PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP Gabriela Azevedo Campos Sales A CONSTRUÇÃO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: uma abordagem jurídica MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2012 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP Gabriela Azevedo Campos Sales A CONSTRUÇÃO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: uma abordagem jurídica Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito Constitucional, sob a orientação do Professor Doutor Luiz Alberto David Araujo. MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2012 BANCA EXAMINADORA _______________________________ _______________________________ _______________________________ Ao Allison, por todas as escolhas que fez. AGRADECIMENTOS Ao meu orientador Professor Doutor Luiz Alberto David Araujo, pelo paciente incentivo ao longo do desenvolvimento deste trabalho. À Professora Luciana de Toledo Temer Castelo Branco e ao Professor Álvaro Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga, pelas considerações tecidas por ocasião do exame de qualificação, essenciais para a conclusão desta dissertação. À Bianca Galafassi, pela cuidadosa revisão. Aos meus queridos Fred Diehl, Fred Normanha e Denise Vaz, pela disposição e pelo apoio, sobretudo na fase final deste trabalho. Ao João Lovo, pelas muitas ajudas durante o curso de Mestrado. Aos meus avós, Jeslaine e José, aos meus pais, Jussara e Ademar, aos meus tios, Janete e Acácio, por uma vida inteira. À minha irmã, Juliana, por saber, melhor do ninguém, o que é ser irmã. Ao Allison, pela presença. SALES, Gabriela Azevedo Campos. A construção da assistência social no Brasil: uma abordagem jurídica. São Paulo, 2012. 334 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. RESUMO Esta dissertação analisa a evolução do tratamento jurídico conferido à assistência social no Brasil, cujo reconhecimento como direito social somente se deu com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Procura-se responder às seguintes indagações: em que medida a assistência social delineada antes da Constituição Federal de 1988 contribuiu para seu pouco destaque como direito social após 1988? Em que medida o Brasil avançou no tratamento jurídico da assistência social desde a promulgação da Constituição Federal até a presente data? O tratamento dispensado à assistência social a partir de 1988 é norteado pelas disposições contidas na Constituição Federal ou pelas concepções e práticas que pautaram a assistência social antes de seu reconhecimento como direito? A escolha do tema se justifica pela relevância que a assistência social – mecanismo de proteção social não contributiva – tem na construção da segurança social e na promoção de justiça social. A hipótese que guiou a elaboração da pesquisa é a de que as normas e as práticas de assistência social preexistentes à Constituição Federal de 1988 obscureceram o potencial dessa política pública na superação de graves problemas socioeconômicos do país. A pesquisa empreendida consistiu na análise de registros históricos da assistência social no Ocidente e, de forma mais detida, no Brasil; no exame das normas contidas na Constituição Federal que devem pautar a efetivação da assistência social; no exame das normas jurídicas referentes ao tema promulgadas no Brasil antes e depois da Constituição Federal de 1988; e na análise de decisões judiciais versando sobre o benefício assistencial de prestação continuada previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal. Os resultados da pesquisa indicam que muitas normas e práticas de assistência social ainda são bastante influenciadas pelas concepções anteriores a seu reconhecimento como direito social. Por outro lado, esses mesmos resultados revelam que, embora ainda haja um longo caminho a percorrer, os avanços na concepção e na gestão dessa política pública, à luz dos parâmetros contidos na Constituição Federal, têm sido significativos. Palavras-chave: Proteção social. Direitos sociais. Seguridade social. Assistência social no Brasil. SALES, Gabriela Azevedo Campos. The construction of social assistance in Brazil: a juridical approach. São Paulo, 2012. 334 p. Masters Dissertation. Law School, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ABSTRACT This dissertation examines the evolution of juridical treatment granted to social assistance in Brazil, whose recognition as a social right only occurred with the enactment of the Federal Constitution of 1988. This study aims to answer the following questions: to what extent has the concept of social assistance outlined before the Federal Constitution of 1988 contributed to its little importance as a social right after 1988? To what extent has Brazil improved the juridical treatment of social assistance since the enactment of the Federal Constitution? Has the treatment granted to social assistance since 1988 been guided by the constitutional rules or by conceptions and practices regarding social assistance from before its recognition as a right? The theme was chosen due to the relevance of social assistance – a non-contributory social protection mechanism– to the construction of social security and promotion of social justice. The hypothesis that guided the development of the research is based on the idea that rules and practices preexisting to the Federal Constitution of 1988 have shadowed the potential of this public policy in overcoming serious socioeconomic problems in Brazil. The research consisted of the analysis of historical records concerning social assistance in the West and, especially, in Brazil; of the analysis of constitutional standards that should guide the implementation of social assistance; of the examination of legal rules concerning the subject before and after the Federal Constitution of 1988; and of the analysis of judicial rulings related to the benefit of continued provision established by the Federal Constitution, article 203, n. V. The conclusions of the research show that many rules and practices of social assistance are still influenced by conceptions from before its recognition as a social right. On the other hand, these results also reveal that, despite the long way to go through, advances in the conception and management of this public policy, according to the constitutional standards, are significant. Keywords: Social Protection. Social Rights. Social Security. Social Assistance in Brazil. RELAÇÃO DE SIGLAS ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental BPC – Benefício de Prestação Continuada CASMU – Comissão de Assistência Social do Município CBIA – Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência CC – Código Civil CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares Centro-Pop – Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua CF – Constituição Federal CIB – Comissão Intergestores Bipartite CIT – Comissão Intergestores Tripartite CNPS – Conselho Nacional de Previdência Social CNSS – Conselho Nacional de Serviço Social CRAS – Centros de Referência de Assistência Social CREAS – Centros de Referência Especializados de Assistência Social CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social CONAB – Companhia Nacional de Abastecimento DSS – Divisão de Serviço Social FINSOCIAL – Fundo de Investimento Social FNAS – Fundo Nacional de Assistência Social FUNAC – Fundo Nacional de Ação Comunitária FUNRURAL – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural IGD – Índice de Gestão Descentralizada INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social INPS – Instituto Nacional de Previdência Social INSS – Instituto Nacional do Seguro Social IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPLAN – Instituto de Planejamento de Gestão Governamental LBA – Legião Brasileira de Assistência LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome NEPPOS – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociais NESP – Núcleo de Estudos de Saúde Pública NOB – Norma Operacional Básica NOB/SUAS – Norma Operacional Básica da Assistência Social OMS – Organização Mundial da Saúde OIT – Organização Internacional do Trabalho ONU – Organização das Nações Unidas PAEFI – Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos PAIF – Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil PNAA – Programa Nacional de Acesso à Alimentação PNAS – Política Nacional de Assistência Social PND – Plano Nacional de Desenvolvimento PND-NR – Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República RGPS – Regime Geral de Previdência Social RMV – Renda Mensal Vitalícia SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social SEBES – Secretaria do Bem-Estar Social SNAS – Secretaria Nacional de Assistência Social STF – Supremo Tribunal Federal SUAS – Sistema Único de Assistência Social SUS – Sistema Único de Saúde TNU – Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 13 1 2 3 4 Delimitação do tema ................................................................................................ 13 Método ..................................................................................................................... 15 Estrutura do trabalho................................................................................................ 16 Alguns cuidados na elaboração deste trabalho ........................................................ 17 1 ASSISTÊNCIA SOCIAL: ANTECEDENTES HISTÓRICOS NO OCIDENTE .............................................................................................................. 19 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 1.8 Considerações iniciais sobre proteção social ........................................................... 19 A ausência de práticas institucionalizadas de proteção social ................................. 20 Surgimento e evolução da proteção social............................................................... 24 A evolução do modelo britânico de proteção social ................................................ 25 O modelo francês de proteção social ....................................................................... 41 O modelo germânico de proteção social .................................................................. 48 O modelo norte-americano de proteção social ........................................................ 51 Outros registros históricos ....................................................................................... 54 1.8.1 Encíclica Rerum Novarum (1891) ............................................................... 54 1.8.2 Constituição Mexicana (1917) ..................................................................... 56 1.8.3 Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)................................... 57 1.8.4 Convenção n. 102 da Organização Internacional do Trabalho sobre norma mínima para seguridade social (1952) .............................................. 59 1.9 Conclusões ............................................................................................................... 63 2 A ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL ANTES DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ................................................................................................. 65 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 Introdução ................................................................................................................ 65 Primeiros registros do Brasil-Colônia ..................................................................... 65 A assistência no Brasil Imperial .............................................................................. 69 A assistência na República Velha ............................................................................ 72 A assistência social do final da República Velha até o início do regime militar..... 77 2.5.1 A década de 1930: o início da filantropia regulamentada............................ 77 2.5.2 Ainda a década de 1930: o início da disciplina infraconstitucional da assistência social .......................................................................................... 79 2.5.3 A década de 1940: o surgimento da Legião Brasileira de Assistência – LBA.............................................................................................................. 82 2.5.4 Ainda a década de 1940: assistência social e caridade cada vez mais próximas ....................................................................................................... 85 2.5.5 A década de 1950: a multiplicação de órgãos de assistência social e de incentivos fiscais .......................................................................................... 86 2.5.6 A década de 1960 até 1964: a ampliação dos incentivos fiscais e o reforço ao papel cartorial do CNSS ............................................................. 89 2.6 A assistência social durante o regime militar .......................................................... 91 2.6.1 Aspectos gerais ............................................................................................ 91 2.6.2 A Carta Constitucional de 1967 e a Emenda n. 1/1969 ............................... 92 2.6.3 A legislação infraconstitucional: isolamento do CNSS, crescimento da LBA e manutenção de benefícios fiscais ..................................................... 93 2.6.4 A assistência social na década de 1970........................................................ 98 2.6.5 Os últimos anos do regime militar ............................................................. 102 2.7 O período pré-Constituição Federal de 1988 ......................................................... 103 2.8 Uma síntese da assistência social até a Constituição Federal de 1988 .................. 105 3 DIRETRIZES DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............................................................................................... 109 3.1 Considerações iniciais ........................................................................................... 109 3.2 Estado de Bem-Estar.............................................................................................. 110 3.3 Cidadania, dignidade humana e valor social do trabalho como fundamentos da República Federativa do Brasil .............................................................................. 113 3.3.1 Cidadania ................................................................................................... 113 3.3.1.1 Cidadania como direito a ter direitos ........................................... 115 3.3.1.2 Cidadania como conjunto de direitos .......................................... 117 3.3.2 Dignidade da pessoa humana ..................................................................... 120 3.3.3 Valor social do trabalho ............................................................................. 122 3.4 Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil ................................. 124 3.5 Objetivos da Ordem Social .................................................................................... 126 3.5.1 Bem-estar social na Constituição Federal de 1988 .................................... 127 3.5.2 Justiça social na Constituição Federal de 1988.......................................... 128 3.6 O direito social à segurança e à assistência aos desamparados ............................. 132 3.6.1 O direito social à segurança ....................................................................... 132 3.6.2 O direito social à assistência aos desamparados ........................................ 135 3.7 Competências constitucionais em matéria de assistência social............................ 137 3.8 Seguridade Social .................................................................................................. 140 3.8.1 Conceito de seguridade social tendo o atendimento às necessidades sociais como eixo estruturante ................................................................... 141 3.8.2 Disposições gerais relativas à seguridade social ........................................ 149 3.8.2.1 Universalidade da cobertura e do atendimento ............................ 149 3.8.2.2 Uniformidade e equivalência de benefícios e serviços às populações urbanas e rurais ......................................................... 152 3.8.2.3 Distributividade e seletividade na prestação dos benefícios e dos serviços .................................................................................. 153 3.8.2.4 Irredutibilidade do valor dos benefícios ...................................... 156 3.8.2.5 Equidade na forma de participação no custeio ............................ 156 3.8.2.6 Diversidade da base de financiamento ........................................ 157 3.8.2.7 Caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, empregadores, aposentados e Governo nos órgãos colegiados......................................................................... 157 3.9 Comentários aos artigos 203 e 204 da Constituição Federal ................................. 158 3.9.1 A definição de assistência social à luz da Constituição Federal ................ 158 3.9.2 As espécies de normas veiculadas no artigo 203 da Constituição Federal .. 162 3.9.3 O artigo 203 da Constituição Federal e a identificação dos destinatários da assistência social ................................................................................... 163 3.9.3.1 Estrangeiros como destinatários da assistência social ................. 169 3.9.4 O caráter não contributivo da assistência social ........................................ 173 3.9.5 A subsidiariedade da assistência social: um princípio inadequado ........... 174 3.9.6 O Artigo 204 da Constituição Federal ....................................................... 176 4 A DISCIPLINA INFRACONSTITUCIONAL DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NA VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............................ 179 4.1 O período de 1988 a 1993 ...................................................................................... 179 4.2 A Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS ..................................................... 182 4.2.1 Observações iniciais................................................................................... 182 4.2.2 Definições e objetivos ................................................................................ 183 4.2.3 Princípios e diretrizes ................................................................................. 188 4.2.4 Organização e gestão ................................................................................. 190 4.2.4.1 A gestão das ações na área da assistência social ......................... 190 4.2.4.2 Proteção social, defesa de direitos e vigilância socioassistencial na LOAS ...................................................................................... 191 4.2.4.3 As competências dos entes federativos na área da assistência social ............................................................................................ 194 4.2.4.4 Entidades e organizações da assistência social ............................ 197 4.2.4.5 As instâncias deliberativas do SUAS .......................................... 197 4.2.4.5.1 O Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS ... 198 4.2.4.5.2 As Conferências Nacionais de Assistência Social ...... 201 4.2.5 Benefícios, serviços, programas e projetos de assistência social............... 205 4.2.5.1 Benefícios da assistência social ................................................... 206 4.2.5.1.1 Benefício de prestação continuada .............................. 206 4.2.5.1.1.1 Destinatários do benefício assistencial: idosos e pessoas com deficiência ............................................ 207 4.2.5.1.1.2 A aferição da necessidade financeira como requisito para concessão do benefício assistencial de prestação continuada ............................................ 211 4.2.5.1.1.3 A definição de família para efeito de concessão do benefício assistencial de prestação continuada ......... 216 4.2.5.1.1.4 Uma alternativa aos critérios previstos no artigo 20, § § 1º e 2º, da LOAS ........................................... 222 4.2.5.1.1.5 Manutenção, suspensão e cessação do benefício assistencial de prestação continuada ......................... 223 4.2.5.1.2 Benefícios eventuais.................................................... 225 4.2.5.2 Serviços assistenciais ................................................................... 226 4.2.5.3 Programas de assistência social ................................................... 227 4.3 4.4 4.5 4.6 4.2.5.3.1 Programas de assistência social desenvolvidos entre a promulgação da LOAS e a aprovação da PNAS/2004 ................................................................. 227 4.2.5.3.2 Programas de transferência de renda paralelos à política de assistência social........................................ 229 4.2.5.3.3 Uma avaliação dos programas de assistência social antes da PNAS/2004 ................................................... 230 4.2.5.3.4 Os programas de assistência social na atual redação da LOAS...................................................................... 232 4.2.5.4 Projetos de enfrentamento da pobreza ......................................... 233 4.2.6 Financiamento da assistência social........................................................... 233 A Medida Provisória n. 813/1995 .......................................................................... 236 A Política Nacional de Assistência Social de 1998 e as Normas Operacionais Básicas de 1997 e 1998.......................................................................................... 239 A Política Nacional de Assistência Social de 2004 ............................................... 241 O Sistema Único de Assistência Social – SUAS ................................................... 245 4.6.1 Aspectos gerais .......................................................................................... 245 4.6.2 A gestão do SUAS e as competências dos entes federativos ..................... 247 4.6.2.1 Entre cooperação e subsidiariedade: as estratégias da descentralização ........................................................................... 251 4.6.2.2 Os instrumentos de gestão da PNAS/2004 e do SUAS ............... 251 4.6.3 As instâncias de articulação, pactuação e deliberação ............................... 252 4.6.4 O financiamento da assistência social........................................................ 253 5 ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS SOBRE A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA ................ 256 5.1 Considerações iniciais ........................................................................................... 256 5.2 Delimitação da pesquisa ........................................................................................ 257 5.3 Temas destacados .................................................................................................. 260 5.3.1 Deficiência, incapacidade laborativa e incapacidade para a vida independente .............................................................................................. 260 5.3.2 Pessoas com deficiência menores de 16 anos ............................................ 263 5.3.3 Definição de família para aferição da renda .............................................. 265 5.3.4 Critério objetivo de renda .......................................................................... 271 5.3.5 Aplicação do Estatuto do Idoso, artigo 34, parágrafo único ...................... 275 5.3.6 As referências à miserabilidade ................................................................. 288 5.4 Crítica aos acórdãos ............................................................................................... 290 CONCLUSÕES ........................................................................................................... 294 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 302 Legislação ..................................................................................................................... 313 Sites Acessados ............................................................................................................. 323 Decisões Judiciais ......................................................................................................... 325 INTRODUÇÃO 1 Delimitação do tema A Constituição Federal de 1988 consagra em seu artigo 6º o direito social à “assistência aos desamparados”. Mais adiante, no Título VIII – Da Ordem Social, Capítulo II – Da Seguridade Social, disciplina a assistência social em uma seção própria, ao lado da saúde e da previdência social. Juntas, saúde, previdência e assistência social compõem o sistema de seguridade social, que busca proteger indivíduos e grupos contra diversas situações de necessidade. A seguridade social, por sua vez, é abarcada pela noção mais ampla de proteção social. Ao prever uma disciplina jurídica da assistência social, o constituinte trouxe para o campo dos direitos um tema historicamente atrelado à filantropia e à caridade ou benemerência1. Transformou em dever estatal o que historicamente era concebido como benesse, criando, dessa maneira, um compromisso com o atendimento das necessidades básicas de todos os membros da sociedade. Compreender como um direito fundamental a assistência social – historicamente alocada entre o favor e o dever – não seria simples, como também não seria simples o desenvolvimento de políticas públicas2 que concretizassem esse novo direito. De fato, foi o que se percebeu nos anos seguintes à promulgação da Constituição Federal. A difícil aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social, em 1993, foi uma das demonstrações mais claras disso. Outro sintoma dessa dificuldade é a constatação de que muitas obras dedicadas ao estudo do Direito Constitucional e à 1 Emprega-se a palavra filantropia para designar o sentimento de “altruísmo e a comiseração, que levam a um voluntarismo que não se realiza no estatuto jurídico, mas no caráter da relação” (MESTRINER, 2011, p. 14). As palavras caridade e benemerência são empregadas como expressões sinônimas para designar a “ação do dom, da bondade, que se concretiza pela ajuda ao outro” (MESTRINER, 2011, p. 14), pautadas por sentimentos religiosos. 2 Adota-se aqui o conceito de política pública formulado por Bucci (2006, p. 39), a saber: “programa de ação governamental que resulta de um processo ou um conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”. 14 Seguridade Social reservam espaço reduzido ao tema da assistência social e nem sempre vão além da reprodução do texto constitucional3. Em contraste, os debates sobre direitos sociais como saúde e educação aparecem com frequência e profundidade crescentes. Importantes trabalhos acadêmicos tratam de temas como a extensão desses direitos e os limites à sua justiciabilidade, havendo ainda rica jurisprudência a respeito. A assistência social não conta com a mesma produção jurídica, tampouco com a mesma pluralidade de abordagens. Três indagações importantes – e entrelaçadas – emergem dessas observações iniciais. A primeira: em que medida a assistência social delineada antes da Constituição Federal de 1988 contribuiu para seu pouco destaque como direito social após 1988? A segunda: em que medida o Brasil avançou no tratamento jurídico4 da assistência social desde a promulgação da Constituição Federal até a presente data? A terceira: o tratamento dispensado à assistência social a partir de 1988 foi norteado pelas disposições contidas na Constituição Federal ou pelas concepções e práticas que pautaram a assistência social antes de seu reconhecimento como direito social? Para responder a essas perguntas, importa, antes de tudo, compreender como a assistência social surgiu como prestação estatal, como se deu sua positivação no ordenamento jurídico e qual foi a evolução subsequente. Ao traçar essa evolução, pretende-se investigar a leitura que o Estado brasileiro fez e faz da assistência social. Para tanto, é imprescindível apresentar um estudo sobre os antecedentes do direito à assistência social. Justifica-se assim a existência de dois capítulos: o primeiro, mais genérico, voltado às matrizes da assistência no Ocidente; o segundo, mais específico, destinado ao surgimento da assistência social no Brasil. O passo seguinte é analisar a conformação da assistência social na Constituição Federal, o que não pode se limitar ao estudo dos dispositivos especificamente voltados a 3 No mesmo sentido, tem-se a crítica de Stuchi (2010, p. 148): “em razão da arraigada concepção da assistência social como filantropia e do pouco avanço na produção jurídica sobre a área, observa-se que o pensamento jurídico não assimilou a novidade. O direito constitucional e o direito da seguridade social lhe deram pouco ou nenhum espaço nas páginas dos seus manuais. Geralmente reproduzem o que já está escrito na Constituição e na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) [...]”. 4 Ressalta-se que enfoques jurídicos sobre assistência social são escassos, o que não se repete em outras áreas de conhecimento. Há interessante produção sobre a assistência social, sobretudo elaborada por estudiosos e profissionais do Serviço Social. Aliás, deve-se à mobilização dos profissionais do Serviço Social, ao lado dos movimentos sociais e de outros trabalhadores da área de assistência social, boa parte da evolução da assistência social no país, como a aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, a elaboração da atual Política Nacional de Assistência Social – PNAS e a criação do Sistema único de Assistência Social – SUAS (STUCHI, 2010, p. 148). 15 essa matéria, mas deve se estender a todas as normas que, de alguma forma, delineiam o referido direito. Com isso, pretende-se identificar os vetores constitucionais da assistência social no Brasil. Os subsídios obtidos pelo estudo desses aspectos permitem uma análise crítica da efetivação desse direito social a partir de 1988. Interessa, nesse ponto, esclarecer em que medida o Poder Público retomou formas tradicionais de assistência – nem sempre compatíveis com a Constituição Federal – e em que medida efetivamente concretizou os ditames constitucionais. Para tanto, examina-se a disciplina infraconstitucional da assistência social a partir de 1988, com foco na legislação federal, e a maneira como foi efetivada a garantia contida no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal – dispositivo que inaugura um dos maiores programas de transferência de renda do país e que assegura o direito subjetivo a uma prestação assistencial. 2 Método Visando compreender o surgimento e a evolução da assistência social nos moldes indicados no tópico anterior, a pesquisa foi desenvolvida em três etapas. A primeira delas consistiu no estudo da evolução histórica da assistência social no mundo ocidental, seguido do exame do histórico brasileiro. Prestigiou-se nessa etapa da investigação a pesquisa bibliográfica e o estudo de normas jurídicas pertinentes à matéria. Para o estudo da assistência social brasileira após a promulgação da Constituição Federal de 1988, recorreu-se à pesquisa bibliográfica, ao exame de normas constitucionais e infraconstitucionais produzidas na esfera federal, bem como à análise de decisões do Supremo Tribunal Federal. A terceira e última etapa da pesquisa – também concernente à assistência social após a Constituição Federal de 1988 – consistiu na coleta e análise de decisões judiciais da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais – TNU. 16 3 Estrutura do trabalho A pesquisa realizada resultou na elaboração de cinco capítulos, além desta introdução e da conclusão. O Capítulo 1 é dedicado ao estudo da evolução das práticas socioassistenciais no mundo ocidental. Interessa compreender como surgiram as medidas de proteção social e, dentro desse conjunto, como surgiu a assistência social. Além de identificar as características herdadas das primeiras práticas socioassistenciais, pretende-se demonstrar o quanto a reflexão atual sobre assistência social é marcada pelos eventos que ensejaram as primeiras medidas de assistência, muitos deles anteriores à consolidação do capitalismo industrial. No Capítulo 25, busca-se traçar um histórico das primeiras formas de atendimento às situações de necessidade social6 no Brasil, sobretudo em razão da pobreza e do abandono. Ainda nesse capítulo, apresenta-se um levantamento das normas constitucionais e infraconstitucionais sobre assistência social no Brasil até a Constituição Federal de 1988. Com isso, conhece-se o terreno encontrado pela Constituição Federal para finalmente positivar a assistência social como um direito e identificam-se os fatores históricos que dificultaram a implementação desse direito sob a nova ordem constitucional. 5 Minhas primeiras pesquisas sobre assistência social em todas as constituições brasileiras e na Lei Orgânica de Assistência Social (Lei n. 8.742/93) resultaram na elaboração do trabalho A assistência social na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Assistência Social, que foi submetido ao Conselho Editorial da Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino e aceito para publicação. A previsão é de que o artigo integre a edição de número 53 da Revista, mas a publicação não ocorreu até a conclusão desta dissertação. Algumas das ideias apresentadas nesse artigo – incluindo o significado do direito à segurança previsto no artigo 6º da Constituição Federal, a importância do conceito de necessidade social formulado por Almansa Pastor (1991) para a compreensão da seguridade social e a afirmação de que o critério da necessidade não se resume à necessidade de renda – e os registros sobre a evolução da assistência social no ordenamento jurídico brasileiro e na jurisprudência foram desenvolvidos e aprofundados nesta dissertação, levando em conta inclusive recentes alterações legislativas que modificaram em muito a Lei Orgânica da Assistência Social. Por outro lado, algumas afirmações foram revistas, sobretudo no que concerne à subsidiariedade em matéria de assistência social e no emprego dos termos necessidades humanas e necessidades sociais como sinônimos. Além disso, no artigo A construção da assistência social no Brasil: notas sobre as Leis n. 12.435/11 e 12.470/11, publicado em outubro de 2011, discorri sobre o conteúdo da Lei Orgânica de Assistência Social antes e depois da promulgação das leis indicadas no título do artigo, buscando identificar e contextualizar as principais inovações e, ao mesmo tempo, ressaltar pontos que poderiam ter sido aprimorados. 6 Na esteira da terminologia adotada por Pereira (2006, p. 19), os termos necessidades humanas e necessidades sociais são empregados como expressões equivalentes, pois, nas palavras da autora, “não se concebe o aspecto humano dissociado do social”. 17 A seguir, no Capítulo 3, estuda-se o sistema de assistência social delineado na Constituição Federal de 1988, ao que se segue a análise da construção da assistência social no plano infraconstitucional contida no Capítulo 4. Nesses dois capítulos, o foco de atenções está centrado no protagonismo do Poder Público em matéria de assistência social – uma das novidades contidas na Constituição Federal de 1988 – e, dadas as limitações impostas pela pesquisa, concentra-se a análise nas normas e ações desenvolvidas na esfera federal. O Capítulo 5 é voltado para o estudo acerca de decisões judiciais tratando da concessão do benefício assistencial de prestação continuada. Com isso, será possível verificar de que a maneira a TNU vem se pronunciando a respeito da extensão do direito à assistência social. As conclusões do trabalho são apresentadas com o propósito de retomar algumas das considerações apresentadas e, com isso, oferecer resposta às três indagações suscitadas no tópico 1 desta Introdução. 4 Alguns cuidados na elaboração deste trabalho Na elaboração da presente pesquisa, procurou-se tomar dois cuidados. O primeiro foi o de não simplificar políticas de assistência social a simples mecanismos de manutenção do status quo, preocupadas apenas em prover aos cidadãos o mínimo para atenuar conflitos sociais. O segundo, exatamente oposto, foi de não enxergar os avanços em matéria social como fruto de lutas intransigentes da população. Em suma: evitou-se qualquer abordagem que negasse o caráter contraditório e conflituoso da assistência social. Discorrer sobre assistência social, defendendo, inclusive, uma ampliação ou mudança de perspectiva, não é tarefa simples, tampouco isenta de contradições. A efetivação de direitos sociais é sempre conflituosa, por envolver altos investimentos – e, por conseguinte, implicar significativa alocação de recursos nas políticas sociais correspondentes a esses direitos – e reavivar o embate em torno do que deve ou não deve ser assegurado pelo Estado. Mesmo quando estabelecido um conjunto claro e 18 técnico de necessidades a serem atendidas, não se pode afastar a controvérsia sobre o quanto cabe ao Estado prover e em que condições deve fazê-lo (ABRANCHES, 1987, p. 13). Portanto, sem a pretensão de encontrar um modelo ideal de assistência social para o Brasil ou mesmo de superar as contradições que permeiam essa política, este trabalho pretende contribuir para a discussão do tema, registrando o processo – ainda em curso – de efetivação do direito à assistência social e apontando aspectos que carecem de maior reflexão por parte dos operadores do Direito. 1 ASSISTÊNCIA SOCIAL: ANTECEDENTES HISTÓRICOS NO OCIDENTE 1.1 Considerações iniciais sobre proteção social Muitas experiências convergiram para formar o campo de conhecimento que hoje corresponde à seguridade social, da qual a assistência social faz parte. As experiências vão desde a provisão de mínimos de subsistência – por vezes limitados ao estritamente necessário para a sobrevivência física de indivíduos – até políticas de caráter universal, pautadas por princípios de igualdade e justiça social. Essas práticas podem ser reunidas sob o signo amplo da proteção social7 que, na lição de Dictamen y Asesoría (1996 apud SANTOS, 2003, p. 139), pode ser subdivida em três fases: a proteção dos pobres, a proteção dos trabalhadores e a proteção dos cidadãos. Muitas das práticas que constituíram o embrião da assistência social foram superadas há muito tempo8. Outras se fazem presentes há séculos, apenas com algumas mudanças, a exemplo do pagamento de complementações da renda. Por fim, persistem alguns traços da forma original de a sociedade lidar com as situações de necessidade de seus membros, especialmente as situações de pobreza. O que permite identificar um núcleo comum a todas essas experiências é o fato de consistirem em respostas dadas pelo Poder Público, isoladamente ou em conjunto com outras instituições, às situações de necessidade social. 