seriam
destinados às famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo (Lei n. 9.533/97, art. 5º, I).
Para tanto, definiu-se família como “unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que
com ela possuam laços de parentesco, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e
mantendo sua economia pela contribuição de seus membros”.
248
Gerido pelo Ministério da Educação, o programa constitui “instrumento de participação financeira da
União em programas municipais de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas” (art.
1º, § 1º). O apoio financeiro prestado pela União compreendia o pagamento à família beneficiária do
valor de R$ 15,00 (quinze reais) mensais por criança, até o limite de três crianças por família (art. 4º). As
famílias, cuja definição era igual à contida na Lei n. 9.533/97, deveriam ter renda per capita mensal
inferior ao valor fixado por ato do Poder Executivo.
229
4.2.5.3.2 Programas de transferência de renda paralelos à política de assistência
social
Paralelamente, desenvolveram-se programas que, embora compatíveis com a
definição de assistência social, não foram vinculados a essa política e, portanto, não
seguiam as diretrizes da LOAS. O primeiro deles foi o Bolsa Alimentação, criado pela
Medida Provisória n. 2.206-1, de 06 de setembro de 2001.
Vinculado às ações de saúde (art. 1º), o Bolsa Alimentação visava à “promoção
das condições de saúde e nutrição de gestantes, nutrizes e crianças de seis meses a seis
anos e onze meses de idade, mediante a complementação da renda familiar para melhoria
da alimentação” (art. 2º) ou desde o nascimento em caso de filhos de mães soropositivas
(art. 3º, caput e § 1º). Dirigido às famílias249 com renda per capita inferior ao limite
fixado em ato do Poder Executivo, o programa consistia em um pagamento mensal de
R$ 15,00 por beneficiário, até o limite de R$ 45,00 por família beneficiada (art. 4º)250.
Em 28 de dezembro de 2001, o artigo 5º da Medida Provisória n. 18,
convertida na Lei n. 10.453/02, criou o programa Auxílio-Gás. Regulamentado pelo
Decreto n. 4.102/02 e coordenado pelo Ministério de Minas e Energia, o programa
consistia na concessão de subsídio de R$ 7,50 ao preço do gás liquefeito de petróleo –
GLP para famílias de baixa renda. Para efeito de acesso a esse subsídio, estabelecia-se
como requisito a renda per capita não superior a meio salário mínimo.
O Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA foi instituído pela
Medida Provisória n. 108, de 27 de fevereiro de 2003, convertida na Lei n. 10.689, de
13 de junho de 2003, e visava “ao combate à fome e à promoção da segurança alimentar
e nutricional” (art. 1º).
Por meio desse programa famílias em situação de insegurança alimentar
recebiam um pagamento mediante cartão unificado ou alimentos em espécie (art. 1º, § 2º).
A lei estabeleceu ainda que o público-alvo do programa seriam destinados às famílias251
249
Para aferição da renda, família foi definida como “unidade nuclear formada pelos pais e filhos, ainda
que eventualmente possa ser ampliada por outros indivíduos com parentesco, que forme grupo doméstico
vivendo sob a mesma moradia e que se mantenha economicamente com renda dos próprios membros”.
250
Esse valor é passível de alteração por ato do Poder Executivo mediante “disponibilidade orçamentária
para tal fim” (art. 4º, § 2º).
251
Nessa lei, compreende-se por família a “unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros
indivíduos que com ela possuam laços de parentesco, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o
mesmo teto e mantendo sua economia pela contribuição de seus membros” (art. 2º, § 3).
230
com renda per capita inferior a meio salário mínimo (art. 2º, § 2º), excluindo-se do
cálculo rendimentos provenientes do próprio PNAA, do Bolsa Alimentação e do Bolsa
Escola.
Chama a atenção na Lei n. 10.689/03 a previsão de que “a concessão do
benefício do PNAA tem caráter temporário e não gera direito adquirido” e a ampla
competência conferida ao Poder Executivo para regulamentar o programa, fixando
inclusive o valor das prestações. Com isso, ao invés de estabelecer as hipóteses de
concessão, manutenção e cessação do benefício, criou-se uma previsão inespecífica que
reforça o caráter ad hoc das ações socioassistenciais e retira as garantias do cidadão.
Por meio da Medida Provisória n. 132, de 20 de outubro de 2003, convertida na
Lei n. 10.836, de 09 de janeiro de 2004, o Programa Bolsa Família foi instituído. Tratase de programa intersetorial, que estabeleceu transferência de renda252 com
condicionalidades e unificou procedimentos de gestão e execução das ações de
transferência de renda do Governo Federal. Tido atualmente como maior programa de
transferência de renda do mundo (SILVA; LIMA, 2010, p. 28), a unificação proposta
pelo programa abrangeu os programas Bolsa Escola, PNAA, Bolsa Alimentação e
Auxílio-Gás; posteriormente, houve integração do PETI ao Bolsa Família (SILVA;
LIMA, 2010, p. 34).
4.2.5.3.3 Uma avaliação dos programas de assistência social antes da PNAS/2004
Os programas desenvolvidos entre a promulgação da LOAS e a aprovação da
PNAS revelam que, durante a última década, houve uma dinamização das ações de
assistência social com significativa expansão dos programas de transferência de renda.
252
O Programa Bolsa Família prevê uma modalidade de benefício básico e duas modalidades de
benefícios variáveis, concedidos em conformidade com a composição da unidade familiar beneficiária
(art. 2º). Para efeito de aferição da situação de necessidade adota-se o critério da renda per capita
familiar, entendendo-se por família “a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos
que com ela possuam laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o
mesmo teto e que se mantém pela contribuição de seus membros” (art. 2º, § 1º, I). Citando uma palestra
proferida por Eduardo Picarelli, Fortes (2009, p. 260) ressalta que a definição de família prevista nesse
programa é mais abrangente e mais explícita quanto às pessoas que podem ser consideradas integrantes
do núcleo familiar, permitindo inclusive o cômputo de pessoas que possuam laços de afinidade. A autora
registra duas críticas feitas por Eduardo Picarelli a esse conceito: a exigência de coabitação e o não
reconhecimento expresso do parentesco socioafetivo.
231
No entanto, sobretudo até a criação do Programa Bolsa Família253, a dispersão
dessas ações é bastante evidente. Particularmente grave é a existência de políticas de
transferência de renda desvinculadas da assistência social e distanciadas dos parâmetros
previstos na LOAS. Essa dispersão não se reflete apenas no maior ou menor prestígio
das políticas claramente afetas à assistência social; afeta também os custos operacionais
e a capacidade do Poder Público de conhecer melhor os beneficiários desses programas,
essencial para que a proteção social seja corretamente direcionada para as necessidades
sociais.
Ainda sobre o aspecto organizacional, ressalta-se que o Governo Federal
concentrou o papel de definidor das ações. Analisando o período de 1994 a 2002,
Boschetti (2003, p. 93) aponta que “a relação que se estabelece entre a União e os entes
federados (Municípios e Estados) é de agente financiador e definidor de ações, enquanto
o poder local assume a tarefa de executor”.
Quanto aos destinatários dos programas, nota-se ainda a persistência da
extrema focalização. Programas como PETI, Agente Jovem, Sentinela e PNAA
alcançaram apenas as pessoas já expostas a alguma situação de necessidade social,
especialmente crianças e adolescentes, sem atuação preventiva. Ademais, a exigência de
demonstração da renda per capita dentro dos limites previstos para cada programa e a
delimitação territorial de muitos deles restringe mais ainda o número de cidadãos
beneficiados.
Quanto às proteções afiançadas predominam as prestações em dinheiro e a
oferta de prestações ínfimas. São esses pagamentos diretos aos beneficiários que
inauguram o sistema de “bolsas” que se faz muito presente nas políticas sociais
brasileiras. Por um lado, esses pagamentos representam um avanço na medida em que
prestigiam a autonomia dos destinatários, levam em conta suas necessidades de
consumo e propiciam melhora imediata de suas condições de vida. Por outro lado, as
253
Apesar do avanço promovido pelo Programa Bolsa Família – e lembrando que a unificação de
programas sociais já é, por si só, uma conquista em matéria de política social – há pontos fundamentais
ainda não superados que obstam o êxito do programa e que repetem os aspectos negativos que vêm
marcando as políticas brasileiras de enfrentamento da pobreza e atendimento de necessidades sociais
básicas. Com base em Silva e Lima (2010, p. 34-36), esses aspectos podem ser assim resumidos:
(a) pouca integração com outros programas sociais, além daqueles já mencionados, especialmente com os
programas estaduais e municipais; (b) fragmentação da pobreza, mediante classificação de famílias em
pobres e extremamente pobres em função apenas da renda per capita; (c) inexistência de alterações
significativas na condição de vida das famílias, dada a insuficiência dos valores transferidos;
(d) articulação insatisfatória entre a transferência monetária e a participação de seus membros em
programas estruturantes; (e) ausência de melhora significativa na oferta de ensino e na saúde, “aspectos
fundamentais que configuram a dimensão estruturante do Bolsa Família” (SILVA; LIMA, 2010, p. 36).
232
medidas não vão muito além da monetarização da assistência, o que reduz as
perspectivas de transformar as estruturas que produzem as vulnerabilidades a serem
combatidas.
A despeito das falhas apontadas, a expansão desses programas foi essencial
para que a política de assistência social começasse a caminhar no país. A criação das
“bolsas”, conquanto insuficientes como medidas de proteção social, favoreceu o
amadurecimento das discussões sobre as garantias de renda mínima. Essas experiências
foram essenciais para a formulação da PNAS/2004 e para a reforma da LOAS em 2011.
4.2.5.3.4 Os programas de assistência social na atual redação da LOAS
Atualmente – e sem prejuízo de outros programas que venham ser instituídos –
a LOAS prevê três programas específicos, a saber: Serviço de Proteção e Atendimento
Integral à Família – PAIF; Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias
e Indivíduos – PAEFI; Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI. Todos
esses programas constam de dispositivos da Lei n. 12.435/11.
Nos termos do artigo 24-A, o PAIF integra a proteção social básica. Dirige-se
às famílias em situação de vulnerabilidade social e tem função preventiva, visando
evitar a ruptura de vínculos familiares e a violência dessas relações. O trabalho
desenvolvido junto a essas famílias visa promover a convivência familiar, prevenindo
situações de isolamento.
De outro giro, o PAEFI, previsto no artigo 24-B, prevê a intervenção em
situações de necessidade mais acentuada, constituindo uma forma de proteção social
especial. Esse programa é voltado para famílias e indivíduos em situação de ameaça ou
violação de direitos, escopo que demanda um trabalho social mais presente no cotidiano
das pessoas atendidas. As medidas, nesse caso, não se resumem à promoção de
convivência; consistem em apoio, orientação e acompanhamento. A intersetorialidade
se faz nítida na previsão de articulação dos serviços socioassistenciais com outras
políticas públicas e com órgãos do sistema de garantia de direitos.
Finalmente, o PETI, previsto no artigo 24-C, visa coibir a exploração do
trabalho de crianças e adolescentes. Criado em 1997, e tendo sofrido algumas
alterações, esse programa integra a PNAS/2004 e compreende transferências de renda,
233
trabalho social junto às famílias e oferta de serviços socioeducativos. Com essas ações,
pretende-se retirar da situação de trabalho crianças e adolescentes com menos de 16 anos,
ressalvada a situação do aprendiz.
Dadas as circunstâncias familiares e sociais que ensejam o precoce ingresso no
mercado de trabalho e as consequências desse ingresso na vida de crianças e
adolescentes, a intersetorialidade do programa é indispensável para sua efetividade,
conclusão a que se chegaria independentemente da previsão legal. Prevê-se ainda que o
PETI tem abrangência nacional e deve ser desenvolvido por todos os entes federativos,
com participação da sociedade civil (art. 24-C, § 1º). A lei prevê ainda a identificação
das crianças e adolescentes em situação de trabalho para a composição do Cadastro
Único para Programas Sociais do Governo Federal, o que é fundamental para viabilizar
a proteção pretendida (art. 24-C, § 2º).
4.2.5.4 Projetos de enfrentamento da pobreza
Nos termos do artigo 25 da LOAS, projetos de enfrentamento da pobreza
“compreendem a instituição de investimento econômico social nos grupos populares,
buscando subsidiar, financeira e tecnicamente, iniciativas que lhes garantam meios,
capacidade produtiva e de gestão para melhoria das condições gerais de subsistência,
elevação do padrão da qualidade de vida, a preservação do meio-ambiente e sua
organização social”.
Esses projetos pressupõem intersetorialidade e envolvimento de diferentes
atores, tanto é assim que o artigo 26 da LOAS estabelece que “o incentivo a projetos de
enfrentamento da pobreza assentar-se-á em mecanismos de articulação e de participação
de diferentes áreas governamentais, não governamentais e da sociedade civil”.
4.2.6 Financiamento da assistência social
No capítulo anterior, verificou-se que o financiamento da assistência social se
faz com recursos provenientes do orçamento da seguridade social, observadas as
234
restrições do artigo 167, inciso XI, da Constituição Federal, e de fontes de custeio
adicionais. Verificou-se ainda que Estados e Distrito Federal podem vincular até cinco
décimos por cento de sua receita tributária líquida a programas de apoio à inclusão e
promoção social, observadas as restrições contidas no artigo 204 da Constituição Federal.
Na esteira dessa previsão constitucional, a LOAS estabelece que o
financiamento da assistência social é feito com recursos dos entes federados, com as
contribuições sociais previstas no artigo 195 da Constituição Federal e com recursos do
FNAS (art. 28).
O FNAS – resultante da transformação do Fundo Nacional de Ação
Comunitária – FUNAC – é gerido pelo MDS, sob supervisão dos Conselhos de
Assistência Social. Seus recursos destinam-se à operacionalização, prestação,
aprimoramento e viabilização dos serviços, programas, projetos e benefícios da política
de assistência social (art. 28, § 3º). Para a formação desse capital, concorrem os aportes
feitos por todos os entes federativos e o produto da venda de bens da extinta LBA. Por
parte da União, o artigo 29 da LOAS autoriza uma bipartição: os recursos destinados ao
pagamento do benefício de prestação continuada podem ser repassados diretamente pelo
Ministério da Previdência Social ao INSS, ao passo que os demais aportes financeiros
destinados à assistência social devem ser automaticamente repassados ao FNAS.
O cofinanciamento das atividades desenvolvidas no SUAS é feito por
transferências automáticas entre os fundos de assistência social e mediante alocação de
recursos dos próprios entes em seus respectivos Fundos de Assistência Social (art. 30-A).
Os entes federados devem se valer de seus respectivos órgãos de controle para fiscalizar
e monitorar a aplicação dos recursos de seu respectivo Fundo de Assistência Social (art.
30-B). Além disso, todos aqueles que efetuam transferências de recursos podem
requisitar informações relativas à aplicação do montante proveniente de seu fundo de
assistência social e avaliar sua utilização (art. 30-C, p.ú.).
O tema dos repasses de verbas aos Estados, Distrito Federal e Municípios é de
extrema importância. A forma como o repasse ocorre contribui para a adesão desses
entes às estratégias da política que se quer implantar. Ademais, a adoção de critérios
racionais e objetivos para essas transferências é essencial para que a política se
desenvolva com eficiência e pautada por critérios isonômicos.
Nesse sentido, o artigo 12-A prevê que o apoio financeiro prestado pela União
ao aprimoramento da assistência social será guiado pelo Índice de Gestão
235
Descentralizada – IGD do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Esse índice
visa: (a) medir os resultados da gestão descentralizada do SUAS, com base na atuação
do gestor estadual, municipal e do Distrito Federal e na articulação intersetorial da
política de assistência social; (b) fomentar resultados qualitativos na gestão estadual,
municipal e do Distrito Federal do SUAS; e (c) calcular o montante de recursos a serem
repassados aos entes federados a título desse apoio financeiro. O artigo 30-C, a seu
turno, obriga os entes destinatários de recursos federais a apresentar ao CNAS relatório
de gestão, com periodicidade anual, comprovando a execução das ações na forma de
regulamento e autoriza os entes transferidores a requisitarem informações sobre a
aplicação dos recursos por eles transferidos.
Há clara intenção de aprimorar qualitativamente a assistência social em âmbito
local e regional, nos moldes previstos na Constituição Federal e em consonância com a
PNAS. Para tanto, prevê-se que, visando ao fortalecimento dos Conselhos de
Assistência Social dos Estados, Municípios e Distrito Federal, parte dos recursos
transferidos pela União será gasto com atividades de apoio técnico e operacional a esses
colegiados, vedando-se o emprego desses recursos no pagamento de pessoal efetivo e de
gratificações de qualquer natureza a servidor público (art. 12-A, § 4º).
Os repasses aos Municípios, aos Estados e ao Distrito Federal são
condicionados ao efetivo funcionamento de um Conselho de Assistência Social, de
composição paritária entre governo e sociedade civil; à existência de um Fundo de
Assistência Social, sob orientação e controle do respectivo Conselho de Assistência
Social; à existência de Plano de Assistência Social; à comprovação orçamentária de que
Estados, Distrito Federal e Municípios fazem suas próprias dotações de recursos para a
Assistência Social, alocando-as em seus respectivos Fundos de Assistência Social.
Essas previsões, contidas no artigo 30 da LOAS, representam a concretização dos
artigos 23, inciso II, 194, inciso VII, e 204, inciso II, da Constituição Federal.
Por fim, registra-se que os recursos do cofinanciamento do SUAS podem ser
aplicados no pagamento dos integrantes das equipes de referência que executam as
ações continuadas de assistência social (art. 6-E). Para tanto, cabe ao MDS estipular os
percentuais que poderão ser empregados com este fim. A previsão favorece a
valorização dos profissionais da assistência social e sua qualificação para melhor
desempenho de suas atribuições.
236
4.3
A Medida Provisória n. 813/1995
No dia 01 de janeiro de 1995 foi editada a Medida Provisória n. 813, dispondo
sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios. Essa reforma
administrativa interferiu negativamente no desenvolvimento da assistência social por
duas razões.
A MP n. 813/1995 extinguiu os órgãos e entidades que, naquele momento,
poderiam dar suporte à efetivação da política de assistência social: a LBA e o Centro
Brasileiro para a Infância e Adolescência – CBIA (art. 19, I). Tanto a LBA quanto o
CBIA estavam vinculados ao Ministério do Bem-Estar Social, igualmente extinto (art.
19, II). Criou-se então a Secretaria de Assistência Social, vinculada ao Ministério da
Previdência e Assistência Social (art. 16, XIII, h), que deveria absorver as atribuições
em matéria de assistência social.
Por força dessa reorganização – e muito embora as críticas à atuação da LBA
pudessem justificar uma mudança radical nos órgãos responsáveis pela assistência
social –, a gestão da assistência social acabou por ficar prejudicada. As ações
assistenciais em curso foram desorganizadas (RAICHELIS, 2011, p. 108), criando-se
um “vácuo na área da assistência social”, com manutenção de apenas alguns serviços e
projetos (BOSCHETTI, 2003, p. 90).
Além disso, essa Medida Provisória foi responsável pela instituição do
Programa Comunidade Solidária, que ocupou um espaço que caberia à LOAS e não
atentou para as diretrizes desta lei254.
O Programa Comunidade Solidária era vinculado à Presidência da República e
tinha por objetivo “coordenar as ações governamentais visando o atendimento da
parcela da população que não dispõe de meios para prover suas necessidades básicas,
em especial o combate à fome e à pobreza” (art. 12). Previu-se ainda que a existência de
um Conselho do Programa Comunidade Solidária, com composição e competências
estabelecidas pelo Poder Executivo (art. 12, p.ú.).
Dispondo sobre o Programa Comunidade Solidária, o Decreto n. 1.366, de 12 de
janeiro de 1995, reiterou o objetivo do programa, conferindo especial atenção às ações
254
Uma sucinta menção ao Programa Comunidade Solidária como um movimento em sentido contrário à
LOAS também consta de trabalho anterior de mesma autoria (cf. SALES, 2011, p. 11).
237
governamentais “nas áreas de alimentação e nutrição, serviços urbanos, desenvolvimento
rural, geração de emprego e renda, defesa de direitos e promoção social”.
Esse Decreto previu ainda a existência de um conselho de caráter consultivo,
formado por Ministros de Estado, pelo Secretário Executivo do Programa e por 21
membros da sociedade, designados pelo Presidente da República. Sua presidência
ficaria a cargo de um dos membros representantes da sociedade, nomeado pelo
Presidente da República. As atribuições do conselho são definidas da seguinte forma:
Art. 3º Compete ao Conselho do Programa Comunidade Solidária:
I - propor e opinar sobre ações prioritárias na área social;
II - incentivar na sociedade o desenvolvimento de organizações que
realizem, em parceria com o governo, o combate à pobreza e à fome;
III - incentivar a parceria e a integração entre os órgãos públicos
federais, estaduais e municipais, visando à complementariedade das
ações desenvolvidas;
IV - promover campanhas de conscientização da opinião pública para
o combate à pobreza e à fome, visando à integração de esforços do
governo e da sociedade;
V - estimular e apoiar a criação de conselhos estaduais e municipais
de combate à fome e à pobreza;
VI - elaborar seu regimento interno.
As diretrizes previstas na LOAS seriam suficientes para a articulação da
política de assistência social, abrangendo as medidas de enfrentamento da pobreza e da
fome preconizadas pelo Programa Comunidade Solidária. Em vez de concentrar
esforços para a implementação da LOAS, optou-se por um paralelismo de ações com
ofuscamento desta lei ainda no início de sua vigência. Como bem observa Raichelis
(2011, p. 110), reforçou-se “a diluição de competência e a inorganicidade das ações da
assistência social, retrocedendo-se em relação aos avanços contidos na Carta
Constitucional e na LOAS” e deu-se ensejo ao surgimento de áreas de atritos entre a
assistência social e o Comunidade Solidária (RAICHELIS, 2011, p. 113).
Foram ainda contrariadas as previsões constitucionais e legais da assistência
social, que prestigiam posturas democratizantes e enfatizam a primazia da
responsabilidade do Poder Público. Isso porque a presidência do Conselho do
Comunidade Solidária foi entregue à Primeira-Dama (RAICHELIS, 2011, p. 107, nota
de rodapé 48), exatamente como fizera Getúlio Vargas à época da fundação da LBA. No
lugar de um conjunto de instâncias deliberativas criou-se um único conselho de caráter
consultivo, com membros nomeados pelo Presidente da República. Dessa forma, fóruns
238
de discussão e deliberação foram enfraquecidos e a representação da sociedade civil
restou desprestigiada.
O apelo “à integração de esforços do governo e da sociedade”, antes da
consolidação dos esforços governamentais, repetiu padrões de atendimento sobejamente
criticados em matéria de assistência social. O programa valeu-se da solidariedade
entendida como filantropia, procurando sanar graves problemas como fome e pobreza
por meio de apelo à ajuda graciosa de alguns segmentos da sociedade e de medidas
focalizadas, e não pela afirmação de direitos (RAICHELIS, 2011, p. 111-112).