7 Em relação ao sentido atual de proteção social, adota-se a definição apresentada por Pereira (2006, p. 16, nota de rodapé 2), a saber: “Proteção social é um conceito amplo que, desde meados do século XX, engloba a seguridade social (ou segurança social), o asseguramento ou garantias à seguridade e políticas sociais. A primeira constitui um sistema programático de segurança contra riscos, circunstâncias, perdas e danos sociais cujas ocorrências afetam negativamente as condições de vida dos cidadãos. O asseguramento identifica-se com as regulamentações que garantem ao cidadão a seguridade social como direito. E as políticas sociais constituem uma espécie de política pública que visa concretizar o direito à seguridade social, por meio de um conjunto de medidas, instituições, profissões, benefícios, serviços e recursos programáticos e financeiros. Neste sentido, a proteção social não é sinônimo de tutela nem deverá estar sujeita a arbitrariedades, assim como a política social – parte integrante do amplo conceito de proteção – poderá também ser denominada de política de proteção social”. 8 Analisadas criticamente, nem todas essas experiências fazem jus ao adjetivo “protetivas”, porque não foram concebidas para resguardo ou favorecimento de pessoas em situação de fragilidade, mas sim para manter a ordem e preservar interesses econômicos. 20 Adiantando em parte o conteúdo dos tópicos que se seguem, chama-se a atenção para o fato de que muitos vetores de atuação da assistência perduram, tais como: a prevalência das estratégias centradas na família; a atenção aos casos de incapacidade laborativa; o apelo à caridade; o domicílio ou a naturalidade como critério central para o recebimento de assistência; a proximidade entre a instituição que presta assistência e seu destinatário; a atribuição da assistência a poderes locais. O escopo desse primeiro capítulo é identificar as matrizes da proteção social no Ocidente, traçando um histórico da assistência social e destacando as características que se preservaram ao longo de séculos. Para tanto, é inevitável abordar ou, pelo menos, mencionar informações relativas à história da previdência social e da assistência à saúde. A razão é simples: a gênese desses sistemas é una; a diferenciação entre eles só ocorreu com o desenvolvimento das sociedades industriais, sobretudo no século XX. O estudo parte do período de ausência de práticas institucionalizadas de proteção social. A seguir, são identificadas as primeiras formas de proteção social. A análise se subdivide posteriormente entre os modelos que tiveram maior influência sobre os ordenamentos jurídicos contemporâneos e que, de forma mais específica, impactaram a seguridade social no Brasil – os modelos desenvolvidos na GrãBretanha9, na França, na Alemanha e nos Estados Unidos10. 1.2 A ausência de práticas institucionalizadas de proteção social Para compreender o que se encontra sob o espectro da proteção social é importante conhecer a distinção entre práticas societais e práticas socioassistenciais. 9 O estudo mais detido da Grã-Bretanha se justifica por contar com uma antiga e extensa legislação em matéria de assistência à pobreza, além de ser o país de onde se originou a obra mais importante para a seguridade social contemporânea – o Plano Beveridge. O interesse pela assistência social francesa decorre da influência que essa experiência teve no início da assistência social brasileira, bastante clara no pensamento de Ataulpho Nápoles de Paiva, e pelo alto nível de proteção social ainda hoje dispensado naquele país, como bem lembra Carro (2008, p. 31). O estudo do sistema alemão torna-se relevante por ter sido pioneiro na implantação de sistemas de proteção social obrigatórios (ROSANVALLON, 1984, p. 117). Quanto aos Estados Unidos da América, o registro histórico se justifica pela influência que o exemplo norte-americano exerceu na condução da política brasileira de assistência social a partir do início do século XX, sobretudo pelo prestígio conferido ao papel da iniciativa privada para esse mister. 10 A análise dessas matrizes não se estende até os dias de hoje, limitando-se à primeira metade do século XX. A partir de então, o país passou a contar com seus mecanismos de assistência, cujo desenvolvimento segue um caminho próprio, inclusive em seus aspectos negativos e excludentes. 21 Castel (2010, p. 48) ensina que todas as formas de existência coletiva, com o consequente estabelecimento de relações humanas, podem ser qualificadas como societais. Como prática societal, a ajuda mútua esteve presente desde o início da sociedade humana. Aliás, não há como deixar de compreender os grupamentos humanos sem a ideia de apoio recíproco. Mas é o desenvolvimento de relações específicas que permite falar em práticas sociais ou socioassistenciais (CASTEL, 2010, p. 48). A especificidade em questão consiste na organização e assunção de responsabilidade da comunidade pela sobrevivência de pessoas consideradas mais vulneráveis, a exemplo de órfãos, viúvas, enfermos e idosos11. Portanto, três elementos centrais caracterizam as práticas sociais ou socioassistenciais: a organização, a atribuição de responsabilidades e a identificação de pessoas que, em comparação ao restante do grupo social, estão em situação de desvantagem. Com base nessa distinção, tem-se que as relações societais predominaram até o final da Alta Idade Média, no século XI. Antes disso, há registros esparsos de práticas organizadas de assistência, como auxílios a órfãos, distribuição de alimentos (FERREIRA, 2007, p. 95) e associações de ajuda mútua na Grécia – denominadas eranói – e em Roma – as collegia ou sodalitia, (HORVATH JÚNIOR, 2008, p. 22). Também em Roma impunha-se à família, sob a administração e controle do pater familias, “a obrigação de prestar assistência aos servos e clientes, em uma forma de associação mediante contribuição de seus membros, de modo a ter condições de ajudar os mais necessitados” (HORVATH JÚNIOR, 2008, p. 23). 11 As religiões foram essenciais na passagem de práticas societais para práticas socioassistenciais. Seja porque líderes religiosos assumiram o papel de protetores de pessoas desamparadas, seja porque a benevolência e a caridade surgiram como um dever religioso, o fato é que a crença religiosa impulsionou a caridade. Friedlander (1973, p. 08-09) ressalta a conexão entre fé e caridade, ainda comum: “La devoción religiosa se convirtió en el incentivo más poderoso para la benevolencia y la caridad. Encontramos este motivo en las religiones antiguas, en la filosofía védica – un libro hindú de fórmulas contra los demonios –, en los códices asirios, babilónicos y egipcios, en las costumbres griegas y romanas; particularmente, en las enseñanzas religiosas judaicas y cristianas. La caridad era fundamentalmente motivada por el deseo de recibir la gracia de Dios u obtener los méritos de las buenas obras para la vida eterna; sin embargo, un sincero sentimiento de compasión hacia las viudas y los huérfanos puede muy bien haber sido la razón de que se hayan satisfecho las demandas de las iglesias para la ayuda a los pobres. El aliviar el sufrimiento de los desventurados se convirtió, según los conceptos judío y cristiano, en un importante deber religioso. [...] Con la creciente influencia de la iglesia y la aceptación del cristianismo como religión de estado, se establecieron instituciones en los monasterios, instituciones que servían como orfelinatos, como asilos para los ancianos, para los enfermos y los inválidos, así como refugio para la gente sin hogar, con lo cual se continuó la tradición de las xenodochia (casa de huéspedes) griegas”. 22 Até o final da Idade Média tampouco havia ganhado força a disciplina da mendicância, prática que se desenvolveria com vigor juntamente com as primeiras medidas de atendimento às pessoas em situação de pobreza. Um exemplo isolado em sentido contrário ao dessa afirmação remonta ao ano 800, quando Carlos Magno proibiu a mendicância e estabeleceu multas aos que dessem esmolas aos mendigos aptos para o trabalho. Com isso, visava manter trabalhadores rurais nas propriedades e evitar a criminalidade (FRIEDLANDER, 1973, p. 09-10). Horvath Júnior (2008, p. 22) anota a existência, durante a Idade Média na Germânia, de associações “que tinham como finalidade conceder assistência a seus associados em caso de doença e prover as despesas funerais de seus membros”. Essas associações eram as chamadas guildas – nada mais do que as corporações de ofício – e existiram também na França, onde duraram até 1790 (POLANYI, 1980, p. 83). Passando aos séculos XII e XIII, pode-se dizer que houve um esboço de sistematização, mediante categorização dos assistidos, organização de instituições de assistência laicas e religiosas, bem como delimitação de bases territoriais para prestação dessa assistência (CASTEL, 2010, p. 95). No século XIV essas atividades começaram a se desenvolver, tanto em escala quanto em grau de sistematização. A partir do final do século XVIII e mais intensamente no século XIX, a Revolução Industrial impôs o aprimoramento de mecanismos de proteção às necessidades humanas, sobretudo pela via da previdência social12. 12 Discorda-se da afirmação de Horvath Júnior (2008, p. 23), o qual, tratando da cronologia da Previdência Social, sustenta que “até o século XVII, essa proteção era feita pela família, por vizinhos, instituições religiosas, pelo Município, pelos companheiros de trabalho, por meio de associações profissionais, pelos proprietários da terra ou pelas corporações de ofício. Somente no final do século XIX, com a segunda onda da revolução industrial, é que as nações começaram a desenvolver proteção aos trabalhadores, que, paulatinamente, foi sendo estendida aos demais integrantes da sociedade”. Tal discordância se deve pela percepção de que, mesmo de modo canhestro, existiam formas de gestão pública da indigência e de amparo aos indivíduos e famílias incapazes de prover o próprio sustento desde o século XIV. Além disso, não se pode afirmar sem ressalvas que a proteção social surgiu para os trabalhadores e só depois se expandiu para outras classes. De fato, em períodos anteriores à Revolução Industrial existiram medidas de assistência que não se pautavam na distinção entre trabalhadores e não trabalhadores, a exemplo das Workhouses britânicas. Houve, portanto, uma oscilação na forma de proteção das pessoas inaptas para prover o próprio sustento ou tê-lo provido por seus familiares, em meio à qual a previdência surgiu como uma de suas especializações, até obter protagonismo nas políticas de seguridade social, situação que, de fato, levou a serem (re)discutidas outras formas de proteção social aos não trabalhadores. 23 Há uma razão para que práticas institucionalizadas de assistência só tenham ganhado corpo a partir da metade do século XIV13, não antes disso. Como bem explica Castel (2010, p. 48-60), a sociedade feudal predominante no Ocidente cristão durante a Idade Média era fechada e resistente à mobilidade social. Por um lado, essas características nutriam a rigidez de estruturas sociais e estabeleciam vínculos de dependência permanentes, quase imutáveis. Por outro lado, essa sociedade contava com um grau de segurança econômica que evitava a desestabilização interna decorrente da pobreza e da desigualdade. Isso não implica, no entanto, um elogio à estrutura feudal. O que Castel (2010, p. 55) salienta é que essa sociedade era fortemente integrada pelas redes de dependência, ainda que sob uma condição generalizada de precariedade. Fazia parte desse sistema a segurança material oferecida a todos que se colocassem sob a proteção de alguém mais poderoso, abdicando, por outro lado, de sua liberdade. Nas palavras do autor: a conjunção do fato de estar colocado sob a proteção de alguém poderoso (é o sentido de “maimbour”, transcrito do antigo direito germânico) e do fato de estar inscrito nas redes familiares ou da mesma linhagem e de vizinhança da comunidade de habitantes garantia uma proteção máxima contra os ocasos da existência. Essas comunidades são, ao mesmo tempo, globalmente vulneráveis quanto às agressões externas (crises de subsistência e devastações de guerra) e fortemente integradas por redes estreitas de interdependência. A precariedade da existência faz parte da condição de todos e não rompe o pertencimento comunitário. Tais sociedades dificilmente aceitam a novidade e a mobilidade, mas são eficazes contra a desfiliação. (CASTEL, 2010, p. 55). Nesse contexto, o atendimento às necessidades básicas do indivíduo competia primordialmente às famílias, complementado por algumas formas de assistência religiosa, comunitária etc. (HORVATH JÚNIOR, 2008, p. 19). Prevaleciam os laços de sociabilidade primária, isto é, “sistemas de regras que ligam diretamente os membros de um grupo, a partir de seu pertencimento familiar, da vizinhança, do trabalho e que tecem redes de interdependência sem a mediação de instituições específicas” (CASTEL, 2010, p. 48). 13 Sposati (1987, p. 45), aponta outro marco inicial das medidas de assistência, na seguinte passagem: “Os analistas da arqueologia do poder e do saber consideram o assistencial como decorrente da ascensão do social cuja gênese se dá por volta dos séculos XVIII e XIX. Sob essa ótica, a assistência social retrata um setor de domínio híbrido, que tem contornos nebulosos, e que se constitui a partir de uma redistribuição ou expansão de antigos poderes e saberes ligados ao jurídico e ao educacional”. 24 Esse sistema, entretanto, só funcionou enquanto as redes de proteção próximas – ou laços de sociabilidade primária – puderam cuidar dos indivíduos em situação de vulnerabilidade. À medida que essas redes se fragilizaram ou que a sociedade se tornou mais complexa a ponto de inviabilizar respostas eficazes por meio dessas relações mais próximas, surgiram práticas específicas voltadas ao atendimento das pessoas ditas “carentes”14. Assim surgiram instituições incumbidas de realizar tarefas antes desempenhadas pela comunidade, sem mediações (CASTEL, 2010, p. 57). 1.3 Surgimento e evolução da proteção social Antes de dar início ao exame específico dos modelos relevantes para a compreensão da assistência social no Brasil, interessa apresentar uma pequena síntese do surgimento e da evolução da proteção social. Houve, em linhas gerais, a passagem de formas de desproteção daqueles que não podiam prover o próprio sustento para formas baseadas na vigilância, punição e, quando possível, obrigatoriedade do trabalho. Seguiu-se a isso a criação de sistemas de apoio aos trabalhadores, especialmente pelos seguros sociais. Por fim, surgiram os modelos de seguridade social. Durante a Idade Média e até o século XIV, a Igreja Católica protagonizou o auxílio aos necessitados, com recursos provenientes da família real e da aristocracia15. No século XIV, a proteção social surgiu sob a forma de proteção aos pobres, especificada anteriormente. A ideia de assistência pública16 remonta a essa etapa inicial. 14 Desde logo chama-se a atenção para o quanto a referência às populações “carentes” ou “necessitadas” é emblemática de uma forma de compreender a assistência social. De fato, o emprego desses termos, no lugar de expressões como cidadãos ou usuários dos serviços denuncia que a assistência é vista como “a forma de tratamento que a riqueza destina à pobreza” (SPOSATI, 1987, p. 337). 15 Esse protagonismo não se deu sem conflitos entre Igreja e Estado e, menos ainda, sem denúncias de má administração dos recursos destinados aos hospitais e outras instituições de caridades vinculadas à Igreja (FRIEDLANDER, 1973, p. 10). 16 O termo assistência pública é empregado para designar as ações protagonizadas pelo Poder Público, com ou sem auxílio de outros agentes, visando suprir necessidades vitais de indivíduos ou grupos em situação de indigência (ALMANSA PASTOR, 1991, p. 37). Essas medidas se caracterizam pela função de controle social que a elas eram frequentemente atribuídas e pelo não reconhecimento da assistência social como um direito dos assistidos, mas, ao contrário, pela “interpretação ancorada na idéia de dívida que os assistidos contraíam com a sociedade” (CARRO, 2008, p. 40). A passagem da assistência pública para a assistência social representa uma mudança no fundamento dessas medidas, que passa a ser o reconhecimento de um dever da sociedade para com as pessoas em situação de necessidade (CARRO, 25 O protestantismo também defendeu a centralização da ajuda aos desamparados nas mãos da Igreja. Ainda no século XVI, em 1520, Martinho Lutero conclamou os príncipes a proibirem a mendicância e organizarem nas paróquias um fundo comum para reunir doações aos necessitados. Planos semelhantes foram desenvolvidos na Suíça, França, Áustria e países escandinavos. Mesmo quando a arrecadação ficava a cargo de autoridades seculares locais, sua administração cabia aos eclesiásticos (FRIEDLANDER, 1973, p. 10-11). No final do século XIX, ingressou-se em outra fase dessa proteção, com a organização de sistemas de proteção aos trabalhadores. A terceira fase da proteção social – a fase de proteção ao cidadão – é bem mais recente, tendo se desenvolvido a partir da década de 1940. A organização dos modelos atualmente adotados em muitos países remonta aos séculos XIX e XX. Embora a pobreza, a doença, o sofrimento e a desorganização estatal sempre tenham existido, a sociedade industrial desses séculos teve que enfrentar problemas que não mais podiam resolvidos no âmbito da família, da igreja ou das comunidades locais (FRIEDLANDER, 1973, p. 03). A esse dado acrescenta-se que a melhor compreensão sobre as causas da pobreza, a tentativa de conter o avanço das ideias socialistas e a necessidade de grandes contingentes de trabalhadores nas indústrias geraram impactos sobre os estudos e as ações empreendidas. 1.4 A evolução do modelo britânico de proteção social De acordo com Friedlander (1973, p. 13-14), até o século XIV a ajuda aos necessitados ficava a cargo da Igreja, que revertia cerca de um terço dos donativos que recebia em atendimento aos pobres sem, contudo, envidar esforços para alterar sua 2008, p. 40). Essa distinção, conquanto auxilie na compreensão dos dois termos, não elimina pontos nebulosos. Isso porque a evolução da assistência social não é linear, o que dificulta a identificação de transformações indenes de dúvidas. Além disso, os termos assistência ou assistência pública, sem o adjetivo social, também aparecem empregados para designar ações e serviços passíveis de enquadramento como assistência social, o que é compreensível já que o surgimento desta expressão é relativamente recente. A título de ilustração, anota-se que o Plano Beveridge, responsável pela fundação da seguridade social tal como conhecida atualmente, utiliza o termo assistência nacional e que a legislação francesa somente adotou a expressão assistência social a partir de 1953, a despeito de haver proclamado a assistência como um direito muito antes desta data. Por fim – e não menos importante – ressalta-se que muitos autores empregam o termo assistência social para designar as práticas anteriores à mudança de fundamento apontada, isto é, para designar os antecedentes da assistência social conhecida atualmente. É o caso, por exemplo, de Rosanvallon (1984) e de Horvath Júnior (2008). 26 condição social. A esmola era então ofertada como forma de salvação da alma de seu donatário. Paralelamente, e em menor escala, os grêmios também desempenhavam atividades de beneficência. Foi com o fim da sociedade feudal que surgiu o problema da manutenção da ordem entre os antigos servos das grandes propriedades, que ficaram livres para se deslocarem com suas famílias (FRIEDLANDER, 1973, p. 14). Representando uma mão de obra sem qualificação para as atividades urbanas – e que, portanto, não poderia ser vista como “exército de reserva” –, esses grupos fizeram crescer a mendicância, a despeito da existência de postos de trabalho vagos, sobretudo no período imediatamente posterior à Peste Negra (CASTEL, 2010, p. 112-115). Em virtude disso, no século XIV o Estado passou a disciplinar o que se pode denominar de “gestão racional da indigência” (CASTEL, 2010, p. 72), sendo a GrãBretanha pioneira na organização sistemática da assistência pública (cf. ROSANVALLON, 1984, p. 112). Rosanvallon (1984, p. 112) assevera que o “direito à assistência e o direito do trabalho eram [...] afirmados paralelamente”. De fato, a conjugação entre assistência e trabalho é uma constante na história da proteção social. Porém, indo além do que afirma o autor, o que se pode notar em boa parte do tempo é uma conjugação entre assistência e dever de trabalhar. Pois bem, a disciplina da assistência principia com a distinção entre os pobres capacitados e os pobres incapacitados para trabalhar, operada pela a promulgação da Ordinance of Labourers17 e do Statute of Labourers18 e da qual resultou a distinção entre os que têm e os que não têm o dever de trabalhar. A Ordinance of Labourers consistia em um decreto do Rei Eduardo III, de 1349. Já o Statute of Labourers foi instituído pelo Parlamento Inglês em 1351. Os dois diplomas são muito semelhantes. Visando fazer frente à falta de mão de obra decorrente da Peste Negra – que dizimara parcela significativa da população europeia – esses diplomas normativos dispunham sobre relações de trabalho. Impunha-se aos trabalhadores sãos e desprovidos de meios de subsistência a aceitação de emprego ofertado, sancionava-se com prisão a recusa ao trabalho, disciplinava-se o valor dos salários e restringia-se a possibilidade de 17 REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE. Ordinance of Labourers, 1349. Disponível em: <http://www.britannia.com/history/docs/laborer1.html>. Acesso em: 24 fev. 2011. 18 REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE. Statute of Labourers, 1351. Disponível em: <http://avalon.law.yale.edu/medieval/statlab.asp>. Acesso em: 12 jan. 2011. 27 uma pessoa deixar o trabalho. A oferta de esmola aos capazes era proibida, o que contribuía para que todos cumprissem com o dever de trabalhar19. Friedlander comenta o diploma de 1349, destacando seu caráter punitivo: El Statute of Laborers20 se convirtió en la primera de muchas leyes que permitieron el desarrollo del “estado erastiano” (ideado por el teólogo suizo-alemán Tomás Erastus), en el cual el poder secular sustituyó a la autoridad eclesiástica. Estaba destinado a prever la vagancia y la mendicidad, y a obligar al trabajador rural a permanecer en la tierra. Se ordenaron castigos muy crueles para los mendigos y los vagabundos, tales como ponerlos en el cepo, azotarlos, marcarlos con hierro candente, o mutilarlos cortándoles las narices y las orejas, condenándolos a las galeras y, finalmente, ahorcándolos (FRIEDLANDER, 1973, p. 15). Em 1388, o Statute of Cambridge impôs outras limitações à circulação de trabalhadores e pedintes. Estabeleceu-se que um servo só poderia deixar seu posto de trabalho portando um atestado emitido pelas autoridades de seu distrito de origem; do contrário, a pessoa poderia ser detida até que se tivesse certeza de seu retorno ao trabalho de origem. Impediu-se, outrossim, que trabalhadores agrícolas com mais de 12 anos escolhessem outro emprego braçal. Quanto aos mendigos, manteve-se a distinção entre válidos e inválidos. Os primeiros eram equiparados a vagabundos. Os segundos podiam permanecer onde estivessem, mediante anuência da comunidade local, ir para asilos ou retornar para o local de seu nascimento (CASTEL, 2010, p. 99-100). Friedlander (1973, p. 15-16) aponta uma lei de 1531, sob o reinado de Henrique VIII, como marco inicial da responsabilidade pública para com os pobres. Essa lei determinava a investigação de pessoas idosas e incapazes que recebessem 19 Transcreve-se parte da Ordinance of Labourers de 1349: “every man and woman of our realm of England, of what condition he be, free or bond, able in body, and within the age of threescore years, not living in merchandise, nor exercising any craft, nor having of his own whereof he may live, nor proper land, about whose tillage he may himself occupy, and not serving any other, if he in convenient service, his estate considered, be required to serve, he shall be bounden to serve him which so shall him require; and take only the wages, livery, meed, or salary, which were accustomed to be given in the places where he oweth to serve, the twentieth year of our reign of England, or five or six other commone years next before. Provided always, that the lords be preferred before other in their bondmen or their land tenants. (…) because that many valiant beggars, as long as they may live of begging, do refuse to labor, giving themselves to idleness and vice, and sometime to theft and other abominations; none upon the said pain of imprisonment shall, under the color of pity or alms, give any thing to such, which may labor, or presume to favor them toward their desires, so that thereby they may be compelled to labor for their necessary living”. REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE. Ordinance of Labourers, 1349. Disponível em: <http://www.britannia.com/history/docs/laborer1.html>. Acesso em: 24 fev. 2011. 20 Embora o texto refira-se ao Statute of Labourers, a alusão ao fato de se tratar da primeira normatização sobre o controle da mendicância indica que se trata, na verdade, da Ordinance of Labourers. De todo modo, a semelhança entre os dois textos torna a análise de um aplicável ao outro. 28 auxílio paroquial e solicitassem autorização para pedir esmolas. Após a investigação, fazia-se um registro e concedia-se uma licença para pedir esmolas em áreas preestabelecidas. Citando Marx e Friedlander, Pereira (2009, p. 63) relata que, no século XVI21, os “vagabundos” incapazes de trabalhar receberam permissão para mendigar em algumas áreas, ao mesmo tempo em que as paróquias puderam recolher donativos para prestar assistência a esses grupos. Por outro lado, os “vagabundos” aptos para o trabalho eram punidos e compelidos a trabalhar, conforme determinara o Parlamento inglês em 1547. Castel aponta o decreto de 1547 como a mais radical das medidas adotadas visando compelir as pessoas “vagabundas” a trabalharem e destaca o grau de crueldade dessas políticas: Partindo como sempre da constatação de que “as pessoas ociosas e vagabundas são membros inúteis da comunidade e, principalmente, inimigas da coisa pública”, Eduardo VI ordena que se prenda qualquer pessoa que, sem nenhum meio de subsistência, tenha ficado sem trabalhar mais de três dias. Todo bom cidadão é convidado e levar esse infeliz à presença de dois juízes que “devem, imediatamente, fazer marcar, com ferro em brasa, a letra V na testa do dito ocioso, e adjudicar a dita pessoa, que vive tão ociosamente, ao apresentador (isto é, ao denunciante) para que este se aposse dela e tenha o dito escravo à sua própria disposição, à disposição de seus executores ou servidores durante os dois anos seguintes”. Em pleno Renascimento, a legislação sobre a vagabundagem reinstaura, assim, a escravidão no reino da Inglaterra. Passível de ser condenado à talha e à corvéia, o vagabundo pode ser chicoteado, acorrentado, preso, alugado por seu proprietário e, no caso da morte deste, ser transmitido como um bem aos herdeiros. Se a vítima fugir uma primeira vez, a pena será transformada em escravidão para o resto da vida e, se houver a segunda tentativa de fuga, em pena de morte. (CASTEL, 2010, p. 127128) Em 1576, surgiram as poor houses, locais para onde os beneficiários de assistência, válidos ou inválidos, eram levados. Nessas instituições, aqueles que 21 Reiterando a afirmação de que a evolução das medidas de assistência ocorreu de forma semelhante em toda a Europa, observa-se que as medidas de atendimento à pobreza do século XVI não constituem exclusividade da história britânica. Outras cidades europeias adotaram políticas semelhantes para fazer frente à mesma conjuntura socioeconômica. Portanto, essa narrativa registra um movimento geral existente à época. Segundo CASTEL (2010, p. 73): “Entre 1522 e a metade do século, cerca de sessenta cidades européias tomam um conjunto coerente de medidas. Essas políticas municipais baseiam-se em alguns princípios simples: exclusão dos estrangeiros, proibição estrita da mendicância, recenseamento e classificação dos necessitados, desdobramentos de auxílios diferenciados em correspondência com as diversas categorias de beneficiários”. 29 tivessem condições físicas, deveriam trabalhar para prover a própria subsistência (FRIEDLANDER, 1973, p. 17; PEREIRA, 2009, p. 63). Em 1601, editou-se o Poor Law Act ou Elizabethan Poor Law22. Tal lei inaugurou a distinção entre grupos atendidos pela assistência pública, a saber: pobres corporalmente capacitados, pobres incapacitados e crianças dependentes (FRIEDLANDER, 1973, p. 18)23. As pessoas que não pudessem trabalhar seriam encaminhadas a asilos ou hospícios; aos demais, impunha-se o trabalho. Seriam mandados para reformatórios ou casas de correção aqueles que, tendo condições de trabalhar, se recusassem a fazê-lo, o que mostra a persistência da repressão no tratamento da pobreza (PEREIRA 2009, p. 64). Marshall (1967, p. 71) faz uma avaliação até certo ponto positiva dessa regulamentação, provavelmente por compará-la ao que viria mais adiante: A Poor Law se encontrava numa posição um tanto ambígua. A legislação elisabetiana tinha feito dela algo mais do que um meio para aliviar a pobreza e suprimir a vadiagem, e seus objetivos construtivos sugeriam uma interpretação do bem-estar social que lembrava os mais primitivos, porém mais genuínos, direitos sociais de que ela tinha, em grande parte, tomado o lugar. A Poor Law elisabetiana era, afinal de contas, um item num amplo programa de planejamento econômico cujo objetivo geral não era criar uma nova ordem social, e sim preservar a existente com um mínimo de mudança essencial. À medida que o padrão da velha ordem foi dissolvido pelo ímpeto de uma economia competitiva e o plano se desintegrou, a Poor Law ficou numa posição privilegiada como sobrevivente única da qual, gradativamente, se originou a idéia dos direitos sociais. Mas, no fim do século XVIII, houve uma luta final entre a velha e a nova ordem, entre a sociedade planejada (ou padronizada) e a economia competitiva. E, nessa batalha, a cidadania se dividiu contra si mesma; os direitos sociais se aliaram à velha e os civis à nova. Pereira (2009, p. 64-65) registra que a Poor Law promoveu uma regulação político-administrativa mais descentralizada, a cargo das paróquias, sob supervisão de um inspetor externo, incumbido também de arrecadar recursos para a assistência 22 Segundo Horvath Júnior (2008, p. 24), o Poor Law Act é considerado a primeira lei sobre assistência social. Embora as inovações dessa lei possam conduzir a essa afirmação, mais uma vez discorda-se desse entendimento. Como se pretende demonstrar neste capítulo, a regulação estatal da assistência à pobreza foi anterior a 1601 e não houve propriamente uma ruptura do modelo adotado. Antes e depois do Poor Law Act, as políticas de atenção à pobreza estiveram marcadas por seu caráter punitivo, pela internação de assistidos, pela obrigatoriedade do trabalho e pela importância das paróquias como agentes de organização da assistência. 23 O Poor Law Act aplicava-se apenas às pessoas que, integrando as categorias mencionadas, não trabalhassem. Aqueles que desempenhassem atividades laborativas ficariam sob a égide do Statute of Artificers, de 1563 (POLANYI, 1980, p. 97). 30 pública. Havia ainda um Conselho Privado a supervisionar o controle social desenvolvido em nível local. Apesar das mudanças, reiterou-se a responsabilidade da comunidade local pela atenção “aos seus necessitados”, pois a atenção prioritária era voltada para o atendimento da população local, nativos ou residentes havia algum tempo. No intuito de condicionar a concessão dos auxílios à fixação territorial, o Settlement Act de 1662 restringiu o deslocamento de trabalhadores de uma paróquia para outra. Um dos escopos dessa regra era impedir que as pessoas saíssem de suas paróquias em busca de remunerações maiores. Outro objetivo, nas palavras de Polanyi (1980, p. 98-99), era o de “proteger as paróquias ‘melhores’ contra o fluxo de indigentes”. Também com amparo nessa lei, os juízes de paz poderiam providenciar o retorno de recém-chegados à sua antiga residência quando os “inspetores de pobres” vislumbrassem a possibilidade de essa pessoa se tornar um ônus para o Poder Público (FRIEDLANDER, 1973, p. 20). Possibilitou-se alguma mobilidade de trabalhadores após a criação de um certificado por meio do qual a comunidade que o expedia assumia a responsabilidade de custear a manutenção do portador do documento em caso de necessidade (FRIEDLANDER, 1973, p. 21). Mesmo assim, a servidão paroquial só foi realmente atenuada em 1795 (POLANYI, 1980, p. 89)24. O intento de fazer concorrência comercial aos holandeses, somado à dificuldade de levar a cabo a organização instituída pela Poor Law e pelo Settlement Act, conduziu a novas mudanças. Por meio do Workhouse Act as diferentes categorias de assistidos foram reunidas e receberam o mesmo tratamento: a internação nas Workhouses e a exploração mercantil do trabalho de todos. O recebimento de qualquer auxílio estava condicionado à disposição dos requerentes em ir para as Workhouses (FRIEDLANDER, 1973, p. 21; PEREIRA, 2009, p. 66). O sistema das Workhouses não tinha meios de prosperar. As condições de habitação e trabalhos eram as piores possíveis e, ademais, os internos não contavam com formação profissional que lhes permitisse concorrer com os trabalhadores 24 “Na Inglaterra, tanto a terra como o dinheiro foram mobilizados antes do trabalho. Este se viu impedido de formar um mercado nacional pelas restrições estritamente legais impostas à sua mobilidade física: o trabalhador estava praticamente restrito à sua paróquia. O Act of Settlement (Decreto de Domicílio) de 1662, que estabeleceu as regras da assim chamada servidão paroquial só foi abrandado em 1795” (POLANYI, 1980, p. 89). 31 especializados das oficinas (FRIEDLANDER, 1973, p. 22). Portanto, a manobra foi perversa até mesmo para aqueles que pretendiam explorar essa mão de obra com baixos custos. O caráter da assistência prestada aos que não pudessem prover seu sustento começou a mudar ainda no século XVIII. O insucesso das Workhouses conduziu a propostas de mudanças que culminaram com o Poor Relief Act, de 1782. Conhecida como Gilbert’s Act, essa lei instituiu a assistência prestada fora das Workhouses, nas residências dos assistidos. Embora sem um princípio norteador dessa atuação nas diversas paróquias, Pereira (2009, p. 66-67) aponta aqui um embrião dos trabalhadores sociais. A escassez de alimentos, com o consequente aumento de preços desses gêneros, tornou necessária a complementação dos ganhos dos trabalhadores, e não apenas a oferta de auxílios aos que não trabalhassem (PEREIRA, 2009, p. 67). Ademais, os veteranos da guerra com a França (1793-1815) que haviam perdido sua capacidade laborativa se recusavam a ir aos asilos com seus familiares, reivindicando o auxílio público em suas casas. Esses fatores forçaram o desenvolvimento de alternativas para o incremento da renda, o que ocorreu de forma heterogênea em diversas localidades (FRIEDLANDER, 1973, p. 23-24). Foi nesse cenário que a Speenhamland Law, de 1795, introduziu um “sistema de abonos”, por meio do qual “ficaria assegurada ao pobre uma renda mínima independente de seus proventos”, como resume Polanyi (1980, p. 90). O sistema de abonos foi elaborado em uma conferência de juízes de Berkshire, ocorrida em Speenhamland25. Calculados em consonância com o preço do pão, os abonos assumiam a forma de complementação de salários, para os que trabalhassem, ou de rendimentos mínimos, para os que fossem desprovidos de renda. Reafirmou-se a tutela comunitária às populações carentes, com o consequente alijamento dos grupos de não residentes, uma vez que esses abonos eram custeados pelos habitantes de cada paróquia26. 25 Polanyi (1980, p. 90) narra que o sistema de abonos foi adotado em caráter emergencial e introduzido informalmente. Relata ainda que a tabela de abonos calculada com base no preço do pão nunca foi promulgada. Friedlander (1973, p. 24) também registra que essa estratégia se disseminou antes mesmo de ser convertida em lei. 26 Como avalia Castel (2010, p. 80): “Como para as poor laws anteriores, o financiamento é garantido por contribuições obrigatórias impostas aos habitantes da paróquia. Em contrapartida, os beneficiários dos auxílios são vinculados de uma maneira quase intangível a seu território de origem. Estão por isso a tal 32 A ideia de uma proteção pública generalizada representa um embrião da proteção social universal. Como afirma Polanyi (1980, p. 90), houve “uma inovação social e econômica que nada mais era do que o ‘direito de viver’”. Se, sob a égide da Poor Law de 1601, os pobres eram obrigados a trabalhar por qualquer valor e a assistência era destinada apenas aos que não o fizessem, sob a égide da Speenhamland Law, reconhecia-se que todos tinham necessidades mínimas a serem atendidas. Mas, como adverte Pereira (2009), essa preocupação com as massas em situação de pobreza não decorreu de motivos humanitários, e sim do temor de revolta dessas populações. A autora recorda que essa lei é posterior à Revolução Francesa e que, portanto, vem a lume num cenário de receio de revoltas populares. Pondera ainda que “a política social daquela época ainda não tinha contra si elaborações teóricas ou filosóficas de peso” (PEREIRA, 2009, p. 69), o que evitou resistências à disseminação desse sistema de abonos27. Como se depreende das análises de Friedlander (1973), Polanyi (1980) e Pereira (2009), os reflexos desse sistema se mostraram perniciosos para todos os envolvidos e, nas palavras de Polanyi (1980, p. 89), “o mercado livre de trabalho, a despeito dos métodos desumanos empregados na sua criação, provou ser financeiramente benéfico para todas as partes envolvidas”. À medida que os salários foram complementados e a sobrevivência das populações mais pobres passou a ser subsidiada, os empregadores puderam pagar remunerações baixíssimas com menor risco de conflitos com os trabalhadores. Os salários tornaram-se tão baixos que os trabalhadores se viam obrigados a recorrerem à assistência para sobreviverem, já que seus ganhos impediam que uma pessoa se sustentasse de forma autônoma. Por outro lado, como os ganhos eram os mesmos para todos os trabalhos, não havia incentivo à maior produtividade do empregado (cf. FRIEDLANDER, 1973, p. 24). ponto sob a dependência dos notáveis locais, que se pôde falar a esse respeito de servidão paroquial (parish serfdom). O Speenhamland Act representa – no momento em que a ‘revolução industrial’ já se iniciou na Inglaterra, e tal paradoxo será retomado – a fórmula mais completa das políticas assistenciais organizadas desde a Idade Média em torno da necessidade do pertencimento comunitário. Fora da domiciliação, do duplo sistema de proteção que organiza e das obrigações que impõe, quase não há salvação para os pobres”. 27 “O assalto intelectual mais sofisticado contra a política social só ocorreu a partir dos obstáculos que a Speenhamland impôs às forças livres do mercado de trabalho requerido pelo irreversível sistema industrial. Por isso, a geração de trabalhadores, de desempregados e de pessoas incapazes para trabalhar, naquela época, não via na assistência pública externa uma degradação e nem se sentia estigmatizada por merecê-la. É como se já estivesse embutido na consciência das massas daquela época a idéia de direito à assistência, fato que vai ser veementemente negado e desqualificado pela proposta de emenda da Speenhamland Law, nos anos 1830...” (PEREIRA, p. 2009, p. 69). 33 Essa contraditória experiência influenciou intensamente a reflexão sobre políticas sociais e, por isso mesmo, fornece elementos valiosos para a compreensão dos conflitos entre essas políticas e a produção acadêmica e jurídica que se seguiu. Por um lado, destaca o início de uma concepção universalizante das políticas de proteção social – o reconhecimento de que todos deveriam contar com um mínimo necessário à sua sobrevivência – e, segundo Pereira (2009, p. 69), marca um período em que o recebimento de prestações assistenciais não era visto como uma degradação. Por outro lado, ficam claros os efeitos deletérios de medidas paliativas contra a pobreza, desconectadas de preocupações com o desenvolvimento integral do indivíduo28, além da dificuldade em criar mecanismos de proteção social para operar numa economia de mercado e, ao mesmo tempo, não submetê-los às regras da competição. Além disso, o insucesso de Speenhamland favoreceu um sentimento geral de aversão à assistência pública. Passando-se ao século XIX, assiste-se a uma completa mudança de rumos das medidas de assistência aos pobres29. A difusão dos princípios liberais, apoiada na justificativa teórica oferecida por autores como Malthus e Ricardo (PEREIRA, 2009, p. 70-74) e catalisada por experiências como as recém-comentadas, apresentou a assistência aos pobres como danosa e contraproducente. Até mesmo as práticas de benemerência fundadas em crenças religiosas foram revistas, passando a ser regidas pela convicção de que a pobreza era causada por fracassos individuais (FRIEDLANDER, 1973, p. 25-26). Em virtude desse cenário, em 1832 foi instituída uma Comissão Real para avaliar a aplicação das Poor Laws. Seu relatório final, que foi apresentado em 1834, criticava o mecanismo de auxílio parcial criado pelo Sistema Speenhamland e apontava que a ajuda aos pobres levara pessoas capazes a se tornarem mendigos permanentes. 28 Na opinião de Polanyi (1980, p. 92), “se os trabalhadores tivessem a liberdade de fazer combinações para favorecer seus interesses, o sistema de abonos talvez pudesse ter causado efeito contrário no padrão de salários: a assistência aos desempregados, implícita numa administração tão liberal da Poor Law, teria ajudado a ação de muitos sindicatos”. 29 Polanyi (1980) mostra que a sociedade do século XVIII resistiu à criação de um mercado de trabalho, mesmo durante períodos ativos da Revolução Industrial. Tanto as medidas do Settlement Act, que restringiam a mobilidade dos trabalhadores, quanto o sistema de abonos instituído pela Speenhamland Law contiveram o surgimento de um mercado nacional de trabalho da Inglaterra. Assim, conclui o autor: “a tentativa de criar uma ordem capitalista sem um mercado de trabalho falhara redondamente” (POLANY, 1980, p. 92). Mas não é correto pensar que Polanyi aponta um fio condutor entre essas duas normatizações; segundo ele “a contradição era patente: o Act of Settlement estava sendo abolido porque a Revolução Industrial exigia um suprimento nacional de trabalhadores que poderiam trabalhar em troca de salários, enquanto a Speenhamland proclamava o princípio de que nenhum homem precisava temer a fome porque a paróquia o sustentaria e à sua família, por menos que ele ganhasse” (POLANY, 1980, p. 99). 34 As propostas que emergiram desse estudo são bem resumidas por Friedlander (1973, p. 27-28): Las seis principales recomendaciones del informe fueron a) abolir el “auxilio parcial” aplicado de acuerdo con el sistema Speenhamland; b) internar a todos los solicitantes de ayuda, físicamente capacitados, en el hospicio; c) otorgar “socorro” externo sólo los enfermos, ancianos, inválidos y viudas con hijos pequeños; d) coordinar la administración de auxilio de varias parroquias convirtiéndolo en una “unión de la ley de pobres”; e) hacer que las condiciones de los recipiendarios de auxilio público fueron menos apetecibles que las condiciones de vida de los trabajadores de más bajos sueldos en la comunidad (Principio de “menor elegibilidad”); y f) establecer una comisión central de control que debía ser nombrada por el rey. Como resultado desse trabalho, editou-se o Poor Law Amendment Act de 1834. A nova lei resultou no fim da assistência externa, de maneira que os assistidos aptos para o trabalho, juntamente com suas famílias, só receberiam algum tipo de atenção se internados nas Workhouses (FRIEDLANDER, 1973, p. 29). Impôs-se a prestação de contrapartida por parte dos beneficiários dessa internação com o produto de seu trabalho, mecanismo que, como afirma Pereira (2009, p. 79), transformou a assistência em uma fonte de acumulação primitiva, muito favorável às classes possuidoras. Passar pelos “testes de meios”30 das Workhouses envolvia a disposição do candidato a se submeter ao trabalho exaustivo, ao estigma, ao isolamento em relação ao restante da sociedade e ao sofrimento psíquico31. Polanyi (1980, p. 110) narra que os albergues deviam atender a requisitos de habitabilidade (higiene e decência), atributos que eram usados para justificar outras provações. 30 Entende-se por “testes de meios” ou “provas de indigência” os mecanismos de seleção dos destinatários da assistência. Esses testes marcaram o período de atendimento prestado nas Workhouses, em que a necessidade de assistência era demonstrada pela concordância do candidato com o tratamento dispensado nessas instituições. Aceitar esse tratamento significava abdicar da liberdade e do convívio familiar – pois as famílias eram separadas ao ingressarem nessas instituições, onde ficariam internadas –, sujeitar-se a trabalhos extenuantes como contrapartida à assistência recebida e a viver em condições piores do que as do trabalhador pior remunerado. Portanto, passar por um teste de meio significava submeter-se a condições de vida aviltantes e violadoras da dignidade e da liberdade dos indivíduos. (cf. FRIEDLANDER, 1973, p. 21; PEREIRA, 2009, 76-77). 31 Sobre essa nova fase, as considerações de Polanyi (1980, p. 93-94) merecem ser transcritas: “muitos dos pobres mais necessitados foram abandonados à própria sorte quando se retirou a assistência externa, e entre aqueles que sofreram mais amargamente estavam os ‘pobres merecedores’, orgulhosos demais para se recolherem aos albergues, que se haviam tornado um abrigo vergonhoso. Em toda a história moderna talvez jamais se tenha perpetrado um ato mais impiedoso de reforma social. Ele esmagou milhões de vidas quando pretendia apenas criar um critério de genuína indigência com a experiência dos albergues. Defendeu-se friamente a tortura psicológica, e ela foi posta em prática por filantropos benignos como meio de lubrificar as rodas do moinho do trabalho”. 35 A consagração do princípio da menor elegibilidade (less elegibility) também deixou marcas profundas nos rumos da assistência pública. Como explica Friedlander (1973, p. 28), a menor elegibilidade consistia em um postulado segundo o qual a assistência aos pobres deveria ser ofertada de forma ínfima e indigna, colocando seu destinatário em situação pior do que o trabalhador pior remunerado na mesma comunidade. Criado como forma de impelir todas as pessoas ao trabalho – quaisquer que fossem as condições a serem enfrentadas –, esse princípio não está distante do que ainda se discute em termos de assistência social e de mínimos sociais32. Marshall (1967, p. 72) apresenta uma síntese lapidar sobre o tratamento à pobreza instituído a partir de 1834, salientando de que forma a proteção social se fazia às custas da liberdade e da autonomia de seus destinatários: Pela Lei de 1834 a Poor Law renunciou a tôdas suas reivindicações de invadir o terreno do sistema salarial ou de interferir nas forças do mercado livre. Oferecia assistência somente àqueles que, devido à idade e à doença, eram incapazes de continuar a luta e àqueles outros fracos que desistiam da luta, admitiam a derrota e clamavam por misericórdia. O movimento experimental em prol do conceito de previdência social mudou de direção. Porém, mais do que isso, os direitos sociais mínimos que restaram foram desligados do status de cidadania. A Poor Law tratava as reivindicações dos pobres não como uma parte integrante de seus direitos de cidadão, mas como uma alternativa deles – como reivindicações que poderiam ser atendidas somente se deixassem inteiramente de ser cidadãos. Pois os indigentes abriam mão, na prática, do direito civil da liberdade pessoal devido ao internamento na casa de trabalho, e eram obrigados por lei a abrir mão de quaisquer direitos políticos que possuíssem. Essa incapacidade permaneceu em existência até 1918 e, talvez, não se tenha dado o devido valor à sua abolição definitiva. O estigma associado à assistência aos pobres exprimia os sentimentos profundos de um povo que entendia que aqueles que aceitavam assistência deviam cruzar a estrada que separava a comunidade de cidadãos da companhia dos indigentes. O perverso sistema instituído pela Poor Law de 1834 despertou reações, sobretudo a partir do século XX. As críticas diziam respeito às condições de trabalho enfrentadas dentro e fora das Workhouses, haja vista que as condições de vida insalubres nos bairros pobres também constituíam um grave problema de saúde pública (FRIEDLANDER, 1973, p. 30; PEREIRA; 2009, p. 80). Além disso, uma crise no setor 32 Nesse sentido, Castel (2010, p. 185) afirma que o princípio de less elegibility “reina sem restrições nas políticas sociais (e não apenas nas sociedades pré-industriais)”. De modo semelhante a Friedlander, o autor explica que, por força da menor elegibilidade, “os auxílios e alocações de recursos devem ser sempre inferiores à mais baixa remuneração que um indivíduo poderia obter com uma atividade ‘normal’” (CASTEL, 2010, p. 185). 36 carbonífero aumentou em muito o contingente de pessoas desempregadas que, com suas famílias, buscavam auxílio público (FRIEDLANDER, 1973, p. 49)33. Nesse contexto, um grupo de intelectuais defendia reformas econômicas e sociais para fazer frente ao quadro de pobreza: a Sociedade Fabiana. Uma integrante desse grupo, Beatrice Webb, foi nomeada para compor uma comissão real constituída com o intuito de estudar a reforma da assistência pública. Para o desempenho desta tarefa, Beatrice recebeu apoio de seu marido Sidney Webb, analista econômico da Sociedade Fabiana. Segundo Pereira (2006, p. 109), o casal se tornou “uma das influências intelectuais mais destacadas na realização das reformas iniciadas em 1905”. Nessa comissão, Beatrice Webb integrava uma corrente minoritária que defendia a abolição da lei dos pobres, ao passo que o grupo majoritário propunha apenas algumas reformas a essa legislação (FRIELANDER, 1973, p. 49). Com base nos estudos da comissão, o casal elaborou o Minority Report34, publicado em 1909, no qual expunham suas próprias concepções sobre a assistência. Rosanvallon (1984, p. 114) destaca pontos do Minority Report que são centrais para o avanço da proteção social: a defesa de uma atuação preventiva na assistência pública; a criação de uma “obrigação mútua entre o indivíduo e a comunidade”; e a “manutenção universal de um mínimo de vida civilizada, que deve ser o objeto da responsabilidade solidária de uma sociedade indissolúvel”. A despeito do não acolhimento desse relatório, a influência do pensamento de Sidney e Beatrice Webb se fez sentir à época e, mais tarde, surtiu efeitos pela atuação de William Beveridge. Beveridge integrava a Sociedade Fabiana e atuara como secretário do casal na comissão real (PEREIRA, 2006, p. 110). Nos anos que se seguiram, seu trabalho foi decisivo para a seguridade social tal como configurada atualmente. Nesse período, David Lloyd George emergiu como responsável por importantes alterações em matéria de proteção social, papel que desempenhou na condição de Ministro das Finanças (1908 a 1915) e de Primeiro Ministro (1916 a 1922). 33 Não se pode deixar de registrar, contudo, que a proteção trabalhista e previdenciária começou a dar alguns passos no final do século XIX. Em 1880, o Employers’ Liability Act estabeleceu a responsabilidade dos empregadores por lesões sofridas por seus empregados, porém sob o mecanismo de responsabilidade subjetiva dos empregadores. Horvath Júnior (2008, p. 25) também aponta o advento do Workmen’s Compensation Act, de 1897, que introduziu um sistema de seguro obrigatório contra acidentes de trabalho fundado na responsabilidade objetiva. 34 Como se deduz do título do trabalho, o Minority Report trazia as discordâncias de Beatrice e Sidney Webb em relação às conclusões que prevaleceram na comissão real. 37 Data de 1908 o Old Age Pension Act, lei que assegurou assistência aos idosos sem exigência de contrapartidas. Em 1911 registrou-se o advento do seguro-doença e do seguro-desemprego, este último complementado em 1920 e 1931. Também em 1925 foram instituídos benefícios em favor de viúvas e órfãos (ROSANVALLON, 1984, p. 114). Com exceção do Old Age Pension Act, pode-se afirmar que o início do século XX esteve marcado pela evolução da previdência social, não da assistência. O maior desenvolvimento pode ser atribuído ao êxito das reivindicações dos trabalhadores organizados. Ademais, durante a Primeira Guerra Mundial, o país absorveu a mão de obra dos trabalhadores até então desempregados, diminuindo, pois, a demanda por assistência. Como funcionário do Ministério do Comércio, Beveridge destacou-se na criação de uma rede nacional de oficinas de emprego e na implementação do programa de seguro-desemprego instituído pelo National Insurance Act de 1911 (PEREIRA, 2009, p. 85). Em 1941, eleito deputado, ele foi incumbido de presidir uma comissão interministerial que deveria orientar o estudo dos planos de seguro social e serviços afins (BEVERIDGE, 1943, p. 5). Os trabalhos dessa comissão resultaram na elaboração, em 1942, do Report on Social Insurance and Allied Services, conhecido como “Plano Beveridge”. Apesar de reconhecer que grande parte das contingências passíveis de acarretar perda de rendimentos dos cidadãos já estava prevista na Grã-Bretanha, o plano identificou alguns pontos falhos (BEVERIDGE, 1943). O primeiro deles foi a falta de conexão entre os órgãos incumbidos de executar a política de seguridade social e serviços afins. O segundo foi a limitação dos seguros sociais então existentes, que favoreciam apenas empregados que obtivessem certos níveis de renda. Outro ponto importante foi a insuficiência do valor dos benefícios para o atendimento adequado das necessidades de seus titulares. Como síntese do diagnóstico efetuado, foram indicados “cinco gigantes” a serem combatidos: a Miséria, a Doença, a Ignorância, a Imundície e a Preguiça. Para fazer frente a essa situação, o relatório propôs a revisão do modelo de proteção social até então vigente, sugerindo o desenvolvimento de um eixo contributivo e outro 38 distributivo (PEREIRA, 2009, p. 93), como pilares de um regime de segurança social, assim entendida: garantia de um rendimento, que substitua o salário, quando se interromperem estes pelo desemprego, por doença ou acidente, que assegure a aposentadoria na velhice, que socorra os que perderam o sustento em virtude da morte de outrem e que atenda a certas despesas extraordinárias, tais como as decorrentes do nascimento, da morte e do casamento. Antes de tudo, segurança social significa segurança de um rendimento mínimo; mas esse rendimento deve vir associado a providências capazes de fazer cessar, tão cedo quanto possível, a interrupção dos salários. (BEVERIDGE, 1943, p. 189) O Plano de Segurança Social valia-se de três métodos: (a) seguro social, “para as necessidades básicas”, condicionado a realização de contribuições prévias35; (b) assistência nacional, “para casos especiais”, independentemente de contribuições; e (c) seguro voluntário “para os auxílios adicionais aos auxílios básicos” (BEVERIDGE, 1943, p. 189). Como se vê, o seguro social foi apresentado como forma de proteção contra situações de perda de rendimentos, mas a segurança social não se esgotava nesses seguros. Ao contrário, foram propostos um programa universalizante – apto a proteger um contingente maior de pessoas –, a adequação das prestações às necessidades dos titulares e de suas famílias, a atenção às ações e serviços de saúde e a organização do emprego36. A assistência foi apresentada como forma de “atender a todas as necessidades que não forem satisfeitas pelo seguro”, em níveis aptos a satisfazer adequadamente tais necessidades. Como fim permanente da assistência, Beveridge indicou o auxílio a pessoas que não preenchessem condições de contribuir para o sistema, pessoas que não preenchessem requisitos para recebimento de auxílios, pessoas com necessidades qualificadas como “anormais” e pessoas necessitadas por razões não contempladas pelo 35 No texto original são empregadas as expressões social insurance e social security. Na versão em português, publicada em 1943, o termo social insurance foi traduzido como seguro social, ao passo que o termo social security foi traduzido como segurança social. Os termos não são usados como sinônimos: o seguro social integra um plano de seguridade social, este mais amplo. 36 “Para Beveridge, esta nova política de segurança social só tem sentido se estiver ligada a uma política de pleno emprego. Em 1944, escreve uma obra sobre este tema, Full Employment in a Free Society (Trabalho Para Todos Numa Sociedade Livre). De facto, para ele, o desemprego é o principal risco social. De um certo ponto de vista, toda a política social que preconiza quase compara a doença, o acidente, a maternidade ou a velhice a períodos de inactividade forçada. ‘Deve ser uma função do Estado’, escreve, ‘proteger os seus cidadãos contra o desemprego de massa, tão definitivamente que, actualmente, a função do Estado consiste em defender os cidadãos dos ataques externos e dos roubos e violência internos’” (ROSANVALLON, 1984, p. 115-116). 39 seguro. Além disso, apontou uma finalidade transitória de prover meios de subsistência no período de transição do modelo vigente para o modelo de seguro social proposto, isto é, no período de expansão do sistema de pensões contributivas (BEVERIDGE, 1943, p. 219-220). A assistência surgiu como mecanismo subsidiário em relação ao trabalho e ao seguro social e, para que a subsidiariedade fosse observada, estabeleceu-se que as prestações assistenciais deveriam ser menos vantajosas do que as prestações securitárias. Isso nada mais representa do que o princípio da menor elegibilidade. Vale a leitura do relatório: Servirá a assistência para atender a todas as necessidades que não forem satisfeitas pelo seguro. Devem ser atendidas tais necessidades de maneira adequada ao nível de subsistência; mas os beneficiados devem ver na assistência algo menos desejável do que o auxílio de seguro, pois, se assim não for, nada lucrarão os segurados com as suas contribuições. Só se ministrará assistência mediante prova das necessidades e exame dos recursos do beneficiado; dependerá ela também de algumas condições de comportamento, que possam parecer adequadas a apressar o restabelecimento da capacidade produtiva. (BEVERIDGE, 1943, p. 219) Embora propondo a unificação dos chamados “testes de meios” ou “provas de indigência” para concessão dos benefícios, não se afastou completamente a ideia de prestação de alguma forma de contrapartida por parte dos beneficiários, o que se depreende a partir do exame do que Beveridge chamou de “casos especialmente difíceis”: Na base de qualquer sistema de segurança social, que abranja todos os que aceitam justas e razoáveis condições de seguro e de assistência, deve haver provisões para uma limitada classe de homens e mulheres, que, por fraqueza ou maldade de caráter negam o seu assentimento. Em última análise, o homem que deixa de satisfazer as condições para obter os benefícios do seguro ou da assistência e deixa a família sem recursos deve ficar sujeito a tratamento penal. (BEVERIDGE, 1943, p. 221) A partir do trabalho de Beveridge, a proteção social britânica foi ampliada por meio de medidas como o Family Allowances Act (1945), o National Insurance Act (1946), o Serviço Nacional de Saúde (1946) e a criação da Lei Nacional de Assistência (1948). Nessa evolução, a delimitação de um campo específico da assistência social e seu tratamento como um dever estatal significaram mudanças importantes, sobretudo 40 porque se distingue da caridade, da filantropia e das formas punitivas de atenção à pobreza. A propósito, transcreve-se Carro (2008, p. 14-15): Nesse conjunto de regulações, e em momentos históricos distintos, ocorreu a singularidade de uma política social de proteção que não se vinculou nem à legislação social do trabalho nem à proteção à saúde. Um campo que se ocuparia da qualidade das relações como resistência a riscos sociais que deterioram ou tornam precário o convívio humano, ou ainda que provocam o isolamento, o abandono e a apartação social. O núcleo primeiro dessas relações localiza-se na experiência cotidiana da vida em família (genética ou construída) e as transgressões que nele vão se apresentando reduzem sua capacidade de ser o núcleo básico de proteção social. Outra centralidade está na capacidade e na possibilidade concreta de provisionar a sobrevivência de cada um sob os padrões aceitáveis em cada sociedade. As garantias que a sociedade constrói para responder a essas situações, via de regra, são as que constituem o campo da assistência social. Esse relatório pode ser considerado a principal matriz dos modelos de seguridade social existentes até hoje e, segundo Faleiros (1980, p. 45), inspirou quase todos os sistemas de seguro social do pós-guerra. Rosanvallon (1984, p. 115) aponta que esse informe foi “o primeiro documento a exprimir os grandes princípios da constituição do Estado-providência moderno”37 e observa que, embora a expressão Social Security38 tenha sido empregada anteriormente, deve-se a Beveridge o desenvolvimento e a ampliação do conceito, cujo significado ainda hoje se atribui ao termo. O regime de segurança social preconizado por Beveridge no seu relatório está em ruptura com a concepção restritiva dos “seguros sociais” que se tinha afirmado através das diversas reformas dos anos 30, nos Estados Unidos ou na Europa. Assenta numa nova concepção do risco social e do papel do Estado. A segurança social tem por objetivo “libertar o homem da necessidade”, garantindo uma segurança de rendimento. Considera como risco social tudo o que ameace o rendimento regular dos indivíduos: doença, acidentes de 37 Divulgado em meio à Segunda Guerra Mundial, o relatório revela clara preocupação em evitar a repetição do cenário socioeconômico existente no início do século XX, como destaca Hobsbawm (1995, p. 162): “a Segunda Guerra Mundial foi, para os lados do vencedor, não apenas uma luta pela vitória militar, mas – mesmo na Grã-Bretanha e nos EUA – por uma sociedade melhor. Ninguém sonhava com um retorno ao pré-guerra de 1939 – nem mesmo a 1928 ou 1918, como os estadistas após a Primeira Guerra Mundial haviam sonhado com uma volta ao mundo de 1913. Um governo britânico sob Winston Churchill se comprometeu, no meio de uma guerra desesperada, com um Estado do Bem-Estar abrangente e o pleno emprego. Não foi por acaso que o Relatório Beveridge saiu com estas recomendações num dos anos mais negros da desesperada guerra da Grã-Bretanha: 1942”. 38 A Constituição Mexicana de 1917 empregou a expressão seguridad social. O termo Social Security foi empregado em 1935 nos Estados Unidos, com a aprovação do Social Security Act. 41 trabalho, morte, velhice, maternidade, desemprego. Perante as políticas parciais existentes, resultantes de reformas parciais e limitadas, propõe a criação e um sistema global e coerente. (ROSANVALLON, 1984, p. 115) Por outro lado, o Relatório Beveridge teve aspectos negativos, como ressalta Pereira (2009, p. 94): o referido Relatório teve seus pontos fracos, que remontavam aos conservadores anos 1930, para não falar de objetivos em conflito, presentes no seu intento de equilibrar, de um lado, direitos e deveres, e, de outro, o incentivo à seguridade, o individualismo e o coletivismo (Timmins). Dentre os pontos fracos, dois podem ser citados: o estabelecimento de um mínimo nacional como padrão de sobrevivência, sendo que a definição desse padrão tinha a conotação de ínfimo de provisão. Além disso, essa provisão mínima estava baseada no princípio da contribuição e de benefícios uniformes, referentes ao seguro; isto é, todos pagavam a mesma quantia para receber a mesma cobertura. Tal medida gerou déficit de recursos, além de baixo atendimento às necessidades sociais. Nesse sentido, o mínimo concebido por Beveridge, como um direito de todos, tinha o velho ranço liberal e, por conseguinte, deveria funcionar apenas como um incentivo ao trabalho e à autoprovisão. Isso, sem falar nas intenções subjacentes aos arranjos de proteção social voltados para a família, visando mantê-la unida, sob o comando do homem, que teria a sua força de trabalho reproduzida com a colaboração doméstica gratuita da mulher. Como se verifica da evolução histórica britânica, ao longo de séculos as práticas assistenciais representaram uma forma de “gerenciamento” – e não de redução ou erradicação – da pobreza, o que explica o caráter punitivo de muitas de suas ações. Só se pôde vislumbrar uma mudança de perspectiva, com preocupações mais acentuadas com o enfrentamento da pobreza (e não com o controle das pessoas pobres) a partir do século XX. Por isso mesmo, não se pode diminuir a importância que o Relatório Beveridge teve para a evolução da seguridade social. 1.5 O modelo francês de proteção social A assistência social na França teve início semelhante ao verificado na GrãBretanha. Entre os séculos XII e XIV, instituições religiosas de assistência foram fundadas no país. Além dessas instituições, autoridades municipais assumiram 42 atribuições no atendimento às populações carentes. Essa tarefa se desenvolveu em nível local, seguindo critérios rigorosos de seleção dos assistidos (CASTEL, 2010, p. 71). No século XIV, criaram-se políticas locais de atendimento baseadas na restrição à mendicância, na obrigatoriedade do trabalho e no atendimento limitado a integrantes da comunidade. Castel (2010, p. 100) apresenta alguns exemplos de como a assistência e o dever de trabalho caminharam juntos nesse período, os quais são destacados a seguir. Um decreto de 1351 determinou às pessoas ociosas de Paris que passassem a exercer alguma tarefa ou deixassem a cidade em três dias, sob pena de castigos corporais. Em 1354, determinou-se que trabalhadores braçais se dirigissem aos locais onde se recrutavam serviços dessa natureza, para então trabalharem recebendo os preços pagos pela jornada dos trabalhadores desses ofícios. Em 1413, ordenou-se que mendigos e mendigas aptos para o trabalho abandonassem a mendicância e ganhassem a vida de outro modo. Também entre os séculos XIII e XV, os poderes locais intensificaram sua atuação no sentido da chamada “gestão racional da indigência”. Como parte desta atuação, citam-se medidas como a imposição aos indigentes do uso de distintivos – para controle de seu acesso às distribuições de esmolas e às instituições hospitalares – e cadastro de mendigos em registros fiscais como um grupo profissional (CASTEL, 2010, p. 71-72). Em relação ao século XVI, Castel (2010, p. 73) identifica um movimento de sistematização da assistência, por meio das seguintes medidas: “exclusão dos estrangeiros, proibição estrita da mendicância, recenseamento e classificação dos necessitados, desdobramentos de auxílios diferenciados em correspondência com as diversas categorias de beneficiários”. O autor aponta a concessão de auxílios a algumas categorias de indigentes aptos para o trabalho como uma inovação, representando a tentativa da cidade de resolver os problemas de todos os seus membros (Castel, 2010, p. 74). No entanto, a França não deixou de vivenciar fases de vigilância e reclusão das pessoas em situação de indigência. A esse respeito, Carro (2008, p. 39) menciona a fundação do Grande Ofício dos Pobres de Paris, em 1544, “para assumir o direcionamento social das camadas consideradas em perigo”. 43 A internação dos pobres na França foi expressamente determinada em 1556, por meio do Decreto de Moulin (CASTEL, 2010, p. 74). Castel propõe uma leitura interessante sobre o significado dessa reclusão. O autor interpreta a assistência prestada nessas instituições fechadas como uma tentativa de reconstruir laços de pertencimento comunitário (CASTEL, 2010, p. 74-77). Citando Goffman, Castel enfatiza que a combinação entre trabalho, disciplina e oração seria, pois, uma forma de reeducar indivíduos para retornarem ao convívio social como “um membro útil para o Estado”. Vale a transcrição: Os parênteses da reclusão com vocação reeducativa não são, pois, de maneira alguma, contraditórios com o princípio de domiciliação da assistência. Tentam reformulá-lo de modo original, tendo em vista que as condições para o exercício de uma assistência por proximidade tornaram-se desfavoráveis. Assim, Luis XIV pode afirmar que age “não por meio de ordem de polícia” – que aqui diria respeito “aos membros inúteis para o Estado”, e em primeiro lugar aos vagabundos – mas “unicamente por caridade”, isto é, para ajudar os que ainda pertencem à ordem comunitária. A reclusão não tem um fim em si mesma. Desenvolve uma estratégia sinuosa que consiste, num primeiro momento, em fazer um corte em relação ao meio circundante a fim de, num segundo momento, ter os meios de reeducar o mendigo válido para, num terceiro momento, reintegrá-lo. (CASTEL, 2010, p. 78) Até o final do Antigo Regime, houve perseguição às pessoas desprovidas de meios de subsistência, sobretudo às consideradas “forasteiras”. Essa perseguição significou nada menos do que banimento, pena de morte, imposição de trabalhos forçados por meio de reclusão e deportação para as colônias (CASTEL, 2010, p. 122-127). O último marco normativo desse tratamento data de 1764, quando um decreto real equiparou mendigos válidos a vagabundos e condenou os homens nessa situação às galeras; impôs a reclusão a mulheres e crianças; e determinou que pessoas doentes e inválidas seriam encaminhadas para tratamento domiciliar ou hospitalar (CASTEL, 2010, p. 78-79). Após a Revolução Francesa – e muito embora essa revolução tenha se voltado essencialmente à promoção de igualdade formal, mediante supressão dos privilégios estamentais, e não à promoção de igualdade material –, as concepções fundantes da assistência prestada no país passaram por transformações. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 178939 não tratou especificamente da assistência. 39 Sobre a força normativa dessa declaração, assevera Comparato (2006, p. 147): “A Declaração de 1789 foi, aliás, em si mesma o primeiro elemento constitucional do novo regime político. Pelo fato de ter sido 44 Na declaração de direitos da Constituição de 1791 que, segundo Comparato (2006, p. 149), foi pioneira em reconhecer direitos humanos de caráter social, previu-se a criação de um estabelecimento geral de Assistência Pública, nos seguintes termos: Será criado e organizado um estabelecimento geral de Assistência Pública, para educar as crianças abandonadas, ajudar os enfermos pobres e fornecer trabalho aos pobres válidos que não tenham podido encontrá-lo. (FRANÇA, 1791 apud COMPARATO, 2006, p. 157) Indicando a concepção de que caberia ao Estado assegurar a sobrevivência de pessoas em situação de necessidade – o que, implicitamente, indica a superação da ideia de que a pobreza era decorrente de fracassos ou culpas individuais –, a declaração de direitos da Constituição de 1793 consagrou o direito à assistência: Art. 21. A assistência pública é uma dívida sagrada. A sociedade deve sustentar os cidadãos infelizes, dando-lhes trabalho, ou assegurando os meios de subsistência aos que não estejam em condições de trabalhar. (FRANÇA, 1793 apud COMPARATO, 2006, p. 159) Carro (2008, p. 41) relata que as primeiras categorias a serem atendidas pela assistência foram crianças, idosos e indigentes. Em 1794, passaram a ser abrangidas mulheres com crianças a seus cuidados e beneficiários de socorros. Também nesse ano, surgiu a previsão de assistência médica domiciliar. A mesma autora avalia que a proclamação do dever de assistência, com a previsão de que a subsistência das pessoas pobres deveria ser assegurada, é expressão da solidariedade social (CARRO, 2008, p. 41). Sem descuidar da importância de se reconhecer a assistência como um dever, não se pode também desprezar o fato de que a Constituição de 1793 não chegou a ser aplicada (COMPARATO, 2006, p. 151). Tampouco se deve esquecer que a ruptura com o Antigo Regime não se deveu a preocupações com a promoção da igualdade material. Portanto, não se pode falar em uma evolução linear e sem contradições na assistência social francesa. publicada sem a sanção do rei, houve quem a interpretasse, de início, como simples declaração de princípios, sem força normativa. Mas em pouco tempo a assembléia aceitou as idéias expostas por Sieyès em sua obra famosa e reconheceu que a competência decisória por ela exercida emanava diretamente da nação, como poder constituinte, e que o rei não passava de poder constituído, cuja subsistência como tal, de resto, dependia ainda de uma aprovação explícita da assembléia, no texto constitucional a ser votado”. 45 Nesse sentido, verifica-se que a declaração de direitos da Constituição de 1795 não contemplou previsões de teor equivalente ao de suas antecessoras no tocante à assistência, dando prevalência à ordem privatista burguesa (COMPARATO, 2006, p. 153). Avançando algumas décadas, chega-se à Constituição de 1848 que, segundo Comparato (2006, p. 165), caracterizou-se por um compromisso entre liberalismo e socialismo. O autor explica que, ao mesmo tempo em que inova ao prever deveres sociais do Estado em face de trabalhadores e grupos necessitados, essa constituição revela a preocupação de formar mão de obra para o mercado de trabalho. Ainda assim, o autor identifica nessa constituição um ponto de partida para o Estado de Bem-Estar Social, que seria consolidado no século seguinte (COMPARATO, 2006, p. 165-166). Sua afirmação decorre da seguinte previsão: Art. 13. A Constituição garante aos cidadãos a liberdade de trabalho e de indústria. A sociedade favorece e encoraja o desenvolvimento do trabalho, pelo ensino primário gratuito, a educação profissional, a igualdade nas relações entre o patrão e o operário, as instituições de previdência e de crédito, as instituições agrícolas, as associações voluntárias e o estabelecimento, pelo Estado, os Departamentos e os Municípios, de obras públicas capazes de empregar os braços desocupados; ela fornece assistência às crianças abandonadas, aos doentes e idosos sem recursos e que não podem ser socorridos por suas famílias. (FRANÇA, 1848 apud COMPARATO, 2006, p. 168) Paralelamente à afirmação do dever de prover assistência a todos os membros da sociedade, emergiram reações no sentido de que o Estado não deveria assumir a responsabilidade pelo enfrentamento da pobreza. A esse respeito, registra-se que, em 1889, o Congresso Nacional de Assistência Pública e Privada, parte da Exposição Universal ocorrida em Paris, marcou a discussão em torno de duas ideias: a assistência como um dever (La Rochefoucauld Liancourt) e a assistência como sinal de degeneração dos costumes (Thiers)40. Esse congresso teve 40 “Em Paris, ganhava hegemonia uma concepção de equilíbrio entre a afirmação do direito assistencial, constante na Constituição de 1848 e sua oposição, desenvolvida em 1850 por Thiers, negando que o Estado devesse assumir a assistência à pobreza dentre suas funções. A primeira, baseada nas concepções altruístas de La Rochefoucauld Liancourt, substituiu a luta dos trabalhadores pela garantia do direito ao trabalho, pelo direito à assistência, que Marx contesta numa de suas observações de O Capital. Nessa concepção, a assistência não seria um benefício, mas sim um dever da “República” que, através de uma assistência fraternal, deveria assegurar a existência de cidadãos necessitados, dando-lhes trabalho nos limites de suas forças, ou dando, em falta da família, socorros aos que não estivessem em condições de trabalhar. Thiers, por sua vez, em 1850, considera tal ação como ‘a destruição dos costumes, do amor ao trabalho’, como ‘um desmando’, na medida em que ocorre o emprego do fundo público ‘além da exata necessidade’. Para ele, a assistência deveria se restringir à singela manifestação da caridade de todo ser 46 grande influência nas reflexões brasileiras sobre assistência social da época, haja vista a participação de um magistrado brasileiro no evento, Ataulpho Nápoles de Paiva. A despeito desses antagonismos, a assistência social francesa não só antecedeu os sistemas de seguro social, como também introduziu medidas diferentes daquelas que constituíam o sistema quase punitivo das Poor Laws inglesas. Com efeito, entre 1889 e 1913 foram promulgadas leis dispondo sobre amparo a crianças, gestantes e famílias necessitadas, bem como sobre assistência médica gratuita (CARRO, 2008, p. 43-44)41. Desde o século XIX, as leis francesas de assistência previam mecanismos de garantia de subsistência aos indigentes, incluindo trabalhadores temporariamente privados de suas fontes de renda42. De outra senda, seguros sociais só entraram nas agendas políticas a partir da década de 1920, como mostra Rosanvallon (1984, p. 120-121). O primeiro Projeto de Lei sobre seguros sociais foi apresentado em 1921, tendo sido aprovado somente em 1928. Em 1930, foram instituídos seguros sociais para cobertura dos eventos de doença, maternidade, velhice, invalidez e morte em um formato que, segundo o autor, “representava uma espécie de compromisso entre o regime de seguro obrigatório à alemã e o mutualismo à inglesa”. Em 1932, foi votada a lei sobre os abonos de família, restritos aos assalariados43. Em 1945, o Decreto 45-2258, de 4 de outubro, instituiu o sistema francês de seguridade social. Esse sistema assentava-se sobre o princípio contributivo e destinavase a proteger “os trabalhadores e suas famílias”. Fundado sobre o princípio de gestão humano. Seria, pois, a simples manifestação voluntária e espontânea da virtude dos indivíduos.” (SPOSATI, 1987, p. 120-1). 