Todos esses pontos são abordados na crítica de Oliveira (RAICHELIS, 2011,
Prefácio, p. 17):
Não sem razão, a Comunidade Solidária anulou, imediatamente, o
CNAS como locus da formulação da assistência social como política
pública. [...] A ação da Comunidade Solidária reproduz, ponto por
ponto, a trajetória da assistência social na estrutura do Estado
brasileiro: assistencialista no pior sentido do termo, fisiológica,
clientelista, fonte de corrupção política, e, sobretudo, o nãoreconhecimento dos agentes da assistência social e do serviço social
como sujeitos da política. Salta-se por cima das instituições, para
realizar a assistência diretamente, numa das características que mais
aproximam o neoliberalismo do autoritarismo.[...] Destrói-se a esfera
pública não-burguesa, para voltar-se ao modelo tradicional: o projeto e
a forma de atuação da Comunidade Solidária são a cara da
privatização do Estado na área da assistência social, que corresponde
ao lado privatizante que se passa na questão das empresas públicas e
na concepção do Estado Mínimo, do Estado clean e lean, cuja lógica
de atuação deve ser a mesma das empresas privadas.
Na I Conferência Nacional de Assistência Social, duras críticas foram dirigidas
ao Comunidade Solidária, com a aprovação de moções de repúdio durante o evento. As
críticas se referiam tanto às concepções de assistência social e de enfrentamento da
pobreza subjacentes ao Programa255, quanto à forma como se desenvolviam as ações a
255
A moção de repúdio n. 31 afirma que o Programa Comunidade Solidária “rebaixa o cidadão à
qualidade de pedinte do Estado e a assistência como benemerência”. As moções de repúdio n. 34 e n. 35
sustentam que esse programa contrariava os princípios fundamentais e deslegitimava as diretrizes da
LOAS no tocante à descentralização político-administrativa, ao comando único das ações e à participação
da sociedade civil na discussão e formulação de políticas de assistência social. Da mesma forma, a moção
de repúdio n. 36 afirma o emprego de mecanismos de exclusão e clientelismo pelo Programa e critica sua
base assistencialista, contrária à LOAS. CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL.
Relatório Final da I Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 20 a 23 de novembro de 1995.
Disponível
em:
<http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/iconferencia-nacional/i-conferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012.
239
que o programa se propunha, a exemplo da distribuição de alimentos impróprios para o
consumo e entrega de cestas básicas com apenas três gêneros alimentícios256.
Esse Programa durou até a instalação do Programa Fome Zero, em 2002, e
constituiu um bom exemplo de como a nebulosa relação público-privado na assistência
social, presente desde os anos 1930, é apresentada no final do século XX como uma
“nova” proposta de ordenação das relações sociais (MESTRINER, 2011, p. 23). Mostra
ainda como o estímulo à filantropia e ao voluntariado sempre trazem à baila a ideia de
que necessidades sociais se resolvem por meio de solidariedade individual – e não de
solidariedade social. Portanto, mesmo sob a égide de normas constitucionais
absolutamente diversas, a forma de atenção a essas necessidades pouco se alterou.
4.4
A Política Nacional de Assistência Social de 1998 e as Normas Operacionais
Básicas de 1997 e 1998
Por meio da Resolução n. 204, de 04 de dezembro de 1997 veio a lume a
Norma Operacional Básica – NOB/1997.
A NOB/1997 estabeleceu diretrizes para a organização de um sistema
descentralizado e participativo na assistência social. Para tanto, elegeu como estratégia
de gestão o estabelecimento de relações intergovernamentais, propondo a formação de
Comissão Tripartite para deliberar e pactuar aspectos relativos à gestão da política de
assistência social. Foram propostos dois níveis de gestão da assistência social: estadual
e municipal (NOB/SUAS 2005, tópico 1).
As regras sobre o financiamento da política não constaram da NOB/1997 e sim de
documentos à parte. De um lado, disciplinou-se o financiamento de projetos e, de outro, o
256
A moção de repúdio n. 32 menciona que o Estado do Amazonas recebeu do Programa Comunidade
Solidária alimentos estragados, como fubá, feijão, bala e arroz com gorgulho, provenientes dos estoques
da Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB. Acrescenta-se ainda que esses alimentos “foram
considerados inservíveis até para o consumo de animais”. A moção de repúdio n. 33 critica a distribuição
de Cestas Básicas pelo Comunidade Solidária, por conter apenas arroz, fubá e macarrão; por ser
distribuída sob “vigilância de soldados do Exército, armados ostensivamente”; e por reforçar a
“Prefeiturização”, afirmando que os conselhos eram, em sua maioria, “forjados e manipulados pelos
Prefeitos”. CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Relatório Final da I Conferência
Nacional de Assistência Social. Brasília, 20 a 23 de novembro de 1995. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/i-conferencia-nacional/iconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012.
240
financiamento de serviços. Porém, não ficaram claras as responsabilidades de cada ente
federativo em relação à proteção social a ser provida (NOB/SUAS 2005, tópico 1).
Em 16 de dezembro de 1998, mais de uma década após a promulgação da
Constituição Federal, a Resolução n. 207 do CNAS aprovou a primeira Política
Nacional de Assistência Social – PNAS/1998, na forma preconizada pela LOAS,
juntamente com a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB 2/1998257.
A PNAS/1998 enunciou o propósito de “efetivar a assistência social como
Política Pública de Seguridade Social propondo ações de caráter permanente
comprometidas com a construção de uma civilização mais justa e igualitária”.
O público atendido de forma prioritária foi definido com base no
preenchimento concomitante de dois requisitos. O primeiro deles era a situação de
vulnerabilidade decorrente de ciclo de vida ou condição de desvantagem pessoal; o
segundo era a situação de pobreza, identificada como renda per capita mensal de até
meio salário mínimo. (PNAS/1998, tópico 3).
Para Mestriner (2011, p. 248), a PNAS/1998 era “voltada para frações
praticamente ‘terminais’ na linha da pobreza”, afirmação correta por se tratar de uma
política que só intervinha nas hipóteses em que pobreza e vulnerabilidades estivessem
agregadas258.
Nesse documento são enfatizadas as estratégias de atuação pautadas pela
centralidade da família, entendida como “unidade nuclear, eventualmente ampliada por
outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco, que forme um grupo
doméstico, vivendo sob o mesmo teto e mantendo sua economia pela contribuição de
seus membros”, nos termos do artigo 5º, § 1º, da Lei n. 9.533/97. Além de previsões
específicas de atendimento a crianças, adolescentes, idosos e pessoa com deficiência,
foram previstos programas de transferência de renda e projetos de enfrentamento da
pobreza.
Por fim, foram definidas as competências dos entes federativos e das instâncias
de controle social. Entre as diretrizes, menciona-se o “estreitamento da parceria entre
Estado e organizações de assistência social da Sociedade Civil” (PNAS/1998,
257
A Resolução n. 207, de 16 de dezembro de 1998, contendo a PNAS e a NOB em seus anexos, foi
publicada no Diário Oficial em 18 de dezembro de1998 e, em razão de omissões, republicada no Diário
Oficial de 16 de abril de 1999, suplemento ao n. 72, Seção 1, p. 1-15. Neste trabalho, consultou-se a
segunda publicação.
258
Ainda assim, o público destinatário da intervenção socioassistencial foi identificado por um critério de
renda menos rígido do que o fixado para concessão do benefício de prestação continuada (LOAS, art. 20).
241
Diretrizes). A aproximação com a sociedade civil, que não representa nenhuma
novidade em matéria de assistência social, justifica a crítica de Mestriner (2011, p. 248)
a respeito da falta de critérios transparentes e democráticos na articulação entre
instâncias governamentais e não governamentais.
A NOB 2, por sua vez, tratou das estratégias, princípios e diretrizes para a
implementação da PNAS/1998, retomando alguns aspectos da NOB/1997. Esse
documento propôs a habilitação de Municípios, Estados e Distrito Federal para o
exercício da gestão descentralização da assistência social. Além disso, previu a
instituição de espaços permanentes de negociação e pactuação, consistentes em
Comissão Intergestores Tripartite e Comissão Intergestores Bipartite (NOB 2, tópico 2).
Para o financiamento de serviços assistenciais, adotou-se o sistema de transferências
automáticas, mantendo-se o financiamento ad hoc para programas e projetos (NOB 2,
tópicos 1.2 e 1.3).
4.5
A Política Nacional de Assistência Social de 2004
A Resolução n. 145, de 15 de outubro de 2004, do CNAS aprovou nova
Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004.
O texto final partiu da versão preliminar apresentada pelo MDS/SNAS ao
CNAS em 23 de junho de 2004, e passou por debates e deliberações na Reunião
Descentralizada e Participativa do CNAS, no período de 20 a 22 de setembro de 2004,
ocasião em que foi aprovada por unanimidade.
A aprovação da PNAS/2004 representa uma grande conquista democrática da
assistência social259, pois sua elaboração contou com a efetiva participação dos entes
federativos e da sociedade civil, como se extrai do registro abaixo:
O processo de aprovação da PNAS e da NOB-SUAS deve ser
destacado pelo caráter democrático e pela preocupação com a
259
Para que se tenha a dimensão dessa conquista, deve-se recordar a ausência de espaços democráticos de
elaboração de políticas sociais antes da Constituição Federal de 1988, a forma de composição e o caráter
consultivo do Conselho do Programa Comunidade Solidária, bem como o aumento do intervalo entre as
Conferências Nacionais de Assistência Social – na redação original da LOAS, a periodicidade da
convocação ordinária para essas Conferências era bienal e passou a ser quadrienal a partir da Lei n.
9.720/98 (LOAS, art. 18, VI).
242
construção de um federalismo cooperativo. Os documentos foram
inicialmente elaborados pela equipe da Secretaria Nacional de
Assistência Social do MDS, submetidos à consulta pública e objeto de
dezenas de contribuições de representações dos governos estaduais e
municipais e da sociedade civil, discutidos em inúmeros debates e
reuniões descentralizadas pelo país, sistematizado e submetido à
aprovação do CNAS. O sistema foi organizado de modo que valoriza
a adesão e a capacidade de gestão dos Estados e Municípios e o papel
dos conselhos (que obrigatoriamente devem ser paritários entre
governo e sociedade civil) que ganham centralidade na aprovação do
financiamento (e da prestação de contas dos recursos utilizados) da
área (STUCHI, 2010, p. 164-165).
Essa política proporcionou diversos ganhos em termos de aprofundamento e
sistematização da assistência social. Em seu bojo, foram identificados princípios,
diretrizes e objetivos da assistência social, bem como os beneficiários e as proteções
afiançadas. Além disso, estabeleceu-se que os elementos necessários à execução dessa
política devem ser ordenados sob a forma de Sistema Único de Assistência Social,
observando-se padrões normatizados de serviço, atendimento e divulgação, aplicação de
indicadores de avaliação e adoção de eixos estruturantes comuns por todos os órgãos e
agentes envolvidos, incluindo novas bases na relação com a sociedade civil.
Coube à PNAS/2004 a afirmação de que o SUAS deveria atentar para três
referências: proteção social, vigilância social e defesa social e institucional. Essas três
funções foram incorporadas ao texto da LOAS em 2011 sob a forma de objetivos,
conforme explanação anterior (cf. supra 4.2.4.2 Proteção social, defesa de direitos e
vigilância socioassistencial na LOAS).
Não é caso de repetir as considerações já apresentadas, mas sim de destacar
que a PNAS/2004 detalhou as seguranças que devem ser garantidas por meio da
proteção social.
Extrai-se desse documento que a proteção social deve afiançar a segurança
social em três dimensões: sobrevivência, acolhida e convívio. Isso significa que a
assistência social, como política de proteção social não contributiva, deve intervir para
prevenir ou reparar situações que digam respeito à perda de meios de sobrevivência, ao
abandono ou ao isolamento.
A segurança de sobrevivência traduz-se em segurança de rendimentos e
autonomia. A segurança de rendimentos designa a “garantia de que todos tenham uma
forma monetária de garantir sua sobrevivência, independentemente de suas limitações
para o trabalho ou do desemprego” (PNAS/2004, tópico 2). A autonomia reforça a ideia
243
de que as prestações socioassistenciais devem preservar a dignidade do cidadão, sem a
imposição de provas aviltantes de necessidade e sem medidas de cunho paternalista ou
moralista. O destinatário da assistência social deve ser tratado como protagonista de
suas escolhas.
A segurança de acolhida diz respeito à provisão de necessidades básicas
inerentes à vida em sociedade. Essa acolhida passa pela garantia de alimentação,
vestuário e abrigo àqueles que não possam obtê-los de forma autônoma. Inclui ainda
medida de apoio em caso de necessidade de separação da família, desastres, acidentes
naturais ou abandono.
A segurança de convívio ou de vivência familiar aponta para a preservação e o
fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Nesse caso, a assistência social
opera de forma a superar situações de isolamento e barreiras relacionais “criadas por
questões individuais, grupais, sociais por discriminação ou múltiplas inaceitações ou
intolerâncias” (PNAS/2004, tópico 2).
Coube à PNAS/2004 a fixação de dois patamares de proteção social – básico e
especial –, incorporados pela LOAS. Além das definições, são apresentados exemplos
de situações que deverão ser enfrentadas.
De forma mais detalhada do que faz a LOAS, a PNAS/2004 subdivide a
proteção social conforme sua complexidade seja média ou alta. Os serviços de média
complexidade atendem pessoas e famílias cujos direitos foram violados sem, contudo,
perderem seus vínculos comunitários e familiares. Os serviços de alta complexidade
destinam-se a prover proteção integral às pessoas e famílias sem referências ou sob
ameaça, que necessitem ser retiradas de seu núcleo familiar ou comunitário.
No tocante aos princípios e diretrizes, a PNAS/2004 reproduz os artigos 4º e 5º da
LOAS, acrescentando mais uma diretriz: a “centralidade na família para concepção e
implementação de benefícios, serviços, programas e projetos” (PNAS/2004, tópico 2.2, IV).
No tocante aos objetivos da Política Pública de Assistência Social
(PNAS/2004, tópico 2.3), são enumerados objetivos de caráter geral e outros mais
específicos, que sugerem inclusive as estratégias de atuação a serem empregadas na
política de proteção social. Entre os objetivos de caráter geral estão o enfrentamento de
desigualdades socioterritoriais, a garantia de mínimos sociais, o provimento de
condições para atender contingências sociais e a universalização dos direitos sociais. Os
objetivos específicos são: (a) provimento de serviços, programas, projetos e benefícios
de proteção social básica e, ou, especial para famílias, indivíduos e grupos; (b) inclusão
244
e promoção de equidade dos usuários e grupos específicos, com ampliação de acesso
aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbanas e rurais;
(c) garantia de que as ações no âmbito da assistência social se pautem na centralidade da
família e assegurem convivência familiar e comunitária.
Enuncia-se ainda que o público usuário da Política de Assistência Social é
constituído por “cidadãos e grupos que se encontram em situação de vulnerabilidade e
riscos”, ao que se seguem alguns exemplos de potenciais destinatários da política
(PNAS/2004, tópico 2.3). Para o recorte desse público são utilizados dois elementos de
identificação: vulnerabilidades e riscos. Essas duas noções ganham relevo na
PNAS/2004, na NOB/SUAS e na LOAS.
Sposati (2009, p. 28-37) conecta as noções de risco social e vulnerabilidade
para caracterizar um sistema que procura construir seguranças sociais. A despeito da
discordância em relação ao emprego do risco social como eixo ordenador do sistema de
seguridade social, as considerações da autora sobre vulnerabilidade são compatíveis
com a noção de necessidade social adotadas neste trabalho. Portanto, as considerações
que se seguem têm como ponto de partida a construção apresentada pela professora.
Sposati (2009, p. 34) associa a ideia de vulnerabilidade à predisposição de
pessoas, famílias ou outros grupos à “precarização, vitimização, agressão”, salientando
que “a vulnerabilidade social não é só econômica”. Ainda em suas palavras, “o exame
da vulnerabilidade social diz respeito à densidade e à intensidade de condições que
portam pessoas e famílias para reagir e enfrentar um risco, ou, mesmo, de sofrer menos
danos em face de um risco”, sendo que “atuar com vulnerabilidades significa reduzir
fragilidades e capacitar potencialidades” (SPOSATI, 2009, p. 35).
Aproximando esses ensinamentos do conceito de necessidade social, chega-se
à conclusão de que a vulnerabilidade diz respeito ao conjunto de situações que
predispõem uma pessoa, uma família ou um grupo a uma necessidade social ou que
tornam mais difícil a reação e recuperação em caso de uma necessidade já instalada.
Isso significa que lidar com vulnerabilidades implica prevenir necessidades, fortalecer
as capacidades de reagir e reduzir danos já ocorridos.
Por outro lado, Mota, Maranhão e Sitcovsky (2009, p. 191) pontuam que a
amplitude do público-alvo da PNAS/2004 pode comprometer a normatização e a
padronização dos serviços prestados. Para os autores, as categorias de vulnerabilidade e
risco são relativamente frágeis para delimitar os usuários e os serviços a serem
prestados.
245
Realmente podem surgir dificuldades para o emprego dessas duas noções, até
porque o rol exemplificativo apresentado pela PNAS/2004 é bastante amplo260. No
entanto, esses critérios estão em consonância com o princípio de universalização do
atendimento, pois reconhecem que qualquer cidadão poderá, em algum momento de sua
vida, precisar das prestações socioassistenciais. Sendo assim, os principais “filtros” que
determinam a alocação dos recursos materiais e humanos da assistência social são
oferecidos pelo tipo de necessidade a ser protegida e pelo tipo de prestação ofertada,
não pelo tipo de usuário. Com isso, a PNAS/2004 complementa a disciplina da
assistência social na Constituição Federal que, como afirmado anteriormente, dedicou
mais atenção aos destinatários da política do que às necessidades protegidas e
prestações asseguradas.
4.6
O Sistema Único de Assistência Social – SUAS
4.6.1 Aspectos gerais
A PNAS/2004 previu a organização e gestão das ações socioassistenciais em
um sistema único: o SUAS.
No texto da PNAS/2004, o SUAS é apresentado como sistema que:
define e organiza os elementos essenciais e imprescindíveis à
execução da política de assistência social possibilitando a
normatização dos padrões nos serviços, qualidade no atendimento,
indicadores de avaliação e resultado, nomenclatura dos serviços e da
rede socioassistencial e, ainda, os eixos estruturantes e de subsistemas
[...] (PNAS/2004, tópico 3.1)
260
A fim de indicar que a enunciação dos destinatários da Política de Assistência Social é de fato muito
ampla, vale a transcrição: “Constitui o público usuário da Política de Assistência Social, cidadãos e
grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos, tais como: famílias e indivíduos com
perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades
estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências;
exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substancias psicoativas;
diferentes formas de violência advinda no núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não
inserção no mercado de trabalho formal ou informal; estratégias e alternativas diferenciadas de
sobrevivência que podem representar risco pessoal e social” (PNAS/2004, tópico 2.4).
246
Depreende-se dessa leitura a pretensão de racionalizar e uniformizar os
serviços de assistência social prestados em todo o país. Isso, é claro, não se faz com
prejuízo da observância das particularidades locais. No entanto, o que se busca é a
organização dessa política em todos os níveis de governo até como condição para a
universalização da assistência social.
Previu-se que o SUAS seria estruturado em torno da matricialidade
sociofamiliar, da descentralização político-administrativa e territorial, da redefinição das
relações entre Estado e Sociedade Civil, dos mecanismos de financiamento, do controle
social, da participação popular, da existência de uma política de recursos humanos e da
criação de subsistemas de informação, monitoramento e avaliação. Na organização dos
serviços socioassistenciais também deveriam ser consideradas as referências de
vigilância social, proteção social e defesa social e institucional (PNAS/2004, tópico
3.1).
Nas considerações finais da PNAS/2004 (tópico 4) enunciou-se a necessidade
de aprovação de uma nova Norma Operacional Básica da Assistência Social e de uma
Norma Operacional Básica de Recursos Humanos da Assistência Social.
A Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS foi aprovada
pelo CNAS por meio da Resolução n. 130, de 15 de julho de 2005. Esse diploma vale-se
de algumas construções da NOB 2/1998, especialmente no que tange à existência de
espaços permanentes de negociação e pactuação em torno de aspectos operacionais da
gestão da assistência social, caso da Comissão Intergestores Tripartite – CIT e da
Comissão Intergestores Bipartite – CIB.
Essa regulamentação tem por escopo definir os conteúdos do pacto federativo
em torno da PNAS/2004, estabelecer os requisitos para que Estados, Distrito Federal e
Municípios contem com recursos federais e fixar os critérios de alocação desses
recursos (NOB/SUAS, tópico 1)261.
Assim como a PNAS/2004, a NOB/SUAS contribui para a sistematização do
regime jurídico e o aprimoramento técnico da assistência social. Mota, Maranhão e
Sitcovsky (2009, p. 90-91) vislumbram nesse sistema a possibilidade de superar-se a
cultura assistencialista brasileira, “cujos traços principais são a ideologia do favor, da
ajuda, da dádiva, aliados às práticas fisiológicas e ao nepotismo”, e colocar fim à lógica
261
A síntese desses objetivos está no próprio texto da NOB/SUAS: “Um dos objetivos desta NOB/SUAS
é transformar a política de Assistência Social em uma política realmente federativa, por meio da
cooperação efetiva entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal” (tópico 1.1, item “d”).
247
da caridade e do primeiro-damismo, mediante a “criação de parâmetros técnicos e da
profissionalização da execução da Assistência Social”. Essa perspectiva não pode ser
desvalorizada ou vista como evolução “natural” do ordenamento jurídico, haja vista a
trajetória da assistência social no Brasil.
4.6.2 A gestão do SUAS e as competências dos entes federativos
Por meio da NOB/SUAS foram delimitadas as competências dos entes
federativos e definidas as espécies e os níveis de gestão no SUAS.
A disciplina mais detalhada contida nesse instrumento afeta os Municípios.
Para eles, foram instituídos três níveis de gestão: inicial, básica e plena. Aos Municípios
já habilitados para gerir a assistência social, assegurou-se a habilitação no nível de
gestão inicial; para aceder aos demais níveis exige-se a demonstração de outros
requisitos.
Para a habilitação em cada nível, deve ser demonstrado o preenchimento de
requisitos que, em síntese, dizem respeito à demonstração de que o Município tem
condições de gerir a assistência social em consonância com os propósitos da LOAS e da
PNAS/2004. A cada nível de gestão correspondem responsabilidades maiores e maiores
incentivos, assim entendidos como repasses de recursos, recebimento de apoio técnico e
participação de programas de capacitação dos atores envolvidos com a assistência social
em cada Município.
No Distrito Federal a gestão da assistência social implica assunção de
responsabilidades básicas, com perspectiva de aprimoramento do sistema. Nas duas
hipóteses são estabelecidos procedimentos para comprovação da gestão do Distrito
Federal.