41 Carro (2008, p. 47) apresenta um quadro com os marcos temporais relevantes para o estudo da assistência social na França, principiando no século XVI e terminando no ano de 1941. 42 A referência territorial continua sendo fulcral para o acesso às prestações assistenciais francesas, como se extrai da seguinte passagem: “Bruno Palier apresenta um estudo sobre as mudanças nos critérios de acesso às prestações sociais e aos laços sociais. Esse estudo assinalou que, embora até o século XIX a comuna tenha sido o primeiro lugar de incumbência de responsabilidade da assistência pública, a questão do domicílio como condição de acesso à prestação da assistência não mudou, ainda quando foram definidas leis de caráter nacional de assistência social durante 1893. O caráter nacional do dispositivo de assistência não impediu que o lugar de residência, a base territorial continuasse sendo o modo principal de aquisição dos benefícios sócio-assistenciais. Foi com as leis de seguros sociais que o critério mudou para a hegemonia da concepção de cotização e a pertença socioprofissional como substrato da proteção social, em vez da residência.” (CARRO, 2008, p. 48). 43 Rosanvallon (1984, p. 121) relata que essa lei foi criticada pelos economistas liberais, pois o nível de rendimento deixava de depender apenas do salário. Como se percebe, o sistema funcionava em moldes semelhantes ao sistema de Speenhamland, mas sem registro de consequências semelhantes às relatadas sobre a experiência britânica. 47 mutualista operária, esse decreto se aproximava do modelo bismarckiano de seguro social (ROSANVALLON, 1984, p. 121; CARRO, 2008, p. 51). No ano seguinte, em 1946, a nova Constituição preceituou em seu preâmbulo que: A Nação proporciona ao indivíduo e à família as condições necessárias para seu desenvolvimento. Garante a todos, em especial às crianças, à mãe e aos trabalhadores idosos, a proteção da sua saúde, de sua seguridade material, de seu descanso e de seu tempo livre. Todo ser humano que, em razão da sua idade, de seu estado físico ou mental ou da situação econômica, encontre-se incapacitado para trabalhar, tem direito a obter da coletividade meios de existência decorosos. (FRANÇA, 1946 apud CARRO, 2008, p. 50) Apesar do desenvolvimento de sistemas fundados no prévio custeio, Carro (2008, p. 51) afirma que “a assistência pública continuou incorporando as categorias que o sistema de seguridade social – ou o regime autônomo – não tinha condição de incorporar, seja pela idade do interessado ou pela condição física”. Na reforma da assistência social de 1953, ampliou-se o espectro de proteção por meio da incorporação de novas necessidades (CARRO, 2008, p. 54-55). Rosanvallon (1984, p. 120) assevera ainda que um verdadeiro sistema de seguro-desemprego só foi instituído em 1958; até então, muitos desempregados dependiam da assistência social, até porque as normas sobre assistência-desemprego de 1951 seguiam critérios de acesso restritos. Segundo Carro (2008, p. 31), atualmente a assistência social francesa é “herdeira, em sua forma moderna, dos princípios de direito à assistência, proclamados durante a Revolução Francesa”. Em comparação com sistemas de seguridade que têm a assistência como subsistema, o modelo francês apresenta uma peculiaridade: seguridade social e assistência social são tratadas como dois pilares do sistema de proteção social (CARRO, 2008, p. 32). Em outras palavras, a seguridade não é vista como gênero da qual a assistência social seja espécie; na verdade, seguridade e assistência são espécies do gênero proteção social. Concluindo este tópico, chama-se a atenção para dois aspectos importantes da evolução da assistência social na França. O primeiro é o fato de muito cedo o Estado ter assumido o dever de prestar assistência aos membros da sociedade, afastando-se de concepções vinculadas à caridade ou ainda de posturas de extrema repressão às pessoas 48 vivendo em situação de pobreza. O segundo aspecto a ser destacado é que a assistência social na França não se desenvolveu como apêndice dos sistemas fundados na contribuição dos potenciais beneficiários – ao contrário, a proteção não contributiva se desenvolveu com autonomia em relação à proteção social contributiva. 1.6 O modelo germânico de proteção social A experiência germânica em matéria de proteção social não se deve à produção normativa em matéria de assistência social, mas ao seu pioneirismo em instituir sistemas de proteção social fundados na filiação compulsória, o que ocorreu a partir do final século XIX. Isso não significa que, antes do século XIX, não existisse assistência aos pobres e indigentes. Há interessantes registros históricos a esse respeito que, observe-se, antecedem a unificação alemã. Com base na obra de Friedlander (1973, p. 11-13), as experiências de três cidades – Hamburgo, Munique e Elberfeld – são resumidas a seguir. Hamburgo instituiu um sistema de assistência aos indigentes, cujas atividades eram custeadas por impostos e doações. Nesse sistema, as cidades eram divididas em distritos e em cada um deles era gerido por uma comissão responsável por investigar condições de vida dos indigentes e das famílias pobres e distribuir ajuda. Em 1790, adotou-se em Munique um sistema de assistência com financiamento misto. O sistema de Munique contava ainda com uma fábrica de vestuário para o exército, cuja mão de obra era formada por mendigos aptos para o trabalho. Em 1853, a cidade de Elberfeld criou um sistema semelhante ao de Hamburgo e Munique, mas totalmente financiado por impostos. Outra peculiaridade de Elberfeld era o fato de os integrantes das comissões de assistência residirem no distrito de sua atuação, o que aumentava a vigilância e também o conhecimento sobre as famílias atendidas. Mas as políticas sociais que projetaram reflexos fora do país e, inclusive, influenciaram a regulação britânica sobre o tema são posteriores à unificação alemã. 49 O mentor dessas políticas foi o chanceler alemão Otto von Bismarck, político conservador que havia sido responsável pela unificação do país. Bismarck buscava conter o avanço do socialismo e chegou a proibir a atuação do partido social-democrata em 1878. Segundo Rosanvallon (1984, p. 116), “para compensar esta repressão, procurou desenvolver uma política social ativa”, o que resultou em uma legislação de proteção social. Foi nesse cenário que, já no ano de 1881, o Governo imperial propôs ao Parlamento a criação de um seguro obrigatório contra acidentes do trabalho (ROSANVALLON, 1984, p. 116). A implantação do sistema de seguros ocorreu de forma gradativa. Principiou com a criação do seguro-doença, em 15 de junho de 1883. Em 6 de julho de 1884 foi aperfeiçoado com a criação do seguro contra acidentes do trabalho, “que aplicou os princípios decididos em 1881” (ROSANVALLON, 1984, p. 116). Finalmente, em 22 de junho de 1889, instituiu-se o seguro velhice-invalidez. O seguro-doença era custeado por empregados e empregadores, na proporção de dois terços e um terço, respectivamente44. O seguro contra acidentes do trabalho era custeado com contribuições dos empregadores. O seguro velhice-invalidez era custeado por empregados e empregadores em iguais proporções. Todas essas leis foram consolidadas em 1911, com o advento do Código dos Seguros Sociais. O modelo bismarckiano antecedeu o Plano Beveridge e representou significativa mudança na compreensão das causas da pobreza como fruto do desenvolvimento capitalista (PEREIRA, 2009, p. 60-61). Pela primeira vez atribuiu-se ao Estado a obrigação de financiar e gerir o sistema de seguros sociais (MESTRINER, 1992, p. 21-22). Como ensina Santos (2003, p. 144): Nessa fase, já não se tratava mais de um simples seguro. Havia a necessidade de se criar, dentro daquele Estado liberal, certo mecanismo redutor não apenas dos conflitos e prejuízos, mas de desigualdades sociais. O seguro social passou a ter uma vocação institucional de redistribuição de rendas, com vistas ao consumo daqueles bens que o Capitalismo vai produzindo cada vez em maior quantidade. Era preciso dar vazão a essa produção. Paralelamente, a idéia de solidariedade foi adquirindo configuração jurídica e tornou-se o elemento mais importante do conceito de proteção social, o que fez 44 Rosanvallon relata que o seguro-doença foi gerido por instituições autônomas sob controle estatal. De forma proporcional ao custeio por empregados e empregadores, os primeiros ocupavam dois terços dos lugares no conselho dessas instituições e os últimos ocupavam o terço remanescente. Em sua avaliação, o reconhecimento de que “a classe operária estava em situação de gerir patrimônio coletivo” resultou em uma “experiência fundamental para a história da social-democracia alemã” (ROSANVALLON, 1984, p. 117). 50 com que os elementos conceituais do seguro passassem a perder importância. O fenômeno era econômico, ao mesmo tempo em que os direitos sociais clamavam por melhor conformação. Segundo Nascimento (2007, p. 32), “o seguro social alemão foi bem sucedido em seu duplo objetivo: primeiro, melhorar as condições de vida dos trabalhadores; segundo, acalmar as reivindicações do movimento socialista”. No entanto, cuidava-se de um modelo fundado no prévio custeio por parte dos beneficiários das prestações. Por isso, só incluía no campo da proteção social aqueles que integrassem a categoria de trabalhadores. Comparado ao modelo britânico, o modelo bismarckiano não introduziu avanços imediatos na legislação de assistência social. Porém, esse modelo foi de grande valia porque impulsionou as reflexões sobre riscos individuais a serem amparados pela sociedade. A noção de risco e de seu compartilhamento por toda a sociedade acabou por sair dos limites da previdência social e se estender a toda a seguridade social, o que inclui a assistência social. Como bem analisa Carro (2008, p. 13), a noção de risco que envolveu o seguro social foi uma construção racional, diferente das concepções que transitavam entre a moralidade e o secularismo. Nessa medida, prossegue, “diferenciou-se notavelmente das formas tradicionais de assistência social”. Outro grande salto em matéria de proteção social na Alemanha foi dado com a Constituição de Weimar de 1919, que aprimorou o modelo de Estado Social inaugurado pela Constituição Mexicana de 1917. Na seção intitulada “A Vida Econômica”, a Constituição alemã avançou enormemente em matéria de direitos sociais e proteção contra a pobreza ao estabelecer que: Art. 161. Para conservação da saúde e capacidade de trabalho, para proteção da maternidade e assistência contra as consequências econômicas da velhice, da invalidez e das vicissitudes da vida, o Estado Central (Reich) institui um amplo sistema de seguros, com a colaboração obrigatória dos segurados. Art. 162. O Estado central toma a iniciativa de propor uma regulação internacional das relações jurídicas de trabalho, tendente a criar um padrão mínimo geral de direitos sociais. (ALEMANHA, 1919 apud COMPARATO, 2006, p. 194-195) Apesar de sua curta vigência, essa Constituição produziu forte impacto no desenvolvimento das instituições políticas ocidentais, conferindo estrutura mais elaborada ao Estado Social que começara a se delinear com a Constituição Mexicana de 51 191745 (COMPARATO, 2006, p. 189). Nesse mesmo sentido, Nunes Júnior (2009, p. 52) afirma que a Constituição de Weimar “embora não tenha tido a minudência na discriminação de direitos trabalhistas como sua antecessora mexicana, teve a fortuna de veicular um rol muito mais amplo de direitos sociais”. 1.7 O modelo norte-americano de proteção social De modo geral, as colônias norte-americanas seguiram as Leis dos Pobres vigentes na Inglaterra. Tanto pela herança cultural inglesa, quanto pelas dificuldades advindas da sobrevivência no novo continente, os colonos viam indigentes, mendigos e vagabundos como delinquentes e, como regra, recusavam esmolas àqueles que estivessem em condições de trabalhar (FRIEDLANDER, 1973, p. 77)46. Porém, quando a assistência aos pobres se fez inevitável, as comunidades locais adotaram o local de residência do solicitante como critério para concessão de auxílio. Contudo, os beneficiários desses auxílios eram estigmatizados mediante ampla divulgação de seus nomes em listas abertas a consulta pública e obrigatoriedade do uso de distintivos. É o que descreve Friedlander (1973, p. 79): Cualquiera que fuese la causa de su desgracia, el indigente era tratado como si fuera una persona moralmente deficiente. Tenía que prestar el “juramento de indigente” y su nombre era registrado en la “lista de los pobres” que se exhibían en ayuntamientos de la ciudad o en el mercado. Los periódicos locales publicaban los nombres de todos los indigentes, con la cantidad que se les daba de ayuda. En Pensilvania, los indigentes (paupers) tenían que usar la letra romana “P” sobre el hombro de la manga derecha. Los indigentes ancianos e inválidos, que se habían residido durante largo tiempo en la parroquia eran considerados “pobres dignos” si se atenían a las normas morales del vecindario; todos los demás, particularmente los extranjeros y los recién llegados, eran considerados “pobres indignos”. La negación del derecho de sufragio a los mendigos prevalecía en todas partes. El carácter represivo y punitivo de la ayuda al pobre, tal como se había venido desarrollando en Inglaterra, fue también sostenido en el Nuevo Mundo. 45 ESTADOS UNIDOS MEXICANOS. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. 5 de fevereiro de 1917. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em: 22 out. 2011. 46 A evolução histórica apresentada neste tópico é praticamente toda baseada na obra de Friedlander (1973). 52 Entre os séculos XVII e XIX, o auxílio em nível local se mostrou insuficiente. Isso levou os Estados a assumirem a responsabilidade pelo sustento dos chamados “pobres do Estado”, dos veteranos e de seus dependentes (FRIEDLANDER, 1973, p. 100-101). Além disso, entre o final do século XIX e início do século XX, foram aprovadas diversas leis estaduais de assistência aos cegos. Curiosamente, em relação aos surdos e surdos-mudos, a atenção pública limitava-se à sua educação, não à sua assistência (FRIEDLANDER, 1973, p. 97-100). Também nesse período, cresceram em importância as associações filantrópicas (FRIEDLANDER, 1973, p. 82). Diversas sociedades de organização caritativa se desenvolveram e passaram a conhecer com maior profundidade as causas da pobreza, superando em alguma medida a ideia de culpa individual pela pobreza e iniciando a defesa de reformas sociais. No entanto, mantiveram postura avessa à prestação de auxílio público aos pobres, entendendo que essa forma de amparo prejudicava a iniciativa individual e corrompia os necessitados, além de ser mais onerosa aos cofres públicos (FRIEDLANDER, 1973, p. 109-113). Em 1909, após a realização da Conferência sobre Cuidado de Crianças Dependentes, o Poder Público central assumiu maior protagonismo na assistência social às crianças. Três deliberações importantes resultaram dessa conferência: (a) crianças não deveriam ser retiradas do convívio de sua família por motivos econômicos; (b) crianças que houvessem deixado suas famílias deveriam ser encaminhadas prioritariamente a lares adotivos; (c) deveriam ser criadas instituições específicas para acolhimento de crianças, adotando-se o modelo de pequenas instituições. Ainda como resultado dessa conferência, criou-se o primeiro órgão federal de assistência social, em 1911 (FRIEDLANDER, 1973, p. 132-133). Essas conferências se repetiram em 1919, 1930, 1940, 1950 e 1960 (FRIEDLANDER, 1973, p. 135). A mudança substancial no enfrentamento da pobreza nos EUA ocorreu com a Grande Depressão de 1929. O aumento do desemprego e, consequentemente, da busca por auxílio material mostrou o potencial limitado das entidades privadas de beneficência. Além disso, evidenciou-se o equívoco em tratar a pobreza como resultado de fracassos individuais. Ainda assim, o então presidente Herbert Hoover (1928-1932) insistiu na ideia de que caberia às organizações privadas dar suporte aos grupos 53 necessitados, ao mesmo tempo em que os Estados se recusavam a assumir maiores responsabilidades em matéria de assistência (FRIEDLANDER, 1973, p. 138-141). Com o agravamento da crise, diversos Estados implantaram programas de assistência às pessoas sem trabalho. Essas medidas, todavia, não foram bastantes e os governos locais pressionavam o Governo Federal a aumentar sua participação. Sob a presidência de Herbert Hoover, a única medida aprovada foi a Lei de Auxílio e Construção, de 1932, que dispunha sobre a transferência de verba para obras e serviços públicos (FRIEDLANDER, 1973, p. 141). Com a eleição e posse de Franklin D. Roosevelt, esse cenário começou a mudar. Em 1933, a Lei de Auxílio Federal de Emergência representou a ampliação do papel do Governo Federal na promoção do bem-estar da população (FRIEDLANDER, 1973, p. 142). Como parte do New Deal, o Social Security Act foi aprovado em 1935 (NASCIMENTO, 2006, p. 33). Pela primeira vez empregou-se o termo segurança social – também passível de tradução como seguridade social –, que viria a ser utilizado e desenvolvido por Beveridge. À semelhança do que viria a ser o modelo britânico, esta lei estabeleceu um tripé formado pelo seguro social, pela assistência pública e por serviços de saúde e bem-estar (FRIEDLANDER, 1973, p. 157). Em 1950, a cobertura foi estendida aos trabalhadores rurais, autônomos e domésticos (NASCIMENTO, 2006, p. 33). As políticas de proteção social adotadas durante a Grande Depressão – e que culminaram com o Social Security Act – expuseram os limites do potencial das organizações privadas para atender integralmente às necessidades materiais da população impedida de obter o próprio sustento mediante seu trabalho. Ainda assim, a história norte-americana mostra que a assunção da responsabilidade estatal pelas ações de assistência, tanto em nível federal quanto estadual, só ocorreu quando foram esgotadas todas as possibilidades de atendimento às necessidades sociais por meio do esforço individual e das entidades privadas de assistência. Na verdade, quando outros países europeus já haviam criado sistemas públicos de previdência e assistência, os EUA ainda nutriam a confiança de que a iniciativa privada poderia resolver todas as questões sociais47. 47 Para Castel (2010, p. 41), “a ‘questão social’ pode ser caracterizada por uma inquietação quanto à capacidade de manter a coesão de uma sociedade. A ameaça de ruptura é apresentada por grupos cuja 54 1.8 Outros registros históricos Outros marcos históricos na evolução da proteção social, que tiveram reflexos na evolução dos sistemas de seguridade social, devem ser registrados. 1.8.1 Encíclica Rerum Novarum (1891) A Encíclica Rerum Novarum48, escrita pelo Papa Leão XIII e publicada em 1891, é frequentemente exaltada por sua importância no avanço dos direitos sociais. Na leitura de Horvath Júnior (2008, p. 25), a obra seria fruto da análise da “condição dos pobres e trabalhadores nos países industrializados” e articulação entre Igreja e sociedade visando à construção de uma sociedade mais justa. Santos (2003, p. 39) afirma que a Encíclica inicia formalmente o que se tornaria a Doutrina Social da Igreja e registra que o pontífice acreditava em um caminho para a “reconciliação das classes sociais” (SANTOS, 2003, p. 40). Pode-se destacar nesse documento a defesa de maior intervenção do Estado na economia e nas relações de trabalho, o que posteriormente representou um dos grandes avanços da humanidade em matéria de direitos fundamentais. No entanto, é preciso registrar que a Encíclica evidenciou a preocupação da Igreja com o avanço das ideias socialistas ou, nas palavras de De Masi (2000, p. 52), que “Leão XIII estava apavorado tanto com o conflito quanto com os socialistas e os liberais”. E, de fato, a preocupação com o socialismo fica nítida em excertos como este: 3. Os Socialistas [...] instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser existência abala a coesão do conjunto”. Essa definição permite identificar a chamada “questão social” em diversos contextos, chamando-se a atenção para o fato de que as causas mudam, como também mudam as formas de lidar com essas questões. 48 O texto da Encíclica, traduzido para o português, está disponível no site oficial do Vaticano. PAPA LEÃO XIII. Encíclica Rerum Novarum. 15 de Maio de 1891. <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-nova rum_po.html>. Acesso em: 1 maio 2011. 55 comuns a todos, e que a sua administração deve voltar para os Municípios ou para o Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social. A Encíclica propõe como solução para os conflitos sociais a conciliação entre pobres e ricos, ou entre operários e patrões. E, ao fazê-lo, reforça que os operários e os pobres têm o dever de trabalhar, o que confirma a avaliação de De Masi (2000, p. 57) de que o trabalho é entendido “como sacrifício e como parte central da vida”. Algumas outras transcrições da Encíclica corroboram essas observações: O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado. Isto é uma aberração tal, que é necessário colocar a verdade numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no corpo humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam um todo exactamente proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital. (…) 10. Entre estes deveres, eis os que dizem respeito ao pobre e ao operário: deve fornecer integral e fielmente todo o trabalho a que se comprometeu por contrato livre e conforme a equidade; não deve lesar o seu patrão, nem nos seus bens, nem na sua pessoa; as suas reivindicações devem ser isentas de violências e nunca revestirem a forma de sedições; deve fugir dos homens perversos que, nos seus discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças exageradas e lhe fazem grandes promessas, as quais só conduzem a estéreis pesares e à ruína das fortunas. De um dos excertos de interesse para o estudo da assistência social consta a defesa do atendimento das necessidades dos pobres por meio das “sobras” dos mais abastados: Ninguém certamente é obrigado a aliviar o próximo privando-se do seu necessário ou do de sua família; nem mesmo a nada suprimir do que as conveniências ou decência impõem à sua pessoa: “Ninguém com efeito deve viver contrariamente às conveniências”. Mas, desde que haja suficientemente satisfeito à necessidade e ao decoro, é um dever lançar o supérfluo no seio dos pobres: “Do supérfluo dai 56 esmolas”. É um dever, não de estrita justiça, excepto nos casos de extrema necessidade, mas de caridade cristã, um dever, por consequência, cujo cumprimento se não pode conseguir pelas vias da justiça humana. A ideia de que a pobreza deveria ser atendida pelas “sobras” dos ricos é profundamente arraigada na sociedade. Ainda que essa forma de pensar possa ser aceita nas relações entre particulares, deve ser vivamente questionada quando se discute a situação do cidadão perante o Poder Público. No Brasil, como se estudará adiante, o aspecto mais importante da evolução da assistência social foi a luta para a ruptura com esses padrões de atendimento à pobreza. Por tudo isso, não se pode afirmar que a Encíclica buscava justiça social. É certo que esse documento reconhece a desigualdade e propõe a melhoria da condição geral de vida das populações mais pobres. No entanto, salienta De Masi (2000, p. 53), nos termos da carta “tal desigualdade não justifica o conflito, que deve ser evitado de qualquer jeito”. Hobsbawm (1995, p. 118) também destaca a preocupação da Igreja com “a ascensão do socialismo ateu”, mas reconhece na Encíclica uma renovação radical e sintetiza seu conteúdo como uma política social que acentuava a necessidade de dar aos trabalhadores o que lhes era devido, mantendo ao mesmo tempo o caráter sagrado da família e da propriedade privada, mas não do capitalismo como tal. Portanto, não se pode reconhecer na Encíclica Rerum Novarum uma preocupação com a superação das desigualdades, mas sim com sua recondução a um nível menos conflituoso. 1.8.2 Constituição Mexicana (1917) De forma inédita, a Constituição Mexicana de 1917 atribuiu aos direitos trabalhistas e previdenciários, previstos em seus artigos 5º e 123, o status de direitos fundamentais. Embora não tenha disciplinado de forma específica a assistência social, essa constituição é extremamente detalhada e prevê mecanismos de assistência ao 57 trabalhador que não estão adstritos à disciplina do contrato de trabalho e aos direitos de cunho previdenciário. O artigo 123, A, XXV, por exemplo, determina a gratuidade do serviço de colocação de trabalhadores e determina que, em igualdade de condições, se dê prioridade àqueles que representem a única fonte de rendimentos da família49. Além disso, Comparato (2006, p. 178, nota de rodapé 178) ressalta outras duas grandes inovações: a exigência de que o Estado mexicano se paute pelo respeito aos direitos humanos em suas relações internacionais50 e a previsão de que a propriedade privada atenderia ao interesse público51. 1.8.3 Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) Sob o impacto da Segunda Guerra Mundial, o processo de internacionalização dos direitos humanos restou favorecido. Disso resultou a expansão das organizações 49 “XXV. El servicio para la colocación de los trabajadores será gratuito para éstos, ya se efectúe por oficinas municipales, bolsas de trabajo o por cualquier otra institución oficial o particular. En la prestación de este servicio se tomará en cuenta la demanda de trabajo y, en igualdad de condiciones, tendrán prioridad quienes representen la única fuente de ingresos en su familia”. ESTADOS UNIDOS MEXICANOS. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. 5 de fevereiro de 1917. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em: 22 out. 2011. 50 “Artículo 15. No se autoriza la celebración de tratados para la extradición de reos políticos, ni para la de aquellos delincuentes del orden común que hayan tenido en el país donde cometieron el delito, la condición de esclavos; ni de convenios o tratados en virtud de los que se alteren los derechos humanos reconocidos por esta Constitución y en los tratados internacionales de los que el Estado Mexicano sea parte”. ESTADOS UNIDOS MEXICANOS. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. 5 de fevereiro de 1917. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em: 22 out. 2011. 51 “Artículo 27. La propiedad de las tierras y aguas comprendidas dentro de los límites del territorio nacional, corresponde originariamente a la Nación, la cual ha tenido y tiene el derecho de transmitir el dominio de ellas a los particulares, constituyendo la propiedad privada. Las expropiaciones sólo podrán hacerse por causa de utilidad pública y mediante indemnización. La nación tendrá en todo tiempo el derecho de imponer a la propiedad privada las modalidades que dicte el interés público, así como el de regular, en beneficio social, el aprovechamiento de los elementos naturales susceptibles de apropiación, con objeto de hacer una distribución equitativa de la riqueza pública, cuidar de su conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y el mejoramiento de las condiciones de vida de la población rural y urbana. En consecuencia, se dictarán las medidas necesarias para ordenar los asentamientos humanos y establecer adecuadas provisiones, usos, reservas y destinos de tierras, aguas y bosques, a efecto de ejecutar obras públicas y de planear y regular la fundación, conservación, mejoramiento y crecimiento de los centros de población; para preservar y restaurar el equilibrio ecológico; para el fraccionamiento de los latifundios; para disponer, en los términos de la ley reglamentaria, la organización y explotación colectiva de los ejidos y comunidades; para el desarrollo de la pequeña propiedad rural; para el fomento de la agricultura, de la ganadería, de la silvicultura y de las demás actividades económicas en el medio rural, y para evitar la destrucción de los elementos naturales y los daños que la propiedad pueda sufrir en perjuicio de la sociedad”. ESTADOS UNIDOS MEXICANOS. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. 5 de fevereiro de 1917. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em: 22 out. 2011. 58 internacionais, com destaque para a criação da Organização das Nações Unidas – ONU em 1945 (PIOVESAN, 2010, p. 130). Assinada em 26 de junho de 1945, a Carta das Nações Unidas consagra como objetivo da organização obter “cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião” (ONU, 1945, art. 1º-3, apud COMPARATO, 2006, p. 216). Além disso, seu artigo 55 estatui que: Art. 55 - Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.(ONU, 1945 apud COMPARATO, 2006, p. 220) Concebida como interpretação autorizada (PIOVESAN, 2010, p. 142) dos artigos 1º-3 e 55 acima mencionados, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948. Note-se, contudo, que este documento foi idealizado como uma recomendação da Assembleia Geral aos membros das Nações Unidas – etapa que deveria anteceder a adoção de um pacto ou tratado internacional sobre o tema (COMPARATO, 2006, p. 222-224). Embora se possa argumentar que não se trata de documento com força vinculante, a alta adesão dos Estados-partes – aprovação unânime por 48 Estados, com 8 abstenções – “confere à Declaração Universal o significado de um código e plataforma comum de ação”, nas palavras de Piovesan (2010, p. 141). A Declaração trata do direito à segurança social e ao atendimento de suas necessidades básicas em dois dispositivos, que seguem transcritos: Artigo XXII Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. […] 59 Artigo XXV 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social52. Ao comentar a Declaração, Comparato (2006, p. 227) aponta que esses incisos tratam do direito à seguridade social e se pautam pelo princípio da solidariedade, tendo por destinatários as classes ou grupos sociais “mais fracos ou necessitados”. Em sentido um pouco diverso do que sustenta o autor, é possível afirmar que essas disposições se destinam inclusive – e, pode-se dizer, sobretudo – às pessoas desprovidas de meios próprios de subsistência, mas não exclusivamente a elas. Isso porque o estabelecimento de patamares básicos de satisfação de necessidades humanas é pretensão de cunho universalizante e, como tal, não comporta uma segmentação a priori. Em suma: a disposição deve ser interpretada com o sentido mais amplo e igualitário possível. 1.8.4 Convenção n. 102 da Organização Internacional do Trabalho sobre norma mínima para seguridade social (1952) A Organização Internacional do Trabalho – OIT, atualmente vinculada às Nações Unidas, foi instituída em 1919, logo após a Primeira Guerra Mundial, e sua Constituição passou a integrar a Parte XIII do Tratado de Versalhes53. A Constituição original foi substituída pelo texto aprovado na 29ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em 1946, e sofreu alterações em 1997. O texto atualmente em vigor tem como anexo a Declaração da Filadélfia, aprovada em 1944, que versa sobre fins e objetivos da OIT e preconiza que “todos os seres humanos de qualquer raça, crença ou sexo, têm o direito de assegurar o bem-estar material e o desenvolvimento espiritual 52 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10 de dezembro de 1948. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 03 mar. 2012. 53 LIGA DAS NAÇÕES. Part XIII of the Treaty of Peace of Versailles. Disponível em: <http://www.ilo.org/public/english/bureau/leg/download/partxiii-treaty.pdf>. Acesso em: 23 out. 2011. 60 dentro da liberdade e da dignidade, da tranquilidade econômica e com as mesmas possibilidades”. A OIT surgiu com o objetivo de promover a valorização e a melhoria das condições de trabalho, reconhecendo a importância do bem-estar físico, moral e intelectual dos trabalhadores. Mas os objetivos dessa organização vão além das relações de trabalho, ingressando no domínio de questões atinentes à segurança socioeconômica, bem-estar e justiça social54, o que se comprova por sua intensa atuação na área da seguridade social. Para Nascimento (2006, p. 33), com o surgimento dessa organização, “a legislação social, antes um fenômeno basicamente europeu, expandiu-se pelos demais países do mundo”55. Entre as muitas normas aprovadas no âmbito da OIT com vistas ao incremento dos níveis de proteção social em todo o mundo, está a Convenção n. 102 da OIT. Aprovado em 28 de junho de 1952, este diploma estabelece padrões normativos mínimos em matéria de seguridade social. Com isso, contribui para que a seguridade social seja inserida nas agendas políticas de diversos países. A Convenção n. 102 prevê patamares mínimos de prestações destinadas a atender situações de: a) necessidade de serviços médicos; b) incapacidade laborativa, temporária ou definitiva; c) desemprego; d) idade avançada; e) acidentes de trabalho e doenças profissionais; f) responsabilidade pela manutenção de crianças; g) maternidade; e h) morte. Além de fixar o conteúdo mínimo de serviços e prestações que deverão ser asseguradas aos residentes dos Estados-membros, a Convenção define percentuais mínimos da população a ser integrada às redes de proteção social. Para o alcance desses níveis de proteção, não há definição prévia sobre quais dessas prestações terão cunho previdenciário e quais terão cunho assistencial. A escolha dos instrumentos mais adequados cabe aos Estados-partes. A maleabilidade conferida aos Estados-membros na elaboração de seus sistemas de seguridade explica a adoção do termo período de carência (qualifying 54 “Com a incorporação da Carta de Filadélfia à Constituição resultante da revisão de 1946, a competência da OIT foi incontroversamente ampliada, pois tornou explícito que as questões sociaistrabalhistas e as econômico-financeiras são interdependentes, razão por que, para adotar soluções referentes às primeiras, é imprescindível, muitas vezes, estudar as segundas” (SÜSSEKIND et al., 1997, p. 1443). 55 A participação no Brasil na OIT desde sua fundação implicaria, desde cedo, o compromisso com reformas sociais. Porém, ressalta Sposati (1987, p. 109), o país “não consegue ir além de algumas medidas pontuais, como a legislação de acidentes de trabalho, paralelamente à expulsão de líderes grevistas estrangeiros”. 61 period) com significado de “período de contribuição, período de emprego, período de residência, ou combinação entre eles, segundo o que for estabelecido”56, bem como a previsão de diversas fontes de custeio, como impostos, contribuições ou a combinação entre os dois57. Retomando um aspecto bastante ressaltado ao longo deste trabalho – a ênfase que todas as políticas de proteção social conferem ao domicílio dos assistidos –, salienta-se que a Convenção elege o domicílio como um possível critério de acesso às prestações da seguridade social, conforme se depreende da definição de “período de carência” acima mencionada. Além disso, admite hipóteses de tratamento distinto entre nacionais e estrangeiros residentes no país58. A Convenção conta com 47 ratificações59. No Brasil, a aprovação do texto da Convenção se deu por meio do Decreto Legislativo n. 269, de 18 de setembro de 2008, e a ratificação ocorreu em 15 de junho de 2009. Nessa época, contudo, o ordenamento jurídico brasileiro já contava com um sistema de seguridade social mais avançado do que o que preconiza a Convenção. Apoiado em Martinez Vivot, Balera (1998, p. 39-40) expõe que, à época da elaboração da Convenção n. 102 da OIT, cogitou-se a elaboração de um projeto de Convenção sobre normas mais avançadas. Porém, a proposta não logrou êxito naquela ocasião. Para o autor, isso não impede que se busque um estágio de proteção máxima, 56 “Article 1º - 1. In this Convention…(f) the term qualifying period means a period of contribution, or a period of employment, or a period of residence, or any combination thereof, as may be prescribed”. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção n. 102. 28 de junho de 1952. Disponível em: <http://www.ilo.org/ilolex/english/convdisp1.htm>. Acesso em: 7 maio 2011. 57 “Article 71 - 1. The cost of the benefits provided in compliance with this Convention and the cost of the administration of such benefits shall be borne collectively by way of insurance contributions or taxation or both in a manner which avoids hardship to persons of small means and takes into account the economic situation of the Member and of the classes of persons protected. […]”. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção n. 102. 28 de junho de 1952. Disponível em: <http://www.ilo.org/ilolex/english/convdisp1.htm>. Acesso em: 7 maio 2011. 58 “PART XII. EQUALITY OF TREATMENT OF NON-NATIONAL RESIDENTS Article 68 - 1. Non-national residents shall have the same rights as national residents: Provided that special rules concerning non-nationals and nationals born outside the territory of the Member may be prescribed in respect of benefits or portions of benefits which are payable wholly or mainly out of public funds and in respect of transitional schemes. 2. Under contributory social security schemes which protect employees, the persons protected who are nationals of another Member which has accepted the obligations of the relevant Part of the Convention shall have, under that Part, the same rights as nationals of the Member concerned: Provided that the application of this paragraph may be made subject to the existence of a bilateral or multilateral agreement providing for reciprocity”. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção 102. 28 de junho de 1952. Disponível em: <http://www.ilo.org/ilolex/english/convdisp1.htm>. Acesso em: 7 maio 2011. 59 Informação disponível em: <http://www.ilo.org/ilolex/english/convdisp1.htm>. Acesso em: 10 mar. 2012. 