As responsabilidades básicas relacionam-se ao cumprimento dos artigos 14 e
30 da LOAS e se desdobram nos seguintes temas:
(a) financiamento: alocação de recursos no Fundo de Assistência Social;
custeio de benefícios eventuais;
(b) organização: estruturação de CRAS;
248
(c) planejamento: definição de critérios de custeio das ações de proteção social
básica e especial; identificação de áreas de vulnerabilidade e risco;
(d) prestação de serviços: prestação dos serviços de proteção básica e especial,
com prioridade para os destinatários dos programas de transferência da renda instituídos
pela Lei n. 10.836/04; gestão do benefício de prestação continuada e dos benefícios
eventuais, incluindo seleção, acompanhamento dos beneficiários e elaboração de Plano de
Inserção e Acompanhamento dos titulares do Benefício de Prestação Continuada –BPC;
(e) gestão: apresentação de relatórios e planos de ação; inserção de
informações relativas a famílias em situação de vulnerabilidade social e riscos nos
bancos de dados.
As responsabilidades de aprimoramento, uma vez assumidas, possibilitam
maiores repasses de recursos, mais autonomia de gestão e recebimento de apoio técnico
da União.
Assim como as responsabilidades básicas, essas responsabilidades podem ser
agrupadas em:
(a) financiamento: cofinanciamento dos serviços de proteção social de média e
alta complexidade; cofinanciamento do sistema de informação;
(b) organização: declaração da capacidade instalada na proteção social de alta
complexidade; instalação do sistema do Distrito Federal;
(c) planejamento: estabelecimento de indicadores de monitoramento e
avaliação das ações da assistência social; fixação de pactos de resultados com a rede
prestadora de serviços; celebração de pactos de aprimoramento de gestão; elaboração da
política de recursos humanos;
(d) prestação de serviços: ampliação dos atendimentos pela expansão dos
CREAS e pela execução de programas e projetos de inclusão produtiva e promoção do
desenvolvimento de famílias em situação de vulnerabilidade; prestação de serviços de
proteção social de média e alta complexidade;
(e) gestão: identificação de entidades de assistência social aptas e se
vincularem ao SUAS; implantação de programas de capacitação profissional dos
agentes envolvidos com as ações socioassistenciais; coordenação do sistema de
assistência social do Distrito Federal; coordenação do sistema de informação
monitoramento e avaliação da do Distrito Federal; execução da política de recursos
humanos.
249
Para os Estados há apenas um nível de gestão, ao qual correspondem
incentivos consistentes no recebimento de recursos e apoio técnico da União, além de
participação dos operadores da assistência social em programas de capacitação
promovidos pela União.
As competências estaduais principiam com o cumprimento dos artigos 13 e 30
da LOAS e são detalhadas da seguinte forma:
(a) financiamento: cofinanciamento da proteção social básica e das ações
regionalizadas de proteção social especial; cofinanciamento de consórcios públicos e,
ou, de ações regionalizadas de proteção social especial; cofinanciamento de projetos de
inclusão produtiva; cofinanciamento de programas de capacitação dos operadores da
assistência social; cofinanciamento dos benefícios eventuais;
(b) organização: estruturação de Secretaria Executiva da Comissão
Intergestores Bipartite; estruturação de Secretaria Executiva do Conselho Estadual de
Assistência Social; instalação de sistema estadual de monitoramento e avaliação das
ações socioassistenciais;
(c) planejamento: definição e implementação de política de acompanhamento
da rede conveniada prestadora de serviços socioassistenciais na esfera estadual ou
regional; análise e definição, juntamente com os Municípios, da construção de Unidades
de Referência Regional, dos serviços ofertados e dos fluxos de atendimento; realização
de diagnósticos e estabelecimento de pactos para elaboração do Plano Estadual de
Assistência Social; definição de parâmetros de custeio para ações de proteção social
básica e especial; elaboração de política de recursos humanos; proposição de projetos de
inclusão produtiva.
(d) gestão: organização, coordenação e monitoramento do Sistema Estadual de
Assistência Social; prestação de apoio técnico aos Municípios para instituição de seus
Sistemas Municipais de Assistência Social e para implantação dos CRAS; coordenação
do processo de revisão do BPC em âmbito estadual, acompanhando os Municípios;
gestão dos recursos federais e estaduais; coordenação de sistema estadual de
monitoramento e avaliação das ações socioassistenciais; coordenação e regulação de
ações regionalizadas de proteção social especial; manutenção de bases de dados da
REDE SUAS; promoção de consórcios públicos e, ou, de ações regionalizadas de
proteção social especial; execução de política de recursos humanos; coordenação e
execução de programas de capacitação dos operadores da assistência social;
250
identificação de entidades de assistência social aptas e se vincularem ao SUAS;
apresentação de relatórios e planos de ação.
Como se observa, a prestação de serviços socioassistenciais pelos Estados
restringe-se às hipóteses do artigo 13 da LOAS.
As responsabilidades de gestão da União, a seu turno, estão atreladas ao
planejamento da política pública e ao apoio técnico e financeiro visando descentralizar a
gestão da assistência social. São elas:
(a) financiamento: financiamento da implementação de serviços e programas
de proteção social básica e especial; oferecimento de apoio técnico aos demais entes
federativos na implantação das ações socioassistenciais;
(b) organização: proposição e pactuação do sistema de informação da
Assistência Social; incentivo à criação de instâncias públicas de defesa dos direitos dos
usuários dos programas, serviços e projetos de assistência social; articulação e
coordenação de ações de fortalecimento das instâncias de participação e deliberação do
SUAS; instituição de sistema de informação, monitoramento e avaliação.
(c) planejamento: coordenação da formulação e implementação da PNAS/2004
e do SUAS; coordenação e regulação do acesso às seguranças de proteção social;
definição das condições e do modo de acesso aos direitos relativos à Assistência Social;
coordenação e regulação da implementação de serviços e programas de proteção social
básica e especial; regulação dos pisos de proteção social básica e especial; formulação
das diretrizes e participação das definições sobre o financiamento e o orçamento da
Assistência Social; proposição de diretrizes para prestação de serviços socioassistenciais
e pactuação de regulações entre os entes públicos e privados; formulação de política
para a formação sistemática das instâncias de participação e deliberação do SUAS;
promoção do estabelecimento de pactos de resultados; definição de padrões de custeio e
de qualidade para as ações de proteção social; estabelecimento de pactos nacionais
visando efetivar as seguranças previstas na PNAS/2004; elaboração da política de
recursos humanos;
(d) gestão: coordenação da gestão do benefício de prestação continuada;
gestão, acompanhamento e avaliação da execução do Fundo Nacional de Assistência
Social – FNAS; coordenação da implementação da Política Nacional do Idoso;
articulação das políticas socioeconômicas setoriais; coordenação do sistema de
informação da Assistência Social; oferecimento de apoio técnico aos demais entes
251
federativos na implantação das ações socioassistenciais e na implantação dos Sistemas
Estaduais e do Distrito Federal de Assistência Social; desenvolvimento de estudos e
pesquisas para fundamentar análises de necessidade e formulação de proposições para a
área; execução da política de recursos humanos; oferecimento de apoio aos demais
entes federativos na implementação de sistemas de informação, monitoramento e
avaliação.
4.6.2.1 Entre cooperação e subsidiariedade: as estratégias da descentralização
A NOB/SUAS adota como estratégia o fortalecimento dos governos locais e
regionais para gerir a política de assistência social, conferindo às instâncias federativas
mais amplas papel subsidiário nesta gestão, enunciando categoricamente que “as
instâncias federativas mais amplas não devem realizar aquilo que pode ser exercido por
instâncias federativas locais” (tópico 1.1, item “d”).
Esse princípio de subsidiariedade262 não contraria a ideia de cooperação
federativa – essencial para atender às demandas que as instâncias locais não conseguem
atender –, pois revela o escopo de descentralizar a gestão da assistência social até o
ponto em que isso não inviabilize suas ações.
4.6.2.2 Os instrumentos de gestão da PNAS/2004 e do SUAS
A NOB/SUAS instituiu quatro instrumentos de gestão da PNAS e do SUAS
(NOB/SUAS, tópico 3).
O primeiro deles é o Plano de Assistência Social, definido como “instrumento
de planejamento estratégico que organiza, regula e norteia a execução da PNAS/2004 na
perspectiva do SUAS”(NOB/SUAS, tópico 3.1). Esse plano é elaborado pelo órgão
gestor da política de assistência social em cada nível de governo e submetido à
262
Não é demais frisar que a subsidiariedade na forma tratada pela NOB/SUAS é um princípio de
organização dos entes federativos, que em nada se relaciona com a ideia de subsidiariedade da assistência
social em relação ao trabalho e à previdência.
252
aprovação do respectivo Conselho de Assistência Social. Nos Municípios, no Distrito
Federal e nos Estados que respondem pela gestão financeira de Municípios não
habilitados, deve ser elaborado um Plano de Ação com periodicidade anual.
O segundo instrumento de gestão é o Orçamento da Assistência Social, que,
nos termos do artigo 165 da Constituição Federal se faz por meio da elaboração de
Plano Plurianual, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei Orçamentária Anual. A
NOB/SUAS ressalta que “para efetivamente expressarem o conteúdo da PNAS/2004 e
do SUAS, tais instrumentos de planejamento público deverão contemplar a
apresentação dos programas e das ações, em coerência com os Planos de Assistência
Social” (NOB/SUAS, tópico 3.2).
O terceiro desses instrumentos reúne a gestão da informação e as operações de
monitoramento e avaliação do SUAS. A gestão de informação deve ser feita pelo
sistema de informação do SUAS, a REDE SUAS. A perspectiva é de que esse sistema
ofereça elementos para gestão e acompanhamento dos programas, serviços, projetos e
benefícios da assistência social.
O quarto mecanismo de controle consiste no Relatório Anual de Gestão. Cada
ente federativo deve elaborar seu relatório anual, avaliando os resultados obtidos,
comparando-os com as metas estabelecidas e tratando da aplicação dos recursos em
cada esfera de governo.
4.6.3 As instâncias de articulação, pactuação e deliberação
Visando democratizar e descentralizar a gestão da assistência social, foram
previstas instâncias de articulação, pactuação e deliberação no âmbito do SUAS
(NOB/SUAS, tópico 4).
Essas instâncias de articulação são definidas pela NOB/SUAS como “espaços
de participação aberta, com função propositiva” (tópico 4.1); estão presentes em todos
os níveis de governo e podem ser instituídas em nível regional. Participam desses fóruns
entidades governamentais e não governamentais.
As instâncias de pactuação, a seu turno, são estabelecidas com o escopo de
permitir a definição consensual de procedimentos de gestão e outros aspectos
253
operacionais. Em seu âmbito ocorrem negociações e acordos em torno da forma pela
qual a gestão ocorrerá. Os pactos celebrados nessas instâncias decorrem do consenso,
nunca de votações ou deliberações, e sua formalização se faz por publicação e
submissão às instâncias de deliberativas do SUAS.
Há duas instâncias de pactuação previstas na NOB/SUAS: a Comissão
Intergestores Bipartite – CIB e a Comissão Intergestores Tripartite – CIT. A primeira
compõe-se por gestores de Estados e seus Municípios. A segunda, por gestores de todos
os níveis de governo.
As instâncias de deliberação do SUAS são o Conselho Nacional de Assistência
Social, os Conselhos Estaduais de Assistência Social, o Conselho de Assistência Social
do Distrito Federal, os Conselhos Municipais de Assistência Social e as Conferências de
Assistência Social. Os conselhos foram instituídos pelas LOAS que, na redação
original, os designava como “instâncias deliberativas do sistema descentralizado e
participativo de assistência social” e, a partir da Lei n. 12.435/11, passou a utilizar a
expressão “instâncias deliberativas do SUAS” (LOAS, art. 16). Essas instâncias já
foram descritas nos tópicos destinados ao exame da LOAS.
4.6.4 O financiamento da assistência social
Ao tratar da gestão financeira da assistência social, a NOB/SUAS valoriza a
instituição dos Fundos de Assistência Social em todas as esferas de governo. A virtude
desses fundos é conferir transparência aos recursos destinados à assistência social e
adotar critérios objetivos de partilha e repasses dessas verbas. Além de permitir maior
controle social, a gestão dos fundos se faz com intensa participação dos Conselhos de
Assistência Social, o que contribui para adequar a alocação dos recursos às ações
socioassistenciais.
Destaca-se ainda a necessidade de que o financiamento da assistência social
seja feito de acordo com as atribuições de cada ente federativo na dinâmica do SUAS, o
que, nas palavras da NOB/SUAS, significa tomar “o sistema como referência” (tópicos
5.2). Isso implica estabelecer condições para transferências de recursos (NOB/SUAS,
254
tópico 5.3), o que fica claro pela fixação de metodologias diversas de repasse
orçamentário, conforme o nível de gestão do destinatário das transferências.
Outra exigência da assistência social como política pública a ser efetivada por
meio de um sistema é a regularidade nas ações socioassistenciais, o que pressupõe
regularidade nos repasses de verbas (NOB/SUAS, tópico 5.4). A racionalização no uso
dos recursos e na gestão da assistência social impõe ainda critérios de partilha e
transferências. Esses critérios estão na própria NOB/SUAS que leva em consideração os
indicadores socioeconômicos, a população em situação de vulnerabilidade social e a
definição de pisos de proteção social a serem proporcionados (NOB/SUAS, tópico 5.5).
O cofinanciamento é definido pela NOB/SUAS da seguinte maneira (tópico 5.6):
(a) Municípios de pequeno porte I e II263: protagonizam o financiamento da
proteção social básica e cofinanciam serviços de referência regional e consórcios
públicos para serviços de proteção social especial de média e alta complexidade;
(b) Municípios de médio porte: protagonizam o financiamento da proteção
social básica e especial de média complexidade e cofinanciam serviços de referência
regional e consórcios públicos para serviços de proteção social especial de alta
complexidade;
(c) Municípios de grande porte: protagonizam o financiamento da proteção
social básica e especial de média e alta complexidade e cofinanciam serviços de
referência regional e consórcios públicos para serviços de proteção social especial de
alta complexidade;
(d) Metrópoles: protagonizam o financiamento da proteção social básica e
especial de média e alta complexidade e cofinanciam serviços de referência regional e
consórcios públicos para serviços de proteção social especial de alta complexidade,
levando em conta as demandas específicas das regiões metropolitanas;
(e) Distrito Federal: protagoniza o financiamento da proteção social básica e
especial de média e alta complexidade e conta com o cofinanciamento de serviços de
referência regional e consórcios públicos com o Estado de Goiás e, ou, Municípios do
entorno, para os serviços de proteção social especial de alta complexidade, levando em
conta as demandas específicas da região que inclui o Distrito Federal e seu entorno;
263
Na classificação dos Municípios quanto ao tamanho de sua população, a PNAS/2004 adota o seguinte
critério: (a) Municípios de pequeno porte I: até 20.000 habitantes; (b) Municípios de pequeno porte II: de
20.001 a 50.000 habitantes; (c) Municípios de médio porte: de 50.001 a 100.000 habitantes;
(d) Municípios de grande porte: 100.001 a 900.000 habitantes. (e) Metrópoles: a partir de 900.001
habitantes. (PNAS/2004, tópico 1).
255
(f) Estados: cofinanciam a proteção social básica e o aprimoramento de gestão
mediante aporte de recursos para o sistema de informação, monitoramento, avaliação,
capacitação, apoio técnico e outras ações pactuadas progressivamente;
(g) União: cofinancia a proteção social básica e a proteção social especial e
provê o pagamento dos benefícios de prestação continuada às pessoas idosas ou com
deficiência.
5
ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS SOBRE A CONCESSÃO
DO
BENEFÍCIO
ASSISTENCIAL
DE
PRESTAÇÃO
CONTINUADA
5.1
Considerações iniciais
Ao longo deste trabalho, discorreu-se sobre a forma como a assistência social
foi assimilada pelo ordenamento jurídico brasileiro, antes e depois da Constituição
Federal de 1988. Demonstrou-se que a implementação da assistência como direito
social encontrou inúmeros percalços, os quais, a seu turno, indicam como as concepções
da assistência social forjadas antes da Constituição Federal de 1988 interferiram na
efetivação desse direito após a mudança da ordem constitucional.
No capítulo anterior, foi possível verificar a leitura que os Poderes Legislativo
e Executivo fizeram da assistência social a partir de 1988. Em síntese, identificou-se um
longo período de resistência à implementação desse direito social, seguido de ações
focalizadas – na acepção criticada neste trabalho (cf. supra 3.8.2.3 Distributividade e
seletividade na prestação dos benefícios e dos serviços) – e de um avanço na última
década. Embora seja cedo para avaliar os resultados dessa nova fase, o progresso é
evidente.
Para encerrar o estudo sobre a forma como o Estado brasileiro vem construindo
o direito à assistência social, resta examinar a forma pela qual o Poder Judiciário trata
esse direito.
Ao se pronunciarem sobre determinado direito, juízes e tribunais não se
limitam a extrair o conteúdo dos enunciados normativos de forma absolutamente
neutra264 e atemporal. Ao contrário, o Poder Judiciário atribui e atualiza o significado
dos enunciados normativos do ordenamento jurídico. Para além dos métodos e
princípios sistematizados pela hermenêutica jurídica, a realidade fática regulada
influencia a construção das decisões judiciais e permite entrever nos julgados ideias
264
Santos (1986, p. 23-24) afirma que a concepção dos tribunais, como subsistema do sistema político
global, teve como uma de suas consequências “desmentir por completo a ideia convencional da
administração da justiça como uma função neutra protagonizada por um juiz apostado apenas em fazer
justiça acima e equidistante das partes”.
257
subjacentes à argumentação jurídica que, tanto quanto o enunciado normativo,
influenciam a concretização do texto constitucional.
A importância do estudo sobre a atuação do Poder Judiciário é reforçada
porque está em discussão um direito social voltado para grupos sociais vulneráveis que,
além de enfrentarem frequentes privações de recursos econômicos, lidam com
obstáculos no acesso à informação sobre seus direitos e aos meios de fazer valê-los. Não
por outro motivo, está entre os objetivos da assistência social a defesa de direitos
(LOAS, art. 2º, III) e entre seus princípios a “divulgação ampla dos benefícios, serviços,
programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder
Público e dos critérios para sua concessão” (LOAS, art. 4º, V). Nesse cenário, saber que
existe e como se efetiva o acesso à justiça em prol da efetivação da assistência social é
indispensável265.
5.2
Delimitação da pesquisa
Diante da necessidade de estabelecer um recorte para a pesquisa, a análise de
jurisprudência recai sobre o benefício assistencial de prestação continuada previsto no
artigo 203, inciso V, da Constituição Federal e regulamentado pela Lei Orgânica da
Assistência Social.
Justifica-se a escolha desse benefício como foco de estudo por duas razões
principais. Em primeiro lugar, o benefício assistencial de prestação continuada constitui
o único programa de transferência direta de renda previsto na própria Constituição
Federal. Essa previsão, como afirma Sposati (2011, p. 125), representa a “primeira
atenção social de massa” da política de assistência social, divorciada das tradicionais
regulações ad hoc das situações de necessidade. Em segundo lugar, as hipóteses de
265
Sobre a importância do acesso à justiça para a efetivação dos direito econômicos e sociais, Santos
(1986, p. 18) afirma que “a consagração constitucional dos novos direitos económicos e sociais e sua
expansão paralela à do Estado de bem estar transformou o direito ao acesso efectivo à justiça num direito
charneira, um direito cuja denegação acarretaria a de todos os demais. Uma vez destituídos de
mecanismos que fizessem impor o seu respeito, os novos direitos sociais e económicos passariam a meras
declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores. Daí a constatação de que a organização da
justiça civil e, em particular, a tramitação processual não podiam ser reduzidas à sua dimensão técnica,
socialmente neutra, como era comum serem concebidas pela teoria processualista, devendo investigar-se
as funções sociais por elas desempenhadas e em particular o modo como as opções técnicas no seu seio
veiculavam opções a favor ou contra interesses sociais divergentes ou mesmo antagónicos [...]”.
258
concessão desse benefício vêm sendo analisadas há muitos anos pelo Poder Judiciário.
Esse dado permite supor que o Poder Judiciário tenha familiaridade com os critérios
constitucionais e legais de concessão e tenha desenvolvido critérios de interpretação e
aplicação da LOAS. Embora não haja “jurisprudência sedimentada” em relação a
muitos pontos, há profundidade e amadurecimento nas análises.
Na delimitação do conjunto de decisões a ser analisado, a escolha recaiu sobre
os acórdãos da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais –
TNU, órgão relativamente jovem, criado pela Lei n. 10.259/01.
Nos termos da Lei n. 10.259/01 (art. 14), incumbe à TNU apreciar Pedidos de
Uniformização de Interpretação de Lei Federal, nas hipóteses de divergência de
decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais dos
Juizados Especiais Federais de diferentes regiões ou pela divergência entre uma Turma
Recursal e súmula ou jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. A TNU
compõe-se de dez juízes federais de Turmas Recursais, sob a presidência do
Corregedor-Geral da Justiça Federal.
O interesse pelas decisões proferidas pela TNU decorre do reconhecimento da
contribuição ímpar dos Juizados Especiais Federais – com seu peculiar sistema recursal
– para a promoção do acesso à justiça e discussão de temas diretamente relacionados
aos direitos sociais e econômicos.
Após a instalação dos Juizados Especiais Federais, parte significativa das
demandas sobre o direito à seguridade social foi canalizada para esses órgãos. Isso
porque a Lei n. 10.259/01 prevê, em seu artigo 3º, a competência desses juizados para
“processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de
sessenta salários mínimos”, acrescentando em seu parágrafo 3º que “no foro onde
estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua competência é absoluta”. Essa previsão
transformou os juizados e, por conseguinte, a TNU em loci privilegiados de debate
sobre o benefício assistencial de prestação continuada.
Nos Juizados Especiais Federais, a assistência por advogado ou defensor
público é dispensada em primeiro grau de jurisdição, independentemente do valor da
causa266. Esse regramento contribui para remover um dos obstáculos ao acesso à justiça:
266
Essa situação difere do regramento válido para os Juizados Estaduais Cíveis, em que a dispensa da
assistência por profissional legalmente habilitado só atinge causas de valor não superior a vinte salários
mínimos (Lei n. 9.099/95, art. 9º).
259
a dificuldade encontrada por potenciais litigantes em se fazer representar por advogados
ou defensores públicos. Portanto, essa dispensa tem o condão aumentar a quantidade de
casos levados ao Poder Judiciário.
A natureza das ações insertas na competência da Justiça Federal (CF, art. 109),
a facilitação de acesso aos Juizados Especiais Federais pela ampliação da capacidade
postulatória dos cidadãos não assistidos por defensor e a previsão de que União,
autarquias, fundações e empresas públicas federais podem ser somente rés nos juizados
(Lei n. 10.259/01, art. 6º, II) – e não autoras – definem a vocação dos juizados para o
exame de questões relacionadas com a efetivação de direitos sociais. A maior parte das
demandas que tramita nesses juizados coloca o cidadão em face do Poder Público,
provocando contínuos pronunciamentos judiciais sobre direitos econômicos e sociais
consagrados na Constituição Federal.
No que diz respeito especificamente à TNU, há outros fatores de interesse. As
decisões desse órgão representam, em sua maioria, enunciados gerais sobre direito
material, pois seu papel é uniformizar a jurisprudência nesse âmbito de apreciação, sem
que haja reexame da prova ou apenas de questões de direito processual. Examinam-se,
portanto, controvérsias jurídicas de direito material.
O fato de ser um órgão de terceiro grau de jurisdição composto por juízes
federais de primeira instância é outro fator de interesse. É possível que o entendimento
desses juízes federais reflita o de boa parte dos juízes de primeira instância que lidam
com as questões concernentes ao benefício de prestação continuada, aspecto que
aumenta o interesse sobre as decisões tomadas nesse órgão. Pode-se aventar ainda a
hipótese de a atividade interpretativa desempenhada no âmbito da TNU ser influenciada
pelo contato que os juízes mantêm – muitas vezes concomitantemente – com a matéria
em suas varas de origem267.
Por fim, como a composição da amostragem analisada268 conta com acórdãos
provenientes de diversas Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais, pretende-se
267
Essas duas hipóteses foram suscitadas, mas não chegaram a ser verificadas no curso desta pesquisa.
Para tanto, seria necessário confrontar as decisões da TNU com outras decisões de primeira instância, o
que não chegou a ser feito. Ficam, portanto, registradas apenas como hipóteses.
268
A pesquisa das decisões se fez por meio de busca no site do Conselho da Justiça Federal, mais
especificamente do link “jurisprudência unificada”, que permite a seleção de decisões da TNU. Como a
ideia inicial era analisar dez acórdãos provenientes de cada região, a primeira tentativa foi efetuar buscas
pelas expressões benefício assistencial e prestação continuada, seguidas do nome das capitais dos
Estados que compõem cada região. Todavia, verificou-se que um grande número de respostas à pesquisa
não correspondia aos dados buscados, especialmente porque não há mecanismo que permita filtrar de
260
que as conclusões encontradas sirvam como panorama da realidade nacional. Como as
divergências entre julgados de mesma região são apreciadas pelas turmas regionais (Lei
n. 10.259/01, art. 14, § 1º), a seleção dos casos submetidos à TNU confere uma visão
mais abrangente do tema em exame e, consequentemente, menos sujeita a
particularidades regionais. Sem descuidar da importância da jurisprudência regional,
entende-se que o estudo da jurisprudência nacional mostra de que forma os debates em
torno da assistência social vêm evoluindo em todo o país.
5.3
Temas destacados
5.3.1 Deficiência, incapacidade laborativa e incapacidade para a vida independente
Até o advento da Lei n. 12.470/11, a deficiência ensejadora do benefício de
prestação continuada era aquela que impedisse o desempenho do trabalho e da vida
independente269. Reforçando a subsidiariedade da assistência social em relação à
previdência, essa disposição condicionava a concessão do benefício assistencial a um
grau de incapacidade mais severo do que o exigido para concessão de benefício
previdenciário por incapacidade laborativa (auxílio-doença ou aposentadoria por
invalidez).
antemão o órgão de origem. Essa primeira busca serviu para identificar os temas recorrentes das decisões,
o que contribuiu para a continuidade da pesquisa. Tentou-se em seguida a busca pela expressão benefício
assistencial, o que retornou 481 resultados, muitos deles versando sobre direito previdenciário. Assim,
esse critério se mostrou muito genérico. Após diversas tentativas, seguiu-se a pesquisa pelas expressões
benefício assistencial e 203. Essa pesquisa retornou 157 resultados, número bastante razoável para a
análise pretendida. Foram então excluídas as decisões de não conhecimento de pedido de uniformização;
as decisões de mera admissibilidade de recurso, sem análise de mérito; resultados obtidos em duplicidade;
decisões sobre outras matérias; e decisões proferidas por Turmas Recursais. Ao final, a busca resultou em
75 decisões, todas indicadas na bibliografia final. O emprego de termos de pesquisa genéricos e neutros
foi proposital: visava-se evitar a pré-seleção de temas e de entendimentos jurisprudenciais. A partir da
leitura desses acórdãos foram identificados os temas recorrentes quando se trata da concessão de
benefício de prestação continuada. Os temas destacados correspondem não apenas ao que é controvertido
na jurisprudência, mas também às questões que permeiam grande parte da discussão em torno da
assistência social.
269
Alguns fatores justificam a relevância de um estudo mais detalhado sobre um critério legal que restou
superado. Como o propósito deste trabalho é analisar de que forma a assistência social foi construída
como um direito, o estudo não pode se deter nos aspectos atuais da legislação; ao contrário, deve
evidenciar aquilo que a jurisprudência trouxe de ganhos para a compreensão do tema. Além disso, não se
pode deduzir que a mudança legislativa é imediatamente acompanhada pelo abandono de todos os
parâmetros adotados para análise das hipóteses de concessão do benefício.
261
Buscando a ideia de subsidiariedade da assistência social aplicada a casos
concretos, encontra-se, por exemplo, trecho do voto proferido nos autos do processo
200870950011540:
A questão no presente Pedido de Uniformização é saber se a
interpretação a ser dada para a concessão do LOAS é a mesma a ser
dada para a concessão de benefícios previdenciários, desde já,
discordando de tal opção, pelo caráter contributivo da Previdência
Social. O próprio perito judicial fala em possibilidade de reabilitação
em função que o Autor já exerceu (guarda florestal), logo,
aproximando a hipótese muito mais de um auxílio-doença, do que
uma aposentadoria por invalidez, por ser incapacidade parcial. Por
mais que a Súmula nº 29 da TNU tenha abrandado a regra legal do art.
20, § 2º da Lei n.º 8.742/93, definindo incapacidade para a vida
independente como aquela que impossibilita a pessoa de prover ao
próprio sustento, não chega a ponto de permitir a concessão do LOAS
para casos de incapacidade parcial, em atividades já exercidas pelo
requerente. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950011540. Relator: Juiz Federal Eduardo André Brandão de
Brito Fernandes, destacou-se)
As decisões estudadas mostram que, em relação a pessoas com mais de 16
anos, a deficiência é identificada com a impossibilidade de obter o próprio sustento por
meio do trabalho. Esse critério é utilizado tanto nas hipóteses de concessão do
benefício, quando de negativa dela.
Isso mostra a exigência de uma situação mais grave do que a de limitação para
alguns atos da vida diária ou participação social em igualdade de condições com as
demais pessoas. Nesse ponto, nas decisões analisadas, a noção de deficiência tem sido
compreendida de forma mais rigorosa do que as noções depreendidas da Convenção
Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Pessoas Portadoras de Deficiência ou da Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência.
Por outro lado, a conceituação de deficiência (ou mesmo de incapacidade para
o trabalho) a partir de variáveis médicas e socioeconômicas é constante nessas decisões.
Mesmo na vigência do dispositivo que exigia incapacidade para a vida independente, a
jurisprudência apontava para a relativização desse critério.
Dos
autos
do
processo
200361840011029
consta
expressamente
a
desnecessidade de prova de vida independente quando presente a incapacidade para o
trabalho:
O art. 20, da Lei n. 8.742/93, é expresso no sentido de que o benefício
assistencial de prestação continuada, assegurado pelo art. 203 da
262
Constituição Federal se destina àqueles que não possuem meios de
prover a própria subsistência ou tê-la provida por sua família.
Na hipótese dos autos, ficou comprovado através de prova pericial
que a autora está incapacitada total e permanentemente para o
trabalho, o que lhe impede de prover o próprio sustento, além de ter
sido, também comprovado que a família da autora sobrevive de
ganhos irregulares de um filho e doações de igreja.
Dentro desse contexto, desnecessária a comprovação de incapacidade
para a vida independente a justificar a percepção do benefício em
discussão. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200361840011029. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa,
destacou-se)
Outras decisões seguem linha argumentativa diversa. Em vez de negarem o
requisito da vida independente, procuram dissociá-lo da ideia de vida vegetativa ou
restrita a atos da vida cotidiana. É o que se depreende, por exemplo, do voto proferido
no processo 200430007021290:
O conceito de incapacidade para a vida independente, portanto, deve
considerar todas as condições peculiares do indivíduo, sejam elas de
natureza cultural, psíquica, etária – em face da reinserção no mercado
do trabalho – e todas aquelas que venham a demonstrar, in concreto,
que o pretendente ao benefício efetivamente tenha comprometida sua
capacidade produtiva lato sensu.
Por certo que a interpretação não pode ser restritiva a ponto de limitar
o conceito dessa incapacidade à impossibilidade de desenvolvimento
das atividades cotidianas. (Pedido de Uniformização de Interpretação
de Lei Federal 200430007021290. Relator: Juiz Federal Wilson Zauhy
Filho.)
Ainda a propósito de uma noção de deficiência que não perpetue situações de
grave necessidade ou que imponha excessivos sacrifícios, ressalta-se o acordão
proferido no processo 200683035011995, assim ementado:
EMENTA TURMA NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO.
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL A DEFICIENTE. TRABALHADOR
RURAL. AMPUTAÇÃO DE QUATRO DEDOS DA MÃO
ESQUERDA. INCAPACIDADE PARA O TRABALHO E PARA OS
ATOS DA VIDA INDEPENDENTE ATESTADA EM LAUDO
PERICIAL. ADAPTAÇÃO NÃO CONFIGURADA. PEDIDO DE
UNIFORMIZAÇÃO PROVIDO. 1. Conviver com a deficiência
incapacitante não torna, por si só, a pessoa adaptada ao seu trabalho.
Raciocínio contrário, além de criar conceito jurídico novo de
adaptação, atribui ao interessado sacrifício desmesurado e inaceitável,
importando patente violação à dignidade da pessoa humana (art. 1º,
III, CR/88). 2. A sobrevivência do requerente, apesar da deficiência
incapacitante existente há algum tempo, não implica dispensa
peremptória da proteção estatal garantida no art. 203, V, da CF/88, e
nem torna preclusa a oportunidade para o exercício do direito à
assistência legal devida. 3. Pedido de Uniformização conhecido e
263
provido para reformar o acórdão recorrido, condenando o INSS na
concessão
do
benefício
assistencial
postulado.
(Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200683035011995. Relator: Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo
Bezerra Filho.)
5.3.2 Pessoas com deficiência menores de 16 anos
Os critérios de concessão do benefício de prestação continuada para pessoas
com menos de 16 anos foram construídos em um período em que o marco legal para
aferição da deficiência estava centrado na capacidade para o trabalho. Ante a
inadequação de se perquirir a capacidade laborativa nessa hipótese, a jurisprudência
buscou critérios condizentes com o ciclo de vida de crianças e adolescentes.
A tônica de análise desses casos recai sobre dois aspectos centrais: o impacto
da deficiência na dinâmica familiar e as repercussões da deficiência para a participação
social compatível com a faixa etária. Esses dois critérios não são cumulativos, mas sim
alternativos: a deficiência, para ensejar o direito ao benefício, deve acarretar uma
restrição ao desempenho de atividades ou participação social compatíveis com a idade
do requerente, ou implicar impacto financeiro significativo para seu núcleo familiar. Eis
alguns excertos de decisões:
ao menor de dezesseis anos, salvo o que se veja na condição de
aprendiz a partir dos quatorze anos, bastam o atestado médico da
deficiência, e que tal deficiência provoque impacto no desempenho de
atividades ou participação social, compatíveis com sua idade, ou
ainda que provoque significativo impacto na economia do grupo
familiar do menor, seja por exigir a dedicação de um dos membros do
grupo para seus cuidados, prejudicando a capacidade daquele familiar
de gerar renda para o grupo, seja por terem que dispor de recursos
maiores que os normais para sua idade, em razão de remédios ou
tratamentos; aferindo-se, ainda, a miserabilidade de sua família,
prejudicial ao seu sustento, para que faça jus à percepção do benefício
assistencial previsto no art. 203, inc. V, da Constituição e no art. 20 da
Lei n° 8.742/93. [...] (Pedido de Uniformização de Interpretação de
Lei Federal 200783035014125. Relator: Juiz Federal Manoel Rolim
Campbell Penna, destacou-se.)
[...] a par da discussão da incapacidade laboral de menor de 16
(dezesseis) anos, seja por não ter ainda idade legal para tanto, seja em
face da cegueira (deficiência) de um dos olhos, o conceito de
capacidade para a vida independente não deve ficar adstrito apenas à
atividade de andar, comer, beber, tomar banho e etc. Como já dito e
264
frisado à exaustão, até para firmar o entendimento desta Turma
Nacional, a leitura desse conceito deve ser aprofundada, no sentido
de se verificar até que ponto a cegueira poderá impactar a sua vida –
no âmbito cultural, profissional, financeiro, entre outros – e bem
como a de seus familiares, na localidade e no meio onde vive. Em
outras palavras, considerando a sua condição pessoal, afetiva, cultural,
profissional, entre outras, até que ponto a sua cegueira realmente
poderá ocasionar um peso, um transtorno à sua pessoa, seja como
limitação da sua capacidade laboral, inserção no mercado de trabalho,
ou mesmo para o desenvolvimento de uma vida normal? Além disso, é
de se perquirir se a sua família não sofrerá qualquer repercussão com
essa sua deficiência, de modo a exigir a permanência de um de seus
membros para auxiliá-lo, a custear despesas, a reduzir também a
capacidade laboral da família como um todo? [...] a incapacidade para
a vida independente não pode ser reduzida para apenas à prática dos
atos do dia-a-dia. Se a deficiência visual da parte autora impactar a
sua vida, diminuindo-lhe as possibilidades e as oportunidades, e bem
como a da sua família, considerando o meio em que vive, a sua
condição cultural, profissional, entre outras, de acordo com diretriz já
posta por esta TNU, factível é a concessão do benefício assistencial.
(Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200932007033423. Relator: Juiz Federal Paulo Ricardo Arena Filho,
destacou-se)
Em dois recentes acórdãos da TNU, um proferido no pedido 200682025020500
(Relator: Juiz Federal José Antonio Savaris) e outro no pedido 200743009012182
(Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky), esses critérios foram apresentados
como entendimento consolidado da TNU. Em ambas as decisões encontra-se a seguinte
afirmação:
firma-se a compreensão de que ao menor de dezesseis anos, ao qual o
trabalho é proibido pela Constituição, salvo o que se veja na
condição de aprendiz a partir dos quatorze anos, bastam a
confirmação da sua deficiência, que implique limitação ao
desempenho de atividades ou restrição na participação social,
compatíveis com sua idade, ou impacto na economia do grupo
familiar do menor, seja por exigir a dedicação de um dos membros do
grupo para seus cuidados, prejudicando a capacidade daquele familiar
de gerar renda, seja por terem que dispor de recursos maiores que os
normais para sua idade, em razão de remédios ou tratamentos;
confirmando-se ainda a miserabilidade de sua família, para que faça
jus à percepção do benefício assistencial previsto no art. 203, inc. V,
da Constituição e no art. 20 da Lei n° 8.742/93. (destacou-se)
No tocante à valoração da deficiência como fator restritivo da participação em
igualdade de condições com outras pessoas de mesma faixa etária, a solução encontrada
pela TNU se aproximou dos conceitos de deficiência previstos nas Convenções
mencionadas (cf. supra 5.3.1 Deficiência, incapacidade laborativa e incapacidade para a
vida independente).
265
Esse caminho, aliás, não destoa daquele encontrado pelo Poder Executivo e
explicitado no Decreto n. 6.214/07 (art. 4º, § 2º). No entanto, as decisões judiciais não
foram impulsionadas pelo Decreto – que, inclusive, inova no ordenamento ao prever um
critério de concessão do benefício que passa ao largo da incapacidade laborativa; ao
contrário, a invocação da norma regulamentar aparece apenas como reforço de
argumentação.
Em suma, pode-se dizer que essas decisões possuem dois grandes méritos. Em
primeiro lugar, como dito, afastam a assistência social de questionamentos restritos à
capacidade laborativa. Em segundo, analisam a situação de toda a família, o que condiz
com as finalidades da proteção social básica (LOAS, art. 6º-A, I).
5.3.3 Definição de família para aferição da renda
Nos capítulos anteriores, procurou-se demonstrar que a assistência social tem
como eixo de atuação a matricialidade sociofamiliar. Verificou-se que, para intervenção
pela via da assistência social, a situação familiar tem grande importância. Não por outra
razão, a proteção social básica e a proteção social especial têm entre seus escopos a
preservação ou reconstrução de vínculos e a proteção de núcleos familiares.
No tocante ao benefício de prestação continuada, a capacidade familiar de
prover o sustento do idoso ou da pessoa com deficiência é determinante para concessão
(ou não) do benefício. Por isso mesmo, torna-se relevante compreender o que a LOAS
define como família e se há flexibilizações do texto legal pela jurisprudência270.
A partir dos acórdãos consultados, observa-se a tendência a uma interpretação
especificadora271 do artigo 20, § 1º, da LOAS, isto é, considera-se o rol estrito de
pessoas mencionadas nesse artigo. Ainda que esse dispositivo tenha sofrido alteração
recente, a análise da jurisprudência não perde sua utilidade, pois lida com uma questão
que continuará presente nos casos concretos levados à TNU: a oposição entre um
270
As sucessivas definições legal de família foram tratadas anteriormente, cabendo agora apurar como a
jurisprudência se pronuncia.
271
Ferraz Júnior (1994, p. 294) afirma que “uma interpretação especificadora parte do pressuposto de que
o sentido da norma cabe na letra do seu enunciado”, esclarecendo que, para a teoria dogmática “na
interpretação especificadora, a letra da lei está em harmonia com a mens legis ou o espírito da lei,
cabendo ao intérprete apenas constatar a coincidência”.
266
critério formal de identificação de grupo familiar e um critério que priorize a
configuração observada em cada caso concreto. Além disso, as alterações não afetaram
um aspecto essencial da definição legal de família: a importância conferida às pessoas
que vivem sob o mesmo teto.
Em duas decisões do ano de 2007 (processos 200563060141557 e
200563060083879), interpretação restrita do artigo 20, § 1º, da LOAS é afirmada nos
seguintes termos:
cristalizou-se no âmbito desta Turma Nacional o entendimento de que
o conceito de grupo familiar deve ser obtido mediante interpretação
restrita das disposições contidas no § 1º do art. 20 da Lei nº 8.742/93 e
no art. 16 da Lei nº 8.213/91, em respeito ao mandamento
constitucional que ampara o portador de deficiência e o idoso. (Pedido
de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200563060141557.
Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza e Pedido de
Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200563060083879.
Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza)
Esse entendimento foi reafirmado em julgamento de 2011, no qual acolhe-se a
alegação de impossibilidade de cômputo da renda da amiga e das irmãs maiores da
autora da ação. A conclusão em relação à amiga poderia decorrer do simples fato de esta
não ter dever de alimentos para com a demandante ou da aplicação literal da definição de
família contida na LOAS. No caso em exame, a argumentação seguida pelo acórdão foi
idêntica em relação às irmãs e amigas e baseou-se na aplicação literal do artigo 20, § 1º,
da LOAS:
entendo que o acórdão violou entendimento já firmado por esta Turma
Nacional no sentido de que para a aferição da composição da renda, a
noção de grupo familiar deve ser aferida conforme interpretação
restrita do disposto no art. 16 da Lei nº 8.213/91 e no art. 20 da Lei nº
8.742/93, o que exclui do grupo familiar os irmãos maiores não
inválidos e a amiga. Considerando que esta foi a razão do provimento
do recurso e da improcedência do pedido, merece ser reformado o
acórdão para julgar procedente o pedido restabelecendo a sentença.
(Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200461841542217. Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky.
Relatora Suplente: Juíza Federal Cristiane Conde Chmatalik.)
A mesma orientação é reafirmada em diversos outros julgados. No julgamento
do pedido 200770950106637 (Rel. Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho,
16/01/2009) afastou-se do conceito de grupo familiar a sobrinha do autor. Já quanto ao
pedido 200835007004024 (Rel. Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho,
267
22/04/2009), a exclusão atingiu o irmão que residia com a autora idosa e os filhos dela,
maiores e casados, que residiam em outros locais.
A controvérsia foi examinada de forma detida no pedido 200770530025203
(Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano). Discutia-se na ocasião a
possibilidade ou não de se considerarem os rendimentos da filha maior, vivendo sob o
mesmo teto da requerente. Houve empate entre os juízes e o Presidente da TNU proferiu
voto de desempate. Em seu voto, o relator, ao final vencido, pondera que:
está fora de questão a possibilidade de a matéria ser regulada pelo
legislador ordinário, porquanto é a própria Constituição que, ao prever
o benefício de prestação continuada, remeteu a ele a sua disciplina. De
qualquer forma, não significa que daí se possa sedimentar nos textos
infraconstitucionais qualquer conteúdo, sobretudo com a pretensão de,
matematizando o Direito, promover um seqüestro metafísico da
realidade. Esse poder divinatório não lhe pertence, pelo que seus
discursos somente podem reclamar validade se adequados ao que se
mostra àquele que o interpreta e aplica, mediante um processo de
cotejo com o que se lhe mostra, para daí construir a norma jurídica
resultante.
Apenas para tornar mais clara a minha exposição, ilustro com um
exemplo. Se temos uma família composta por pai, mãe e um filho
maior, esse último, solteiro e único trabalhador da família, com apenas
25 anos e possuidor de uma renda mensal de R$ 20.000,00 (vinte mil
reais), preenchidos os demais requisitos para a percepção do
benefício, nenhum óbice haveria para o recebimento do benefício pela
mãe ou pai, uma vez que a renda mensal familiar seria nula,
exatamente porque o filho, sendo maior, estaria excluído do seu
cômputo, nos termos do dispositivo legal mencionado acima. Por
outro lado, se temos um pai que recebe um benefício de apenas um
salário mínimo, com ele convivendo a esposa e mais dois filhos e um
neto, todos menores e sem qualquer renda, ainda que preenchidos os
demais requisitos e comprovada a miserabilidade da família, por
incontestável laudo sócio-econômico, não faria ele jus ao benefício,
eis que, sendo o neto excluído do conceito de família, a renda mensal
estaria acima do limite legal (menor que um quarto e aqui igual a um
quarto do s.m.).
Veja que, mesmo que o laudo social tenha atestado o contrário, no
primeiro caso caberia ao Estado prestar assistência a quem dela não
necessita efetivamente e, no segundo caso, negá-la, mesmo diante da
evidente necessidade!
É esta a preocupação que demonstro, ou seja, o apego desenfreado e
acrítico ao conteúdo legal, que, sob o marco de uma pretensa pseudocerteza e segurança jurídica, exorciza a realidade, obnubilando o
acontecer da Constituição.
A prevalecer esse modo de enxergar o Direito, estaremos impedindo o
constituir da Constituição e a realização do projeto de vida boa que a
sociedade persegue, segundo esse projeto constitucional que pretende
projetar-se em seu seio. É ela, a Constituição, que permeia todo o
Direito e é a ela, a Constituição, que deve submeter-se o legislador.
268
Não se trata de apologia a qualquer ativismo judicial, mas de por sob a
visada constitucional a obra do legislador, a fim de perquirir se da sua
atuação resulta qualquer contradição com a Carta. E parece-me que, a
tornar absoluto o matemático critério, acabamos por colocar o Direito
à margem do mundo da vida, uma desconexão que somente se presta a
ratificar a inefetividade dos direitos fundamentais e o acontecer da
própria Constituição.