62 “no qual todas as situações de risco encontrem adequados esquemas protetivos que sejam aptos a superá-las” (BALERA, 1998, p. 39). A preocupação de Balera com a garantia de níveis de proteção social que superem os patamares mínimos merece destaque, sobretudo diante de dados recentes sobre a seguridade social no mundo. O Informe Mundial da OIT sobre Seguridade Social relativo aos anos de 2010 e 201160 aponta que, apesar de todos os países contarem com alguma proteção social, somente um terço deles, abrangendo 28% da população mundial, conta com sistemas de proteção social que incluem todos os ramos da seguridade previstos na Convenção n. 102. Esse informe registra que somente 20% de toda a população mundial economicamente ativa tem acesso a proteção social completa e adequada. Esses dados mostram que a exclusão de grandes contingentes populacionais dos sistemas de proteção social é um problema que está longe de ter solução. Nesse cenário, a assistência social figura como importante forma de ampliação de tais sistemas. Por outro lado, diante de dados que mostram que a maior parte da população do mundo passa ao largo das redes de proteção social, deve-se encarar com preocupação a ideia de que pleno emprego e sistemas previdenciários podem trazer toda a proteção de que a sociedade necessita, reduzindo-se, por conseguinte, o campo da assistência social. Como afirma Carro (2008, p. 01-02): No andamento das sociedades modernas, a assistência social, como parte desses sistemas, contribuiu com os movimentos de ampliação de seus conteúdos e suas proteções, assim como com movimentos de retração da sua presença no sistema, quando a seguridade social foi considerada como já plenamente estendida. Nas últimas décadas, a inserção ou não inserção da assistência social nas sociedades com alto nível de desemprego, de migração externa e interna, e desigualdade social, tem colocado o foco nas chamadas políticas de inserção ou de inclusão social e dos programas de transferência de renda. Contudo, a falta da abrangência social da proteção no mundo continua sendo um problema a ser resolvido no século XXI. 60 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Informe Mundial sobre la Seguridad Social 2010/11: Brindar cobertura en tiempos de crisis, y después de las crisis. Disponível em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/@publ/documents/publication/wcms_ 146569.pdf>. Acesso em: 23 out 2011. 63 1.9 Conclusões A partir da exposição acima, pode-se extrair alguns traços que pautaram e ainda pautam os debates sobre a assistência social. A primeira característica marcante entre os sistemas estudados – perceptível a partir da análise do desenvolvimento de sistemas de seguridade social no século XX – é o papel coadjuvante que a assistência social desempenha em relação ao trabalho e à previdência. Implícita a essa visão da assistência como uma prestação secundária está a convicção de que o trabalho e a proteção previdenciária têm condições de suprir todas as necessidades básicas do cidadão – entenda-se “cidadão-trabalhador” – e de sua família. Apenas a França seguiu um caminho distinto, ao desenvolver um sistema de proteção social mais abrangente e menos calcado nos seguros sociais, que pressupunham a filiação a alguma categoria profissional. A confusa relação entre caridade e assistência social é outro traço de destaque. O reconhecimento da assistência social como um direito é recente e ainda enseja discussões sobre o dever do Estado de assegurar a subsistência de pessoas que não possam garantir o próprio sustento. Essa confusão também mostra a persistência de entidades privadas como protagonistas da assistência social e gera dúvidas quanto ao papel que devem desempenhar. Outra característica constantemente identificada na disciplina da assistência social é a da territorialidade: exigência de um vínculo de nascimento ou residência entre a instância que provê a assistência e o beneficiário. Esse é, por sinal, um traço que distingue bem a assistência da previdência. A previdência social elege como critério de proteção o pertencimento a determinadas categorias profissionais, e, mesmo após sua expansão, continua prestigiando a proteção ao trabalhador e seus familiares. O aspecto territorial é chamado por Castel (2010, p. 59-60) de “pertencimento comunitário”. Significa dizer que a assistência prioriza os membros do grupo e elege como condição para concessão do auxílio o domicílio na localidade em que pede a assistência. Ainda que se trate de indigentes, há necessidade de demonstração de vínculo com alguma localidade. Nas palavras do autor, “significa que é preciso ter um lugar marcado na comunidade para ser assistido” (CASTEL, 2010, p. 60). Esse aspecto se preservou ao longo do tempo. 64 Nítido também é o predomínio de modelos que se pautam pelo critério de incapacidade laborativa, decorrente de razões biológicas61 e não sociais. Com isso, em princípio, a situação daqueles que têm condições físicas e mentais para o trabalho, mas não conseguem obtê-lo, fica em aberto ou é relegada a outras formas de intervenção social (CASTEL, 2010, p. 59). Programas que levem em conta a necessidade de renda por parte de pessoas que, em tese, podem desempenhar atividades laborativas com finalidade de sustento, como o Speenhamland Act, são menos expressivos. Sobre a última característica, recorre-se novamente a Castel (2010, p. 42-43): Totalmente distinta da condição dos assistidos é, com efeito, a situação daqueles que, capazes de trabalhar, não trabalham. Aparecem primeiramente sob a figura do indigente válido. Este, carente, e por isso também dependente de auxílio, não pode, entretanto, beneficiarse diretamente dos dispositivos concernentes aos que estão isentos da obrigação de ser autossuficiente. Em falta quanto ao imperativo do trabalho, também é, muito amiúde, rechaçado para fora da área da assistência. Vai igualmente ser colocado, e por muito tempo, numa situação contraditória. Se, ademais, for um estrangeiro, um “forasteiro” sem vínculos, não poderá se beneficiar das redes de proteção próxima que, bem ou mal, asseguram aos autóctones um atendimento mínimo de suas necessidades elementares. Sua situação será, então, literalmente inviável. Será a situação do vagabundo, o desfiliado por excelência. Essas características, especialmente a territorialidade e a incapacidade laborativa, mostram que não basta uma pessoa ser qualificada como “carente” para obter prestações da esfera da assistência, como afirma Castel62, o que, nas palavras do autor, equivale a dizer que “dentre as populações sem recursos, algumas serão rejeitadas e outras atendidas” (CASTEL, 2010, p. 59). 61 Consigne-se, desde logo, que, conforme situações de pleno emprego deixam de ser a regra e cada vez mais há pessoas lançadas para fora do mercado de trabalho formal sem perspectivas de retorno, essa convicção é abalada. 62 Castel (2010, p. 57-60) trata desses temas ao elencar o que chama de cinco características formais do social-assistencial, a saber: (a) constituição sob a forma de um conjunto de práticas com função protetora e integradora, resultante da intervenção da sociedade sobre si própria; (b) presença, desde o princípio, de algum grau de especialização, embriões de uma profissionalização futura; (c) tecnicização mínima; (d) discussão, desde o início, da localização dessas práticas, criando a divisão entre práticas intra e extrainstitucionais; (e) discriminação nas populações atendidas, de modo a amparar alguns grupos de populações carentes e rejeitar de sua esfera de proteção outros grupos igualmente desprovidos de recursos, característica exposta acima. 2 A ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL ANTES DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 2.1 Introdução À semelhança do que ocorreu na Europa, a assistência aos pobres no Brasil surgiu de forma dispersa e baseada na caridade. No século XX, quando outros países já haviam instituído sistemas de proteção social complexos, com prestações independentes de prévio custeio ou contrapartidas, o ordenamento brasileiro mantinha precários sistemas de auxílios públicos. Ainda que com imperfeições, o sistema previdenciário avançou isoladamente, ao passo que a assistência social seguiu mesclada com filantropia e benemerência. Sintetiza Mestriner (2011, p. 16-17): Longe, portanto, de assumir o formato de política social, a assistência social desenrolou-se ao longo de décadas, como doação de auxílios, revestida pela forma de tutela, de benesse, de favor, sem superar o caráter de prática circunstancial, secundária e imediatista que, no fim, mais reproduz a pobreza e a desigualdade social na sociedade brasileira, já que opera de forma descontínua em situações pontuais. Sempre direcionada a segmentos da população que vivem sob o signo perverso da exclusão, não cumpre a perspectiva cidadã de ruptura da subalternidade. Ao contrário, reitera a dependência, caracterizando-se como política de alívio, por neutralizar demandas e reivindicações. Desconhecendo que sua população-alvo não é a minoria, mas a grande massa populacional de excluídos – nos quais se incluem segmentos do próprio mercado formal hoje tão empobrecidos – ela se volta a pequenas parcelas de indivíduos, de forma temporária ou emergencial. Usa da focalização nas piores situações, o seu comportamento usual. 2.2 Primeiros registros do Brasil-Colônia63 Em obra dedicada ao estudo da assistência social na cidade de São Paulo, Sposati (1987) salienta a ausência de registros a respeito da pobreza na cidade durante o período colonial. A explicação apresentada pela autora para essa falta de dados pode ser 63 A evolução histórica apresentada neste tópico é praticamente toda baseada na obra de Sposati (1987). 66 estendida a todo o Brasil-Colônia. Cuida-se da falta de interesse da metrópole pela sobrevivência dos povos que nela viviam64. Para que se tenha uma ideia do quão tardios foram os primeiros registros, verifica-se que, em São Paulo, os levantamentos sobre as condições de vida da população se tornaram mais frequentes a partir da segunda metade do século XVIII, quando a correspondência do Morgado de Mateus (Luiz Antônio de Souza Botelho Mourão, que governou a capitania de São Paulo a partir de 1765) dirigida às autoridades da metrópole passou a descrever a miséria em que viviam os paulistanos (SPOSATI, 1987, p. 53-54). O grande contingente das populações miseráveis era composto por índios, escravos e mamelucos, embora também houvesse homens livres na mesma condição. Estes, diferentemente dos demais grupos, em alguns casos contavam com algum auxílio dos senhores proprietários para subsistir (SPOSATI, 1987, p. 55-56). Tais benesses correspondiam às relações societais descritas por Castel (2010) e se baseavam em relações de servilidade, trocas de favores e relações individuais65. Quando não se dedicavam a um trabalho, esses “homens livres” – que não eram senhores, nem escravos – eram considerados vadios. Nessa condição, eram tidos como pessoas não merecedoras de auxílio e constituíam um grupo de desfiliados, a que Castel (2010) faz referência. 64 “Devido à desimportância com que se considerava a sobrevivência dos povos de além-mar, encontrar registros que ao menos indiquem a pobreza paulistana é quase impossível. Às fontes oficiais pouco importava como vivia esta ‘outra humanidade’ de pobres e miseráveis. Para a Metrópole, a riqueza das novas terras interessava para enriquecer a Coroa e não para expandir a Colônia. Na economia colonial, o comércio de produtos era enquadrado de modo a possibilitar a acumulação burguesa da Metrópole, com mercado organizado para impedir qualquer crescimento interno ou de dentro para fora. Impediam-se circuitos econômicos e o ciclo produtivo terminava no porto, para que não interferisse nos interesses da Metrópole (Kowarick, 1981)” (SPOSATI, 1987, p. 47). 65 “A agregação a uma família era também outra forma de sobrevivência destes homens livres e, talvez se possa dizer que era uma das expressões eventuais da assistência no tempo colonial. Quando se aponta esse caráter ‘assistencial’, pretende-se fazer menção à sujeição do agregado aos interesses e benesses do senhor proprietário para garantir sua sobrevivência. Além de prestar serviços ao proprietário, inclusive como capanga e defensor de seus interesses, a presença do agregado permitia que fosse solicitada uma data ou sesmaria, aumentando com isso a extensão das terras do senhor. Mas estes eram sempre ajustamentos que se baseavam numa empatia do proprietário com o ‘homem livre’, o agregado, numa relação de cordialidade de um e de servilidade do outro. Eram relações de caráter pessoal, individuais, com um quê de cumplicidade, marcadas pela troca de favores que transveste apropriação em paternalismo (Schwarz,1972) [...] A grande família, seja nas relações de agregação ou nas de compadrio, sem dúvida, foi um dos apoios com que, tanto homens livres como os expostos, isto é, os órfãos, sempre contaram dentro dos limites dos arranjos individuais. Mas não é de se esperar, na São Paulo seiscentista, que muitas famílias tivessem tal condição. Alcântara Machado, pesquisando os quatrocentos inventários desse período, mostra que somente vinte deles relatam alguma abastança.” (SPOSATI, 1987, p. 57-58). 67 As práticas assistenciais mais significativas desse período foram desenvolvidas pela Irmandade de Misericórdia, criada em Portugal com viés aristocrático, em 1498, e trazida para o Brasil nas décadas seguintes. A Irmandade instalou e manteve orfanatos e Santas Casas, disseminando práticas assistenciais e sanitárias pelo país. A Ordem das Misericórdias em Olinda, instalada no ano de 1539, a construção de um hospital em 154066, assim como a fundação da Santa Casa de Misericórdia de Santos em 1543 (NASCIMENTO, 2007, p. 36), constituem os primórdios da assistência social no Brasil67. Além dela, outras irmandades, conventos e outras congregações de cunho religioso prestavam atendimentos semelhantes (CARRO, 2008, p. 140-141), o que mostra que a assistência não era prestada diretamente pela Igreja, mas por diversas irmandades. O financiamento das atividades de Misericórdia era obtido com doações dos ricos e convertido em esmolas (SPOSATI, 1987, p. 65). Porém, durante muito tempo, essas irmandades tinham como provedores os próprios governadores (SPOSATI, 1987, p. 84), inaugurando a prática de “transferência de responsabilidades do poder público para as ações de benemerência” (CARRO, 2008, p. 140). É importante observar que o acesso a essas esmolas era franqueado apenas às pessoas livres, não aos escravos (SPOSATI, 1987, p. 66). Na Santa Casa, o atendimento a escravos era condicionado ao pagamento por parte dos senhores (SPOSATI, 1987, p. 75). Isso não significa que os não escravos estivessem em situação muito melhor, até porque nem todos acessavam os serviços de assistência: Na ordem escravagista colonial, a pobreza era o retrato da vadiagem como forma de desclassificação social. Assistência esmolada e produtividade, dentro do padrão da economia de exportação seguramente guardam relações. É de se supor a rigidez dos critérios para obter as esmolas da Irmandade, pois apoiar um “homem livre” seria apoiar um vadio. Dar esmolas e com eles estimular a vadiagem? Seguramente deveriam ser situações mais extremadas que recebiam tal atenção [...] Talvez se desse preferência à atenção a mulheres. Os dotes a órfãs, a atenção a meninas nos seminários sugerem uma certa possibilidade nessa direção [...] 66 Disponível em: <http://www.santacasarecife.org.br/web/>. Acesso em: 27 out. 2011. Segundo Horvath Júnior (2008, p. 27), paralelamente à fundação da Santa Casa de Misericórdia de Santos, criou-se um plano de pensão aos trabalhadores dessa entidade, plano esse que foi estendido aos trabalhadores das Santas Casas de Rio de Janeiro e Salvador, das Ordens Terceiras e de outras ordens que mantinham instituições de amparo, como asilos, hospitais, orfanatos etc. Portanto, vê-se que a previdência brasileira também teve início nessa época. 67 68 Foram primordialmente os “homens livres”, (crianças e adultos), que viviam no núcleo urbano de São Paulo, que recorreram a tais ações assistenciais. Os cuidados dos escravos cabiam aos senhores. Eram parte de sua propriedade e sua fonte de riqueza. Em situações terminais, em que sua vida já estivesse comprometida, acorriam ao Hospital de Caridade, mediante acerto dos senhores proprietários e a “irmandade” dos senhores de misericórdia. Os homens livres do meio rural subsistiam precariamente nos sítios volantes. Estas formas assistenciais são descoladas da relação com o trabalho. Dirigem-se à mão-de-obra livre que, na sociedade escravagista, não tem horizonte de ocupação. (SPOSATI, 1987, p. 83-85) O que se infere a partir desse retrato é que, à semelhança da Europa, o Brasil iniciou sua trajetória de assistência social por meio da atuação da Igreja e pela adoção de critérios restritivos aos considerados “vadios”. A prática das esmolas aos pobres também era difundida. A propósito, Sposati (1987, p. 64) registra a nomeação, em 1724, de um agente incumbido de arrecadar esmolas, bem como a instituição de um livro de esmolas, em 1771. Tem-se, portanto, algumas características nitidamente herdadas da experiência europeia: o protagonismo na Igreja nas ações de assistência, o rigor em relação aos considerados “vadios” e a sistematização da esmola68 como meio de atenção à pobreza. A essas características de seleção dos assistidos agrega-se uma distinção criada no Brasil: a distinção entre escravos e não escravos. Os primeiros eram mantidos apenas por seus senhores e não tinham direito ao amparo pelas ações de misericórdia; os segundos eventualmente poderiam contar com essas ações de misericórdia, contanto que não fossem vadios. 68 A assistência aos pobres mediante esmolas nada mais era do que a continuidade de concepções vigentes há muito na Europa, como se verifica das anotações acerca da doação de esmolas feitas no capítulo anterior. Não menos importante é observar o quanto essas práticas se pautavam por estigmas em torno da pobreza, sobretudo por elegerem os “merecedores” ou “não merecedores” de ajuda. A propósito, transcreve-se Sposati (1987, p. 81-83): “A esmola foi a instituição primeira, ao se falar na assistência social colonial. Ela era a forma dos mais ricos exercitarem a caridade e ‘ascenderem ao reino dos céus’. Esta instituição retrata uma concepção cristã em que ser rico é a oportunidade de fazer o bem. Nessa leitura da cristandade, Deus nomearia os ricos como os ‘administradores de sua providência’. De acordo com Groethuysen, que estudou a formação da consciência burguesa na França no século XVIII, a esmola é a forma de acomodar a consciência cristã pelo fato de uns serem pobres e outros ricos. Assim, cabe à Igreja definir quanto deve o rico dar aos pobres, criando uma proporção mútua entre a esmola e a riqueza. [...] Só que não bastava o ‘desejo da esmola’, fazia-se necessária também uma forma de recolhimento, exercida historicamente pelo esmoler – com função designada pelo rei e, com a contrapartida de isenção do serviço militar – e a organização de critérios e formas para sua distribuição. Aqui, pelos critérios burgueses, não basta ser pobre, há que ser pobre envergonhado de sua situação, pois afinal o rico é o ‘deus visível’, capaz de ter e dar. O pobre envergonhado não deveria se dedicar à mendicância”. 69 No final do século XVIII, começaram a ser instalados em São Paulo os primeiros estabelecimentos hospitalares, que Sposati (1987) designa como “espaço primordial da assistência”. No século XIX, em 1802, surgiu o lazareto, hospital dedicado ao tratamento de hansenianos. Aqui há uma verdadeira confusão entre assistência médica e assistência social (SPOSATI, 1987, p. 67-70), confusão essa que perduraria por muito tempo no país. Ainda no período colonial, a atenção às crianças abandonadas se fazia por meio das Rodas dos Expostos69, instaladas no Rio de Janeiro e em Salvador. São Paulo só viria a ter sua Roda em 1825, após a Independência do Brasil, sob os cuidados da Irmandade de Misericórdia (SPOSATI, 1987, p. 70)70. 2.3 A assistência no Brasil Imperial A Constituição outorgada em 1824 não trouxe disposições sobre medidas de erradicação da pobreza ou promoção de igualdade material, contendo apenas uma garantia de socorros públicos em seu artigo 179, XXXI. Carro (2008, p. 140) vê nessa previsão “o primeiro intento de formalizar a proteção social no Brasil imperial”. Da mesma forma, Santos (2003, p. 140) aponta que essa Constituição retrata a fase de proteção social entendida como proteção dos pobres. Comentando a Constituição de 1824, Balera (1998, p. 29) explica que a assistência pública não tinha grande peso para o Estado e afirma que “a realidade social não apresentava, ainda, desigualdades tão marcantes”. Ainda que se concorde com o fato de a assistência não ter papel de destaque na atividade estatal da época, discorda-se da afirmação no sentido de que as desigualdades sociais não eram expressivas. Basta 69 O Código de Menores de 1927 (Decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927) eliminou o sistema de Rodas, nos termos de seu artigo 15: “A admissão dos expostos á assistencia se fará por consignação directa, excluido o systema das rodas”. 70 Colhe-se do trabalho de SPOSATI (1987, p. 71-72) a descrição sobre a forma como se dava a atenção aos “expostos” na cidade de São Paulo: “[a]s crianças deixadas na Roda eram registradas e entregues aos cuidados das amas, pagas pela Irmandade, em geral, índias, que ficavam perto da Região de Santo Amaro. As amas recebiam 3$000 réis quando ‘de leite’, e $2$000 quando ‘secas’. Anualmente, no dia da Visitação, 2 de julho, os expostos eram levados à Irmandade para apresentação, inclusive ao público. A pensar na apresentação dos órfãos e das ‘jovens casadoiras’, que recebiam os dotes da Misericórdia, o dia 2 de julho devia ser o dia dos assistidos da São Paulo colonial. Era, sem dúvida a festa da benemerência promovida pela Irmandade de Misericórdia.” (destaque no original). 70 recordar que a Constituição restringia a cidadania (art. 6º) e o direito ao voto (arts. 91 a 95), que o país se organizava social e economicamente em torno da escravidão e que os povos indígenas haviam sido dizimados, ficando comprometidas suas tradicionais formas de vida. De qualquer forma, a ausência de normas tratando de enfrentamento da pobreza não surpreende. Essa Constituição foi outorgada no começo do século XIX sob o influxo do pensamento liberal, que prestigiava liberdades individuais impondo ao Estado deveres de abstenção. Mesmo em outros países, a promoção de igualdade material ainda não se traduzira na consagração dos direitos sociais, o que só viria a acontecer quase um século depois, com a promulgação da Constituição mexicana de 1917. Em suma: as características socioeconômicas do país, somadas ao estágio em que se encontrava o debate sobre direitos fundamentais, afastava a igualdade material e o atendimento às necessidades das populações mais pobres da pauta de preocupações governamentais. A assistência pública, nessa época, consistia no confinamento das pessoas em situação de vulnerabilidade e medidas de higiene pública. Na cidade de São Paulo, o período pós 1822 esteve marcado por medidas como a criação do primeiro hospício (1852); a fundação de asilos para meninos (1824) e meninas (1825), geridos pela Irmandade de Misericórdia; e o confinamento de mendigos, que funcionou a partir de 1886 como asilo de inválidos, sendo igualmente administrado pela Irmandade de Misericórdia (SPOSATI, 1987, p. 73-75). Sintetiza Sposati (1987, p. 74): Crianças órfãs, leprosos, alienados, doentes e inválidos foram os primeiros segmentos que receberam uma forma assistencial institucionalizada. À exceção dos alienados, os demais tiveram sua atenção sob os cuidados da Irmandade de Misericórdia, mesmo que, com o passar do tempo, esta fosse se desvencilhando de tais compromissos e centrando sua ação na atenção médico-hospitalar. As Câmaras Municipais tinham o dever de zelar pelo “estabelecimento e conservação de casas de caridade, a criação de órfãos, a atenção aos doentes e a vacinação de todos os meninos do distrito” (SPOSATI, 1988, p. 81 apud CARRO, 2008, p. 140) e deveriam destinar um sexto de seus recursos aos órfãos, o que não impediu que o asilos destinados a esse grupo funcionassem em condições de precariedade extrema (SPOSATI, 1987, p. 74). No mais, as atividades desse órgão 71 consistiam em inspecionar os estabelecimentos de caridade e apresentar recomendações (SPOSATI, 1987, p. 76-78). Essa atuação das Câmaras decorria de imposições contidas na Carta de Lei de 1º de outubro de 1828, as quais conferiam poder de polícia às Câmaras Municipais para fiscalizar os estabelecimentos destinados à atenção dos necessitados, a propósito do que registra Sposati (1987, p. 79-80): Note-se a postura policial (fiscalizadora) do Estado, embora as ações fossem assumidas pela filantropia privada e não como sua responsabilidade direta. Note-se ainda que a caridade se confundia com as práticas sanitárias, o que reforça a concepção da filantropia higiênica [...] O Estado brasileiro se limitava a reconhecer as irmandades, permitir isenções e outras contribuições esparsas. A administração do serviço era, porém, de responsabilidade da entidade. A partir do período imperial e mesmo após a Proclamação da República, surgiu e se disseminou o trabalho das Conferências Vicentinas da Sociedade São Vicente de Paulo – a primeira delas criada em 1874 –, que distribuíam esmolas; das Associações das Damas de Caridade, surgidas em São Paulo a partir de 1887 (SPOSATI, 1987, p. 76; CARRO, 2008, p. 141); e de outras obras filantrópicas, especialmente dirigidas a crianças órfãs71. Conventos e igrejas católicas seguiram atendendo os necessitados, sem categorizá-los, e posteriormente passaram a prestar assistência higienista (CARRO, 2008, p. 141). Ainda no tocante à cidade de São Paulo, pode-se concluir que somente no século XIX se verificou algum grau de institucionalização no atendimento às populações mais pobres. Isso se explica por se tratar do período em que a cidade 71 Sobre as obras de caridade na cidade de São Paulo, SPOSATI (1987, p. 113-114) comenta: “A partir da investigação que se procedeu nos relatórios dos prefeitos do período de 1901 a 1927, pode se constatar que as obras filantrópicas dirigidas à criança vão se multiplicando, predominando a atenção às meninas órfãs. Este é caso do Asylo Bom Pastor (1897); Casa Pia S. Vicente de Paula das Damas de Caridade (1894); Orfanato Sant’Ana, junto ao Colégio de igual nome (1893); Asylo das Meninas Orphãs Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga (1885); Casa da Divina Providência da Moóca (1902); Abrigo Santa Maria (1902); Asylo da N. Sra. Da Luz. Dirigidos a meninos órfãos: Liceu Sagrado Coração de Jesus (1885), Orfanato Cristovan Colombo (1895). Para ambos os sexos permanecia o Asylo dos Expostos, funcionando na Chácara Wanderley (Sampaio Viana), utilizando também o concurso de amas-de-leite (em 1907, 103 crianças ainda estavam sob tal atendimento) e a creche Baroneza de Limeira (1911). [...] A atenção às crianças permanecia asilar, instrucional e dispensarial. Nesta última situação, se destaca a ação da Sociedade Feminina de Puericultura, através da instituição denominada Gotta de Leite. Esta, na versão de 1905, realizava a distribuição de leite a crianças pobres, similar ao programa atual de governo federal (1986) de ‘distribuição gratuita’ de leite às crianças. Atendia 824 crianças (1907) com 158.107 vidros de leite anuais, isto é, aproximadamente 4 litros criança/semana, equivalente ao que hoje distribuem os centros (ou postos) de saúde pública do Estado e da Prefeitura em São Paulo”. 72 começou a se desenvolver, impulsionada pelo Ciclo do Café e seguida pela industrialização. No entanto, não se pode falar em satisfação de necessidades básicas dessa população; o que se observou foi a ordenação do espaço urbano que começava a se formar – de modo a isolar a população mais pobre – e a manutenção da figura do agregado como forma de evitar condições de extrema precariedade72. 2.4 A assistência na República Velha Em matéria de assistência social, pode-se afirmar que a Constituição de 1891 pouco ou nada inovou em relação à Constituição de 1824. Enquanto outros países já haviam avançado razoavelmente em matéria de proteção social, o Brasil apenas começava a tangenciar essas questões. E essa seria a tônica de toda a Primeira República. O novo texto constitucional, adotando a forma federativa de Estado, atribuía a cada Estado-membro o dever de prover as necessidades de seu Governo, ressalvando no artigo 5º que a União prestaria socorro aos Estados-membros em caso de calamidade pública. Não havia garantias individuais de acesso a serviços e prestações visando fazer frente às necessidades das pessoas mais pobres e desprovidas de outras formas de amparo. Ademais, seu artigo 70, § 1º, proibia o alistamento de eleitores mendigos ou analfabetos para eleições federais ou estaduais, considerando ainda inelegíveis as pessoas nessas condições. De outro giro, a previdência social avançou com a previsão constitucional de aposentadoria aos funcionários públicos (art. 75), desenvolvimento que vinha ocorrendo desde antes de 1891 com as organizações de socorros mútuos que agregavam seus 72 “[...] levantamento de 1893 mostra [...] que o maior percentual de concentração ocupacional está nos serviços domésticos, onde se alocam 26% dos trabalhadores. Este fato reitera a dimensão da oferta de mão-de-obra existente e sua absorção em sub-ocupações. Neste serviço não estão só os brasileiros, os estrangeiros predominam com 58,3%. De acordo com M. Inês B. Pinto, agregar-se a uma família prestando serviços, mesmo que só para garantir a sobrevivência, era uma das formas de enfrentar o cotidiano de pauperismo. O ‘agregado urbano’ é a nova figura da São Paulo que cresce” (SPOSATI, 1987, p. 101). 73 membros em razão de pertencimento a categorias profissionais ou origens comuns73. Com efeito, a Lei n. 3.397 de 24 de novembro de 1888 criou a Caixa de Socorros aos trabalhadores das Estradas de Ferro. Em 1889, seguros sociais e montepios foram instituídos em favor dos trabalhadores do correio, da Imprensa Régia e do Ministério da Fazenda (CARRO, 2008, p. 142). Nas décadas seguintes, previdência e saúde pública passaram por uma ampliação de seus espectros de proteção. O movimento operário impulsionou a regulamentação de direitos trabalhistas e previdenciários, além de lançar luzes sobre questões de saúde e segurança no ambiente de trabalho. Em matéria de seguridade social, esse movimento culminou com a promulgação da Lei Elói Chaves em 1923, antecedido pela criação das caixas de aposentadorias e pensões para empregados de empresas férreas, pelo Decreto n. 4.682/23. Assim, a previdência foi sendo ampliada, abarcando mais categorias profissionais e conferindolhes tratamento mais homogêneo, mas sem integrar aqueles que estavam à margem do mercado de trabalho. Também no final do século XIX e início do século XX cresceu a preocupação com questões sanitárias, especialmente em relação a saneamento básico e combate a endemias (CARRO, 2008, p. 145-146). Boa parte do contato entre o Poder Público e a população mais pobre se dava por meio da chamada assistência higienista ou filantropia higiênica. A filantropia privada seguia a mesma linha e a ação social prestigiava formas de controle “purificadores”, como se depreende das palavras de Adorno contidas no 73 “Uma das formas iniciais de manifestação coletiva dos trabalhadores foi o mutualismo ou a organização de sistemas de socorro mútuo. A identidade nas dificuldades entre os grupos de ocupação ou de imigrantes, somada algumas vezes à aspiração de romper sua subalternização e mostrar força, potenciam as organizações de socorro mútuo. Os cuidados médico-assistenciais, tendo no hospital o locus privilegiado dessa ação, caracterizam o modo mutualista perfilado pela Beneficiência Portuguêsa. Esta foi a organização mutualista de maior vulto em São Paulo, embora não fosse representativa do operariado. O mutualismo tem início em São Pulo em 1859, com a criação da Beneficiência Portuguêsa. Já ocorrera em 1833, no Rio de Janeiro, uma organização similar com os funcionários civis da Marinha, que criaram uma sociedade para se protegerem contra quaisquer eventualidades. Coexistem as duas formas de mutualidades, por relações de etnia e por categorias profissionais ou ocupacionais. A heterogeneidade étnica existente em São Paulo desde o afluxo de imigrantes de várias nacionalidades fez surgir várias destas associações. Outra diferenciação eram as mutualidades formadas só por trabalhadores ou por trabalhadores e empregadores. Coimbra assinala a influência internacional nesta modalidade de organização. O socorro mútuo era, à época, uma tendência do movimento trabalhista europeu, por influência de Proudhon, a que anarquistas, socialistas utópicos e cooperativistas se associavam. Era uma forma de organização de trabalhadores que permitia o reconhecimento de sua capacidade de enfrentar problemas e de resolvê-los sem o auxílio de outras pessoas.” (SPOSATI, 1987, p. 103-104, destaques no original). 74 estudo A gestão filantrópica da pobreza urbana, resultante de pesquisa sobre assistência social institucionalizada em São Paulo no período de 1880 a 1920: aparelham-se as instâncias de controle, de intervenção e de saneamento moral. Polícia e Justiça receberão do Estado apoio material e humano visando dotá-las de instrumentos adequados para conter a desobediência civil e política. À filantropia privada não restou alternativa outra senão associar-se à medicina social em seu processo de racionalização e de instrumentalização técnica. Elegendo o hospital como modelo de ação social terapêutica, a filantropia propõe-se a reconstruir os vínculos perdidos, dissipar os efeitos perversos causados pela adversidade de espaços, de tipos humanos, de costumes e de ambientes. (ADORNO, 1990, p. 10) Como exemplo da assistência higienista, cita-se a entrada em domicílios e a busca de doentes a serem levados para o isolamento, possibilitando um forte controle sobre a vida das classes mais pobres (ROLNIK, 1983, p. 118 apud SPOSATI, 1987, p. 110-111). Ainda nas palavras de Adorno (1990, p. 9) depreende-se que “o isolamento dos desajustados em espaços educativos e corretivos constituía estratégia segura para a manutenção ‘pacífica’ da sociedade” e se inseria em uma estratégia de “saneamento moral e higiênico da cidade, cuidando-se de combater seus focos de disseminação de afecções orgânicas e morais” (ADORNO, 1990, p. 12). Analisando esse período, Sposati (1987, p. 143) sintetiza: Assistência social e saúde compunham, neste período, um binômio próprio do conceito que associa saneamento moral e higiênico. Limpar a sociedade dos “venenos sociais”, reiterando o conceito miasmático das doenças, já defasado no campo da medicina, fazia, ao que parece, parte das concepções sobre os problemas sociais nas primeiras décadas do século XX. Os fluidos dos “venenos sociais” precisavam ser contidos, e a medicina higiênica, como forma de controle político das populações, se prestava a tanto. A antiga filantropia caritativa é transformada na filantropia higiênica, que a cada vez mais estabelece espaços delimitados para a assistência. À pobreza “liberta”, à miséria acumulada, a riqueza ergueu asilos de orfandade e sociedades instrucionais. Seu foco é a criança, que pode ser reorientada pela disciplina. Coimbra (1984 apud SPOSATI, 1987, p. 109) destaca ainda o surgimento de programas de assistência médica e de seguros prestados por algumas indústrias mediante contribuições dos empregados, fenômeno que denomina “padrão heterogêneo de assistência do trabalhador”. Esses programas se desenvolviam dentro de uma lógica paternalista, buscando estabelecer relações de confiança da classe operária em relação às classes dominantes (CERQUEIRA FILHO, 1982, p. 31 apud SPOSATI, 1987, p. 108). 75 Por outro lado, ações de assistência propriamente ditas seguiam protagonizadas pela Igreja e por particulares, ainda que com apoio financeiro do Poder Público. A respeito desse período, Mestriner não reconhece qualquer tipo de intervenção estatal, afirmando que, durante a Primeira República, “o que existia na área de assistência era desenvolvido pela Igreja católica, com quem o Estado republicano não se relacionava, por considerar que o social não era função pública” (MESTRINER, 2011, p. 67). Por outro lado, Sposati (1987, p. 118) analisa a distribuição de auxílios e subvenções em São Paulo, no período de 1901 a 1927, e constata a ampliação da quantidade e das espécies de instituições auxiliadas pelo Poder Público, tanto em nível estadual quanto municipal. Como exemplo da ampliação das obras de caridade impulsionadas por entidades religiosas, toma-se a cidade de São Paulo, onde a Irmandade de Misericórdia fundou, em 1896, a Casa dos Expostos. Surgiram ainda entidades voltadas ao atendimento aos órfãos e especialmente ao preparo para o trabalho (CARRO, 2008, p. 147), como a Sociedade Propagadora da Instrução Popular (1873), a Associação Protetora da Criança Desvalida (1874) e, posteriormente, a Fundação Paulista de Assistência à Criança (1923), a Cruzada PróInfância (1930) e o Educandário Dom Duarte (1936) (SPOSATI, 1987, p. 112-113). Para atender a população adulta, foram fundados o Instituto Sagrada Família do Ipiranga (1904), a Sociedade Amiga dos Pobres (1905), a Associação Humanitária de São Paulo (1907) e a Colônia Regeneradora D. Romualdo (1911) (SPOSATI, 1987, p. 115). Todas essas iniciativas tinham caráter fragmentário e se situavam à margem do Estado – que, quando muito, limitava-se a repassar auxílios financeiros a essas instituições74 –, já que, como afirma Mestriner (2011, p. 69): A “questão social” – como um problema concreto que se forma a partir do processo de industrialização e do surgimento do operariado e 74 “As ações municipais no período republicano, no que se refere a tais instituições, pouco diferem do período imperial. A Prefeitura de São Paulo, nestes primeiros anos republicanos, pautava-se pela distribuição de auxílios anuais às instituições de caridade, hospitais, obras educacionais, culturais, recreativas, gremiais, etc. Além disso, isentava tais instituições de pagamento de impostos, taxas e emolumentos. Por exemplo, em 1896 isentava de impostos as carroças do Orphelinato para trafegarem na cidade. Tais ações se faziam caso a caso. A partir de 1919 (Lei n. 2.206), deu isenção geral dos impostos sobre publicidade, indústria e profissões de todas estas instituições. Em 1929, o prefeito José Pires do Rio, por exemplo, criou a ‘taxa de caridade’, recolhida da venda de pules. Associando jogo e caridade, o produto dessa arrecadação ia para a Santa Casa de Misericórdia (75%) e para a Polyclínica de São Paulo (25%), conforme a Lei n. 3.325, de 7-6-1929.” (SPOSATI, 1987, p. 116, destaque no original). 