Todavia, o voto-desempate segue linha diversa, conforme se observa:
A questão está, pois, em definir se o filho maior e capaz, residente
com o idoso ou deficiente que pleiteia a obtenção do benefício, se
insere no rol de pessoas cuja renda deve ser considerada para aferição
da miserabilidade do núcleo familiar, requisito socioeconômico
exigido para a concessão do benefício de prestação continuada.
[...]
Como se vê, para o cálculo da renda familiar per capita mensal
admitem-se como integrantes do núcleo familiar: I) o cônjuge, a
companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer
condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido; II - os pais; e III
- o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e
um) anos ou inválido, concluindo-se daí que o legislador excluiu
expressamente o filho maior e capaz, cujos rendimentos, portanto, não
podem ser considerados para fins de concessão do amparo social que,
gize-se, possui caráter personalíssimo.
E nem se diga, d’outro lado, que o benefício deve ser indeferido ao
fundamento de que a exclusão dos rendimentos auferidos pelo filho
maior conduziria a situações de disparidade, primeiro, porque a norma
de regência é expressa e o rol do artigo 16 da Lei nº 8.213/91,
taxativo, sendo descabida na espécie interpretação in dubio contra
misero, ainda mais tratando-se, como se trata, de benefício de caráter
assistencialista, segundo, por ser, em geral, esporádica a colaboração
dos filhos maiores no sustento dos seus ascendentes, não sendo
razoável deixar a mantença do idoso ou do portador de deficiência ad
eternum ao alvitre de outro integrante do grupo familiar, que pode,
eventualmente, cessar a cooperação no sustento do hipossuficiente,
deixando-o sem condições de prover à sua própria subsistência.
(destaques no original)
Os casos de adoção de outros critérios para definição de grupo familiar são
mais raros, mas estão presentes e indicam que a TNU vem sendo continuamente instada
a refletir sobre o tema.
Entre os resultados da pesquisa, destaca-se o processo 200770950064928
(Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória). Neste feito, votação majoritária conferiu
prevalência ao entendimento de que, no caso concreto, o juiz poderia alterar o alcance
do grupo familiar a ser considerado para concessão de benefício assistencial.
A relatora chama a atenção para a multiplicidade de arranjos familiares que
podem se apresentar. Destaca que o conceito de família sofreu grandes alterações a
269
partir da Constituição Federal de 1988, permitindo que agrupamentos muito diversos
sejam igualmente reconhecidos como entidade familiar. Por fim, invoca o conceito de
família previsto no artigo 5, inciso II, da Lei n. 11.340, de 07 de agosto de 2006 – Lei
Maria da Penha –, isto é, “comunidade formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa”. Vale transcrever alguns excertos do voto:
esta Turma Nacional de Uniformização tem excluído do cálculo da
renda familiar per capita os rendimentos obtidos por pessoas estranhas
ao núcleo familiar propriamente dito, ou até mesmo de integrantes
deste, mas que efetivamente não tenham o necessário
comprometimento no tocante à manutenção da família.[...]
Não podemos nos esquecer do alcance das decisões da Turma
Nacional de Uniformização. Ainda que o incidente seja proposto em
face de questões singulares, justamente porque o precedente poderá
influir no julgamento de milhares de ações por este país afora, é que
entendo que devamos analisar a questão posta da forma mais ampla
possível, evitando que decisões fragmentárias venham a destoar do
sistema legal e, sobretudo, comprometê-lo. Além de contrariar a
própria natureza de nossa sociedade. E é por isso que digo a Vossas
Excelências que devemos repensar o que seja família, para os fins de
concessão de benefício assistencial. Urge volver os olhos para a
realidade presente, tendo o passado apenas como uma referência, um
exemplo. Neste aspecto, no período anterior a promulgação da
Constituição Federal de 1988, o conceito jurídico de família era
extremamente limitado e taxativo, uma vez que o já revogado Código
Civil de 1916 somente atribuía o status de família àqueles
agrupamentos originados do instituto do matrimônio legítimo. A
introdução dos princípios preconizados na Constituição Federal de
1988 acarretaram uma sensível alteração do conceito de família até
então predominante no nosso ordenamento jurídico. Sobre o tema,
oportuno se faz destacar que os dispositivos constitucionais que tratam
do reconhecimento da união estável (art. 226, parágrafo 3º) e da
família monoparental (art. 226, parágrafo 4º) de imediato já romperam
o monopólio do casamento como único meio legitimador da formação
da família. Com a promulgação da Constituição Federal a família
passou a ser considerada um agrupamento aberto, plural,
multifacetário, fundamentada na busca comum do bem-estar de seus
membros, no apoio mútuo, na solidariedade e no afeto. É tão aberto o
conceito de família que hoje já se fala, ainda que de forma incipiente,
da possibilidade de atribuir aos relacionamentos homo-afetivos o
status de entidade familiar, sendo que inúmeros casos julgados pelo
Poder Judiciário já foram veiculados na mídia nacional, além de tal
possibilidade já ser reconhecida administrativamente por entidades de
direito público e privado. Infere-se, portanto, que o conceito moderno
de entidade familiar há muito ultrapassou os limites do direito
positivado (casamento, união estável e família monoparental) para
abarcar todo e qualquer agrupamento de pessoas onde permeie o
270
elemento afeto e exista o ânimo de viver em família. Por outras
palavras, o ordenamento jurídico deverá sempre reconhecer como
família todo e qualquer grupo no qual os seus membros enxergam uns
aos outros como seu familiar. Muito importante se faz destacar que,
no plano infra-constitucional, a Lei n.11.340/2006, conhecida por Lei
Maria da Penha, em seu artigo 5º, II, adotou expressamente tal
conceito moderno de família.
[...] proponho, que, na aplicação do art. 20, § 1º, da Lei 8.742/93, o
grupo familiar não seja apurado apenas com base no art. 16 da Lei
8.213/91. Não. Proponho que, para fins da concessão do benefício
assistencial, esse rol possa ser considerado meramente
exemplificativo. Que se tenha em conta a novel alteração trazida pela
famosa Lei Maria da Penha. E mais: que seja no caso concreto que o
juiz estabeleça, segundo seu juízo, quem integra ou não o grupo
familiar.
Também reconhecendo entidades familiares diversas daquelas previstas pela
LOAS, tem-se o pedido de uniformização 200772950064726 (Relator: Juiz Federal
Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha), em que se discutia a definição de grupo familiar na
hipótese de residirem juntos apenas avó e neto.
O relator defendeu a preponderância da situação real sobre o critério
matemático previsto em lei, sendo acompanhado por outros quatro juízes federais
(Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho, Otávio Port, João Carlos Mayer e Élio
Wanderley). Portanto, cinco membros da TNU externaram o posicionamento de que o
critério então previsto na LOAS não poderia ser acatado em toda e qualquer situação.
Em voto-vista, contudo, a Juíza Federal Jacqueline Bilhalva acompanhou a
conclusão do relator por fundamento diverso. A magistrada entendeu que, na falta dos
pais, o neto é equiparado ao filho, por interpretação do art. 16, § 2º, da Lei n. 8.213/91.
Tal entendimento foi acompanhado pelos Juízes Federais Cláudio Canata, Manoel
Rolim, Joana Carolina e Sebastião Ogê.
No voto-vista, um aspecto deve ser destacado. Defende-se a “interpretação
restrita” do artigo 16 da Lei n. 8.213/91 – à qual a LOAS fazia referência para efeito
de definição de grupo familiar –, interpretação essa que, na realidade, é de natureza
especificadora. Admite-se, porém, a equiparação do neto ao filho, de acordo com a
regra do artigo 16, § 2º, da Lei n. 8.213/91: “O enteado e o menor tutelado
equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a
dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento”. Em suma:
271
preconiza-se uma interpretação especificadora, mas admite-se a analogia na
identificação de relações de parentesco.
ainda que seja adotada a interpretação restrita do art. 16 da Lei nº
8.213/91 para fins de verificação da composição de grupo familiar em
se tratando de benefício assistencial, avô e neto compõem o mesmo
núcleo familiar quando, como no caso, na ausência dos pais, o neto se
equipara a filho, de acordo com a inteligência do § 2º do mencionado
art. 16. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200772950064726. Voto-vista da Juíza Federal Jacqueline Bilhalva)
Ainda nesse acordão, constata-se que, embora a conclusão tenha sido unânime,
a divisão observada em relação aos fundamentos da decisão indica que não se pode falar
em pacificação do entendimento acerca do grupo familiar.
Embora prevaleça o entendimento em favor da interpretação literal do conceito
de grupo familiar, há registros de posicionamentos em contrário. A existência de
divergência ensejadora do pedido de uniformização mostra que essa questão continua
sendo debatida em primeiro e segundo grau de jurisdição. O reconhecimento de
situações não compreendidas nos exatos limites das hipóteses legais – ainda que por
fundamentos que não relativizam esses critérios de forma explícita – somado a mais
uma alteração do artigo 20, § 1º, da LOAS indica a possibilidade de revisão da
jurisprudência dominante da TNU.
5.3.4 Critério objetivo de renda
Aspecto muito criticado na disciplina legal do benefício assistencial de
prestação continuada é a restrição do benefício às hipóteses de renda per capita familiar
inferior a um quarto do salário mínimo, ao lado do requisito deficiência ou idade
superior a 65 anos.
A relativização desse critério sempre esteve presente na jurisprudência
brasileira. Além disso, como já ressaltado, a constitucionalidade do artigo 20, § 3º, da
LOAS foi apreciada (e afirmada) no STF. Apesar disso, os órgãos do Poder Judiciário
continuaram a se pronunciar no sentido de que a renda per capita familiar inferior a um
quarto do salário mínimo não era o único critério a ser observado para identificar a
272
situação de necessidade daquele que postula o benefício – ou, nas palavras de muitas
dessas decisões, da miserabilidade do postulante do benefício.
No âmbito da TNU, há clara predominância de decisões que não se atêm ao
limite de renda previsto em lei para concessão do benefício assistencial. A maior parte
das decisões afirma que a renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo é um
limite mínimo, que não afasta o exame de outros elementos do caso concreto. O
argumento de que o artigo 20, § 3º, da LOAS não seria incompatível com o exame da
hipossuficiência em cada caso concreto surge até como forma de compatibilizar as
decisões judiciais ao texto da LOAS e à decisão do STF acerca da constitucionalidade
desse dispositivo.
Em síntese, esses acórdãos indicam que, além do cálculo da renda per capita,
devem ser avaliadas as condições específicas de cada caso concreto. Constrói-se um
raciocínio segundo o qual haveria presunção absoluta de hipossuficiência quando a
renda estivesse abaixo do limite legal. Superado este patamar, seria conferida primazia à
realidade na aferição da hipossuficiência.
Nas decisões analisadas, não se identificam hipóteses de sobreposição da
primazia da realidade ao atendimento do critério objetivo, daí porque se fala em uma
presunção absoluta. Explicando melhor: ainda que as situações observadas em um
determinado caso concreto afastem a prova da hipossuficiência, a constatação de que a
renda per capita não supera um quarto do salário mínimo é bastante para a concessão do
benefício. Entre os acórdãos analisados, no único caso em que a sobreposição da prova
de hipossuficiência ao critério da renda foi ventilada, a questão foi enfrentada nos
seguintes moldes:
Em seu artigo 20, § 3º, a referida lei menciona ser incapaz de prover o
seu sustento aquele cuja renda mensal per capita do grupo familiar não
ultrapasse ¼ do salário mínimo. Ocorre que tal critério possui caráter
de presunção absoluta de miserabilidade, não tendo a lei previsto
exceções. Assim, não cabe ao intérprete restringir direitos que não
foram restringidos pela norma, sob pena de violar a própria
legalidade, já que estaria criando critério não previsto em lei para o
caso. Ademais, o montante de ¼ do salário mínimo para cada
integrante do grupo familiar constitui o mínimo apto a gerar a
satisfação das necessidades básicas, considerando-se hipossuficiente
economicamente para fins de concessão de LOAS aquele que se
encontra com renda neste patamar, independente de – aparentemente
– possuir residência que lhe garanta um mínimo de conforto. (Pedido
de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870650015977.
Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky. Relatora Suplente:
Juíza Federal Cristiane Conde Chmatalik, destacou-se.)
273
Na grande maioria dos processos que envolviam a discussão da renda, a TNU
consignou a não exclusividade do limite de renda para análise da situação financeira do
requerente do benefício e de sua família. É necessário ressaltar, contudo, que houve um
período em que o órgão aplicou o limite previsto na LOAS como único critério de
aferição da hipossuficiência em matéria de benefício assistencial. No conjunto de
acórdãos analisados, verifica-se que são julgamentos ocorridos entre o início de 2006 e
o início de 2007, conforme tabela:
Processos em que houve aplicação do critério objetivo de renda per capita
Processo
Data do julgamento
Data da publicação
200270040071041
04.12.2006
26.02.2007
200351510059076
27.03.2006
02.05.2006
200463060057293
05.02.2007
26.02.2007
200470950095456
24.04.2006
30.05.2006
200536007023553
14.08.2006
11.09.2006
200570950110656
04.12.2006
18.12.2006
200663060020461
04.12.2006
26.02.2007
Depreende-se da leitura dessas decisões que o julgamento da ADI n. 1.232-1/DF
pelo STF – seguido do acolhimento de diversas reclamações impetradas contra decisões
que flexibilizavam o critério legal – foi determinante para a adoção de posicionamento
mais restritivo pela TNU. Entre as sete decisões, a proferida no processo
200351510059076 é a única que não faz referência expressa à ADI n. 1.232-1/DF.
Essa conclusão decorre da observação de que na imensa maioria das decisões
que aplicaram estritamente o critério legal invocou-se a decisão do STF, como
exemplificam alguns excertos ora transcritos:
Discute-se no presente incidente a aplicação do limite estabelecido
pelo § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/1993 para aferição da
hipossuficiência econômica em sede de pedido de benefício
assistencial.
Com efeito, esse colegiado vinha concluindo pela possibilidade de
adoção de outros critérios, a par do previsto no dispositivo
supramencionado, para fins de aferição da miserabilidade, levando,
inclusive, à edição da Súmula 11 nesse sentido.
274
Ocorre, todavia, que a partir do julgamento do Pedido de
Uniformização nº 2004.70.95.009545-6, ocorrido na sessão de 24 de
abril de 2006, a Turma Nacional de Uniformização passou a adequar
seus julgados ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal
segundo o qual o único critério para aferição da miserabilidade é a
observância da renda per capita familiar não superior a ¼ de salário
mínimo, nos exatos termos do art. 20 § 3º da Lei nº 8.742/1993, não
comportando temperamentos ou adequações caso a caso levando ao
cancelamento da Súmula mencionada. Assim, em que pese meu
posicionamento no sentido de sopesar outras provas da
miserabilidade, passo também a adotar o entendimento do STF.
(Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200463060057293. Relatora: Juíza Federal Renata Andrade Lotufo,
destacou-se)
Verificado o dissenso, adentrando ao mérito da questão, acosto-me ao
entendimento sufragado pela colenda Corte Suprema, no sentido de
que limite legal de ¼ salário-mínimo, como renda per capita do grupo
familiar, é critério objetivo (ver ADIN 1232), não podendo ser
afastado, pois, afastar o critério adotado pelo artigo 20, § 3º, da Lei
8.742/93, equivale à declaração de sua inconstitucionalidade,
impondo-se, assim, a necessidade de comprovação de que a renda per
capita da família seja inferior a um quarto do salário-mínimo. (Pedido
de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200663060020461.
Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos.)
Cuidam-se de embargos declaratórios, interpostos pelo INSTITUTO
NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, perseguindo édito judicial que,
com eficácia infringente, negue provimento ao recurso inominado,
alegando o seguinte:
a) consoante o decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN
1.232 – DF, bem como na Reclamação 2.323-1 – PR, o requisito da
miserabilidade não admite outro critério de demonstração senão o
previsto no art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93;
b) visando adequar-se ao entendimento do Pretório Excelso, esta
Turma Nacional de Uniformização resolveu por cancelar o verbete de
sua Súmula 11. [...]
Ressalto que, sem sombra de dúvida, o aresto embargado não padece
de omissão, obscuridade, dúvida ou contradição.
Por essa razão, poder-se-ia, ao primeiro súbito de olhos, apontar o não
cabimento dos declaratórios.
No entanto, não posso negar que a decisão atacada se atrita com o
deliberado pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN 1.232 – DF, a
qual, ex vi do art. 102, § 2º, da Lei Fundamental, porta efeito
vinculativo para os demais órgãos do Poder Judiciário. [...]
Considerando-se os princípios da informalidade e da simplicidade que
informam o rito procedimental dos juizados especiais (Lei 9.099/95,
art. 2º; Lei 10.259/2001, art. 1º), aprovou-se, no 3º FONAJEF,
Enunciado, sob o nº 56, entendendo aplicável os arts. 475 – L, § 1º, e
741, parágrafo único, ambos do CPC, para que o basta simples
petição.
Em sendo assim, não vislumbro, sob o prisma formal, a
impossibilidade desta Turma Nacional, em sede de embargos de
declaração, mesmo à falta dos pressupostos do art. 535, I e II, do CPC,
275
determinar a adequação de seu julgamento à jurisprudência
vinculativa do Supremo Tribunal Federal. [...]
Com essas considerações, VOTO pelo conhecimento dos embargos de
declaração, dando-lhes efeitos infringentes para negar provimento ao
recurso inominado, haja vista a inexigibilidade da decisão embargada.
(Embargos de Declaração no Pedido de Uniformização de
Interpretação de Lei Federal 200270040071041. Relator: Juiz Federal
Edilson Pereira Nobre Júnior, destacou-se)
A partir da leitura desses acórdãos e da verificação de que posicionamentos
mais restritivos acabaram por ser superados, constata-se que a TNU vem adotando
entendimento que prioriza o exame de cada situação financeira concreta, salvo prova de
que a renda se encontra dentro do limite previsto no art. 20, § 3º, da LOAS. Isso revela
que a análise de hipossuficiência na concessão do benefício deve, alternativamente,
identificar algumas dessas hipóteses: (a) preenchido o critério de renda previsto na
LOAS, presume-se a hipossuficiência; (b) não preenchido o critério previsto na LOAS,
cabe ao interessado demonstrar sua necessidade. Assim, o critério aritmético coexiste
com um critério qualitativo, atento para a situação real de cada postulante do benefício.
Deixando de limitar as análises de necessidade financeira a meros cálculos
aritméticos, a jurisprudência prestigia a garantia constitucional de que a assistência
social será prestada a quem dela necessitar. Nessa medida, a TNU demonstra interpretar
o artigo 203 da Constituição Federal à luz dos objetivos da República, especialmente
dos objetivos traçados no artigo 3º, inciso III, da Constituição Federal.
No entanto, as decisões analisadas não fixam os critérios que, para além dos
cálculos aritméticos, devem reger a concessão do benefício assistencial. Não se
estabelecem, por exemplo, as necessidades cujo atendimento ou desatendimento são
considerados relevantes para a concessão do benefício. A fixação desses parâmetros
poderia contribuir para a adoção de critérios uniformes de concessão judicial desse
benefício, evitando o casuísmo.
5.3.5 Aplicação do Estatuto do Idoso, artigo 34, parágrafo único
Ainda no tocante à análise da renda individual e familiar para concessão de
benefício assistencial, observa-se que o Estatuto do Idoso – Lei n. 10.741, de 03 de
outubro de 2003 –, especialmente em seu artigo 34, parágrafo único, impulsionou a
276
construção de argumentos que ampliam o espectro de concessão do benefício de
prestação continuada.
Conforme explanado anteriormente, o dispositivo permitiu a concessão de
benefício assistencial à pessoa idosa ainda que outro integrante idoso do mesmo núcleo
familiar já receba o mesmo benefício. Diversos órgãos do Poder Judiciário estenderam a
aplicação de tal dispositivo a outras hipóteses não albergadas pelo texto da lei. Muitas
decisões se valem da aplicação analógica dessa previsão a outras situações. Seguem
alguns exemplos:
Entendo ainda que na aferição da renda familiar da família do
postulante de benefício assistencial, não deve ser incluída a renda
auferida pelo idoso que auferir exclusivamente renda proveniente de
benefício previdenciário, no valor de um salário mínimo, seja
benefício assistencial ou outro benefício previdenciário qualquer.
E esse vem sendo o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de
Justiça e por essa Turma Nacional de Uniformização concluindo que,
a partir da exegese das disposições do Estatuto do Idoso (Lei nº
10.741/2003) e do contido no art. 203, V, da Constituição Federal
deriva a conclusão de que não apenas o valor de benefício assistencial
concedido ao idoso deve ser excluído para o cômputo da renda
familiar com a finalidade de concessão de outro benefício
assistencial, mas também o valor do benefício previdenciário no valor
mínimo, pago ao idoso componente no núcleo familiar.
Entender de forma contrária seria dar tratamento desigual para
situações fáticas idênticas, sob o ângulo do pretendente do novo
benefício assistencial.
Saliento, outrossim, que esta Turma Nacional de Uniformização
posicionou-se no sentido de que a aplicação analógica do disposto no
parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, independe de
quaisquer sinais de miserabilidade. (Pedido de Uniformização de
Interpretação de Lei Federal 200832007038700. Relator: Juiz Federal
Cláudio Roberto Canata, destacou-se)
Por força do disposto no art. 34 do Estatuto do Idoso (Lei nº
10.741/2003): [...] De acordo com a interpretação literal deste
dispositivo legal, temos: I - como destinatário da norma um idoso, que
pretende a concessão de um benefício assistencial (dimensão
subjetiva); II - como titular de benefício já concedido qualquer
membro da família (composta por idosos) (dimensão subjetiva); e III como benefício já concedido suscetível de não ser computado no
cálculo da renda familiar per capita um benefício assistencial
(dimensão objetiva). Literalmente, fora desse contexto não seria
possível fazer outra exclusão do cálculo da renda familiar per capita.
Ocorre que nesta seara o Direito Positivo apresenta as seguintes
lacunas: 1) quando quem está pretendendo a concessão do benefício
assistencial é um deficiente; 2) quando o titular de benefício já
concedido é um membro da família, mas não é idoso (e pode nem ser
deficiente); e 3) quando o benefício já concedido a qualquer membro
da família é um benefício previdenciário, e, à semelhança do benefício
277
assistencial, é um benefício de valor mínimo, com proventos mensais
de um salário mínimo. Diante da existência destas lacunas se
descortina a possibilidade do uso da analogia para a integração da
lei. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950034000. Relatora: Juíza Federal Jacqueline Michels
Bilhalva. destacou-se.)
Uma vez que as decisões recorrem à analogia para ampliar o espectro de
proteção da norma jurídica, a primeira pergunta que cabe fazer é se realmente há uma
lacuna a ser preenchida. Sim, porque se a analogia é técnica de integração de lacunas, o
pressuposto é de que existe alguma incompletude.