76 suas reivindicações – antes de 1930 não se inscrevia como tema no pensamento dominante. Ainda que já discutida por Evaristo de Morais (“Apontamentos do direito operário”) em 1905 e por Rui Barbosa (conferência pronunciada no Teatro Lírico do Rio de Janeiro) em 1919, era vista apenas como “fato excepcional e episódico, como questão para o pensamento marginal e dominado”. A classe dominante, detendo o monopólio do poder político – e por conseqüência o poder de definir o que tinha legitimidade –, colocava a questão como ilegítima, subversiva, a ser tratada pelos aparelhos repressivos do Estado. Daí a ser sentenciada na Primeira República como “caso de polícia” (Cerqueira Filho, 1982, p. 59). Foi ainda no início do período republicano que o debate em torno da assistência pelo Poder Público começou a ganhar novos contornos, pautado pela discussão trazida por Ataulpho Nápoles de Paiva75, que participou do Congresso Nacional de Assistência Pública e Privada, parte da Exposição Universal de Paris em 1889. Inspirado pelo evento em Paris e buscando um meio termo entre posições antagônicas a respeito da assistência social (cf. supra 1.5 O modelo francês de proteção social), Paiva procurou criar uma lei de assistência social no início da Primeira República (MESTRINER, 2011, p. 56) e chegou a apresentar um Projeto de Lei no Congresso Internacional de Milão em 1906 (SPOSATI, 1987, p. 122). O magistrado defendia ainda a organização racional das ações de assistência, a associação entre esferas públicas e privadas, a assunção do papel de fiscalizador por parte do Estado e a criação de um Ofício Geral de Assistência Pública. A propósito das ideias defendidas por Paiva, Sposati (1987, p. 122) assevera que: Estava em questão o combate ao caráter espontaneísta da esmola, que “terminava mantendo a vadiagem”. Era preciso “saber dar esmoas”, “canalizar o altruísmo”, a “bondade” dos brasileiros. A ação estatal seria então de fiscalização da filantropia, para que não “alimentasse a vadiagem e a mendicância”. O Estado se posicionaria como o eterno vigilante para que as “obras de caridade” realmente operassem com dignidade. Seria instituído o que denominava da “terna fiscalização de mendicidade” que, na posição de sentinelas juntos aos asilos, só socorreriam os verdadeiros mendigos. 75 Ataulpho Nápoles de Paiva exerceu os cargos de Juiz Municipal em Pindamonhangaba, Pretor (1890), Juiz de Tribunal Civil e Criminal (1897), Desembargador da Corte de Apelação do Distrito Federal (1905) – à época no Rio de Janeiro – e Ministro do Supremo Tribunal Federal (1934). Informações disponíveis em: <http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=212>. Acesso em: 20 jan. 2012. 77 As propostas de Paiva foram pioneiras no Brasil e primaram pela tentativa de sistematizar a assistência social e deixar de tratar a pobreza – e principalmente a pobreza extrema – como “caso de polícia”. Apesar desse esforço, a regulação da assistência só começou a ocorrer na década de 1930, quando a intervenção do Estado nas relações sociais ganhou novos contornos. 2.5 A assistência social do final da República Velha até o início do regime militar76 2.5.1 A década de 1930: o início da filantropia regulamentada As primeiras regulamentações em matéria de assistência surgiram com o fim da República Velha. Ainda que se reconheça a persistência de práticas pautadas na caridade e na falta de tratamento sistemático da assistência social, houve uma transformação em relação ao que vinha sendo feito até então. Ainda nesse período, mais exatamente em 1936, surgiu a primeira Escola de Serviço Social no país. Em 1930, instituiu-se uma “contribuição de caridade”, incidente sobre importações de bebidas alcoólicas e distribuída anualmente a organizações sociais (CARRO, 2008, p. 150). Em 1931, a filantropia passou a ser regulamentada. O Decreto n. 20.351, de 31 de agosto de 1931, criou uma Caixa de Subvenções “destinada a auxiliar estabelecimentos de caridade, de ensino técnico e os serviços de nacionalização do ensino”. O artigo 5º77 desse decreto estabeleceu critérios para recebimento de 76 A evolução histórica da legislação sobre assistência social produzida entre o final da República Velha e a promulgação da Constituição Federal de 1988 teve como ponto de partida e principal referência bibliográfica a pesquisa realizada por Mestriner (2011). Em trabalho originalmente apresentado como tese de doutorado, a autora estuda a regulação da filantropia no Brasil entre 1930 e 2000. 77 “Art. 5º Para se habilitarem, semestralmente, à percepção do auxílio ora criado, deverão as instituições interessadas provar, com documentos habeis: 1º que se acham legalmente constítuidas, com personalidade jurídica, em funcionamento permanente por mais de dois anos; 2º que o seu fim se enquadra em um dos casos previstos no artigo 1º; 3º que não recebem outra qualquer subvenção da União, nem dispõem de recursos próprios suficientes para o custeio das suas despesas e desenvolvimento dos seus serviços; 78 subvenções, como a gratuidade no atendimento e o enquadramento de suas finalidades às hipóteses previstas no artigo 1º do mesmo decreto. A Constituição de 1934 trouxe os primeiros regramentos da assistência social. Em matéria de reconhecimento de direitos, seu artigo 113, inciso 34, previu o direito de cada indivíduo prover a própria subsistência mediante trabalho honesto e o dever do Poder Público de amparar pessoas em situação de indigência entre as garantias fundamentais de brasileiros e estrangeiros residentes no país. No entanto, o artigo 108 conservou a proibição ao voto de mendigos e pessoas analfabetas. Inaugurou-se nessa Constituição a previsão de competência legislativa da União para disciplinar a assistência social (art. 5º). No que tange às competências materiais, o artigo 10, em seus incisos II e V, atribuiu à União e Estados a incumbência de “cuidar da assistência pública” e “fiscalizar a aplicação das leis sociais”78. O artigo 138 atribuiu à União, aos Estados e aos Municípios competências para zelar pela invalidez, maternidade, família, infância e juventude. Ainda mais específico, o artigo 141 previu a obrigatoriedade de amparo à maternidade e à infância por parte de todos os entes federativos, incluindo a vinculação de receitas tributárias para a consecução deste objetivo. Em 1935, a Lei Federal n. 91 disciplinou a concessão do título de utilidade pública em favor de sociedades civis, associações e fundações. Seu artigo 1º condicionou o reconhecimento da utilidade pública ao preenchimento de três requisitos: (a) personalidade jurídica; (b) efetivo funcionamento, servindo desinteressadamente à coletividade; (c) não pagamento de remuneração aos ocupantes de seus cargos diretivos e, após a Lei n. 6.639/79, aos ocupantes dos conselhos fiscais. Também em 1935, a Lei Federal n. 119 extinguiu a Caixa de Subvenções criada em 1931, instituiu um conselho consultivo vinculado ao Presidente da República e estabeleceu critérios para concessão de subvenções. 4º que prestam serviços gratuitos, segunda os fins a que se destinam, indicando o número de beneficiados em cada semestre, e natureza dos serviços. § 1º Alem dos documentos acima indicados, deverão as instituições juntar ao respectivo requerimento relatórios, balancetes relativos ao último semestre e outros quaisquer elementos que comprovem seu regular funcionamento e real utilidade. § 2º As provas: de que tratam os ns. 2, 3 e 4, deste artigo, poderão ser feitas mediante atestados; com firmas reconhecidas, de autoridades federais das respectivas localidades e, na falta destas, de estaduais; que não façam parte da instituição”. Decreto n. 20.351, de 31 de agosto de 1931. 78 Antecipando-se um pouco ao Governo Federal, no Estado de São Paulo, em 1933, a tributação dos jogos realizados em instâncias balneárias passou a ser destinada a obras assistenciais e formou-se uma Comissão de Assistência Social incumbida da distribuição dessa renda (Decreto Estadual n. 5.797/33). Além disso, em 1935, fundou um Departamento de Assistência Social (SPOSATI, 1987, p. 124-125). 79 Já no plano constitucional, a Constituição de 1937 eliminou a previsão de “amparo aos desvalidos” presente na Constituição anterior. Em relação à assistência, duas disposições são dignas de nota: a competência atribuída aos Estados para suplementar a legislação federal em matéria de assistência pública (art. 18) e o direito de pais miseráveis buscarem auxílio do Poder Público para sustentar e educar seus filhos (art. 127). Por outro lado, o trabalho foi previsto como um dever social (art. 136), o que, sob aquela ordem constitucional, legitimou graus diferentes de proteção social conforme houvesse ou não a inserção no mercado de trabalho. 2.5.2 Ainda a década de 1930: o início da disciplina infraconstitucional da assistência social A despeito do retrocesso apontado, foi sob a égide da Constituição de 1937 que a assistência social começou a ser disciplinada no plano infraconstitucional. Essa regulamentação veio à tona em um período em que o discurso atento à “questão social” como um problema a ser enfrentado pelo Estado marcava a postura paternalista de Getúlio Vargas. No entanto, a atenção conferida a esses temas não visava redefinir relações econômicas; antes, buscava fortalecer o poder central. A intervenção estatal surgiu sob a forma de uma sucessão de normas tratando das relações entre Estado e entidades da sociedade civil dedicadas a ações assistenciais. O primeiro passo da construção do modelo brasileiro de assistência social foi dado com o advento do Decreto-Lei n. 525, de 01 de julho de 1938. Em seu artigo 1º, tal norma definiu como objetivo do serviço social: a utilização das obras mantidas quer pelos poderes públicos quer pelas entidades privadas para o fim de diminuir ou suprimir as deficiências ou sofrimentos causados pela pobreza ou pela miséria ou oriundas de qualquer outra forma do desajustamento social e de reconduzir tanto o indivíduo como a família, na medida do possível, a um nível satisfatório de existência no meio em que habitam. Esse diploma teve como principal disposição a criação do Conselho Nacional de Serviço Social – CNSS, órgão incumbido de “subsidiar as organizações sociais de amparo social” (CARRO, 2008, p. 150). 80 Depreende-se de seu artigo 4º que o CNSS teria atribuições ambiciosas como: a realização de pesquisas sobre pessoas e famílias em situação de miséria ou “socialmente desajustadas”; a elaboração de um plano de organização do serviço social; a sugestão, aos poderes públicos, de medidas para ampliação e melhoria de obras destinadas à realização de serviço social; a definição dos tipos de instituições privadas que realizariam serviços sociais; e o estudo das instituições existentes para emitir opinião a respeito de subvenções que deveriam ser concedidas pelo Governo Federal. Vinculado ao Ministério da Educação e Saúde79, o CNSS foi instalado em 05 de agosto de 1938. Seu primeiro presidente foi Ataulpho Nápoles de Paiva e os demais conselheiros eram “pessoas de expressão na área social” (MESTRINER, 2011, p. 57-58). A despeito das amplas atribuições previstas pelo Decreto n. 525/38 e reiteradas no Decreto-Lei n. 5.697 de 22 de julho de 1973, na prática, a atuação do CNSS se resumiu a análises de pedidos de subvenções formulados por entes privados. Portanto, as competências indicadas no artigo 4º do Decreto-Lei n. 525/38 não se converteram em políticas de assistência social protagonizadas pelo Poder Público. Dessa forma, as populações mais pobres e não inseridas no mercado de trabalho formal não encontravam canais de acesso às redes de proteção social. O CNSS vai avaliar os pedidos de subvenções ordinárias e extraordinárias, encaminhando-os ao Ministério de Educação e Saúde para aprovação e remessa ao presidente da República para designação da quantia subsidiada. Constitui-se de fato, num conselho de auxílios e subvenções, cumprindo, na época, o papel do Estado, de subsidiar a ação das instituições privadas. Não se refere à assistência social tratada como política social, mas da função social de amparo, em contraponto ao desamparo disseminado que as populações, principalmente urbanas, traziam explícitas pela conformação da “questão social”. O amparo, nesse início, aparece travestido de serviço social, enquanto manifestação da sociedade civil, sendo apenas posteriormente assumido pelo Estado. (MESTRINER, 2011, p. 62-63) Estimulando a filantropia privada, o Estado abdicou de decidir sobre a alocação de recursos públicos no atendimento dos grupos em situação de maior necessidade. Ao mesmo tempo, criou uma aparência de “integração social” entre ricos e pobres, como se os primeiros estivessem ajudando os últimos (MESTRINER, 2011, p. 84). 79 Gustavo Capanema era o Ministro da Educação e Saúde à época. 81 A proteção social, nessa época, estruturava-se em torno da legislação trabalhista, que efetivamente melhorava as condições de vida de parte da população80. Porém os salários eram baixos e muitos trabalhadores se tornavam destinatários das ações de assistência, entendida, repita-se, como filantropia (MESTRINER, 2011, p. 79). Portanto, o sistema de proteção ao trabalhador (cf. supra 1.1 Considerações iniciais sobre proteção social) também funcionava de forma insuficiente81. Os baixos salários puderam ser mantidos, uma vez que as reivindicações sociais eram tratadas como caso de polícia. O Decreto-Lei n. 2.416/4082 deixou clara a conjugação entre caridade e repressão: ao tratar de normas de direito financeiro para Estados e Municípios, inseriu assistência social e segurança pública na mesma rubrica. Da mesma forma, a tipificação da vadiagem como contravenção penal em 194183 surgiu como importante “impulso” ao trabalho, ainda que mal remunerado. Como se nota, o controle das populações mais pobres tem como um de seus pilares a repressão, que seria associada à assistência social. A assistência social também se conjugou com a necessidade de preparar e manter mão de obra para ser absorvida na indústria que começava a se desenvolver no país, necessidade essa muito bem descrita por Adorno (1990, p. 13): A constituição do trabalhador urbano industrial reclamava sua formação integral: seu perfil, seus hábitos, seus padrões de conduta, seus ethos, suas vinculações com as instituições capazes de assegurar a preservação da ordem social. Daí a importância da educação, do ensino profissional e do caráter disciplinador do trabalho industrial, requisitos de que se jactavam aqueles que apostavam em uma era marcada pelo progresso, pela prosperidade e pela harmonia social. Surge assim o que Mestriner (2011, p. 94-96) denomina de filantropia disciplinadora e ilustra com a menção a dois Decretos-lei: n. 2.024, de 17 de fevereiro de 1940, e n. 3.200, de 19 de abril de 1941. O primeiro desses decretos visava proteger 80 Em matéria de legislação trabalhista, registra-se na década de 1930 os Decretos n. 21.186/32, 21.365/32, 21.396/32, 21.417/32, 21.761/32, 22.024/32, 22.132/32, 23.103/33, 23.768/34, 24.694/34; na seara previdenciária, os Decretos n. 22.096/32, 24.273/34, 24.275/34, 24.615/34. 81 “[...] a imensa massa de trabalhadores pauperizados e expropriada, condição estrutural de existência do capitalismo industrial, fazia emergir a “questão social”, colocando o imperativo da assistência na ordem do dia, de modo a solapar as bases de uma ordem que se imaginava a si própria reduto da autonomia individual, da coragem particular e do esforço privado” (ADORNO, 1990, p. 14). 82 Decreto-Lei 2.416, de 17 de julho de 1940. 83 “Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses. Parágrafo único. A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena.” Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941). 82 a maternidade, a infância e a adolescência, tendo entre suas finalidades a “preservação da moral” e a “preparação para a vida”. O segundo previa subvenções em favor de entidades assistenciais destinadas a proteger famílias em situação de miséria, mediante “prestação de alimentos, internamento dos filhos menores para fins de educação e outras providências de natureza semelhantes”84. 2.5.3 A década de 1940: o surgimento da Legião Brasileira de Assistência – LBA O segundo grande passo da construção do modelo brasileiro de assistência social foi dado em 15 de outubro de 1942, quando o Decreto-Lei n. 4.830 institui a Legião Brasileira de Assistência – LBA85, primeira grande instituição de assistência social do Brasil. Nas palavras de Simili (2008, p. 137), o surgimento da LBA esteve marcado pela “composição de uma parceria entre o Estado, o empresariado e o voluntariado feminino civil”. A instituição era presidida pela então Primeira-Dama Darcy Vargas e se fiava no trabalho voluntário da elite civil e predominantemente feminino. Consagrou-se com isso a imagem das “damas da caridade”, típicas de ações de filantropia e benemerência. A criação da LBA teve como primeira finalidade prestar amparo aos familiares dos soldados brasileiros que lutavam na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa fase, a instituição atuava por meio de campanhas nacionais voltadas à proteção das famílias desses soldados. Além dos corpos de voluntárias da defesa passiva antiaérea, disseminaram-se serviços assistenciais como orientação às donas de casa e atendimento de enfermagem (SIMILI, 2008). Com o fim da guerra – e não sem antes ter se cogitado sua extinção –, o público-alvo da instituição passou a ser a população pobre do país86. Os objetivos da 84 “Art. 30. As instituições assistências, já organizadas ou que se organizarem para dar proteção às famílias em situação de miséria, seja qual for a extensão da prole, mediante a prestação de alimentos, internamento dos filhos menores para fins de educação e outras providências de natureza semelhante, serão, de modo especial, subvencionadas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios.” Decreto-Lei n. 3.200, de 19 de abril de 1941. 85 Lima (1994, p. 18-21) elabora um quadro contendo o resumo do histórico da LBA, entre 1942 a 1990. 86 Essa mudança de linha de atuação encontrava guarida no estatuto da LBA, que veiculava a promoção de serviços de assistência social entre suas finalidades básicas (LIMA, 1994, p. 16). 83 instituição se voltaram então para a proteção da maternidade e da infância, e não apenas das famílias dos homens que haviam sido convocados para a guerra. Essa proteção se deu em programas de educação da mulher, cuidados na gestação e primeiros anos de vida, além de assistência à saúde e alimentação. De acordo com Lima (1994, p. 35), tratou-se da retomada de uma ideia em voga no Brasil já no século XIX (LIMA, 1994, p. 35). O principal público atendido pela LBA era composto por mulheres. Porém, longe de buscar a autossuficiência dessas mulheres ou fomentar igualdade de gênero, atribuía-se a elas um papel de coadjuvantes nos rumos da vida nacional: incumbia-lhes preparar adequadamente pessoas (preferencialmente homens) para o mercado de trabalho nacional. Erigiu-se o enfrentamento da “questão social” a uma questão de educação para a maternidade87 e a LBA se arrogou um papel messiânico, convicta de que poderia livrar as famílias de pobreza por meio de assistência pontual a mães e filhos. Isso fica claro nos boletins da LBA, como o que se transcreve a seguir: A guerra nefasta consumiu o melhor de cinqüenta milhões de vidas humanas, a maior parte delas de jovens em plena floração de ideias e em compleição física. A humanidade se sente por isso desfalcada de preciosos braços, ao passo que as exigências da vida moderna, o desenvolvimento das indústrias e a multiplicidade de novos inventos exigem o concurso de muito mais gente. Toda a atual crise em que nos debatemos geralmente atribuída a uma grave crise de produção é provocada pela carência de braços. Não os há para a indústria que se desdobra, não os há para a o comércio. É necessário assistir na elaboração de um novo ser, prestando cuidado à mulher durante a gestação, no parto e à criança nos primeiros anos de vida de modo a oferecer à Nação mais um par de braços robustos e mais uma inteligência lúcida (manifestação de Eurico Carneiro, médico e funcionário da LBA. In: LBA, Boletim, 1946, p. 21 apud LIMA, 1994, p. 35). Embora constituída sob a forma de associação, desde logo o custeio das atividades da LBA se fez com recursos arrecadados pelo Poder Público88. Inicialmente, 87 Corroborando essa afirmação e indicando que esta visão a respeito da mulher não se alterou por muito tempo, o Relatório da LBA do ano de 1966 faz referência à “situação permanente de desajustamento e de dependência em que vive a mulher cliente da LBA” e afirma que “seu despreparo para a vida é evidente” (LBA, Relatório Anual, 1966, p. 14 apud LIMA, 1994, p. 37-8). 88 “Art. 1º A Legião Brasileira de Assistência, abreviadamente L.B.A., associação instituída na conformidade dos Estatutos aprovados pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, e fundada com o objetivo de prestar, em todas as formas úteis, serviços de assistência social, diretamente ou em colaboração com instituições especializadas, fica reconhecida como órgão de cooperação com o Estado no tocante e tais serviços, e de consulta no que concerne ao funcionamento de associações congêneres. 84 estabeleceu-se que esses recursos seriam provenientes de contribuições pagas por segurados dos Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões, por empregadores e pela União. Algum tempo depois, foram mantidas apenas as contribuições destes dois últimos89. A adoção do formato de associação demarcou a subsidiariedade do Poder Público na condução dos programas de assistência. Essa subsidiariedade expressou-se pelo estímulo ao voluntariado – que acabou por se revelar uma das principais técnicas de racionalização de despesas nessa seara –, pelo apoio às entidades filantrópicas e pela transferência da responsabilidade às esposas dos governantes (MESTRINER, 2011, p. 108). A LBA mostrou que o Poder Público tratava as questões que ensejavam a intervenção da assistência social como temas de menor importância. Os programas de enfrentamento das questões sociais não faziam parte das agendas do governo, mas sim de um organismo a ele adjacente. A assistência social e o papel das mulheres na política foram relegados ao plano das ações praticadas por mero diletantismo90. Atribuía-se às mulheres assistidas um papel secundário no desenvolvimento nacional: o de esposas dedicadas à vida doméstica e afastadas da participação na vida pública. Em suma: nada em matéria de assistência social era prioritário. Um cenário em que o enfrentamento da pobreza e o atendimento a necessidades básicas identificam-se com atos de benemerência propiciou atuações Art. 2º O Governo assegurará à L.B.A., por intermédio do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, uma contribuição especial, constituída: a) de uma cota mensal correspondente à percentagem de 0,5% (meio por cento) sobre o salário de contribuição dos segurados de Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões, e descontada juntamente com a contribuição devida a tais instituições; b) de uma cota mensal a ser paga pelos empregadores, de importância igual àquela prevista na alínea anterior, e recolhida juntamente com a dos respectivos empregados; c) de uma cota paga pela União, de valor igual ao da arrecadação a que se refere a alínea a.” Decreto-Lei n. 4.830, de 15 de outubro de 1942. 89 “Art. 1º Fica abolida a contribuição de 0.5% sôbre o salário dos associados ou segurados dos Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões a que alude a alínea ‘a’ do art. 2º do Decreto-lei nº 4.830, de 15 de outubro de 1942. Art. 2º O art. 2º do Decreto-lei nº 4.830 de 15 de Outubro de 1942, passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 2º O Govèrno assegurará à Legião Brasileira de Assistência por intermédio do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, uma contribuição especial constituída: a) de uma cota mensal a ser paga pelos empregadores sujeitos aos Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões, correspondente a 0,5% (meio por cento) sôbre o montante dos salários pagos a seus empregados; b) de uma cota paga pela União de valor igual ao da arrecadação a que se refere a alínea anterior’.” Decreto-Lei n. 8.252, de 29 de novembro de 1945. 90 “Alguns aspectos devem ser destacados nesse ‘ministério feminino’ para a guerra. Um deles é a falta de identidade com que as mulheres são nomeadas, denotando que a importância que lhes era atribuída decorria do cargo de seus maridos. O segundo é a estratégia colocada em ação no sentido de indicar que os homens e as mulheres estavam unidos no enfrentamento da guerra e suas problemáticas e que, enquanto ‘eles’, os maridos ajudavam Vargas, ‘elas’ cooperavam com a primeira-dama” (SIMILI, 2008, p. 141). 85 pontuais ou emergenciais, em uma dinâmica que Oliveira chama de filantropia estatal (RAICHELIS, 2011, Prefácio, p. 16). Favoreceu-se assim a criação de mecanismos de atendimento a algumas mazelas sociais sem discussões sobre as causas delas. 2.5.4 Ainda a década de 1940: assistência social e caridade cada vez mais próximas O Decreto n. 7.526/45 – que instituiu a lei orgânica dos serviços sociais no Brasil – indicou a União como principal responsável pelos serviços de previdência e assistência social no país, prevendo a cooperação dos outros entes federativos e instituições públicas ou particulares91. Além disso, definiu o espectro dos serviços da assistência social como assistência médico-hospitalar e outras formas destinadas à melhoria das condições de alimentação, vestuário e habitação dos segurados e de seus dependentes92. Não foram especificadas as atribuições de cada ente na prestação dos serviços de previdência e assistência. Posteriormente, a associação entre assistência e voluntariado ficou cada vez mais evidente. Os Decretos-lei n. 7.961/4593 e n. 9.573/4694, por exemplo, dispensavam entidades caritativas de observar pisos salariais mínimos na remuneração de seus profissionais. O estímulo à filantropia foi ainda ampliado pelo Decreto-Lei n. 5.698, de 22 de julho de 1943, que disciplinou a concessão de subvenções, e pelo Decreto-Lei n. 5.844, 91 “Art. 1º Os serviços de previdência e assistência social serão assegurados e ministrados pela União, com a cooperação dos Estados, Territórios, Distrito Federal e Municípios e de instituições públicas ou particulares, por intermédio de órgão com os poderes necessários para executar, orientar ou coordenar as atividades pertinentes aos mesmos serviços.” Decreto-Lei n. 7.526, de 7 de maio de 1945. 92 “Art. 11. Os serviços de assistência social compreenderão as formas necessárias de assistência médico-hospitalar, preventivas ou curativas, e ainda as que se destinem à melhoria das condições de alimentação, vestuário e habitação dos segurados e de seus dependentes.” Decreto-Lei n. 7.526, de 7 de maio de 1945. 93 “Art. 21. As instituições de fins exclusivamente caritativos. cujos meios de manutenção não comportem o pagamento dos níveis mínimos de salários, constante das tabelas que acompanham o presente Decreto-lei, será facultado requerer ao Conselho Nacional do Serviço Social isenção total ou redução na aplicação das mesmas tabelas por prazo não excedente a dois (2) anos, suscetível de prorrogação, mediante novo requerimento.” Decreto-Lei n. 7.961, de 19 de setembro de 1945, que dispunha sobre remuneração mínima dos que trabalhassem em atividades médicas de natureza privada. 94 “Art. 22. As instituições de fins exclusivamente caritativos, cujos meios de manutenção não comportam o pagamento dos níveis mínimos de salário, constantes das tabelas que acompanham o presente Decreto-lei, será facultado requerer ao Conselho Nacional do Serviço Social isenção total ou redução na aplicação das mesmas tabelas por prazo não excedente a dois (2) anos, suscetível de prorrogação, mediante novo requerimento.” Decreto-Lei n. 9.573, de 12 de agosto de 1946, que estendeu a outras categorias profissionais a regra prevista anteriormente apenas para os quadros médicos das instituições de caridade. 86 de 23 de setembro de 1943, cujo artigo 28 isentava de imposto de renda as sociedades e fundações beneficentes, filantrópicas, caritativas, entre outras. Após a queda de Getúlio Vargas e sob o governo do General Eurico Gaspar Dutra, promulgou-se a Constituição de 1946. Essa Constituição estabelecia a obrigatoriedade de proteção à maternidade, à infância e à adolescência (art. 164). Apesar de nada dispor a respeito de específicas políticas e programas de assistência, previu imunidade tributária em favor de entidades de assistência social (art. 31, V, b). No governo Dutra, merece destaque a criação de organismos como o Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio – SENAC, o Serviço Social do Comércio – SESC e o Serviço Social da Indústria – SESI, somados à LBA e ao SENAI criados anteriormente. A uma, porque a criação destas entidades contribuiu para a difusão da importância de qualificar o corpo profissional das instituições de assistência, inclusive do voluntariado (MESTRINER, 2011, p. 117-118). A duas, porque o enfrentamento da pobreza passou a ser visto como uma questão de qualificação profissional. Além disso, reforçando o modelo de repasse de verbas às entidades privadas, a Lei n. 909, de 08 de novembro de 1949, previu a emissão de selos destinados a arrecadar recursos para amparo à prole de hansenianos. O produto dessa arrecadação era repassado à Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros. 2.5.5 A década de 1950: a multiplicação de órgãos de assistência social e de incentivos fiscais Em 1951, Vargas retornou à Presidência da República. Nos primeiros meses de seu governo, editou o Decreto n. 29.425, de 02 de abril de 1951, que dispôs sobre o processamento de subvenções e sobre as atribuições do CNSS. No mesmo ano, promulgou a Lei n. 1.493, de 13 de dezembro de 1951, que voltou a dispor sobre o pagamento de auxílio e subvenções, prevendo consignação própria no orçamento95. 95 “Art. 1º A cooperação financeira proporcionada pela União à instituições públicas, autárquicas, semiestatais ou privadas far-se-à mediante auxílios e subvenções, para o que haverá consignação própria no Orçamento Geral da República. Art. 2º Os auxílios serão concedidos em virtude de lei, decreto, tratado ou convênio, para atender a ônus ou encargos assumidos pela União para com instituições públicas, autárquicas ou semi-estatais. 87 Nessa época, diversos Estados e Municípios criaram seus órgãos de assistência 96 social , que prestigiavam o modelo de benemerência (MESTRINER, 2011, p. 121-122) e os procedimentos rigorosos de seleção das pessoas “merecedoras” da assistência. Porém, essa proliferação de órgãos não significou melhor organização da ação assistencial; ao contrário, expôs a ausência de coordenação entre os entes federativos. Ao longo de todos esses anos, o CNSS não alterou sua atuação. Mestriner registra que, até 1955, o CNSS e a LBA mantiveram suas linhas de atuação anteriores. Foi em 1955, com a morte de Ataulpho Nápoles de Paiva, que a situação do CNSS mudou para pior: a coordenação da área social continua centralizada na União, exercida pelo CNSS e LBA na regulação da filantropia e pelos macrorganismos estatais, na execução de programas que, sem concorrência entre si, parecem estar conectados no apoio às instituições privadas. O CNSS, no entanto, com a morte de Ataulpho Nápoles de Paiva, em 8/5/1995 [sic], vai sofrer radical mudança de comando, passando sua composição à área governamental, encerrando uma fase de prevalência da sociedade civil e que parece ter sido rigorosa e criteriosa no arbitramento das subvenções sociais. Com composição governamental, as indicações provavelmente passaram a ser negociadas pela área política. E pelo que se observou por meio das atas, a partir de 1955 o Conselho não vai mais arbitrar as subvenções, que devem ter passado praticamente a ser atribuição da Câmara de Depurados e Senado. Começa aí o processo de manipulação política do CNSS. (MESTRINER, 2011, p. 127-128) Art. 3º As subvenções, ordinárias ou extraordinárias, serão concedidas, independente de legislação especial, a instituições privadas de caráter assistencial ou cultural, regularmente organizadas.” Lei n. 1.493, de 13 de dezembro de 1951. 96 A título de ilustração, registra-se o histórico que Sposati (1987, p. 354-402) apresenta sobre o surgimento e a evolução dos serviços de assistência social no Município de São Paulo, ocorridos entre 1951 e 1971. O Município, tendo Armando de Arruda Pereira como Prefeito, instituiu a Comissão de Assistência Social do Município – CASMU (Decreto n. 1.289/51), que desempenhou atribuições variadas, como a expedição de atestados de pobreza, manifestação em pedidos de subvenção e atendimento à população. A presidência da entidade foi conferida a Leonor Mendes de Barros, esposa de Adhemar de Barros. Com a eleição de Jânio Quadros para a prefeitura, Geraldo Silveira Bueno foi indicado para ocupar a presidência do órgão, o que ocorreu em 1953. Por essa época, surgiu dentro da própria CASMU um movimento em prol da racionalização do trabalho do órgão. Pouco depois, houve uma mudança institucional, pelo advento da Divisão de Serviço Social – DSS (Lei Municipal n. 4.637/55). Leonor Mendes de Barros foi novamente indicada para ocupar a presidência desse conselho, o que deflagrou imensos atritos com os assistentes sociais que buscavam preservar o trabalho técnico que começara a ser desempenhado pela CASMU. Ao final desse embate, os assistentes sociais saíram vitoriosos e Leonor Mendes de Barros voltou a atuar na entidade de auxílio a pessoas com tuberculose que presidia. Apesar do êxito obtido pelos que defendiam a atuação técnica, o serviço desempenhado pelas instâncias municipais se manteve precário, caracterizado por dificuldades organizacionais e reduzido número de profissionais. Em 1966, criou-se a Secretaria do Bem-Estar Social – SEBES, que incorporou a DSS. Ainda segundo Sposati (1987, p. 398), a atuação da SEBES significou “o retorno da forma de poder desvinculada do saber assistencial”, o que mostra mais uma investida contra a profissionalização e o aprimoramento técnico das ações de assistência social. 88 Em 1956, Juscelino Kubitschek de Oliveira assumiu a Presidência da República. O novo governo priorizou a industrialização do país e apostou em teses desenvolvimentistas para solucionar os problemas relacionados à pobreza (MESTRINER, 2011, p. 127). Essa ideia – que orientava o pensamento liberal havia algum tempo – naturalmente reforçou a compreensão das entidades assistenciais como instâncias provisórias, que atuariam até que políticas de desenvolvimento atingissem integralmente seus resultados. Enquanto isso, as vantagens fiscais concedidas às entidades filantrópicas cresciam pari passu com a omissão do Estado em implementar diretamente programas de assistência. O franco favorecimento de entidades assistenciais se fez por meio de quatro leis. A primeira delas foi a Lei n. 2.756, de 17 de abril de 1956, que isentava de selo os recibos de contribuições destinadas a instituições de assistência social. A isenção era condicionada ao atendimento de uma única formalidade: o registro perante o CNSS. A segunda foi a Lei n. 3.193, de 04 de julho de 1957, que disciplinou a imunidade tributária prevista no artigo 31, V, da Constituição de 1946. O terceiro diploma normativo em questão foi a Lei n. 3.470, de 28 de novembro de 1958. Essa lei, em seu artigo 103, permitia que doações destinadas a entidades filantrópicas fossem deduzidas da renda bruta de pessoas físicas ou jurídicas para efeito de incidência de imposto de renda. A quarta e última lei, composta por apenas três artigos, foi responsável por uma importante alteração no perfil do CNSS. Tratava-se da Lei n. 3.577, de 04 de julho de 1959, que isentava do pagamento de contribuições previdenciárias entidades de fins filantrópicos e Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões, mantendo apenas a obrigação pelo recolhimento da contribuição devida pelos empregados. Surgiu então o certificado de entidade de fins filantrópicos, expedido para assegurar o acesso às isenções. Como a expedição do certificado de entidade de fins filantrópicos foi atribuída ao CNSS, o órgão assumiu atribuições eminentemente “cartoriais” (MESTRINER, 2011, p. 130), traço que marcaria seu funcionamento pelas décadas seguintes. Essa função burocrática proporcionou um aumento de poder ao conselho – pois o certificado garantia o acesso a crescentes benefícios fiscais – e o tornou suscetível a práticas 89 clientelistas. Em contrapartida, o CNSS passou a ter menos disponibilidade para exercer as outras atribuições previstas pelo Decreto-Lei n. 525/38. 2.5.6 A década de 1960 até 1964: a ampliação dos incentivos fiscais e o reforço ao papel cartorial do CNSS Em 31 de janeiro de 1961, Jânio Quadros assumiu a Presidência da República, com um discurso populista e nacionalista, no que buscava se distinguir de seu antecessor. Entretanto, a condução da política assistencial não sofreu grandes alterações em seu governo. Por meio do Decreto-Lei n. 50.517 de 02 de maio de 1961, o novo presidente regulamentou a Lei n. 91/35, que tratava da declaração de utilidade pública. Já por força do artigo 1º da Lei n. 3.933, de 04 de agosto de 1961, as instituições assistenciais indicadas na Lei n. 3.577/59 foram dispensadas do recolhimento das contribuições devidas na qualidade de empregadoras até a entrada em vigor daquela lei. Nada disso destoava do modelo de incentivos públicos à filantropia privada que vinha sendo adotado nas gestões anteriores. Com a renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, coube ao VicePresidente João Goulart assumir a Presidência da República. As pressões contra a posse do Vice-Presidente eram grandes e provinham, sobretudo, de grupos de militares que alegavam que João Goulart estava ligado ao comunismo. Como “solução de compromisso” (ARRUDA; PILETTI, 2007, p. 583), os militares aceitaram a posse de João Goulart mediante adoção de um regime de governo parlamentarista. Em 02 de setembro de 1961, um Ato Adicional à Constituição de 1946, veiculado pela Emenda Constitucional n. 4, instituiu o parlamentarismo no Brasil. Dias depois, em 07 de setembro de 1961, João Goulart assumiu a Presidência. Sob a égide do parlamentarismo, dois decretos do Presidente do Conselho de Ministros trataram da assistência social. Nenhum deles, contudo, promoveu modificações substanciais no tratamento do tema no país. Foram os Decretos n. 1.117/62 e n. 1.118/62, que regulavam, respectivamente, as Leis n. 3.577/59 e n. 3.933/61. Os dois diplomas conferiam ao CNSS competência para expedir o certificado de entidade de fins filantrópicos e apreciar os requisitos necessários à obtenção da 90 declaração de utilidade pública, com vistas ao acesso aos benefícios fiscais previstos nas leis a que se referiam. O artigo 4º, caput, de ambos os decretos previa a expedição de certificados provisórios de entidade de fins filantrópicos, válidos por dois anos, sugerindo que o órgão estava assoberbado com a quantidade de pedidos de emissão do certificado. Da mesma maneira, o parágrafo único do artigo 4º dos dois decretos estabelecia que instituições filantrópicas mantenedoras de organizações hospitalares ou para-hospitalares, registradas na Divisão de Organização Hospitalar, do Ministério da Saúde, estavam dispensadas de cumprir qualquer formalidade ou exigência para receberem o certificado provisório. Em um plebiscito ocorrido em 06 de janeiro de 1963, a maioria dos eleitores se posicionou contrariamente ao regime parlamentarista. Com isso, em 23 de janeiro de 1963, a Emenda Constitucional n. 6 restabeleceu o presidencialismo no país. Dessa forma, João Goulart pôde exercer em regime presidencialista as atribuições previstas na Constituição de 1946. João Goulart defendia o desenvolvimento e as reformas estruturais como caminho para superação dos principais problemas do país, destacando políticas públicas de educação e saúde. Com o presidencialismo restaurado, iniciou as reformas de base. Setores conservadores da sociedade começaram a se articular, e desse movimento resultou o golpe militar que depôs João Goulart, em 01 de abril de 1964. No período em que João Goulart governou sob regime presidencialista, não houve avanços legislativos em matéria de assistência social. A Lei n. 4.320, de 17 de março de 1964, ainda em vigor, estabeleceu normas gerais de direito financeiro a serem observadas em todos os níveis federativos e incluiu subvenções sociais entre transferências correntes. Nos termos de seu artigo12, § 3º, I, subvenções sociais correspondem às transferências de recursos públicos destinadas a cobrir despesas de custeio de instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa. Em seu artigo 16, caput, estabelece-se que a concessão de subvenções terá por escopo custear serviços essenciais de assistência social, médica e educacional, nas hipóteses em que a suplementação dos recursos privados destinados a esses objetivos se mostrar mais econômica. O parágrafo único do mesmo artigo 16prevê que o valor dos repasses, “sempre que possível”, será calculado em função das “unidades de serviços 91 efetivamente prestados ou postos à disposição dos interessados obedecidos os padrões mínimos de eficiência previamente fixados”. Por outro lado, de 1960 a 1964 houve um avanço da atuação dos profissionais do Serviço Social, o que se deveu tanto à maior absorção desse grupo pelo aparelho estatal, quanto por uma atuação mais politizada desses profissionais. Porém, esse movimento se retraiu com o início do regime miliar (GIMENES, 2009, p. 23). 2.6 A assistência social durante o regime militar 2.6.1 Aspectos gerais Instalado o regime militar a partir de 1964, os conflitos sociais passaram a ser controlados por meio da repressão, do recurso a projetos de desenvolvimento – que, na realidade, eram projetos de crescimento econômico97 – e de medidas pontuais de atenção à pobreza. Nada disso impediu o acirramento das desigualdades sociais ao longo da ditadura militar, levando o próprio presidente Emílio Garrastazu Médici a afirmar que “a economia vai bem, mas o povo vai mal” (ARRUDA; PILETTI, 2007, p. 583). As práticas assistenciais cresceram em vários níveis federativos, sempre de forma setorizada, sem coordenação entre as várias instâncias e, por isso mesmo, com 97 Sobre a distinção entre desenvolvimento e crescimento econômico, ensina Nusdeo (2002, p. 17-18) que: “estatisticamente eles poderão ser confundidos, porque em ambos os casos dá-se um crescimento do PIB. O que varia, num caso e no outro, é que no primeiro, desenvolvimento, o crescimento daquela grandeza faz-se concomitantemente com profundas alterações em toda a estrutura do país envolvido, por trazer como conseqüência uma série enorme de modificações de ordem não apenas econômica, mas também cultural, psicológica e social. São essas modificações que respondem pela sustentabilidade do processo, ou seja, em cada uma das suas fases deverão estar-se criando condições para que ele continue se manifestando nas fases seguintes. É por isso que o desenvolvimento econômico é dito auto-sustentável. [...] O crescimento econômico caracteriza-se como o desenvolvimento, por entranhar um crescimento da disponibilidade de bens e serviços, porém sem que essa maior disponibilidade implique uma mudança estrutural e qualitativa da economia em questão. E isto ocorre por duas razões inteiramente distintas: ou porque essa transformação estrutural já ocorreu no país em questão e, portanto ele deixou de ser um país subdesenvolvido; ou, então, porque essa transformação estrutural não se está produzindo, o que demonstra ser a elevação da disponibilidade de bens e serviços (aumento do PIB) apenas transitória e sem condições de se sustentar. O crescimento é mais um surto, um ciclo e não um processo dotado de estabilidade. É, em geral, causado por algum fator exógeno, isto é, externo à economia em questão. Cessada a ação daquele fator, ela regride ao seu estado anterior, contraindo-se a renda, o emprego, a produção e tudo o mais, deixando esse surto pouco ou nenhum vestígio do que ocorreu”. 92 sobreposição de ações. Mas as ações de assistência social oferecidas pelos órgãos governamentais, diretamente ou por entidades conveniadas, não foram além de serviços complementares a outros programas de efetivação de direitos sociais igualmente incompletos. Como exemplifica Mestriner (2011, p. 165): Como retaguarda da área de saúde, a assistência desenvolve-se na linha da complementação do tratamento, com atendimentos de prótese, órtese, medicamentos, suplementos alimentares; como retaguarda de outras áreas desenvolve pretensiosas propostas de formação e colocação de mão-de-obra, implantação de creches, melhoria de habitação, alfabetização de adultos e outros. 2.6.2 A Carta Constitucional de 1967 e a Emenda n. 1/1969 No plano constitucional, a Carta de 1967 previu, em seu artigo 167, § 4º, que a assistência à maternidade, à infância e à adolescência seria veiculada por meio de lei. Além disso, manteve a imunidade tributária às entidades de assistência (art. 20, III, c). A Emenda Constitucional n. 1/1969 manteve disposições semelhantes às da Carta em 1967. Seu artigo 175, § 4º, reiterou a previsão de assistência à maternidade, à infância e à adolescência, acrescentando a previsão de educação às pessoas com deficiência98 ou “educação de excepcionais” na linguagem empregada pelo texto da emenda. A imunidade tributária às entidades de assistência social foi mantida no artigo 19, inciso III, alínea “c”. Essas previsões genéricas, contudo, não delimitaram um campo de responsabilidades do Estado pela proteção dos cidadãos contra situações de necessidade, de sorte que a compreensão do sistema de proteção social existente sob a égide dessa Constituição depende sempre do exame da legislação infraconstitucional e dos registros sobre como as ações estatais foram levadas a cabo. 98 Emprega-se a nomenclatura pessoas com deficiência, e não qualquer termo análogo, em razão da terminologia consagrada pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com deficiência da ONU, a qual foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status de Emenda Constitucional. Por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 09 de julho de 2008, aprovou-se o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, ambos assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Em 25 de agosto de 2009, o Decreto n. 6.949 promulgou a Convenção e seu Protocolo Facultativo. 93 2.6.3 A legislação infraconstitucional: isolamento do CNSS, crescimento da LBA e manutenção de benefícios fiscais No plano infraconstitucional, houve continuidade na legislação centrada na concessão de benefícios às entidades de assistência, e não nas necessidades dos potenciais assistidos. As isenções atingiram até mesmo contribuições voltadas à garantia de direitos sociais. Para instrumentalizar essa política, o CNSS recebeu crescentes atribuições de registro e processamento de pedidos de isenção formulados por entidades assistenciais. A Lei n. 4.506, de 30 de novembro de 1964, estabeleceu requisitos para dedução de doações às entidades filantrópicas e beneficentes e para isenção de imposto sobre renda e proventos em favor dessas mesmas entidades99. 99 “Art. 18. Para a determinação do rendimento líquido, o beneficiário de rendimentos do trabalho assalariado poderá deduzir dos rendimentos brutos: I - As contribuições para institutos e caixas de aposentadoria e pensões, ou para outros fundos de beneficência; [...] Art. 30. As sociedades, associações e fundações referidas nas letras a e b do art. 28 do Decreto-lei nº 5.844, de 23 de setembro de 1943, gozarão de isenção do impôsto de renda, desde que: (Revogado pela Lei nº 9.532, de 1997) I - Não remunerem os seus dirigentes e não distribuam lucros, a qualquer título; II - Apliquem integralmente os seus recursos na manutenção e desenvolvimento, dos objetivos sociais; III - Mantenham escrituração das suas receitas e despesas em livros revestidos das formalidades que assegurem a respectiva exatidão; IV - Prestem à administração do impôsto as informações determinadas pela lei e recolham os tributos arrecadados sôbre os rendimentos por elas pagos. § 1º As pessoas jurídicas referidas neste artigo que deixarem de satisfazer às condições constantes dos ítens I e II perderão, de pleno direito, a isenção. § 2º Nos casos de inobservância do disposto nos itens III e IV as pessoas jurídicas ficarão sujeitas à multa de Cr$10.000,00 (dez mil cruzeiros) a Cr$100.000,00 (cem mil cruzeiros), podendo ter a sua isenção suspensa por ato da administração do impôsto, enquanto não cumprirem a obrigação. (Revogado pelo Decreto-Lei nº 2.303, de 1986) [...] Art. 55. Serão admitidas como despesas operacionais as contribuições e doações efetivamente pagas: [...] III - As instituições filantrópicas, para educação, pesquisas científicas e tecnológicas, desenvolvimento cultural ou artístico; [...] § 1º Sòmente serão dedutíveis do lucro operacional as contribuições e doações a instituições filantrópicas de educação, pesquisas científicas e tecnológicas, desenvolvimento cultural ou artístico que satisfaçam aos seguintes requisitos: a) estejam legalmente constituídas no Brasil e em funcionamento regular; b) estejam registrados na Administração do Impôsto de Renda; c) não distribuam lucros, bonificações ou vantagens aos seus administradores, mantenedores ou associados, sob qualquer forma ou pretexto. d) tenham remetido à Administração do Impôsto de Renda, no ano anterior ao da doação, se já então constituídas, demonstração da receita e despesa e relação das contribuições ou doações recebidas. [...] § 3º Em qualquer caso, o total das contribuições ou doações admitidas como despesas operacionais não poderá exceder, em cada exercício, de 5% (cinco por cento) do lucro operacional da emprêsa, antes de computada essa dedução.” Lei n. 4.506, de 30 de novembro de 1964. 94 A Lei n. 4.762, de 30 de agosto de 1965 tratou da necessidade de registro perante o CNSS de entidades que visassem o recebimento de subvenções ordinárias e extraordinárias100. A Lei n. 4.917, de 17 de dezembro de 1965, concedeu ampla isenção tributária aos alimentos e outras utilidades doados a entidades de assistência social, exigindo para tanto parecer do CNSS101. A Lei n. 5.127, de 29 de setembro de 1966, isentou as instituições de assistência social da contribuição destinada à constituição do capital do Banco Nacional da Habitação – BNH, contribuição essa correspondente a 1% ao mês sobre suas folhas de pagamento. O Decreto-Lei n. 194/67 facultou às entidades o não recolhimento dos depósitos vinculados ao FGTS (art. 1º), embora não as dispensasse de pagar o valor correspondente ao empregado, na hipótese de encerramento do contrato de trabalho (art. 2º). Finalmente, o Decreto-Lei n. 999, de 21 de outubro de 1969, isentou instituições de caridade do pagamento de Taxa Rodoviária Única. A filantropia seguiu prestigiada, inclusive sob a forma de filantropia estatal. Emblemática da forma pela qual a atenção à pobreza se dava foi a instituição do “Dia da Caridade”, pela Lei n. 5.063, de 04 de julho de 1966, com o escopo de “difundir e incentivar a prática da solidariedade e do bom entendimento entre os homens” (art. 1º) e com a previsão de visitas aos “lugares onde a pobreza e a dor mais se façam sentir” (art. 2º). 100 “Art 3º As entidades não registradas no Conselho Nacional de Serviço Social, e não compreendidas nêste artigo, poderão receber as subvenções ordinária e extraordinárias que constem do orçamento, em seu favor, desde que requeiram o registro até 30 trinta de novembro do corrente ano, apresentando todos os documentos exigidos.” Lei n. 4.762, de 30 de agosto de 1965. 101 “Art. 1º São isentos dos impostos de importação e de consumo, dos emolumentos consulares, da taxa de despacho aduaneiro, das taxas de melhoramentos dos portos e de renovação da Marinha Mercante, de despesas de armazenagens e capatazias, e de quaisquer outras contribuições fiscais, os alimentos de qualquer natureza, e outras utilidades adquiridos no exterior, mediante doação, pelas instituições em funcionamento no País, que se dediquem à assistência social. Parágrafo único. A importação dos bens a que se refere êste artigo não fica sujeita a certificado de cobertura cambial, nem a licença prévia da Carteira de Comércio Exterior. Art. 2º Antes da importação, a entidade beneficiada apresentará ao Conselho Nacional de Serviço Social, do Ministério da Educação e Cultura, em 3 (três) vias, a relação dos bens a serem importados, acompanhada das provas de doação. Art. 3º Com o parecer quanto à natureza do bem a ser importado e habilitação da entidade para obtenção do favor, o Conselho Nacional de Serviço Social, encaminhará 2 (duas) vias, devidamente autenticadas, ao Ministério da Fazenda, para exame dos demais documentos relativos à doação.” Lei n. 4.917, de 17 de dezembro de 1965. 95 A LBA, a seu turno, teve suas atribuições ampliadas, com o apoio do Poder Público até se tornar a entidade organizadora e executora dos programas governamentais de assistência social. A Lei 5.107, de 13 de setembro de 1966, extinguiu a contribuição prevista pelo Decreto-Lei n. 8.252/45, mas determinou que a manutenção de seus serviços fosse custeada pelo orçamento da União102. Em 27 de maio de 1969, o Decreto-Lei n. 593 autorizou a instituição de uma fundação de assistência à infância, adolescência e maternidade, vinculada ao Ministério do Trabalho e Previdência Social. Essa fundação incorporaria o patrimônio da LBA, mantendo sua sigla e denominação. Ainda assim, o Decreto-Lei estabeleceu que os programas de assistência seriam prioritariamente delegados a entidades de assistência103. Meses depois, o Decreto n. 65.174, de 16 de setembro de 1969, aprovou a alteração do estatuto da LBA. De acordo com o estatuto aprovado por esse Decreto, a finalidade primordial da LBA seria “prestar assistência à maternidade, à infância e à adolescência, a que se referem os parágrafos 4º do art. 167 e 32 do art. 150 da 102 “Art. 22. Ficam extintos, a partir da vigência desta Lei, os seguintes ônus a cargo das empresas: I - O Fundo de Indenizações Trabalhistas, criado pelo art. 2º § 2º e a contribuição prevista no § 3º da Lei nº 4.357, de 16 de julho de 1964, e com a alteração feita pelo art. 6º parágrafo único, letra ‘a’, da Lei nº 4.923, de 23 de dezembro de 1965; II - A contribuição estabelecida pelo art. 6º parágrafo único letra ‘a’, da Lei nº 4.923, de 23 de dezembro de 1965, para o Fundo de Assistência ao Desemprego; III - A contribuição para o BNH, prevista no art. 22. da Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, com a alteração feita pelo art. 35, § 2º da Lei nº 4.863, de 29 de novembro de 1965; IV - A contribuição para a Legião Brasileira de Assistência, prevista no Decreto-Lei nº 8.252, de 29 de novembro de 1945. Parágrafo único. A manutenção dos serviços da LBA correrá à conta de recursos orçamentários anualmente, incluídos no orçamento da União, ficando aberto, no corrente exercício, o crédito especial de Cr$ 35.000.000.000 (trinta e cinco bilhões de cruzeiros) para este fim.” Lei n. 5.107, de 13 de setembro de 1966. 103 “Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a instituir uma fundação, vinculada ao Ministério do Trabalho e Previdência Social, com o objetivo de prestar assistência à maternidade, à infância e à adolescência, através da família desprovida de recursos, mediante o estudo das realidades médico-sociais, periódica e metódicamente apuradas. § 1º A assistência de que trata o artigo será prestada prioritàriamente àqueles que não sejam protegidos por outro sistema de assistência. § 2º Ressalvados os casos de manifesta impraticabilidade ou inconveniência, e observado o § 6º do artigo 10 do Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, a execução dos programas de assistência, em geral, deverá ser delegada, no todo ou em parte, mediante convênio, a outros órgãos, incumbidos de serviços semelhantes. Art. 2º A fundação que se institui, nos têrmos do artigo 1º, incorporará o acervo da associação civil denominada Legião Brasileira de Assistência, de que trata o Decreto-lei nº 4.830, de 15 de outubro de 1949, e legislação subseqüente, e terá a mesma denominação e sigla (LBA) daquela associação, passando a ser sua sucessora para todos os fins de direito.” Decreto-Lei n. 593, de 27 de maio de 1969. 96 Constituição Federal, formulando e implantando a sua política de proteção à família” (Estatuto da LBA, art. 3º). Em síntese, as linhas de atuação consistiam em medidas de educação de base e profissional, orientação à família, promoção da saúde iniciação profissional de seus membros e auxílio na solução de problemas jurídicos (Estatuto da LBA, art. 3º, I a IV). Concomitantemente à expansão da LBA, houve o isolamento e desprestígio do CNSS, ainda vinculado ao Ministério da Educação e da Cultura. Segundo Mestriner (2011, p. 178), é possível que na década de 1960 o CNSS já fosse visto como órgão dado a práticas clientelistas. Ademais, o acúmulo de trabalho favoreceu o isolamento deste órgão em relação às demais instituições de assistência, que posteriormente integrariam o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social – SINPAS. E, de fato, a estrutura e as atribuições do conselho favoreceram esse quadro. Até 1969, a designação dos membros do CNSS decorria de indicação do Presidente da República, entre “pessoas notoriamente dedicadas à assistência ou serviço social”. Porém, nessa escolha impunha-se a observância de outros dois critérios: (a) presença do Juiz de Menores do Distrito Federal, do Diretor Geral do Departamento Nacional de Saúde e do Diretor Geral do Departamento Nacional da Criança como membros natos do conselho; (b) vice-presidência do CNSS atribuída ao Juiz de Menores104. Contudo, a partir da edição do Decreto-Lei n. 878/69, embora mantida a previsão de que a escolha recaísse sobre pessoas “notoriamente dedicadas à assistência ou serviço social”, os demais critérios foram suprimidos105. Essa alteração tornou 104 “Art. 5º O C. N. S. S. compôr-se-á de sete membros, escolhidos entre pessôas notoriamente dedicados à assistência ou serviço social, em qualquer das suas modalidades, e designadas pelo Presidente da República, § 1º Serão membros natos do C. N. S. S. o juiz de Menores do Distrito Federal, o Diretor Geral do Departamento Nacional de Saúde e o Diretor Geral do Departamento Nacional da Criança. § 2º A designação de que trata êste artigo far-se-á por três anos, não sendo vedada a recondução. § 3º Designado dentre os seus membros pelo Presidente da República, terá o C. N. S. S. um presidente, ao qual competirá orientar, coordenar e superintender todos os seus serviços, bem como exercer as atribuições que lhe conferir o regimento a ser expedido, além dos que competirem aos demais membros. § 4º O juiz de Menores será o vice-presidente do C.N.S.S. § 5º Os membros do C. N. S. S. perceberão, por sessão a que comparecerem, a gratificação de representação de cem cruzeiros, a qual não poderá exceder de mil Cruzeiros por mês.” Decreto-Lei n. 5.697, de 22 de julho de 1943. 105 “Art. 1º O artigo 5º e seus parágrafos do Decreto-lei nº 5.697, de 22 de julho de 1943, passam a ter a seguinte redação: 97 possível a designação de pessoas com menor afinidade ou menor preparo técnico para o trabalho com a assistência ou serviço106. Outros dois diplomas fornecem indícios do desprestígio do CNSS: os Decretos n. 41/66 e n. 772/69. O primeiro dispunha sobre a dissolução de sociedades civis de fins assistenciais que recebessem auxílio ou subvenção do Poder Público ou que se mantivessem com contribuições periódicas de populares. O segundo tratava da auditoria externa nas pessoas jurídicas de direito privado que recebessem contribuições para fins sociais ou transferências do Orçamento da União. Nenhum deles previa participação do CNSS nos processo de dissolução ou de auditoria externa. O Decreto n. 41/66 abria ainda um flanco para o controle ideológico das atividades desenvolvidas por instituições de assistência. Isso porque seu artigo 2º, inciso I, previa que a sociedade seria dissolvida se deixasse de desempenhar efetivamente as atividades assistenciais a que havia sido destinada. Esse dispositivo, além de comportar diversas interpretações, previa que a sanção para o descumprimento dos requisitos previstos para receber repasses do Poder Público era o encerramento compulsório das atividades, e não a perda da subvenção107. Finalizando a análise do isolamento do CNSS, verifica-se que mesmo passando por reestruturações108, há sinais de que o conselho estava assoberbado pela demanda de registros e emissões de certificados. Corrobora essa afirmação o Decreto n. 72.819, de ‘Art. 5º O C.N.S.S. compor-se-á de sete membros designados pelo Presidente da República, dentre pessoas notòriamente dedicadas ao serviço social em qualquer de suas modalidades. § 1º A cada membro titular do Conselho corresponderá um suplente. § 2º O mandato dos membros e suplentes do Conselho será de três anos, não sendo vedada a recondução. § 3º Designado, dentre os seus membros, pelo Presidente da República, o C.N.S.S. terá um presidente, ao qual competirá orientar, coordenar e superintender todos os seus serviços, bem como exercer as atribuições que lhe conferir o regimento. § 4º O Vice-Presidente será escolhido pelo Conselho dentre os seus membros. § 5º Os membros do C.N.S.S. perceberão por sessão a que comparecem, a gratificação de representação de cinqüenta cruzeiros novos, a qual não poderá exceder, em conjunto, quatrocentos e oitenta cruzeiros novos por mês.’” Decreto-Lei n. 878, de 17 de setembro de 1969. 106 A composição do CNSS seria mais uma vez alterada pela Lei n. 5.944/73, porém, sem grande relevância para o presente estudo, uma vez que essa lei alterou apenas o artigo 5º, § 1º, de Decreto-Lei 5.697/43, estabelecendo que “o Conselho disporá de suplentes, em número de três, que substituirão, em sistema de rodízio, os membros efetivos, em seus impedimentos.” Lei n. 5.944, de 29 de novembro de 1973. 107 A necessidade de decisão judicial para dissolução da sociedade não representava uma garantia contra ingerências indevidas nas atividades associativas, pois o Ato Institucional n. 5 suspendera as garantias da magistratura, de modo que o Poder Judiciário estava fragilizado perante o Poder Executivo. 108 O Decreto n. 70.716, de 14 de junho de 1972, criou uma Secretaria-Executiva vinculada ao CNSS com a finalidade de estudar, planejar coordenar e executar as suas atividades meio e promover o levantamento de dados para análise e assessoramento de suas atividades-fim (art. 1º). 98 21 de setembro de 1973, que deixou de atribuir prazo de validade ao certificado provisório de entidade de fins filantrópicos concedido na forma do Decreto n. 1.117/62. Chegou-se, pois, à década de 1970 sem um programa de assistência social minimamente sistematizado. 2.6.4 A assistência social na década de 1970 O Ato Complementar n. 43, de 23 de janeiro de 1969, com alteração promovida pelo Ato Complementar n. 76, de 20 de outubro de 1969, estabeleceu que o Poder Executivo elaboraria Planos Nacionais de Desenvolvimento, com duração igual à do mandato do Presidente da República. O Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento – I PND (Lei n. 5.727, de 04 de novembro de 1971), foi elaborado no governo de Emílio Garrastazu Médici para ser desenvolvido entre 1972 e 1974. Entre os objetivos do I PND, estavam inserir o país entre as nações desenvolvidas no espaço de uma geração, aumentar a renda per capita da população e elevar a economia às dimensões resultantes de um crescimento anual do Produto Interno Bruto entre 8 e 10%. Como pressupostos para a consecução desses objetivos estavam a disseminação dos resultados do progresso econômico entre as várias classes de renda e regiões, a modernização das instituições e a estabilização política (I PND, tópico “objetivos nacionais”). Citando Sandroni, Matos (2002, p. 48) aponta ainda que o plano obteve um alto grau de execução na área econômica, mas projetos sociais tiveram execução inferior ao programado. Novamente a assistência social permaneceu inalterada. O Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND, aprovado pela Lei n. 6.151, de 04 de dezembro de 1974, foi lançado durante o governo de Ernesto Geisel, visando guiar a economia do país até 1979. O Brasil, nessa época, experimentava o esgotamento do milagre econômico 109 nacional 109 . Nesse cenário, o II PND buscava, entre outras medidas, garantir taxas de “O período de 1968-73 ao mesmo tempo em que é considerado o auge do ‘milagre econômico’ é também quando ficam evidentes as contradições, ou desequilíbrios, do crescimento exacerbado da 99 crescimento que permitissem a criação de empregos em níveis superiores ao do crescimento vegetativo da população (BOARATI, 2003, p. 32). Portanto, nas palavras de Stuchi (2010, p. 156), “a política social direciona-se ao exército de reserva de mão de obra usando essa demanda como justificativa para o crescimento do Estado”. As estratégias de desenvolvimento social indicadas no II PND foram: conjugação da política de emprego, política de valorização de recursos humanos, política de integração social e programa de desenvolvimento social (II PND, tópico “síntese”, item VII). Na esteira do II PND, desenvolveram-se ainda programas de saúde, educação, habitação, alimentação, desenvolvimento regional, entre outros (PEREIRA, 2006, p. 145-146). Além disso, a Lei n. 6.168, de 09 de dezembro de 1974, criou o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social – FAS, visando “dar apoio financeiro a programas e projetos de caráter social, que se enquadrem nas diretrizes e prioridades da estratégia de desenvolvimento social dos Planos Nacionais de Desenvolvimento”. A LBA passou a ser financiada com recursos do FAS (LIMA, 1994, p. 19). O Ministério da Previdência e Assistência havia sido criado em 01 de maio de 1974 pela Lei n. 6.036. Em 1º de setembro de 1977, a Lei n. 6.439 instituiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social – SINPAS, formado por diversas entidades, cujas receitas compunham o Fundo de Previdência e Assistência Social – FPAS110. A LBA foi integrada ao SINPAS, juntamente com outras entidades. economia brasileira. A piora na distribuição de renda foi alvo de debates e de críticas, inclusive internacionais, ao modelo de crescimento brasileiro, uma vez que a maior parte dos ganhos de crescimento econômico ficaram concentrados nas mãos de poucos dentro da sociedade. O debate surge em princípios de 1972 com base nos resultados do Censo de 1970 que mostraram que os índices de concentração de renda foram agravados entre 1960-1970” (BOARATI, 2003, p. 20). 110 “Art 4º - Integram o SINPAS as seguintes entidades: I - Instituto Nacional de Previdência Social - INPS; II - Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social - INAMPS; III - Fundação Legião Brasileira de Assistência - LBA; IV - Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor FUNABEM; V - Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social - DATAPREV; VI - Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social - IAPAS. § 1º - Integra, também, o SINPAS, na condição de órgão autônomo da estrutura do MPAS, a Central de Medicamentos - CEME.[...] Art 19 - A receita das entidades do SINPAS constituirá o Fundo de Previdência e Assistência Social FPAS, de natureza contábil e financeira, que será administrado por um colegiado integrado pelos dirigentes daquelas entidades sob a presidência do Ministro da Previdência e Assistência Social. Parágrafo único - Ao colegiado a que se refere o ‘caput’ deste artigo compete: I - pronunciar-se sobre as propostas orçamentárias das entidades do SINPAS e respectivas alterações; Il - aprovar previamente o Plano Plurianual de Custeio do SINPAS; 100 A Lei n. 6.439/77 atribuiu à LBA competência para “prestar assistência social à população carente, mediante programas de desenvolvimento social e atendimento às pessoas”. Isso incluía a função de prover serviços de assistência complementar não prestados diretamente pelo Instituto Nacional de Previdência Social – INPS e pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS, responsáveis pela previdência e pela saúde, respectivamente111. A atribuição dos “serviços de assistência complementar” à assistência social mostra que esta política era concebida como mecanismo de simples complementação de outros programas. De todo modo, a vinculação da LBA ao MPAS acarretou um aumento de 100% em seus recursos (SPOSATI; FALCÃO, 1989, p. 26 apud LIMA, 1994, p. 24), o que permitiu dinamizar o funcionamento da instituição (VIEIRA, 1986, p. 209 apud LIMA, 1994, p. 24). Porém, a preocupação demonstrada pelas medidas que reformularam a assistência social no âmbito do aparato governamental, não chegou a representar uma demonstração de autocrítica do governo; antes, representou uma “via de reaproximação do Estado com a sociedade” (PEREIRA, 2006, p. 144). Tais medidas surgiram com o propósito de conter e desmobilizar reações ao regime militar. Exemplo desse propósito de desarticulação foi o Decreto-Lei n. 1.632/78, conhecido como “Lei de Greve”, que dispunha sobre a proibição de greve em serviços públicos e atividades essenciais de interesse da segurança nacional112. III - aprovar os programas de aplicação patrimonial e financeira do SINPAS e respectivas alterações; IV - aprovar programas especiais de previdência e assistência social. Art 20 - A receita de cada entidade do SINPAS será representada pelos recursos que lhe forem atribuídos no Plano Plurianual de Custeio do SINPAS para custeio dos programas e atividades a seu cargo.” Lei n. 6.439, de 1º de setembro de 1977. 111 “Art 9º - A LBA compete prestar assistência social à população carente, mediante programas de desenvolvimento social e de atendimento às pessoas, independentemente da vinculação destas a outra entidade do SINPAS. Parágrafo único - Os serviços de assistência complementar não prestados diretamente pelo INPS e pelo INAMPS aos seus beneficiários poderão ser executados pela LBA conforme se dispuser em regulamento.” Lei n. 6.439, de 1º de setembro de 1977. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6439.htm>. Acesso em: 27 mar. 2011. 112 As atividades abrangidas pelo esse Decreto-Lei estavam delineadas em seu artigo 1º, a saber: “Art 1º - São de interesse da segurança nacional, dentre as atividades essenciais em que a greve é proibida pela Constituição, as relativas a serviços de água e esgoto, energia elétrica, petróleo, gás e outros combustíveis, bancos, transportes, comunicações, carga e descarga, hospitais, ambulatórios, maternidades, farmácias e drogarias, bem assim as de indústrias definidas por decreto do Presidente da República. § 1º Compreendem-se na definição deste artigo a produção, a distribuição e a comercialização. § 2º Consideram-se igualmente essenciais e de interesse da segurança nacional os serviços públicos federais, estaduais e municipais, de execução direta, indireta, delegada ou concedida, inclusive os do Distrito Federal” Decreto-Lei n. 1.632, de 4 de agosto de 1978. 101 Ainda no tocante à LBA, o Decreto n. 83.148, de 08 de fevereiro de 1979, aprovou alterações nos estatutos da entidade, incluindo a ampliação de sua finalidade, que passou a ser a de “promover, mediante o estudo do problema e o planejamento das soluções, a implantação e execução da política nacional de assistência social, bem como orientar, coordenar e supervisionar outras entidades executoras dessa política (art. 2º). O artigo 8º desse Decreto consagrou como objetivo principal da LBA “a prestação de assistência social à população carente, mediante programas de desenvolvimento social e de atendimento às pessoas, independentemente da vinculação destas a outra entidade do SINPAS”. Porém, esse mesmo dispositivo, ao definir as diretrizes de atuação manteve a preferência pelo atendimento indireto e a mescla entre assistência social e filantropia. A propósito, destacaram-se as previsões de convênio com entidades públicas ou privadas para execução de atividades de assistência social (art. 8º, IV); “campanhas para solução de problemas sociais de natureza temporária, cíclica, intermitente ou que possam ser debelados ou erradicados por essa forma” (art. 8º, VI); convênios com escolas, empresas, municipalidades, associações e instituições assistenciais e filantrópicas para execução de programas de assistência social (art. 8º, VIII); e de incentivo a iniciativas locais, “com ênfase no trabalho do voluntariado” (art. 8º, X)113. Ao lado das medidas impulsionadas pelos PNDs persistiu a regulamentação da filantropia. Nesse sentido, o Decreto n. 76.186, de 02 de setembro de 1975, tratou da isenção do imposto de renda e da dedutibilidade de doações efetuadas às entidades filantrópicas. Por outro lado, o Decreto n. 1.572, de 01 de setembro de 1977, ao revogar a Lei n. 3.577/69114, colocou um importante limite ao financiamento público das entidades privadas de assistência. 113 A título de comparação, registram-se ações semelhantes no Município de São Paulo, inclusive com a estratégia de conferir a entidades sociais a execução de diversas atividades. A partir da década de 1970, fortaleceram-se atividades de educação básica de assistência ao trabalho – com cursos de capacitação de mão de obra –, de atendimento à infância – do que as creches são o principal exemplo – e de atendimento à demanda por habitação. Em relação à habitação – demanda por moradias –, em 1978, a Prefeitura chegou a incumbir os assistentes sociais de remover novos núcleos de favelas, reafirmando o tratamento da pobreza por medidas policialescas (cf. SPOSATI, 1987, p. 419-438). 114 “Art. 1º Fica revogada a Lei nº 3.577, de 4 de julho de 1959, que isenta da contribuição de previdência devida aos Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões unificados no Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, as entidades de fins filantrópicos reconhecidas de utilidade pública, cujos diretores não percebam remuneração. § 1º A revogação a que se refere este artigo não prejudicará a instituição que tenha sido reconhecida como de utilidade pública pelo Governo Federal até à data da publicação deste Decreto-lei, seja portadora de certificado de entidade de fins filantrópicos com validade por prazo indeterminado e esteja isenta daquela contribuição. 102 2.6.5 Os últimos anos do regime militar Caminhando para o final da ditadura militar, resta analisar a legislação do governo Figueiredo (15 mar. 1979 - 15 mar. 1985). Nesse governo, o Decreto-Lei n. 1940, de 25 de maio de 1982, criou o Fundo de Investimento Social – FINSOCIAL, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Esse fundo tinha por fim “dar apoio financeiro a programas e projetos de caráter assistencial relacionados com alimentação, habitação popular, saúde, educação e amparo ao pequeno agricultor” (art. 3º). O FINSOCIAL coexistiu com outros fundos, como o FAS e o FPAS, o que favorece a desarticulação e a sobreposição de iniciativas. Já no que tange ao incentivo à filantropia, destaca-se o lançamento do Programa Nacional do Voluntariado – PRONAV em 1979. Além disso, registram-se outras medidas, como a Lei n. 7.113/83, que dispôs sobre a atualização do valor do selo previsto pela Lei n. 909/49, e o Decreto n. 91.030/85, que versou sobre o regulamento aduaneiro e dispôs sobre isenção de taxas de importação às instituições de assistência social. Cumpre observar, por fim, que durante o governo Figueiredo, aprovou-se o Terceiro Plano Nacional de Desenvolvimento – III PND, por meio da Resolução n. 1 do Congresso Nacional, de 20 de maio de 1980. Esse plano deveria abranger o período de 1980 a 1985, mas foi abandonado no segundo semestre de 1980 (MATOS, 2002, p. 69). Segundo Matos (2002, p. 70), “o III PND não pode ser considerado como um plano de desenvolvimento, mas como uma simples declarações de intenções pelo governo”. § 2º A instituição portadora de certificado provisório de entidade de fins filantrópicos que esteja no gozo da isenção referida no caput deste artigo e tenha requerido ou venha a requerer, dentro de 90 (noventa) dias a contar do início da vigência deste decreto-lei, o seu reconhecimento como de utilidade pública federal continuará gozando da aludida isenção até que o Poder Executivo delibere sobre aquele requerimento. § 3º O disposto no parágrafo anterior aplica-se às instituições cujo certificado provisório de entidade de fins filantrópicos esteja expirado, desde que tenham requerido ou venham a requerer, no mesmo prazo, o seu reconhecimento como de utilidade pública federal e a renovação daquele certificado. § 4º A instituição que tiver o seu reconhecimento como de utilidade pública federal indeferido, ou que não o tenha requerido no prazo previsto no parágrafo anterior deverá proceder ao recolhimento das contribuições previdenciárias a partir do mês seguinte ao do término desse prazo ou ao da publicação do ato que indeferir aquele reconhecimento.” Decreto-Lei n. 1.572, de 1º de setembro de 1977. 