De acordo com Bobbio, pode-se falar em incompletude diante de “um sistema
no qual não existem nem a norma que proíbe um certo comportamento nem aquela que
o permite” (BOBBIO, 1997, p. 16). A lacuna não decorreria propriamente da ausência
de soluções jurídicas para um determinado caso, mas da falta de critério para escolha da
norma a ser aplicada a esse caso (BOBBIO, 1997, p. 137-139). A incompletude do
sistema estaria demonstrada pela falta de critério apto a direcionar a tomada de decisões
entre escolhas diametralmente opostas.
Além das lacunas reais, Bobbio esclarece ainda a possibilidade de se falar em
lacunas ideológicas. Estas últimas não se configuram pela falta de solução, mas pela
falta de solução satisfatória ou de norma justa, assim entendida como “norma que se
desejaria que existisse mas não existe” (BOBBIO, 1997, p. 140). Bobbio pondera que,
em relação ao direito positivo, as lacunas de que se deve ocupar são as reais, não as
ideológicas.
Os problemas relativos às lacunas reais são sanados pelos tradicionais métodos
de integração do ordenamento jurídico. No Brasil, há uma regra geral de preenchimento
de lacunas mediante emprego de analogia, costumes e princípios gerais do direito
(Decreto-Lei n. 4.657/42, art. 4º). No âmbito dos juizados especiais, o artigo 6º da Lei
n. 9.099/95, ao prever que “o Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa
e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum”, franqueia
a resolução de controvérsias por meio de juízos de equidade272.
Configurada a incompletude e, portanto, lacunas reais, a norma estabelecida
para uma facti species pode ser aplicada a outra, para a qual não existe norma, mediante
272
A disposição é aplicável no âmbito dos Juizados Especiais Federais por força da Lei n. 10.259/01,
artigo 1º: “Art. 1º São instituídos os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, aos quais se
aplica, no que não conflitar com esta Lei, o disposto na Lei no 9.099, de 26.091995”.
278
identificação de semelhanças entre os supostos fáticos de uma e outra (FERRAZ
JÚNIOR, 1994, p. 300).
De outra senda, lacunas ideológicas não são supridas por meio dos métodos de
integração, o que inclui a analogia. E não o são porque a incompletude do ordenamento
não se verifica nessas hipóteses. O que há é a constatação de que os efeitos da aplicação
da norma, tal qual positivada, de alguma forma podem ser tidos como injustos.
Nessas hipóteses a interpretação jurídica pode, de fato, trazer instrumentos para
a construção de respostas equânimes – ou que possam, de qualquer forma, ser
consideradas mais justas – sem o recurso à analogia. No caso da assistência social, a
análise do princípio da igualdade e do critério geral de necessidade como requisito de
acesso às prestações da seguridade social pode ser de grande valia. Em qualquer
hipótese, é essencial ter claro que não se trata de lacuna real.
Essa explicação é necessária para que se verifique se, nos casos analisados, a
aplicação do artigo 34 do Estatuto do Idoso decorre de lacunas reais.
Basta um exame do artigo 20, § 3º, da LOAS e do artigo 34, parágrafo único,
do Estatuto do Idoso para que sejam identificadas, respectivamente, uma norma geral e
uma norma especial. Os casos que não se amoldam à descrição contida na norma
especial podem ser subsumidos à norma geral. Portanto, admitindo-se como válidas as
duas normas em questão, não há lacuna.
A hipótese prevista na norma especial não abrange situações como:
(a) concessão de dois benefícios assistenciais a duas pessoas com deficiência integrantes
do mesmo núcleo familiar; (b) concessão de dois benefícios assistenciais a um idoso e
uma pessoa com deficiência integrantes do mesmo núcleo familiar; (c) concessão de
benefício assistencial a idoso quando outro membro da família, também idoso, auferir
renda mensal de um salário mínimo, proveniente de benefício previdenciário ou de
rendimentos de trabalho; (d) concessão de benefício assistencial a idoso quando outro
membro da família, em qualquer condição, auferir renda mensal de um salário mínimo,
proveniente de benefício previdenciário ou de rendimentos de trabalho; (e) concessão de
benefício assistencial a pessoa com deficiência quando outro membro da família, em
qualquer condição, auferir renda mensal de um salário mínimo, proveniente de
benefício previdenciário ou de rendimentos de trabalho; (f) concessão de benefício
assistencial a idoso ou pessoa com deficiência quando outro membro da família, em
qualquer condição, auferir renda mensal superior a um salário mínimo.
279
A questão passa, na realidade, pela falta de isonomia no tratamento dos
potenciais requerentes do benefício de prestação continuada. Por força do Estatuto do
Idoso, dois idosos integrantes do mesmo núcleo familiar podem receber dois benefícios
assistenciais. Nessas hipóteses, não se aplica o critério de renda inferior a um quarto de
salário mínimo, de modo que a norma especial se mostra nitidamente mais benéfica aos
requerentes do benefício.
A distinção estabelecida pelo artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso em
relação aos que se submetem apenas ao artigo 20, § 3º, da LOAS é de fato anti-isonômica.
Ensina Bandeira de Mello (2009, p. 17) que discriminações são compatíveis
com a cláusula igualitária quando existente uma correlação lógica entre a peculiaridade
diferencial residente no objeto – e acolhida pela norma – e a desigualdade de tratamento
decorrente dessa peculiaridade. Ainda segundo o autor, a correlação deve ser
compatível com interesses prestigiados na Constituição.
Bandeira de Mello (2009, p. 21) aponta três aspectos que devem ser analisados
para que se reconheça se uma diferenciação pode ou não resultar em quebra da
isonomia: o elemento que serve como fator de desigualação; a correlação lógica abstrata
entre o fator de discrímen e a disparidade de tratamento jurídico; e a consonância da
correlação lógica com interesses absorvidos no sistema constitucional.
Trazendo essas considerações para as normas em exame, percebe-se que o fator
de desigualação eleito pelo Estatuto do Idoso diz respeito aos destinatários da proteção
(idosos) e à natureza do benefício recebido pelo membro da família (assistencial).
Ocorre que não há justificativa racional nessa desigualdade.
A adoção de um critério formal pelo artigo 34, parágrafo único, seria
justificável se fosse possível reconhecer que as necessidades financeiras de uma pessoa
idosa são superiores às de uma pessoa com deficiência, suposição que pode ser
contrariada até mesmo pela variedade de quadros de deficiência que demandam
atenções muitos específicas e onerosas. Tampouco se pode afirmar que a renda de um
salário mínimo recebida por uma pessoa com deficiência integrante de uma determinada
família supre as necessidades do grupo de forma mais adequada do que a renda auferida
por um idoso. Além disso, a natureza do rendimento – benefício previdenciário,
benefício assistencial, rendimentos de trabalho ou qualquer outra fonte de renda – não
poderia ser tomada como fator de discrímen se o que determina a necessidade é a
disponibilidade de recursos da família, e não a natureza do rendimento.
280
A distinção não se coaduna com as diretrizes constitucionais que regem a
assistência social. Não se coaduna porque, no tocante ao benefício em pauta, idosos e
pessoas com deficiência gozam de mesma proteção constitucional e essa proteção
obedece ao critério geral de necessidade previsto no caput do artigo 203, inciso V, da
Constituição Federal. Tampouco leva-se em conta o critério constitucional de
necessidade que ampara os dois grupos de destinatários do benefício. Por fim, se a
Constituição Federal elege o valor social do trabalho como um de seus fundamentos,
não há sentido em adotar um critério que favoreça apenas titulares de benefícios
assistenciais em detrimento daqueles que têm sua renda calcada no trabalho, seja pela
remuneração direta deste, seja pela proteção previdenciária que, na maioria das vezes,
resulta do trabalho.
A partir dessas considerações e do exame das decisões da TNU, depreende-se
que há o reconhecimento de um tratamento anti-isonômico injustificado. A essa
constatação segue-se o afastamento do critério previsto no artigo 20, § 3º, da LOAS, o
que pressupõe que essa norma seja considerada inválida, ao menos para parte das
hipóteses levada ao exame daquele órgão. Diante do reconhecimento de invalidade – no
que estaria implícita a conclusão pela inconstitucionalidade da regra geral – é que surge
a lacuna e, aí sim, justifica-se o recurso à aplicação analógica do artigo 34, parágrafo
único, do Estatuto do Idoso. O raciocínio é mais complexo do que pode parecer à
primeira vista.
Note-se que as decisões não explicitam juízos de inconstitucionalidade sobre as
duas normas invocadas. Isso é compreensível até em razão da celeuma envolvendo o
pronunciamento de constitucionalidade do artigo 20, § 3º, da LOAS na ADI n. 1.232-1/DF.
Todavia, a reconstrução da linha de raciocínio que leva à aplicação da norma especial às
hipóteses que, em princípio, poderiam ser sanadas pela norma geral, conduz a essa
conclusão.
Uma vez reconhecida a possibilidade de aplicação analógica da regra especial
contida no Estatuto do Idoso, resta verificar as relações de semelhança que estão na base da
aplicação dessa norma a outros casos concretos.
Nesse ponto, surgem outras dificuldades relacionadas à identificação de quais
relações de semelhança entre os supostos fáticos serão levadas em conta. A semelhança
pode se dar em relação às seguintes variáveis: (a) a pessoa que pretende a concessão do
281
benefício assistencial; (b) o familiar do requente que possui renda; (c) a natureza da
renda; (d) o valor do benefício.
Algumas possibilidades acerca do que se quer proteger por meio dessas normas –
possibilidades que não se excluem reciprocamente – podem ser consideradas.
A primeira delas é assegurar que o titular da renda conte com um salário mínimo
para atender às próprias necessidades, antes de prover o sustento de seu familiar. Outra
possibilidade é, admitindo-se a insuficiência do salário mínimo recebido por outro membro
do núcleo familiar para custear as despesas do idoso ou pessoa com deficiência, assegurar a
estes últimos a obtenção de rendimentos para as próprias necessidades.
Conforme a resposta, surgem muitas possibilidades de aplicação analógica do
artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, destacando-se: (a) exclusão do cálculo
da renda per capita do benefício previdenciário de um salário mínimo recebido por
outro idoso do grupo familiar; (b) aplicação da regra para concessão do benefício à
pessoa com deficiência, e não apenas ao idoso; (c) exclusão, no cálculo da renda per
capita, do benefício assistencial auferido por uma pessoa com deficiência integrante do
grupo familiar; (d) exclusão de qualquer outro rendimento de um salário mínimo
recebido por membro do grupo familiar, independentemente de ser pessoa idosa ou com
deficiência; (e) reserva do equivalente a um salário mínimo em favor do titular da renda,
dividindo-se o restante entre os demais membros do grupo familiar.
Vale analisar as relações de semelhança admitidas pela TNU. Com relação à
pessoa que pretende a concessão do benefício assistencial, constata-se que a analogia
amplia a aplicação do artigo 34 para a hipótese em que o requerente é pessoa com
deficiência. Isso fica claro no Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950034000, anteriormente mencionado, em que se reconhece que idosos e
pessoa com deficiência são destinatários da mesma proteção constitucional e, por esse
motivo, fazem jus à mesma proteção.
o presente caso envolve um benefício assistencial destinado a uma
deficiente [...] embora o idoso não se identifique socialmente,
culturalmente e fisicamente com o deficiente, tanto o idoso quanto o
deficiente que buscam a concessão de benefício assistencial são
dotados da mesma dignidade enquanto beneficiários de um mesmo
benefício de mesmo valor por força de expressa disposição
constitucional (art. 203, inc. V, da CF/88) e de expressas disposições
legais [no que diz respeito ao princípio da igualdade de direitos no
282
acesso ao atendimento (art. 4º, inc. IV, primeira parte, Lei nº
8.742/93) e quanto à previsão de um mesmo benefício de mesmo valor
(art. 20 da Lei nº 8.742/93)]. Portanto, nada justifica que se lhes
dispense tratamento normativo diferenciado, não havendo justificativa
para a proteção do idoso ser mais ampla do que a proteção do
deficiente. Ora, a Assistência Social se destina à cobertura do mínimo
existencial consubstanciado nos bens absolutamente necessários à
sobrevivência de qualquer cidadão. E o mínimo existencial do idoso
não difere do mínimo existencial do deficiente. (destacou-se)
Quanto ao familiar do requente que possui renda duas controvérsia surgem. A
primeira refere-se à aplicação da analogia apenas quando o titular de renda é idoso ou
também quando se tratar de pessoa com deficiência ou pessoa não enquadrada em
nenhuma dessas duas possibilidades. A segunda, diz respeito à natureza da renda que
pode ser excluída.
Com relação ao titular da renda, há uma certa oscilação nos posicionamentos.
No pedido de uniformização 200563060143270, julgado em 25 de abril de 2007, a
leitura do voto-vista proferido pelo Juiz Federal Marcos Roberto Araújo dos Santos e
seguido pelos demais membros da TNU com exceção da relatora, poderia indicar
limitação da analogia aos rendimentos do idoso com mais de 65 anos:
Dentre as peculiaridades do caso concreto, a decisão recorrida deixou
de sopesar que, no caso do idoso, ante a disposição contida no
parágrafo único, do art. 34, da Lei nº 10.741/03, é necessário excluir
da renda familiar, para efeito de aferição da renda per capita, aquela
proveniente do membro da família que, contando com mais de 65 anos
de idade, receba benefício de valor mínimo, seja ele de natureza
previdenciária ou assistencial. Importante salientar, neste particular,
que embora a norma em referência faça menção apenas à hipótese do
benefício referido em seu caput (assistencial), evidencia-se que, em
atenção ao princípio da isonomia, deve a mesma ser observada nos
casos de qualquer benefício de valor mínimo, atendido, sempre, o
requisito etário do respectivo beneficiário. (Pedido de Uniformização
de Interpretação de Lei Federal 200563060143270. Relatora: Juíza
Federal Daniele Maranhão Costa. Relator para o Acórdão: Juiz
Federal Marcos Roberto Araújo dos Santos, destacou-se)
Uma interpretação a contrario sensu desse excerto sugere que apenas
rendimentos de pessoas idosas seriam excluídas do cálculo da renda, mas outros
acórdãos indicam o contrário.
Porém, em julgamento ocorrido em 13 de agosto de 2007, menos de quatro
meses depois do julgamento do Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei
283
Federal 200563060143270, assegurou-se a concessão de benefício assistencial numa
situação em que o familiar do requerente era pessoa com deficiência que auferia
benefício de valor mínimo:
por meio de uma interpretação de eqüidade, com fulcro no disposto no
artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, o benefício de valor
mínimo, assistencial ou aposentadoria, tanto ao idoso como ao
deficiente, não podem ser levados em consideração para o cômputo
da renda familiar per capita para concessão de outro benefício
assistencial. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei
Federal 200543009040777. Relatora: Juíza Federal Mônica Autran
Machado Nobre, destacou-se)
Também em votação unânime, o acórdão proferido no Pedido de
Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200683005103371 consigna que a renda
da pessoa com deficiência deveria ser descontada para efeito de aplicação da regra
especial do artigo 34.
Por outro lado, no aresto desta Turma, indicado pela autora, registro o
restabelecimento “do benefício assistencial, interpretando o art. 34,
parágrafo único do estatuto do idoso, para o fim de excluir do
cômputo da renda familiar o benefício assistencial concedido ao
deficiente, por estar juntamente com o idoso protegido pelo art. 203,
V, da CF”.
Ora, deste simples cotejo já se percebe que se trata de causas fundadas
em um mesmo suporte fático, porém com desfechos diversos, o que
caracteriza a dissidência jurisprudencial a justificar a intervenção
deste colegiado. De fato, se o fundamento principal para a não
exclusão do benefício previdenciário da mãe da requerente é o de que
esta última recebe um benefício previdenciário e não um benefício
assistencial motivado pela idade avançada, então é contrário à situação
análoga, em que o benefício assistencial do deficiente foi
desconsiderado para o cômputo da renda mensal familiar per capita.
Pouco importa em que pólo esteja o deficiente, se figura como
requerente do benefício assistencial ou se já o percebe e deve ter essa
renda excluída. Se o fundamento do acórdão impugnado é o de que
somente idosos poderiam gozar do benefício da exclusão da renda,
aqui o aresto da Turma o desconfirma. [...]
Ante o exposto CONHEÇO E DOU PROVIMENTO AO INCIDENTE.
(Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200683005103371. Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano
Cunha, destaque no original)
Em outra decisão, cuidando de concessão de benefício assistencial a pessoa
com deficiência em cuja família existia outra pessoa com deficiência titular de benefício
284
assistencial, entendeu-se que caberia a exclusão de outro benefício assistencial, de
qualquer espécie, conforme trecho do voto vencedor:
[...] o presente caso envolve um benefício assistencial destinado a um
deficiente, em cuja família há um outro deficiente que recebe um
benefício assistencial de valor mínimo, passo à análise da primeira e
da segunda lacunas mencionadas. [...]
Destarte, aplicando-se analogicamente o disposto no parágrafo único
do art. 34 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003), um benefício
assistencial recebido pelo pai (no caso uma pessoa não idosa) do autor
(no caso um deficiente), deve ser excluído da renda do grupo familiar
para fins de apuração da renda per capita, assim como também deve
ser excluída a própria pessoa do pai do autor para fins de cálculo, o
que significa que para fins de concessão do benefício a renda deverá
ser aferida com base no grupo familiar composto apenas pelo autor e
por sua mãe, como entendeu o acórdão ora recorrido.
Ante o exposto, voto por negar provimento ao pedido para
uniformizar o entendimento de que “para fins de concessão de
benefício assistencial a deficiente, o disposto no parágrafo único do
art. 34 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) se aplica por
analogia para a exclusão de um benefício assistencial recebido por
outro membro do grupo familiar, ainda que não seja idoso, o qual
também fica excluído do grupo para fins de cálculo da renda familiar
per capita”. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200783005023811. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins
Port. Relatora para o Acórdão: Juíza Federal Jacqueline Michels
Bilhalva, destaque no original)
Essas decisões sugerem que a proteção da renda abarcaria idosos e pessoas
com deficiência. No entanto, esses acórdãos não autorizam a exclusão do benefício de
valor mínimo ainda que não se trate de familiar idoso ou com deficiência273.
A natureza do rendimento, da mesma forma, é tomada como outra relação de
semelhança relevante. Esse entendimento, inclusive, afasta a aplicação analógica do
artigo 34 do Estatuto do Idoso quando os ganhos de um salário mínimo decorram de
remuneração do trabalho. Nesse caso, deve ser aplicada a regra geral da LOAS, com
possibilidade de se aferir a necessidade financeira por outros meios de prova. Em suma:
273
Em reforço a essa afirmação, foram encontradas decisões dando conta de que a condição do titular da
renda de um salário mínimo é determinante para a aplicação do artigo 34 do Estatuto do Idoso, sugerindo
inclusive que somente seja excluída a renda de outro idoso. Foram localizadas, fora do universo de
decisões inicialmente selecionadas, 10 acórdãos contendo a afirmação de que o propósito do Estatuto do
Idoso é proteger a renda do idoso contra aviltamento decorrente da necessidade de empregar esses ganhos
nas despesas de outro idoso ou pessoa com deficiência. Cuida-se das decisões proferidas nos Pedidos de
Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200672950022673, 200770510074026,
200770510079127, 200770590036096, 200770950147159, 200772510007868, 200772520024887,
200772640007923, 200870950034436 e 200870950035910.
285
não se admite a exclusão da renda de um salário mínimo. É o que se depreende da
seguinte decisão abaixo:
A partir da exegese das disposições do supracitado diploma legal, bem
como do contido no art. 203, V, da Constituição Federal, aferindo-se
de forma sistemática e teleológica o sentido e alcance da norma
veiculada no parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso, tendose em conta os princípios da igualdade e da razoabilidade, a finalidade
da legislação protetiva e o valor da dignidade da pessoa humana, que
perpassa todo o sistema constitucional, forçoso concluir que lícita é a
interpretação extensiva do dispositivo, considerando não computável
na renda mensal familiar per capita qualquer outro benefício
percebido por idoso no valor de 1 (um) salário mínimo. Isto porque a
hipótese normativa descrita quis enfatizar, mais do que a natureza ou
origem, o valor do benefício mensal de 1 (um) salário mínimo,
recebido por outro membro da família do idoso, como única fonte de
recursos, como discrímen logicamente relevante na avaliação da
situação econômica e caracterização da condição de pobreza ou
miserabilidade do grupo familiar. Assim, por meio de uma
interpretação de eqüidade, com fulcro no disposto no artigo 5º da Lei
de Introdução ao Código Civil, o benefício de valor mínimo,
assistencial ou aposentadoria, tanto ao idoso como ao deficiente, não
podem ser levados em consideração para o cômputo da renda familiar
per capita para concessão de outro benefício assistencial. Verifico, no
entanto, que no caso dos autos a renda da esposa do autor é
proveniente da remuneração percebida como servidora pública que,
apesar de corresponder ao valor mínimo, não se enquadra como
benefício assistencial ou aposentadoria. Todavia, com razão o
requerente quanto à alegação de que art. 20, § 3º da Lei nº 8.742/93
não pode ser utilizado como o único critério válido para comprovar a
condição de miserabilidade preceituado no artigo 203, V, da
Constituição Federal. (Pedido de Uniformização de Interpretação de
Lei Federal 200543009039683. Relatora: Juíza Federal Mônica
Autran Machado Nobre, destacou-se)
No
Pedido
de
Uniformização
de
Interpretação
de
Lei
Federal
200584015002615, a relatora do acórdão expressamente afirma que:
a renda familiar de um salário mínimo, percebida por um membro da
família, independentemente da origem da receita, não poderá ser
impedimento para que outro membro, cumprindo os demais requisitos
exigidos pela Lei nº 8.742/93, aufira o benefício assistencial, pois a
condição econômica para a sobrevivência é idêntica àquela situação
de que trata o parágrafo único do artigo 34 da Lei nº 10.741/2003.
(Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200584015002615. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória.)
286
Porém, em voto-vista, o Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza
discordou desse entendimento:
na hipótese ora analisada, não cabe analogia ao disposto no art.34,
parágrafo único da Lei nº 10.741/2003. O referido dispositivo legal é
taxativo ao fixar sua aplicabilidade apenas aos idosos maiores de 65
anos, o que não é o caso; a genitora do autor possui 63 anos, motivo
pelo qual a renda advinda da aposentadoria que percebe deve ser
considerada para fins de apuração da renda familiar. Não há que se
falar em interpretação extensiva no caso concreto, uma vez que o
próprio Estatuto protetivo do idoso condiciona a aplicação do
dispositivo aos beneficiários com mais de 65 anos de idade. Não
obstante, mister esclarecer que o dispositivo regulamentador do
conceito constitucional de necessidade (art. 203, V) deve ser
interpretado de acordo com a Constituição e serve apenas como
parâmetro objetivo de medida das condições de sustento dos
pretendentes ao benefício.
Embora não se possa depreender qual argumento prevaleceu no julgamento do
Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200584015002615, a
constatação da divergência entre os integrantes da TNU, somada ao teor da decisão
proferida no processo 200543009039683 e às considerações sobre a importância de se
perquirir quem é o titular da renda antes de se proceder à exclusão do valor da renda,
indicam a prevalência do entendimento segundo o qual a exclusão da renda de um
salário mínimo não é indiscriminada. Nesse sentido, a exclusão só atinge ganhos que
decorram de benefícios mantidos pela seguridade social e que sejam titularizados por
pessoas idosas ou com deficiência.
A última variável a ser avaliada refere-se ao valor do benefício. Sobre esse
ponto, importa saber se o titular do rendimento sempre terá direito à reserva de um
salário mínimo em seu favor. Em caso afirmativo, não haveria a exclusão do
rendimento, mas sim o desconto do equivalente ao salário mínimo como etapa prévia ao
cálculo da renda per capita.
Esse tema foi enfrentado no pedido de uniformização 200663060074275. Na
votação, discutia-se a possibilidade de se calcular a renda per capita mediante desconto
do equivalente a um salário mínimo recebido por idoso, quando a renda deste
ultrapassasse o valor mínimo. Houve empate entre os juízes que participaram da
votação e, após pronunciamento do Presidente da TNU, prevaleceu o entendimento pela
287
impossibilidade de aplicação do artigo 34 na hipótese de rendimentos superiores ao
mínimo pagos a outro membro do grupo familiar. O acordão está assim ementado:
PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO. DIVERGÊNCIA ENTRE
TURMAS RECURSAIS DE REGIÕES DIVERSAS. BENEFÍCIO
ASSISTENCIAL. EXCLUSÃO DO ART. 34, PARÁGRAFO
ÚNICO, DA LEI 10.741/2003. NÃO APLICAÇÃO AOS
BENEFÍCIOS DE VALOR SUPERIOR A UM SALÁRIO MÍNIMO.
CONHECIMENTO E PROVIMENTO. I - Divergência entre turmas
recursais sitas em regiões distintas, acerca do alcance do art. 34,
parágrafo único, da Lei 10.741/2003, para fins de concessão de
benefício assistencial, enseja o conhecimento de pedido de
uniformização. II - Embora se possa sustentar que a exclusão da renda
do idoso do conjunto de rendimentos da entidade familiar, prevista no
art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003, abranja igualmente as
aposentadorias e as prestações assistenciais, não se concebe que tal
ocorra quando o seu valor supere o montante de um salário mínimo.
Isto porque, tratando-se o mencionado preceito legal de norma que
anuncia exceção, a sua aplicação a situações análogas deve ser
operada com restrições. III - Recurso conhecido e provido. (Pedido de
Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200663060074275,
Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Relator para o
Acórdão Juiz Federal Edilson Pereira Nobre Júnior.)
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ESTATUTO
DO IDOSO. ARTIGO 34, ‘CAPUT’ E PARÁGRAFO ÚNICO.
APLICAÇÃO ANALÓGICA. CÔNJUGE QUE PERCEBE
BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO SUPERIOR AO VALOR
MÍNIMO. 1. O parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741/2003
(Estatuto do Idoso) pode ser aplicado por analogia à hipótese em que o
benefício percebido pelo cônjuge é de natureza previdenciária. 2.
Embora esta Turma Nacional de Uniformização já tenha decidido que
o parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741/2003 possa ser
interpretado de maneira extensiva, a fim de excluir do cálculo da
renda familiar não só o benefício assistencial, percebido por outro
idoso integrante do grupo familiar, mas também a aposentadoria deste,
não se tem admitido tal interpretação quando o valor da aposentadoria
supere o do salário mínimo. 3. Precedente desta TNU no Processo nº
2006.63.06.00.7427-5. 4. Pedido de Uniformização não provido.
(Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950009582. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins
Pereira.)
Portanto, acerca da aplicação analógica do artigo 34, parágrafo único, do
Estatuto do Idoso, as observações sobre o entendimento predominante nos arestos
analisados podem ser sintetizadas na tabela a seguir:
288
Aplicação literal do
Estatuto do Idoso
Analogia admitida na TNU
Requerente
idoso
idoso ou pessoa com deficiência
Familiar titular de
rendimentos
idoso
idoso ou pessoa com deficiência
Natureza dos rendimentos
benefício assistencial
Valor dos rendimentos
um salário mínimo
benefício mantido pela
seguridade social
um salário mínimo
5.3.6 As referências à miserabilidade
Nos capítulos anteriores, destacou-se por diversas vezes que a assistência
social historicamente surgiu como sistema destinado a atender apenas situações de
penúria, isto é, de necessidade extrema. Atualmente, embora não seja possível dizer que
exista um cenário completamente diferente, é possível identificar uma tendência à
ampliação do rol de necessidades sociais atendidas. Ainda assim – como, de resto, em
tudo na assistência social – coexistem novas e antigas formas de pensar e proceder.
Na leitura dos acórdãos, a recorrente alusão à “miserabilidade” como requisito
da concessão do benefício de prestação continuada, sugere a persistência da noção de
que a assistência social destina-se apenas às situações de penúria. Eis alguns trechos:
peço uniformização com a feitura de súmula de maneira a consagrar o
entendimento no sentido de que a comprovação da renda per capita
não superior ao ¼ (um quarto) do salário mínimo, estabelecido no
artigo 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93 não exclui que a condição de
miserabilidade, necessária à concessão do benefício assistencial,
resulte de outros meios de prova, de acordo com cada caso em
concreto. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200270090033412. Relator: Juiz Federal Marcelo Mesquita Saraiva,
destacou-se)
a prova da miserabilidade é importante, eis que há possibilidade de se
respeitar o limite objetivo da Lei 8742/93, mesmo que a renda per
capita seja, em tese, superior àquele limite, pois outros fatores (por
exemplo, despesas médicas habituais) podem fazer com que o limite
legal não seja atingido, devido à existência de despesas obrigatórias, a
ponto de não considerá-las como componentes da renda. No caso
concreto, em que há evidentes indícios de invalidez para toda a vida
de uma criança de cinco anos de idade, avulta a necessidade de se
289
perquirir a real situação econômica do núcleo familiar. Pelo exposto,
voto pelo conhecimento do incidente e seu provimento, para
ANULAR O ACÓRDÃO da Turma Recursal do Rio Grande do
Norte, e que a instância de origem julgue o caso como entender de
direito, considerando a possibilidade de a parte autora comprovar seu
estado de miserabilidade, e não apenas limitar-se à exigência da renda
familiar até ¼ do salário mínimo. (Pedido de Uniformização de
Interpretação de Lei Federal 200584130012658. Relator: Juiz Federal
Guilherme Bollorini Pereira, destacou-se)
[...] não estando a questão definitivamente pacificada no âmbito do
STF e já existindo posicionamento dominante no Superior Tribunal de
Justiça em sentido diverso, tenho que deva prevalecer o entendimento
que possibilita ao juiz avaliar outras provas do estado de
miserabilidade, não sendo o critério da renda familiar inferior a 1/4 do
salário mínimo o único a ser utilizado para tanto. Acrescento que
diante da nova posição do Supremo Tribunal Federal, que se revela
nas decisões monocráticas de seus Ministros, o fato é que, decidindo a
favor do miserável deficiente ou idoso, esta Turma não estará
afrontando decisão daquela Corte, mas apenas e tão-somente
cumprindo mandamento constitucional, já que o critério de ¼ do
salário mínimo é insuficiente para comprovação do estado de
miserabilidade. Pelo exposto, conheço do pedido de uniformização e
lhe dou provimento para anular o acórdão e a sentença proferidos,
determinando o retorno dos autos ao juízo de primeiro grau para que
proceda a devida instrução do feito, possibilitando à recorrente a
produção de outras provas com vistas a demonstração do alegado
estado de miserabilidade. É como voto. (Pedido de Uniformização de
Interpretação de Lei Federal 200251510229469. Relatora: Juíza
Federal Maria Divina Vitória, destacou-se)
Assim, depreende-se da leitura do aresto recorrido estar ele fincado
exclusivamente no posicionamento anteriormente adotado pelo
Supremo Tribunal Federal. No entanto, constatada a mudança no
rumo do entendimento daquela Corte, sendo tal entendimento
acompanhado por essa Turma Nacional, como se depreende de seus
mais recentes julgados, forçoso reconhecer o ¼ do salário mínimo,
estabelecido no § 3º, do art. 20, da Lei 8.742/93, como um limite
mínimo, não impedindo a complementado por outros critérios para
comprovação da miserabilidade. No caso, tendo a Turma Recursal
limitado o julgamento da causa ao enquadramento da renda per capita
ao mínimo legal, não adentrando em outros elementos de prova,
necessário o retorno dos autos à Turma de origem para reexame das
provas, a partir da interpretação dada por esta Turma Nacional de
Uniformização. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei
Federal 200643009023178. Relator: Juiz Federal Leonardo Safi de
Melo, destacou-se)
O recorrente emprego do termo miserabilidade como requisito de concessão do
benefício – mesmo que, de fato, as decisões judiciais não protejam apenas as situações
de indigência ou pobreza extrema – indica o uso muito disseminado de um termo
frequentemente associado às hipóteses de intervenção da assistência social. Em
290
contraste, poucas são as decisões que utilizam, por exemplo, o termo necessidades
básicas, previsto na LOAS, como é caso do pedido de uniformização 200870650015977
(cf. supra 5.3.4 Critério objetivo de renda).
A observação quanto à terminologia empregada é relevante, ainda que não
altere o resultado final dos provimentos jurisdicionais concedidos pela TNU.
A mudança na terminologia empregada teria o importante papel de demarcar a
transformação de paradigma de atuação da política de assistência social. Isso porque a
concepção de que “apenas” a miséria – leia-se: pobreza extrema ou indigência – enseja
proteção não contributiva pode transmitir a ideia de que a “mera” pobreza não justifica a
ação estatal pela via assistencial, o que não se coaduna com a ordem constitucional
brasileira274. Uma vez que houve um longo percurso até que a assistência social se
consolidasse como sistema de promoção de cidadania e deixasse de exigir
constrangedoras provas de miserabilidade, é importante que essas conquistas se reflitam
também no vocabulário empregado.
Sendo assim, e lembrando que a TNU vem adotando posturas tendentes a
ampliar o espectro da proteção social, percebe-se que suas decisões não buscam
proteger apenas aqueles que estão em situação de pobreza extrema, isto é, de
miserabilidade patente. Ao contrário, entende-se que a assistência social alcança
cidadãos que necessitam do benefício de prestação continuada para sobreviver de forma
digna. Sendo assim, conclui-se que o emprego de termo miserabilidade revela muito
mais um hábito de linguagem do que um requisito jurídico.
5.4
Crítica aos acórdãos
A pesquisa à jurisprudência evidencia o emprego de diversos métodos
interpretativos na busca de soluções para os problemas concretos que são apresentados à
TNU. Denota ainda a mescla entre os tipos de interpretações – especificadora, restritiva
e extensiva – e um amplo emprego do raciocínio analógico.
274
Aliás, é oportuno recordar que os benefícios assistenciais se inserem no nível de proteção social
básica e, portanto, não constituem modalidade de intervenção destinada apenas a casos extremos (cf.
supra 4.2.4.2 Proteção social, defesa de direitos e vigilância socioassistencial na LOAS).
291
Os dois primeiros temas destacados dizem respeito às condições pessoais de
possíveis titulares do benefício que, por disposição constitucional, devem ser pessoas
idosas ou com deficiência. Não foram encontradas discussões sobre o limite etário de 65
anos para concessão do benefício, mesmo diante da definição de idoso como pessoa
com idade igual ou superior a 60 anos. As controvérsias quanto aos destinatários do
benefício somente surgem quando se trata de pessoa com deficiência.
Em relação a este grupo, a TNU vem adotando critérios de identificação de
deficiência mais elásticos do que os constantes da LOAS antes das alterações
promovidas pelas Leis n. 12.435/11 e n. 12.470/11.
A análise da deficiência sempre prestigiou a perspectiva socioeconômica em
detrimento de perspectivas puramente biológicas. No caso de pessoas com mais de 16
anos, a capacidade laborativa ganha relevo, mas esse aspecto é analisado sob um
enfoque socioeconômico. Desse modo, o termo incapacidade para a vida independente,
atualmente suprimido da LOAS, acabou sendo interpretado como sinônimo de
incapacidade para a vida autônoma.
Os outros temas destacados concernem aos critérios de identificação da
necessidade financeira.
Quanto ao primeiro deles – a definição de família –, prevalecem interpretações
especificadoras da definição legal. Esse aspecto contrasta com a tendência à
flexibilização dos requisitos legais para concessão do benefício assistencial.
Nas decisões transparece a preocupação em evitar que a situação financeira de
pessoas que, de fato, não podem ser juridicamente compelidas a auxiliar seus familiares
seja prejudicial ao idoso ou à pessoa com deficiência. A preocupação é relevante, pois a
concepção de família como primeiro núcleo de proteção ao indivíduo deve levar em
conta a real capacidade protetiva de cada grupo familiar e as necessidades de renda de
todos os familiares. No entanto, como o critério legal não capta a pluralidade de
arranjos familiares possíveis e igualmente merecedores de proteção, causa surpresa que
as decisões judiciais não tenham se aprofundado na discussão do conceito de família à
luz da Constituição Federal.
Acerca da análise de necessidade financeira, é clara a tendência à flexibilização
do critério de renda per capita previsto em lei. Coexistem entendimentos que aplicam
presunções – acatando os critérios de hipossuficiência previstos na legislação – e
entendimentos que valorizam a demonstração da necessidade em cada caso concreto. E,
292
com relação a este último ponto, há que se reconhecer que a persistência de diversos
órgãos jurisdicionais em valorizar a prova de hipossuficiência, em detrimento de efetuar
apenas um cálculo aritmético para aferir a renda per capita muito contribuiu para que o
próprio STF definisse seu posicionamento. Observe-se que o entendimento exposto em
diversas decisões da TNU é exatamente o entendimento estampado no voto vencido
proferido no julgamento da ADI n. 1.232-1/DF.
Ainda sobre o critério da necessidade financeira, um aspecto positivo é a
rejeição de concepções de assistência social como política dirigida apenas às pessoas
que estejam em situações de absoluta miséria e, ou, em condições físicas que impeçam
o desempenho de toda e qualquer atividade.
No tocante ao artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, a aplicação
analógica desse dispositivo nos casos em que uma pessoa com deficiência figura como
requerente do benefício e, ou, como integrante do grupo familiar titular de renda atende
à isonomia na proteção constitucional ofertada pelo artigo 203, inciso V, da
Constituição Federal.
Quando se discute se a natureza da renda faz diferença para que seja ou não
excluída do cálculo da renda, entende-se que esta variável não é relevante para a
identificação das relações de semelhança que justificam a analogia. Se se busca
assegurar que a pessoa idosa ou com deficiência tenha reservada para si um salário
mínimo, leva-se em conta a situação de necessidade de renda dessa pessoa. Como a
natureza do rendimento não interfere na maior ou menor satisfação das necessidades, a
aplicação desse critério não guarda relação com a finalidade que se quer proteger.
Da mesma forma, quando se analisa o cálculo da renda per capita mediante
desconto do equivalente a um salário mínimo recebido por idoso ou por pessoa com
deficiência, percebe-se que situações fáticas muito semelhantes recebem tratamentos
bem diferentes. Tome-se como exemplo a situação de um casal que sobrevive com um
salário mínimo por mês (R$ 622,00) e a de outro casal que possua rendimento um
pouco superior ao mínimo (R$ 630,00, v.g.). No primeiro caso, o cônjuge sem renda
tende a ser beneficiado pela aplicação literal ou analógica do artigo 34 do Estatuto do
Idoso – proporcionando-se ao casal a renda per capita final de um salário mínimo – que
pode até dispensar um exame mais detido sobre a situação de necessidade, a exemplo do
que se depreende da transcrição do Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei
Federal 200832007038700. No segundo caso, a existência de ganhos ligeiramente
293
superiores ao mínimo implicará a não aplicação do artigo 34, exigindo-se prova
inequívoca da necessidade como requisito para concessão do benefício.
Mais do que discutir se o acolhimento da tese contrária à que prevalece na
TNU representaria um excessivo distanciamento em relação ao que consta do Estatuto
do Idoso, o que se quer destacar é a racionalidade que orienta essas decisões.
Diferentemente da isonomia que se busca pela equiparação de tratamento a pessoas
idosas ou com deficiência e pela não distinção entre a natureza dos rendimentos, a
reflexão sobre a tese do “desconto” de um salário mínimo no cálculo da renda per
capita não se detém tanto na preocupação em dispensar proteção isonômica a
indivíduos cujas necessidades são muito semelhantes. Mais uma vez, percebe-se que a
necessidade social aparece pouco como elemento norteador dessas decisões.
De modo geral – e apesar de alguns acórdãos fazerem referência à
subsidiariedade da assistência em relação à previdência social – não prevalece uma
concepção restritiva da assistência social.
Entretanto, não parecem definidos os critérios norteadores da concessão do
benefício fora das hipóteses previstas na LOAS ou decorrentes de aplicação analógica
do Estatuto do Idoso. Isso significa que não se pode falar ainda em definição de padrões
que permitam identificar as hipóteses de concessão do benefício quando superados os
critérios previstos em lei.
Nas decisões analisadas – que, recorde-se, fixam parâmetros de interpretação e
aplicação das normas sobre assistência social – percebe-se a pouca utilização de
conceitos presentes na própria LOAS como necessidades básicas, mínimos sociais e
vulnerabilidades. Não se identifica, por exemplo, um rol de necessidades – materiais e
imateriais – cuja satisfação deve ser analisada para concessão ou não do benefício de
prestação continuada ou referências ao escopo de tornar o destinatário da ação
assistencial alcançável pelas demais políticas públicas.
Percebe-se ainda que as decisões judiciais que tratam do benefício assistencial
de prestação continuada transitam pouco pelas demais disposições da LOAS. Há
análises cuidadosas e sempre renovadas a respeito do benefício assistencial, mas a
compreensão desse benefício como parte de um sistema mais complexo – e que
funciona como uma rede socioassistencial – ainda pode ser melhor explorada pela
comunidade jurídica.
CONCLUSÕES
Após estudar o surgimento da assistência social no Ocidente e sua evolução no
Brasil, antes e depois de seu reconhecimento como direito social pela Constituição
Federal de 1988, encerra-se o presente estudo com as respostas às três indagações
formuladas na introdução deste trabalho, o que exige a recapitulação de alguns dos
registros apresentados.
A primeira questão apresentada – e cuja resposta demanda uma digressão
histórica, ainda que sucinta – foi: em que medida a assistência social delineada antes da
Constituição Federal de 1988 contribuiu para seu pouco destaque como direito social
após 1988?
Medidas de amparo às pessoas em situação de necessidade existem há muito
tempo desde o início da vida em sociedade. A organização e institucionalização dessas
medidas, contudo, são mais recentes. No Ocidente, foi apenas a partir do século XIV
que os governos, agindo isoladamente ou em conjunto com outras instituições,
organizaram medidas de atenção às situações de privação material.
Do século XIV até o século XVII a legislação e as práticas assistenciais
evoluíram de forma semelhante em toda a Europa. Essas práticas acabaram sendo
assimiladas pelas colônias inglesas da América do Norte – que posteriormente
constituiriam os Estados Unidos da América – e se refletiram nas primeiras medidas de
assistência à pobreza adotadas no Brasil. Nesse período, a legislação era pautada pelo
propósito de evitar grandes comoções sociais e preservar o baixo custo da mão de obra,
e não pelo intuito de proporcionar melhores condições de vida e justiça social às
pessoas em situação de vulnerabilidade. Não por outro motivo, a assistência esteve
conjugada com rígidas medidas de controle dos assistidos e, em muitas situações, com o
dever de trabalhar, ainda que sob condições aviltantes.
Esse cenário começou a mudar a partir do século XVIII, com o pioneirismo da
França em reconhecer a assistência como um dever, o que ocorreu em 1793. Tal evento
foi um significativo contraponto à noção de pobreza como mero resultado de fracassos
individuais e à ideia de que os assistidos contraíam uma dívida para com a sociedade.
Porém, não se pode falar em uma generalizada mudança de paradigma a partir de então,
295
tanto assim que a mais draconiana das medidas de assistência pública, consistente na
experiência das Workhouses inglesas, ocorreu no século XIX, a partir do Poor Law
Amendment Act de 1834.
Foi somente no final do século XIX e, mais intensamente, a partir do século
XX que os fundamentos das políticas assistenciais de satisfação de necessidades básicas
começaram a ser questionados, valendo recordar dois marcos importantes – embora não
os únicos – dessa transformação. O primeiro foi a instituição do sistema germânico de
seguros sociais obrigatórios, concebido por Otto von Bismarck, que representou uma
nova forma de compreender as situações de necessidades individuais que deveriam ser
supridas por toda a sociedade. O segundo, já no século XX, foi o Plano Beveridge, que
inaugurou na Inglaterra um modelo de segurança social que se tornaria a principal
referência sobre o assunto até os dias de hoje; desde então a assistência social passou a
integrar um plano de segurança social mais amplo, cujo objetivo era libertar os
indivíduos da situação de necessidade, sem expô-los a tratamentos degradantes e
vexatórios.
Em que pese a inegável mudança operada ao longo de séculos de evolução da
assistência social, pode-se apontar algumas características que persistiram e que ainda
hoje condicionam as reflexões sobre o tema, a saber: (a) distinção entre pessoas capazes
e incapazes para o trabalho conforme a aptidão física e mental, com prioridade de
atendimento aos incapazes; (b) estruturação da assistência social como mecanismo de
proteção social subsidiário ao trabalho e à previdência; (c) adoção do critério da menor
elegibilidade, segundo o qual as prestações da assistência devem ser sempre piores do
que as prestações obtidas por meio do trabalho ou da previdência, critério este que pode
ser interpretado como um reflexo das duas características anteriormente elencadas;
(d) mescla entre assistência social e caridade, com forte apelo a esta como forma de
sanar as situações de falta de meios necessários à sobrevivência digna de indivíduos e
grupos, bem como presença significativa da Igreja Católica na distribuição de auxílios
materiais; (e) valorização da localidade de origem ou de residência do interessado como
critério de acesso às prestações da assistência social.
Essas características foram incorporadas às práticas socioassistenciais
desenvolvidas no Brasil, às quais foram agregadas a distinção entre escravos e não
escravos, no período anterior à abolição da escravatura, e a exacerbação da assistência
296
social como caridade e como um mecanismo subsidiário e de menor importância em
relação a outras formas de satisfação de necessidades sociais.
A história anterior à Constituição Federal de 1988 mostra a inexistência de um
projeto governamental de assistência social, a qual, até a década de 1980, sequer era
tratada como um tema relacionado com as políticas de desenvolvimento do país. A
regulação verificada a partir da década de 1930 consistiu predominantemente em
financiamento à filantropia. A seu turno, a LBA – Legião Brasileira de Assistência, a
primeira grande instituição de assistência social do país – sobrevalorizou o trabalho
voluntário da elite feminina e inaugurou a transferência da responsabilidade pela
condução da assistência social às esposas dos governantes, enaltecendo a figura das
damas de caridade.
A estrutura disponibilizada aos serviços socioassistenciais e o conteúdo de suas
ações também refletiu a noção da assistência social como um mecanismo subsidiário e
de pouca importância, destinado a desaparecer em um horizonte de desenvolvimento
econômico. Essa pouca importância conferida ao tema significou falta de planejamento
das ações, ausência de coordenação entre os níveis federativos, precariedade dos
serviços e descontinuidade na destinação dos recursos públicos; já a pouca importância
conferida ao tema e a exacerbação da noção de subsidiariedade refletiram-se no caráter
paliativo e pontual de suas ações, bem como no atendimento restrito às situações de
extrema penúria.
Além disso, as ações da assistência social não conseguiram se desvencilhar da
criação de estigmas em torno dos assistidos. As situações de necessidade não foram
tratadas como consequência da estrutura socioeconômica do país, mas como resultado
de fracassos dos indivíduos ou das comunidades em situação de pobreza. Em alguns
momentos, o enfrentamento da pobreza foi considerado uma questão de “educação para
a maternidade” ou, melhor dizendo, visava-se preparar mulheres para que se dedicassem
à vida doméstica, criando filhos que posteriormente se tornassem aptos para o trabalho,
sem qualquer perspectiva emancipadora das populações atendidas.
A soma entre as características herdadas da experiência de outros países e as
que se desenvolveram no Brasil explica o pouco prestígio da assistência social, mesmo
após sua consagração constitucional em 1988. As práticas anteriores transformavam a
assistência social em um conjunto de medidas precárias, confundidas com
297
benemerência, relegadas a entidades alheias ao governo – mas extremamente
dependentes de financiamento público –, cujos destinatários eram tratados como
grandes responsáveis pela própria penúria, sem a devida atenção a todas as causas
estruturais que subjazem a essas situações.
Nesse cenário – e sempre registrando o papel decisivo dos profissionais e
estudiosos do serviço social, muitas vezes vozes isoladas em prol de uma assistência
social pautada por critérios mais técnicos e transformadores – compreende-se por que a
assistência social foi vista como um tema pouco relevante para o desenvolvimento do
país e a promoção de bem-estar social. Seu reconhecimento como direito social foi uma
inegável conquista, mas não foi o suficiente para desconstruir um ambiente
manifestamente hostil a seu fortalecimento e ampliação. Por isso mesmo, a
promulgação da Constituição Federal não encerrou a luta em defesa da efetivação desse
direito.
Isso remete à segunda indagação formulada: em que medida o Brasil avançou
no tratamento jurídico da assistência social desde a promulgação da Constituição
Federal até a presente data?
Afirmou-se anteriormente que a compreensão da assistência social como um
não direito e como uma política de pouca relevância para o desenvolvimento do país foi
decisiva para seu lento desenvolvimento após a promulgação da Constituição Federal.
Apesar dos percalços, ocorreram significativos avanços na efetivação desse
direito.
A inclusão da assistência social entre os direitos sociais previstos pela
Constituição Federal e a previsão expressa de primazia da responsabilidade estatal pela
condução dessa política, contida na Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS,
impuseram ao Poder Público o dever de assumir o protagonismo no planejamento e na
implantação de um sistema de proteção social não contributivo. Provocou-se, dessa
forma, uma ruptura com a transferência da responsabilidade pela assistência social à
iniciativa privada, o que havia marcado a formação da assistência social no Brasil.
As normas constitucionais e infraconstitucionais sobre o tema também
demonstram que não se busca apenas proteger indivíduos e grupos de situações
extremas de necessidades financeiras. A uma porque, além da segurança econômica, a
assistência social ocupa-se da promoção de segurança de convívio, lidando com
298
situações cuja solução não passa apenas pela necessidade de renda, mas também pela
atenção às situações de isolamento, violência, discriminação etc. A duas porque a
promoção de segurança econômica não se limita ao atendimento pontual de situações de
necessidade já instaladas; antes, demanda atuações preventivas.
Outra grande conquista foi a instituição do benefício de prestação continuada à
pessoa idosa ou com deficiência em situação de necessidade financeira. Essa previsão
representou o reconhecimento de um direito subjetivo à proteção pela via da assistência
social, um avanço significativo em uma seara marcada por regulações ad hoc e pela
ausência de garantias ao cidadão.
O país progrediu também no tocante ao planejamento e coordenação da
assistência social. Além das disposições contidas na Constituição Federal de 1988 e na
LOAS, a aprovação de duas Políticas Nacionais de Assistência Social e de diversas
Normas Operacionais Básicas tratando da organização de um sistema descentralizado e
participativo mostram a dinamização e a crescente atenção conferida ao tema. Para essa
organização e envolvimento de todos os níveis federativos, contribuiu a criação de
espaços intergovernamentais de deliberação e pactuação de temas relacionados à
política de assistência social.
A criação de espaços democráticos de debates e deliberações a propósito da
assistência social é outro aspecto a ser exaltado. Os conselhos de composição paritária
entre governo e sociedade civil, dotados de competência deliberativa, se tornaram
fóruns importantes de definição dos rumos dessa política pública. Da mesma forma, as
Conferências de Assistência Social assumiram um papel importante no monitoramento
e na avaliação crítica das ações realizadas. Favoreceu-se assim a pluralidade de ideias e
o debate público sobre os parâmetros de atuação a serem observados.
A partir do ano de 2004, intensificou-se o aprimoramento da política de
assistência social. O aprofundamento de sua disciplina legal, por meio da Política
Nacional de Assistência Social – PNAS, em 2004, e a instituição do Sistema Único de
Assistência Social – SUAS lançaram uma perspectiva de maior racionalidade da política
pública de assistência social, de novas bases para a relação entre a esfera pública e a
privada, bem como da observância de padrões mínimos de qualidade em todas as ações
socioassistenciais. As recentes alterações da LOAS corroboram esses esforços e
permitem uma leitura otimista a respeito do tema.
299
O amadurecimento da concepção da assistência social como direito social
também se nota nos pronunciamentos judiciais. As decisões que tratam do benefício de
prestação continuada previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal veiculam
análises cuidadosas sobre os diversos aspectos envolvidos na concessão desse benefício.
De modo geral, verifica-se que a assistência social não é compreendida pelo Poder
Judiciário como mecanismo restrito às situações de extrema penúria, mas sim como
uma proteção voltada para as situações em que a ausência de rendimentos, somada a um
quadro de idade avançada ou deficiência, pode comprometer a vida digna e a
participação social do indivíduo.
Registrada a evolução da assistência social até a promulgação da Constituição
Federal, bem como as medidas que se seguiram à nova ordem constitucional, chega-se à
terceira indagação: o tratamento dispensado à assistência social a partir de 1988 é
norteado pelas disposições contidas na Constituição Federal ou pelas concepções e
práticas que pautaram a assistência social antes de seu reconhecimento como direito
social?
Essa última pergunta não comporta uma resposta maniqueísta. Isso porque a
assistência social brasileira não se desvinculou de todas as características que, como já
afirmado, criaram um ambiente desfavorável à sua efetivação como direito social desde
a promulgação da Constituição Federal de 1988. Por outro lado, as mudanças
implementadas nos últimos anos, sobretudo a partir de 2004, mostram uma nova leitura
a respeito do tema, mais atenta às diretrizes constitucionais do que às práticas dispersas,
paliativas e caritativas sobejamente criticadas ao longo deste trabalho.
Para exemplificar os resquícios das práticas anteriores ao advento na nova
Constituição, vale mencionar a manutenção de programas sociais focalizados e
fragmentados, especialmente até a criação do Programa Bolsa Família, responsável pela
unificação de outros programas em curso no país. Um grande exemplo disso foi a
previsão inicial do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, com
atendimento a crianças com idade entre 7 e 14 anos, sem previsão de atendimento a
crianças com menos de 7 anos. Ainda hoje, faltam medidas de assistência social que
ultrapassem a lógica meramente monetarista, ao mesmo tempo em que fica evidente que
o valor das prestações assistenciais oferecidas é baixo para promover a superação de
muitas situações de vulnerabilidade.
300
Da mesma forma, no tocante ao benefício de prestação continuada, há pontos
que precisam ser revistos à luz da Constituição Federal. O primeiro deles é a adoção de
rigorosos critérios de identificação de necessidade financeira, demonstrando a
persistência da ideia de que a assistência social deve intervir apenas em situações de
extrema necessidade, ainda que isso signifique deixar um grande contingente de pessoas
sem proteção. O segundo é a exclusão de estrangeiros não naturalizados do rol de
potenciais titulares desse benefício. Com isso, os critérios previstos na LOAS falham na
identificação de situações de necessidade de renda e podem resultar em tratamento antiisonômico em face de pessoas que materialmente estejam na mesma situação.
Outro argumento que demonstra que parte da assistência social pós-1988 foi
pautada pela tradição existente a respeito do tema – e não pelas diretrizes
constitucionais – é a dificuldade de se deixar de recorrer à solidariedade individual para
a construção de um modelo de solidariedade coletiva, a exemplo do Programa
Comunidade Solidária.
Por fim, a falta de recursos materiais e humanos suficientes para atender à
demanda por assistência social pode perpetuar o histórico de oferta de ações precárias e
descontínuas. Este aspecto vem sendo tratado nas Conferências de Assistência Social e
sua superação será decisiva para o sucesso na implementação do SUAS e para que a
sociedade brasileira modifique a concepção de assistência social como mecanismo
paliativo e sem qualquer potencial emancipador para seus destinatários.
Ao mesmo tempo é inegável que a assistência social no Brasil vem
progredindo tanto no que diz respeito a seu espectro de proteção social, quanto no
tocante à organização e melhoria de suas ações. Há um forte movimento em prol da
revisão da qualidade dos serviços e da natureza das prestações, bem como do prestígio à
universalidade das políticas de assistência, em detrimento das leituras da extrema
focalização dessas políticas.
De igual modo, as críticas quanto à dualização da proteção social entre
trabalhadores e não trabalhadores representam uma compreensão da ideia de
necessidade social à luz da Constituição Federal. O mesmo deve ser dito a respeito da
preocupação dos atores envolvidos na efetivação desse direito com necessidades sociais
que vão além da necessidade de renda e prestigiam a dimensão do convívio e da
participação social em igualdade de condições.
301
A reflexão desenvolvida ao longo desta dissertação evidencia a contradição da
política de assistência social. Vislumbra-se que a assistência social pode proporcionar
grandes mudanças no quadro social brasileiro, sobretudo porque ainda se trata de um
direito recente, cujo potencial não foi exaurido; por outro lado, seus limites são
perceptíveis. De todo modo, se ao longo de décadas prevaleceu o discurso que relegava
a assistência social a segundo plano exatamente em função de seus limites, o país
encontra-se atualmente em condições de explorar as potencialidades dessa política.
Portanto, sem ignorar as contradições e as limitações da assistência social, é tempo de
desenvolvê-la como instrumento de proteção social.
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 06
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______. Lei n. 10.453, 13 de maio 2002. Dispõe sobre subvenções ao preço e ao
transporte do álcool combustível e subsídios ao preço do gás liqüefeito de petróleo
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e
dá
outras
providências.
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atendimento a agricultores familiares atingidos pelos efeitos da estiagem nos
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outras
providências.
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República e dos Ministérios, e dá outras providências. Disponível em:
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Desastres, o Auxílio Emergencial Financeiro para atendimento à população
atingida por desastres, residentes nos Municípios em estado de calamidade
pública ou situação de emergência, dá nova redação ao § 2o do art. 26 da Lei
no 10.522, de 19 de julho de 2002, ao art. 2o-A da Lei no 9.604, de 5 de fevereiro
de
1998,
e
dá
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providências.
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e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal,
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o
Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>.
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julho de 1991, que dispõe sobre o Plano de Custeio da Previdência Social, para
estabelecer alíquota diferenciada de contribuição para o microempreendedor
individual e do segurado facultativo sem renda própria que se dedique
exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que
pertencente a família de baixa renda; altera os arts. 16, 72 e 77 da Lei no 8.213, de
24 de julho de 1991, que dispõe sobre o Plano de Benefícios da Previdência
Social, para incluir o filho ou o irmão que tenha deficiência intelectual ou mental
como dependente e determinar o pagamento do salário-maternidade devido à
empregada do microempreendedor individual diretamente pela Previdência
Social; altera os arts. 20 e 21 e acrescenta o art. 21-A à Lei no 8.742, de 7 de
dezembro de 1993 – Lei Orgânica de Assistência Social, para alterar regras do
benefício de prestação continuada da pessoa com deficiência; e acrescenta os § §
4o e 5o ao art. 968 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil,
para estabelecer trâmite especial e simplificado para o processo de abertura,
registro, alteração e baixa do microempreendedor individual. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12470.htm>.
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funcionamento no País, que se dediquem à assistência social. Disponível em:
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razão de omissões, republicada no Diário Oficial de 16 de abril de 1999,
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em:
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Tribunal Pleno. Data da decisão: 27 ago. 1998. Diário da Justiça, 01 jun. 2001, p. 75.
______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277/DF.
Relator: Min. Ayres Britto. Tribunal Pleno. Data da decisão: 05 maio 2011. Diário
da Justiça Eletrônico 198, 13 out. 2011. Publicação em: 14 out. 2011.
______. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Medida Cautelar na
Reclamação n. 4.427-1/RS. Relator: Min. Cezar Peluso. Tribunal Pleno. Data da
decisão: 06 jun. 2007. Diário da Justiça Eletrônico 047, 28 jun. 2007. Publicação
em: 29 jun. 2007.
______. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Reclamação n. 2.303-6/RS,
Relatora: Min. Ellen Gracie. Tribunal Pleno. Data da decisão: 13 maio 2004.
Diário da Justiça, 01 abr. 2005, p. 05.
______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n. 132/RJ. Relator: Min. Ayres Britto. Tribunal Pleno. Data da
decisão: 05 maio 2011. Diário da Justiça Eletrônico 198, 13 out. 2011. Publicação
em: 14 out. 2011.
______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção n. 448-0/RS. Relator: Min.
Marco Aurélio. Relator para o Acórdão: Min. Moreira Alves. Tribunal Pleno.
Data da decisão: 05 set. 1994. Diário da Justiça, 06 jun. 1997, p. 24871.
______. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 1.232-1/DF. Relator: Min. Maurício Corrêa. Tribunal
Pleno. Data da decisão: 22 mar. 1995. Diário da Justiça, 26 maio 1995, p. 15154.
______. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Reclamação n. 4.374/PE.
Relator: Min. Gilmar Mendes. Data da decisão: 01 fev. 2007. Diário da Justiça, 06
fev. 2007, p. 111.
______. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 2.323-1/PR, Relator: Min. Eros
Grau Tribunal Pleno. Data da decisão: 07 abr. 2005. Diário da Justiça, 20 maio
2005, p. 08.
______. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n.
587.970-4/SP. Relator: Min. Marco Aurélio. Tribunal Pleno. Data da decisão: 25
jun. 2009. Diário da Justiça Eletrônico 186, 01 out. 2009. Publicação em: 02 out.
2009.
______. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n.
580.963/PR. Relator: Min. Gilmar Mendes. Data da decisão: 16 set. 2010. Diário
da Justiça Eletrônico 190, 07 out. 2010. Publicação em: 08 out. 2010.
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BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Embargos de Declaração no Pedido de Uniformização de Interpretação
de Lei Federal 200270040071041. Relator: Juiz Federal Edilson Pereira Nobre
Júnior. Diário da Justiça, 26 fev. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770510074026. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da
Justiça, 13 maio 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770510079127. Relatora: Juíza Federal Rosana Noya Alves Weibel
Kaufmann. Diário da Justiça, 05 abr. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770590036096. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da
Justiça, 13 maio 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200772520024887. Relatora: Juíza Federal Rosana Noya Alves Weibel
Kaufmann. Diário Oficial da União, 13 maio 2011, Seção 1
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200772640007923. Relatora: Juíza Federal Rosana Noya Alves Weibel
Kaufmann. Diário da Justiça, 09 dez. 2009
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950035910. Relatora: Juíza Federal Rosana Noya Alves Weibel
Kaufmann. Diário da Justiça, 09 dez. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200461841542217. Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky. Relatora
Suplente: Juíza Federal Cristiane Conde Chmatalik. Diário Oficial da União, 17
jun. 2011, Seção 1.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200580135061286. Relator: Juiz Federal Ronivon de Aragão. Diário Oficial da
União, 08 jul. 2011, Seção 1.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200743009012182. Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky. Diário
Oficial da União, 17 jun. 2011, Seção 1.
327
BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770500026709. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira. Diário da
Justiça, 03 abr. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770500182008. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira. Diário da
Justiça, 05 mar. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770530007330. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira. Diário da
Justiça, 05 mar. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770530025203. Relatora: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. Diário da
Justiça, 09 ago. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770600015825. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira. Diário da
Justiça, 23 mar. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770630008975. Relator: Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz. Diário da Justiça,
07 jul. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200772950064726. Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha.
Diário da Justiça, 12 fev. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200783005374840. Relator: Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho.
Diário da Justiça, 05 mar. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200783035014125. Relator: Juiz Federal Manoel Rolim Campbell Penna. Diário
Oficial da União, 11 mar. 2011.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200832007038700. Relator: Juiz Federal Cláudio Roberto Canata. Diário da
Justiça, 01 mar. 2010.
328
BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870510028148. Relator: Juiz Federal Ronivon de Aragão. Diário da Justiça,
25 maio 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870510046916. Relator: Juiz Federal Cláudio Roberto Canata. Diário da
Justiça, 09 ago. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870650015977. Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky. Relatora
Suplente: Juíza Federal Cristiane Conde Chmatalik. Diário Oficial da União, 08
jul. 2011, Seção 1.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950009582. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira. Diário da
Justiça, 25 mar. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950011540. Relator: Juiz Federal Eduardo André Brandão de Brito
Fernandes. Diário da Justiça, 11 jun. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950024923. Relatora: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. Diário da
Justiça, 11 jun. 2010.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200932007033423. Relator: Juiz Federal Paulo Ricardo Arena Filho. Diário
Oficial da União, 30 ago. 2011.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200682025020500. Relator: Juiz Federal José Antonio Savaris. Diário Oficial da
União, 17 jun. 2011, Seção 1.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200251510229469. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória. Diário da
Justiça, 28 maio 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200261840001603. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos. Diário da
Justiça, 14 maio 2007.
329
BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200270090033412. Relator: Juiz Federal Marcelo Mesquita Saraiva. Diário da
Justiça, 21 out. 2004.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200272000583847. Relator: Juiz Federal Ricardo César Mandarino Barreto.
Diário da Justiça, 02 mar. 2005.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200351510059076. Relatora: Juíza Federal Sônia Diniz Viana. Diário da Justiça,
02 maio 2006.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200361840011029. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Diário da
Justiça, 31 jan. 2008.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200361840608526. Relator: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo Dos Santos.
Diário da Justiça, 11 jun. 2007
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200430007021290. Relator: Juiz Federal Wilson Zauhy Filho. Diário da Justiça,
13 jun. 2005.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200439007106977. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Diário da
Justiça, 22 jan. 2008.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200443009000410. Relator: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo Dos Santos.
Diário da Justiça, 26 set. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200443009018000. Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha.
Diário da Justiça, 27 set. 2006.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200463060057293. Relatora: Juíza Federal Renata Andrade Lotufo. Diário da
Justiça, 26 fev. 2007.
330
BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200470950028054. Relator: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo Dos Santos.
Diário da Justiça, 19 dez. 2006.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200470950095456. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos. Diário da
Justiça, 30 maio 2006.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200534007548367. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Diário
da Justiça, 22 jan. 2008.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200536007023553. Relator: Juiz Federal Renato Toniasso. Diário da Justiça, 11
set. 2006.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200543009015150. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória. Diário da
Justiça, 04 out. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200543009018871. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Diário
da Justiça, 27 nov. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200543009020535. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória. Diário da
Justiça, 26 set. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200543009020864. Relator: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo Dos Santos.
Diário da Justiça, 31 jan. 2008.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200543009021417. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Diário da
Justiça, 22 jan. 2008.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200543009028900. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos. Diário da
Justiça, 02 out. 2007.
331
BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200543009039683. Relatora: Juíza Federal Mônica Autran Machado Nobre.
Diário da Justiça, 24 mar. 2008.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200543009040184. Relator: Juiz Federal Alexandre Miguel. Diário da Justiça, 02
out. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200543009040777. Relatora: Juíza Federal Mônica Autran Machado Nobre.
Diário da Justiça, 20 set. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200543009043180. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos. Diário da
Justiça, 02 out. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200563060083879. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Diário
da Justiça, 26 fev. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200563060141557. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Diário
da Justiça, 26 fev. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200563060143270. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Relator para
o Acórdão: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo dos Santos. Diário da Justiça, 11
jun. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200570530021523. Relator: Juiz Federal Cláudio Roberto Canata. Diário da
Justiça, 20 out. 2008, p. 24.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200570950059353. Relator: Juiz Federal Hermes Siedler Da Conceição Júnior.
Diário da Justiça, 14 maio 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200570950110656. Relator: Juiz Federal Edilson Pereira Nobre Júnior. Diário da
Justiça, 18 dez. 2006.
332
BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200583200096872. Relatora: Juíza Federal Renata Andrade Lotufo. Diário da
Justiça, 18 dez. 2006.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200584015002615. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória. Diário da
Justiça, 21 dez. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200584130012658. Relator: Juiz Federal Guilherme Bollorini Pereira. Diário da
Justiça, 02 maio 2006.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200643009017410. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Diário da
Justiça, 22 jan. 2008.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200643009021811. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Diário
da Justiça, 27 nov. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200643009023178. Relator: Juiz Federal Leonardo Safi de Melo. Diário da
Justiça, 07 nov. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200663060020461. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos. Diário da
Justiça, 26 fev. 2007.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200663060074275. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza.
Relator para o Acórdão: Juiz Federal Edilson Pereira Nobre Júnior. Diário da
Justiça, 03 set. 2008.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200670950034798. Relator: Juiz Federal João Carlos Mayer Soares. Diário da
Justiça, 25 mar. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200672950022673. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da
Justiça, 29 maio 2009.
333
BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200683005103371. Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha.
Diário da Justiça, 09 mar. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200683005169254. Relator: Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz. Diário da Justiça,
28 jan. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200683035011995. Relator: Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho.
Diário da Justiça, 09 mar. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770950023355. Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha.
Diário da Justiça, 20 out. 2008.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770950064928. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória. Diário da
Justiça, 19 ago. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770950106637. Relatora: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. Diário da
Justiça, 16 jan. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200770950147159. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da
Justiça, 13 out. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200772510007868. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da
Justiça, 29 maio 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200772950002393. Relator: Juiz Federal Leonardo Safi de Melo. Diário da
Justiça, 31 jan. 2008.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200783005010828. Relator: Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz. Diário da Justiça,
28 jan. 2009.
334
BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200783005023811. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Relatora
para o Acórdão: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. Diário da Justiça, 19
ago. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200835007004024. Relator: Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho.
Diário da Justiça, 22 abr. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950021545. Relator: Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz. Diário da Justiça,
15 set. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950034000. Relatora: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. Diário da
Justiça, 04 set. 2009.
______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais
Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal
200870950034436. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da
Justiça, 13 nov. 2009, p. 07.
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