103 2.7 O período pré-Constituição Federal de 1988 Em 1985, depois de mais de duas décadas sob o regime militar, o país voltou a ter um governo civil, eleito de forma indireta, tendo José Sarney como Presidente. No período de transição da ditadura para o período de redemocratização do país, conhecido como “Nova República”, grande parte da população brasileira vivia em situação de pobreza ou indigência115. Lançou-se, nessa época, o Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República – I PND-NR, concentrado nos seguintes temas: crescimento econômico; combate à pobreza, à desigualdade e ao desemprego; educação, alimentação, saúde, saneamento, habitação, previdência e assistência social; justiça e segurança pública (MATOS, 2002, p. 72). Portanto, somente nessa ocasião a assistência social apareceu como um tema diretamente relacionado ao desenvolvimento do país. Todavia, inúmeros reveses econômicos inviabilizaram a implantação do I PND-NR (MATOS, 2002, p. 73). A LBA, nessa fase, buscou se firmar como agência de desenvolvimento social (LIMA, 1994, p. 25). Com esse intuito, adotou discurso favorável à revisão do papel da assistência social no Brasil e ao incremento de seu papel como instrumento de cidadania. Em 1987, a atuação fundada na identificação das categorias atendidas – idosos, crianças, mães, pessoas com deficiência etc. – foi substituída pela regionalização de programas. O propósito da mudança era fomentar associações comunitárias aptas a prestar serviços e celebrar convênios com a LBA (SPOSATI; FALCÃO, 1989, p. 31 apud LIMA, 1994, p. 25). Porém, o serviço prestado à população contradizia a pretensão da LBA de promover desenvolvimento social. Os recursos aplicados nos programas de atendimento, além de insuficientes, variavam sobremaneira. Um levantamento feito por Lima (1994, p. 51) indica que a transferência mensal feita pela LBA para atendimento de 8 horas em creches foi de 2,42 dólares per capita em 1985, 26,50 dólares em 1986, 10,63 dólares em 1987, 8,72 dólares em 1988 e 12,38 dólares em 1989. Mesmo considerando as oscilações da moeda 115 Mestriner (1992, p. 11, notas de rodapé 1 e 2) faz alusão a um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, publicado em dezembro de 1990, dando conta de que, no final da década, 40% da população do país vivia em situação de pobreza e 18% vivia em situação de indigência. A autora também menciona dado extraído da Pesquisa Nacional Sobre Saúde e Nutrição dando conta de que, em 1986, 61% dos casos de mortalidade infantil eram causados por desnutrição. 104 e a desvalorização da moeda brasileira frente ao dólar, pode-se perceber que, em alguns anos, o valor dessa transferência mal permitiria a alimentação das crianças atendidas nas creches. Teoricamente, esses recursos deveriam ser complementados com valores arrecadados junto às comunidades em que as unidades de atendimento estivessem instaladas. A propalada associação entre governo e sociedade civil deveria servir para este fim. Desse modo, as transferências governamentais, por meio da LBA, seriam “meros” incentivos para a articulação local. Porém, mais do que uma estratégia de incentivo à organização e emancipação local, essa expectativa representa a reiteração da ideia de que as comunidades devem dar conta da necessidade de seus membros e de que os beneficiários da assistência devem ofertar contrapartida pelo que recebem. Na prática, esse fomento ao protagonismo das comunidades levava muitas famílias de usuários dos serviços a oferecerem contraprestações como recursos materiais, trabalho gratuito ou subremunerado, compensando o baixo aporte de recursos (LIMA, 1994, p. 53-54). Por trás dessa prática, havia um claro propósito de promover um atendimento de baixo custo, convertendo a população que historicamente foi credora de serviços de qualidade em devedora desses mesmos serviços. Essa racionalidade não só falhou em relação aos resultados esperados como estigmatizou ainda mais as comunidades em situação precária. Isso porque não se levou em conta que uma comunidade é considerada “carente” exatamente pela falta de recursos materiais e humanos à disposição de seus membros para desenvolverem suas potencialidades e participarem da vida comunitária. Justificando o sucesso ou insucesso dos programas com base na maior ou menor adesão das comunidades, reforçava-se a crença de que aqueles que vivem precariamente são os principais causadores de suas condições de vida, sem se levarem em conta as reais possibilidades de que o envolvimento da comunidade ocorresse e fosse bem sucedido. Sobre esse discurso, Lima (1994, p. 45) apresenta a seguinte crítica: Esta estratégia assumiu perspectiva sistêmica no discurso proferido para justificar a expansão de programas de massa a baixo custo. O uso da palavra justificativa [...] não ocorre por acaso. Ela tem demarcado a perspectiva interpretativa de que o discurso não antecede a prática da LBA, mas a sucede, justificando-a. Ela mais parece ter uma função de argumento para justificar a implantação junto a esferas da 105 administração central e técnicas locais, do que para a clientela “parceira” de suas ações. Ele mais parece preservar o “nós, normais”, criando uma unidade de justificativas racionalizadoras para uma atuação pobre, se não paupérrima. O discurso sobre a pobreza, na LBA, vem justificando um atendimento pobre [...]. A respeito dessa forma de condução da assistência social, Sposati (1987, p. 315-316) afirma: É possível ser formulada uma tautologia, a pobreza dos brasileiros é tão grande que possibilita até uma pobre concepção do pobre e da pobreza. Com isto, qualquer sinalização como, a exemplo, minorar a desnutrição, já aparece como uma medida de ‘combate à pobreza’. Esquece-se que uma condição de vida de tal modo caracterizada por subnutrição, analfabetismo e doença constitui a concepção de pobreza absoluta, que se coloca à parte de qualquer definição razoável de decência humana (World Bank, 1980). O combate à pobreza é entendido comumente a partir do rebaixamento das condições de vida, o que termina levando a que propostas governamentais, ou não, dirigidas aos pobres sejam operadas como “pobres soluções”. Os pobres terminam, também, sendo mais pobres pela pobreza dos serviços com que contam. Além da ausência numérica de serviços frente à demanda, eles contam com suas “ausências qualitativas genéticas” na medida em que se dirigem aos segmentos mais pobres da população. Em suma: havia um discurso que prestigiava políticas sociais. Porém, a prática governamental contrariava a preocupação externalizada nos discursos. Diante disso, não causa estranheza que a LBA tenha vivido sua segunda ameaça de extinção durante os trabalhos da Assembleia Constituinte. Essa extinção havia sido defendida pelos que criticavam a estrutura da instituição e pelos que defendiam a municipalização da assistência social. Em contraste, funcionários e políticos que se beneficiavam da estrutura da LBA defendiam sua manutenção (LIMA, 1994, p. 17). 2.8 Uma síntese da assistência social até a Constituição Federal de 1988 Após traçar essa evolução, pode-se concordar com a afirmação de Mestriner (2011, p. 16) de que, até 1988, o Estado brasileiro resistiu a tratar a assistência social como política, o que explica o porquê de os deveres do Estado nessa seara serem pouco claros. 106 Na verdade, a assistência social voltou-se a atendimentos pontuais e emergenciais, limitados a alguns grupos de indivíduos, mas não aos grandes contingentes de pessoas em situação de pobreza. O exame da legislação brasileira denota que a ação estatal em matéria de assistência social consistiu, essencialmente, na disciplina do apoio financeiro às organizações privadas (MESTRINER, 2011, p. 17) e no atendimento indireto ao público (LIMA, 1994, p. 11). Chama a atenção ainda a ausência de coordenação entre os níveis federativos. A falta de coordenação se reflete tanto na sobreposição de ações, quanto na ausência de programas de assistência. Para esse quadro concorrem fatores como a falta de sistematização da assistência social e um sistema tributário que favorece o poder central, deixando instâncias locais sem capacidade financeira para fazerem frente a encargos sociais. Ainda sobre a falta de capacidade financeira das instâncias locais, ressalta-se que as instâncias municipais, pela sua proximidade com a população, acabam sendo bastante solicitadas para atenderem demandas relativas ao bem-estar da população. Como muitas dessas demandas podem ser subsumidas ao significado da expressão peculiar interesse – a reger as competências municipais –, abre-se ensejo a que os Municípios – seja para incorporar reivindicações populares, seja para reforçar práticas populistas e clientelistas –, prestem serviços que estariam a cargo da União116. No entanto, sem a contrapartida orçamentária, esses investimentos são prejudicados pela baixa qualidade e pela descontinuidade dos serviços prestados e se tornam fontes de embates internos na burocracia municipal e entre os outros níveis federativos (cf. SPOSATI, 1987, p. 156-174). 116 Sobre os percalços advindos da discrepância entre competências e fontes de financiamento de investimentos sociais, Sposati (1987, p. 173) avalia que: “[à] medida que, conforme mostra Cipollari, as transferências intergovernamentais de recursos tendem a ser descontínuas, ou ainda, como diz José Afonso, dependentes ‘de negociação, geralmente casuística (o que) compromete a possibilidade de sustentação futura dos níveis de atendimento de alguns programas sociais’ (Afonso, 1985, p. 38), é de se inferir o peso que tais pressões populares representam nessas negociações. Assim, órgãos municipais que gerenciam encargos sociais, principalmente em conjunturas de expansão de serviços, serão palco de possíveis turbulências. Há uma fragilidade na continuidade do financiamento dos encargos sociais municipais e, com isso, eles se rederem mais a acertos de caráter casuístico e emergencial, que não garantem de imediato sua permanência, senão por forte pressão popular. [...] Assim, possivelmente, os encargos sociais tendam a se conformarem de modo diferencial entre as gestões municipais devido à capacidade e à forma de administrar a pressão popular dos diferentes grupos do poder”. 107 No tocante ao conteúdo dos programas de assistência, verifica-se que o combate à pobreza ia pouco além do necessário à sobrevivência física da população destinatária dessas medidas. Preocupações com participação na vida comunitária, autonomia das populações atendidas e mudanças estruturais nas relações sociais não se fizeram presentes nas práticas governamentais. A seu turno, a atuação da LBA se fez com o reforço de estigmas em torno da população pobre, especialmente feminina, com a concessão de ajudas individuais e com o recurso às “sobras” – de recursos materiais, de tempo ocioso e de trabalho – das comunidades. Porém, as práticas desenvolvidas no seio desta instituição evidenciam falta de planejamento e de fixação de padrões mínimos de qualidade no atendimento prestado, de forma direta ou indireta. Persistiu assim a concepção da pobreza como fruto de fracassos individuais, a ser remediada por medidas pontuais de apoio a mães e crianças pequenas (LIMA, 1994, p. 34). É bem verdade que a LBA passou por diversas alterações estatutárias. Porém, segundo Lima (1994, p. 23), essas mudanças mostram o propósito “de a instituição se adequar a cada momento da conjuntura do País, como se a pobreza no Brasil fosse de natureza conjuntural”. A autora ressalta ainda que essas sucessivas mudanças de orientação eram acompanhadas de discursos de negação e crítica ao que vinha sendo desenvolvido, mostrando que não havia projeto de médio e longo prazo. A propósito dos discursos da LBA, Lima (1994, p. 28) afirma: Estes discursos, via de regra, anunciam uma prática nova, justificam ou criticam a prática anterior. Não parecem discursos orientadores de uma ação programática, mas, ao contrário, justificadores. Podemos entender a diversidade de discursos: foram emitidos em diversas épocas, por diversos autores, para diversos interlocutores. Um dos recortes mais marcantes dessa diversidade discursiva pode ser detectado na concepção de assistência social que vem sendo veiculada pela instituição. A cada nova gestão, a cada novo estatuto o discurso muda. Mas há elementos estruturais constantes: critica-se o velho e postula-se o novo. A LBA ressurge, ilesa da fogueira crítica em que se queimou o passado. E a instituição permanece e sobrevive. Os erros são do passado e a esperança é nova. Ao lado da má organização dos serviços, o insucesso das políticas de assistência social deveu-se a questões estruturais, relacionadas ao modo pelo qual ocorria a produção e distribuição de recursos econômicos. Significa afirmar que medidas de enfrentamento à pobreza não foram conjugadas com outras medidas de 108 redistribuição de renda, necessárias à redução da pobreza estruturalmente constituída. Isso mostra a opção política por um perfil de distribuição de renda gerador de níveis de desigualdade social. Nesse contexto, é fácil compreender porque as políticas sociais e, de modo particular, políticas de assistência social – por serem concebidas exatamente para os grupos mais gravemente destituídos de meios de sobrevivência –, não ultrapassaram a medida estritamente necessária à sobrevivência física das populações mais pobres e não chegaram a entrar em rota de colisão com a acumulação de riquezas e de poder pelas elites econômicas e políticas do país. Em meio a um cenário absolutamente desfavorável, deve-se à criação dos cursos de serviço social a defesa de uma atuação mais técnica e racional em matéria de assistência social. Porém, nem sempre esse trabalho mais criterioso e fundado na solidariedade social teve espaço no Poder Público, antagonizando o trabalho fundado da filantropia e no apelo à solidariedade individual do qual o chamado “primeirodamismo” é exemplo. Isso explica o porquê de muitos profissionais do serviço social terem buscado espaços de militância política – e não postos de trabalho técnicos existentes no aparelho governamental –, para defender uma prática mais transformadora da assistência social. No Brasil, essa mudança de perspectiva foi favorecida a partir da década de 1980, no período que antecedeu a nova ordem constitucional e, mais intensamente, a partir da nova ordem constitucional. De todo modo, não se pode afirmar que o Estado brasileiro tenha tratado da assistência social como parte de um direito à proteção social em algum momento anterior à Constituição Federal de 1988. 3 DIRETRIZES DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 3.1 Considerações iniciais O período que antecedeu a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi profícuo em debates sobre direitos sociais e o direito à assistência social foi um dos temas discutidos. Embora desde a década de 1970 houvesse um forte movimento pela revisão do papel adjutório117 da assistência social, foi na década de 1980 que essas propostas encontram meios de se traduzirem em novas instituições e nova regulação das relações entre Estado e sociedade civil. Nessa transição, a assistência social se distanciou da filantropia, passou por um período de coexistência de concepções em certos pontos antagônicas – uma preocupada com o atendimento de situações de emergência, por meio de ações privadas e caritativas; outra voltada para a conquista de direitos – e se encaminhou para a consolidação da assistência como política pública118. Como resultado, as preocupações relativas à assistência social deixaram de gravitar em torno de questões pontuais relativas à pobreza119 (cf. DRAIBE, 1990, p. 19 apud LIMA, 1994, p. 3) e se voltaram para a concretização de direitos básicos de cidadania, especialmente igualdade, segurança econômica, participação política e autonomia. 117 Sposati (1987, p. 337) aponta que o caráter adjutório da assistência social se reflete na maneira como suas ações são empreendidas e na destinação de recursos financeiros, materiais e humanos. Além disso, critica a autora, “[a] irresponsabilidade que tal caráter confere a esta área de ação não a faz merecedora de qualquer sanção pública. Aliás, não há opinião pública a seu respeito. Seu público ‘a outra humanidade’ não tem voz reconhecida na sociedade burguesa” SPOSATI (1987, p. 337). 118 Como marca desse reposicionamento, o termo promoção social é empregado no lugar de assistência social (MESTRINER, 2011, p. 169). 119 Ao tratar de abordagens teóricas das políticas sociais, Coimbra (1987, p. 65-104), citando Ramesh Mishra, descreve o modelo que chama de “perspectiva do serviço social”. Cuida-se de um modelo de caráter empírico e pragmático – cujo foco de atenção é o estudo de problemas locais, com pouca atenção para aspectos generalizantes e comparativos –, que se afasta de preocupações teóricas e especulativas. Para o autor, essa perspectiva padeceria de um “empirismo ingênuo”, limitadora de análises mais críticas sobre sua própria prática. Evitando generalizações em relação aos profissionais do serviço social, o autor se preocupa em não confundir a “perspectiva” do serviço social com a “profissão” do serviço social. Porém, salienta que, ao longo de anos, uma e outra estiveram bastante ligadas, até que essa perspectiva passou a ser criticada e foi substituída por outras referências. A partir da análise apresentada pelo autor, é possível entrever na mudança de atuação dos profissionais do Serviço Social a preocupação em ampliar a análise crítica das necessidades sociais, ao invés de buscar apenas soluções pontuais para questões atinentes à pobreza. 110 No período de 1985 a 1990, aponta Carro (2008, p. 172), a assistência social foi amplamente debatida e a articulação entre intelectuais e profissionais dessa área resultou em propostas de ação construídas coletivamente120. O tratamento constitucional da assistência social como tema de responsabilidade pública foi, evidentemente, o resultado mais importante dessa mobilização. O processo de reconquista de um novo regime foi tão longo e árduo, que legitimá-lo, significava torná-lo realidade institucional. Era como se, pela via da nova Constituição estar-se-iam solucionando os graves problemas vividos pelo país, recuperando a dívida social acumulada no período ditatorial e avançando no resgate da cidadania do povo brasileiro. (MESTRINER, 1992, p. 09) E foi no bojo da Constituição Federal de 1988 que se delineou um Estado de Bem-Estar e se consagrou um rol de direitos sociais do qual a assistência social faz parte. Apesar dos antagonismos sobre o papel do Estado que marcaram a Constituinte e que perduram até hoje, e apesar dos inúmeros percalços ainda enfrentados na implantação dos direitos sociais, os fundamentos das políticas sociais foram substancialmente alterados. No campo específico da assistência social, a mudança de paradigma foi de tal ordem que exige um árduo esforço de ruptura com a cultura da filantropia vigente até 1988. Neste capítulo, pretende-se identificar na Constituição Federal de 1988 as disposições que devem pautar a compreensão e a efetivação do direito à assistência no país. Para tanto, serão analisadas as normas que condicionam as políticas sociais como um todo, bem como as normas que delineiam o sistema de seguridade social e, no âmbito desse sistema, as que tratam especificamente da assistência. 3.2 Estado de Bem-Estar A Constituição Federal de 1988 consagra um modelo de Estado de Bem-Estar, razão pela qual importa analisar como surgiu esse modelo e qual é seu significado atual. 120 A experiência acumulada no trabalho dos órgãos assistenciais, o contato com movimentos da sociedade civil e o próprio amadurecimento teórico dos profissionais do serviço social devem ser sempre ressaltados. Atentos ao agravamento da crise social e do autoritarismo, esses profissionais e estudiosos, ao lado de segmentos da sociedade civil, vinham discutindo a assistência social sob a perspectiva da “dinâmica contraditória das respostas do Estado à questão social” (RAICHELIS, 2011, p. 21). Portanto, havia um ambiente propício à crítica das práticas desenvolvidas no âmbito da burocracia estatal (MESTRINER, 2011, p. 164). 111 O processo histórico que resultou na formação do Estado de Bem-Estar desenvolveu-se na Europa e nos Estados Unidos entre as últimas décadas do século XIX e a primeira metade do século XX. No interregno compreendido entre as duas Guerras Mundiais, intensificou-se a participação estatal na proteção ao emprego e no atendimento de necessidades básicas da população121. Finalmente, na década de 1940, após a Segunda Guerra Mundial, chegou-se às fórmulas mais bem acabadas do Estado de Bem-Estar. Esse fenômeno resulta de um conjunto de causas. Impulsionadas pelas disfunções da sociedade industrial e pela difusão do pensamento marxista, as lutas sociais ganharam corpo e mudaram significativamente as condições de vida do proletariado à época (ROSANVALLON, 1995, p. 07), com destaque para a expansão de direitos trabalhistas. Somam-se a esses fatores os resultados de duas Guerras Mundiais, que impulsionaram esforços de reconstrução social e econômica, mediante a promoção do acesso à saúde, à educação, à assistência, à previdência etc. Nesse cenário, o Estado de Bem-Estar se caracteriza pela maior intervenção do Estado nas relações sociais. Essa intervenção, como aponta Rosanvallon (1995, p. 7), tem como objetivo central livrar a sociedade da necessidade e proteger o indivíduo contra os principais riscos da existência. Para a consecução desse fim, a intervenção estatal destinada a prover necessidades da população e oferecer proteção social constitui direito dos cidadãos – não benesse. O Estado de Bem-Estar representa o fim da oposição entre direitos civis e políticos, de um lado, e, de outro, direito à subsistência (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 417). Essa oposição ficara muito clara na experiência das Workhouses – em que a perda da liberdade era contrapartida dos mínimos de subsistência. Nesse novo cenário, as garantias de acesso a bens econômicos, sociais ou 121 “Os anos 20 e 30 assinalam um grande passo para a constituição do Welfare State. A Primeira Guerra Mundial, como mais tarde a Segunda, permite experimentar a maciça intervenção do Estado, tanto na produção (indústria bélica), como na distribuição (Gêneros alimentícios e sanitários). A grande crise de 29, com as tensões sociais criadas pela inflação e pelo desemprego provoca em todo o mundo ocidental um forte aumento das despesas públicas para a sustentação do emprego e das condições de vida dos trabalhadores. Mas as condições institucionais em que atuam tais políticas são radicalmente diversas: enquanto nos países nazifascistas a proteção ao trabalho é exercida por um regime totalitário, com estruturas de tipo corporativo, nos Estados Unidos do New Deal, a realização das políticas assistenciais se dá dentro das instituições políticas liberal-democráticas, mediante o fortalecimento do sindicato industrial, a orientação da despesa pública à manutenção do emprego e à criação de estruturas administrativas especializadas na gestão dos serviços sociais e do auxílio econômico aos necessitados.” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 417). 112 culturais representam o desenvolvimento dos direitos civis e políticos, não sua contraposição. A partir das décadas de 1970 e – sobretudo – 1980, retornaram com mais força os problemas de privação e insegurança social que o Estado Providência buscou contornar. Porém, as causas desses fenômenos contemporâneos são diversas daquelas que resultaram no desenvolvimento dos modelos de bem-estar social. Por isso, as soluções para esses problemas não podem ser encontradas com a mera repetição de fórmulas já empregadas. Rosanvallon (1995, p. 10-11) assevera que o Estado Providência tradicional opera compensando disfunções passageiras e o compara a uma “máquina de indenizar”. Em um cenário de desocupação em massa e de aumento de exclusão, prossegue o autor, os mecanismos compensatórios dos direitos sociais se mostram inadequados para lidar com situações de desagregação estruturais e estáveis. Daí se falar em crise do Estado Providência. Ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988, portanto, muitos países já tratavam dessa crise e adotavam medidas de cunho liberal para diminuir a responsabilidade estatal na promoção do bem-estar social. Ocorre que o discurso e as políticas favoráveis ao retorno ao Estado mínimo e à desregulação da economia foram incorporados às agendas de países periféricos. Mesmo países que não chegaram a caminhar no sentido da implantação de um modelo de bemestar social passaram a ter suas políticas pautadas pela noção de crise do Estado Providência. Como afirma Santos (2009, p. 155), “esses países assumem a ideia de crise do Estado Providência sem nunca terem usufruído verdadeiramente deste”. Aplicada à realidade brasileira, a observação de Santos recomenda cautela na adoção de discursos e práticas fundados na necessidade de “enxugar” a máquina estatal. Embora a crise do Estado Providência esteja ligada a questões globais, que atingem países periféricos e desenvolvidos, as soluções encontradas para contornar essa crise são, no mais das vezes, calcadas em experiências inaplicáveis à realidade nacional. E, nesse sentido, as medidas de desregulação da economia e redução de políticas sociais concebidas para países desenvolvidos não podem ser aplicadas de forma acrítica aos países periféricos, sob pena de acirramento da exclusão social e ruptura de tecidos sociais já frágeis. 113 Além disso, tanto nos países desenvolvidos como nos periféricos, é cada vez mais evidente que não se pode prescindir de formas de intervenção pública visando promover proteção social exatamente contra as necessidades sociais e contra a insegurança social. Portanto, os propósitos que resultaram na concepção de Estados de Bem-Estar, assim como seus objetivos centrais, não perderam sua atualidade. O que mudou foram as questões a serem enfrentadas e, por isso mesmo, os mecanismos que podem ou não lograr êxito no enfrentamento das novas expressões da insegurança social. Frente a las fracturas sociales que se agravaron durante los años ochenta, la intervención pública, en efecto, recuperó toda su justificación. La ideología del Estado ultramínimo posó de moda. A partir de entonces, todo el mundo reconoció el papel insoslayable del Estado providencia para mantener la cohesión social. Lo importante es ahora repensarlo de modo que pueda seguir desempeñando positivamente su papel. La refundación intelectual y moral del Estado providencia se ha convertido en la condición de su supervivencia. (ROSANVALLON, 1995, p. 10) 3.3 Cidadania, dignidade humana e valor social do trabalho como fundamentos da República Federativa do Brasil A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, incisos II e III, estabelece a cidadania e a dignidade humana entre os fundamentos da República. São estas as bases sobre as quais as relações entre Estado e indivíduos ou apenas entre indivíduos devem ser estruturadas. Cidadania e dignidade humana implicam-se reciprocamente (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2010, p. 123) e comportam variadas definições. Sem a pretensão de exaurir a discussão sobre tais definições, interessa identificar em que sentido essas expressões são empregadas. 3.3.1 Cidadania O vocábulo cidadania, mesmo se analisado sob um viés estritamente jurídicopositivo, comporta diversas acepções 114 Esse termo pode ser empregado como referência à nacionalidade ou à titularidade de direitos políticos. Quando a Constituição Federal, por exemplo, assegura que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular” (art. 5º, LXXIII), adota essa acepção, pois considera cidadão o “nacional no gozo de direitos políticos” (SILVA, 2005, p. 463). Quando Ferreira Filho (1997, p. 112) refere-se à “cidadania em sentido estrito” e a define como “o status de nacional acrescido dos direitos políticos (stricto sensu), isto é poder participar do processo governamental, sobretudo pelo voto”, também segue essa linha mais restritiva. Por fim, Carvalho (2006, p. 461) também enfatiza que cidadania é o “status do nacional para o exercício dos direitos políticos”. Por outro lado, cidadania é expressão que também se relaciona a um conjunto mais amplo de direitos. Nesse sentido, correlaciona-se com dignidade da pessoa humana, igualdade material e formal, bem como participação na vida social e política. No artigo 1º da Constituição Federal, o vocábulo cidadania é empregado com este último significado, ligado ao conjunto de direitos (e deveres) atribuídos a todos os membros da sociedade. Confira-se a propósito, o que ensina Silva (2005, p. 104): A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal (art. 5º, LXXVII). No mesmo sentido, Araujo e Nunes Júnior (2010, p. 123) comentam o artigo 1º da Constituição Federal nos seguintes termos: A expressão cidadania, aqui indicada como fundamento da República, parece não se resumir à posse de direitos políticos, mas, em acepção diversa, parece galgar significado mais abrangente, nucleado na ideia, expressa por Hanna Arendt, do direito a ter direitos. Na linha desse posicionamento mais amplo sobre cidadania, convém analisar duas referências esclarecedoras que têm em comum o fato de estabelecerem um liame entre cidadania, igualdade e acesso a um conjunto de direitos. A primeira delas é a concepção de cidadania como “direito a ter direitos”, na forma cunhada por Hannah Arendt. Essa definição – que, ressalte-se, não foi elaborada com vistas à discussão sobre direitos sociais – sintetiza a importância da garantia de acesso a direitos como aspecto principal da cidadania. Esse pensamento, sintetizado em uma expressão simples e categórica, influenciou a reflexão em torno dos direitos fundamentais. 115 A segunda referência está na obra de Thomas Humphrey Marshall, que se aprofunda na relação entre cidadania e igualdade, inaugurando uma concepção de cidadania atrelada à democracia e à noção de classes sociais122. O autor destaca ainda um aspecto de particular importância para o estudo da assistência social: o direito a um patamar mínimo de bem-estar e segurança como componente da cidadania. 3.3.1.1 Cidadania como direito a ter direitos Refletindo sobre a condição dos apátridas e refugiados no século XX, com especial destaque para o período iniciado pela Segunda Mundial, Arendt (1989) realçou de forma singular a importância da cidadania para a proteção ou desproteção dos seres humanos. Na segunda parte de Origens do Totalitarismo, a autora destaca como o pertencimento do ser humano a uma comunidade organizada se mostrou imprescindível, exatamente, à proteção de sua condição humana. Em contraste, demonstrou que a perda de direitos nacionais leva à perda de direitos humanos (ARENDT, 1989, p. 325-326). A perda do vínculo jurídico com um Estado, por meio da privação da nacionalidade, implica a perda de vínculos com a ordem jurídica internacional e a impossibilidade de estabelecer vínculos com outro Estado, ou a extrema dificuldade em fazê-lo. Nas palavras da autora: A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo [...]. Algo mais fundamental do que a liberdade e a justiça, que são os direitos do cidadão, está em jogo quando deixa de ser natural que um homem pertença à comunidade em que nasceu, e quando o não pertencer a ela não é um ato da sua livre escolha, ou quando está numa situação em que, a não ser que cometa um crime, receberá um tratamento independente do que ele faça ou deixa de fazer. [...] Só conseguimos perceber a existência de um direito a ter direitos (e isto significa viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e 122 “Embora o tema da cidadania tenha sido central no pensamento político e social do Ocidente, tendo origem na Grécia, a moderna concepção de direitos, associada à democracia e às classes sociais, foi efetivamente obra de Marshall. Foi ele quem preencheu uma lacuna na teoria política ocidental, elaborando uma das mais bem concatenadas e sugestivas reflexões sobre as razões sociais e históricas da emergência do Estado de Bem-Estar do segundo pós-guerra e dos motivos morais que o justificam.” (PEREIRA, 2009, p. 95). 116 opiniões) e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade organizada, quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e não podiam recuperá-los devido à nova política global. O problema não é que essa calamidade tenha surgido não de alguma falta de civilização, atraso ou simples tirania, mas sim que ela não pudesse ser reparada, porque já não havia qualquer lugar “incivilizado” na terra, pois, queiramos ou não, já começamos realmente a viver num Mundo Único. Só com uma humanidade completamente organizada, a perda do lar e da condição política pode equivaler a sua expulsão da humanidade. (ARENDT, 1989, p. 330) Portanto, a perda do estatuto político acarreta a perda da possibilidade de um ser humano ser tratado como um semelhante por outros seres humanos. Se um ser humano perde o seu status político, deve, de acordo com as implicações dos direitos inatos e inalienáveis do homem, enquadrar-se exatamente na situação que a declaração desses direitos gerais previa. Na realidade, o que acontece é o oposto. Parece que o homem que nada mais é que um homem perde todas as qualidades que possibilitam aos outros tratá-lo como semelhante. (ARENDT, 1989, p. 334) Demonstra-se, assim, que a perda da cidadania implica também a privação de direitos e a perda do direito à vida pública, a um espaço na comunidade. É a percepção da relevância da cidadania como pertencimento a uma comunidade organizada, que leva à afirmação de que o primeiro direito humano é o direito a ter direitos123. Nessa medida, a cidadania é um pressuposto de outros direitos124. Lafer (1988, p. 152) explica ainda que, na linha do que afirma Paolo Flores d’Arcais, a concepção arendtiana de participação na esfera pública pressupõe um mínimo de igualdade material. Para o autor há “um ideal redistributivo necessário para reduzir, na esfera do privado, as diferenças sociais derivadas da desigualdade 123 Lafer (1988, p. 153-154) explica: “É justamente para garantir que o dado da existência seja reconhecido e não resulte apenas do imponderável da amizade, da simpatia ou do amor no estado de natureza, que os direitos são necessários. É por essa razão que Hannah Arendt realça, a partir dos problemas jurídicos suscitados pelo totalitarismo, que o primeiro direito humano é o direito a ter direitos. Isto significa pertencer, pelo vínculo da cidadania, a algum tipo de comunidade juridicamente organizada e viver numa estrutura onde se é julgado por ações e opiniões, por obra do princípio da legalidade. A experiência totalitária é, portanto, comprobatória, no plano empírico, da relevância da cidadania e da liberdade pública enquanto condição de possibilidade, no plano jusfilosófico de asserção da igualdade, uma vez que a sua carência fez com que surgissem milhões de pessoas que haviam perdido seus direitos e que não puderam recuperá-los devido à situação política do mundo, que tornou supérfluos os expulsos da trindade Estado-Povo-Território”. 124 “O que ela afirma é que os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas como fato e um meio, mas sim como um princípio, pois a privação da cidadania afeta substantivamente a condição humana, uma vez que o ser humano privado de suas qualidades acidentais – o seu estatuto político – vê-se privado de sua substância, vale dizer: perde a sua qualidade substancial, que é de ser tratado pelos outros como um semelhante.” (LAFER, 1988, p. 151). 117 econômica à escala do razoável e permitir aos homens que não sejam apenas diferentes, mas possam ter condições para distinguir-se na esfera pública”. A concepção de cidadania como “o direito de ter direitos, ou o direito de cada indivíduo de pertencer à humanidade” (ARENDT, 1989, p. 332), comporta diversas aplicações e, até por isso, não perde sua atualidade. As ideias desenvolvidas pela autora conduzem à necessidade de garantir a todos os indivíduos o acesso ao conjunto de direitos que o tornem membro de uma comunidade organizada e igualitária125. A ideia de cidadania nos termos expostos por Arendt comporta a noção de igualdade de acesso a direitos, o que demanda igualdade formal e material. 3.3.1.2 Cidadania como conjunto de direitos Também após a Segunda Guerra Mundial, mas com preocupações diferentes das de Hannah Arendt, Marshall explorou a relação entre cidadania e igualdade em uma obra que rapidamente se tornou referência no assunto. Trata-se de uma teoria elaborada no fim da década de 1940, originalmente apresentada como uma conferência intitulada “Cidadania e classe social” (Citizenship and Social Class). Esse trabalho de Marshall influenciou estudos relativos à política social e “ajudou a dimensionar a compreensão da política social para além de uma visão paternal ou contratual” (PEREIRA, 2009, p. 95). Dada a relevância da obra como justificativa do modelo de Estado de Bem-Estar – ainda que possa ser considerada insuficiente para dar conta de todos os problemas de desigualdade e exclusão social contemporâneos –, há que se reconhecer seu impacto na base dos movimentos que marcaram a elaboração da Constituição Federal de 1988. Marshall conceitua cidadania como “um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade”126. Ele afirma ainda que esse conceito 125 “O grande perigo que advém da existência de pessoas forçadas a viver fora do mundo comum é que são devolvidas, em plena civilização, à sua elementaridade natural, à sua mera diferenciação. Falta-lhes aquela tremenda equalização de diferenças que advém do fato de serem cidadãos de alguma comunidade [...]” (ARENDT, 1989, p. 335). 126 Vale transcrever toda a passagem: “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão, mas as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam 118 subdivide-se em três elementos, correspondentes a três “blocos” de direitos: civis, políticos e sociais. Segundo ele, antes de existir distinção entre as funções do Estado, essas três ordens de direitos estariam fundidas. Com a especialização das funções estatais e das instituições responsáveis pelo seu exercício, esses conjuntos de direitos se distanciaram e se desenvolveram em ritmo diverso. Por isso, durante séculos estiveram afastados uns dos outros e a reaproximação seria um fenômeno próprio do século XX127. Nessa concepção tripartite do conceito de cidadania, o elemento civil é composto pelos “direitos necessários à liberdade individual” e sua formação remonta ao século XVIII. O elemento político, a seu turno, consiste no “direito de participar no exercício do poder político” e seu desenvolvimento teria ocorrido, segundo o autor, no século XIX. Por fim, o elemento social “se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” e seria uma formação do século XX (MARSHALL, 1967, p. 63-64)128. As ideias de Marshall se destacam exatamente no que tange ao conjunto de direitos sociais e sua interação com a noção de cidadania. A definição de direitos sociais – “tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” – é uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e em relação à qual a aspiração pode ser dirigida. A insistência em seguir o caminho assim determinado equivale a uma insistência por uma medida efetiva de igualdade, um enriquecimento da matéria-prima do status e um aumento no número daqueles a quem é conferido o status.” (MARSHALL, 1967, p. 76). 127 “Nos velhos tempos, êsses três direitos estavam fundidos num só. Os direitos se confundiam porque as instituições estavam amalgamadas [...] os direitos sociais do indivíduo igualmente faziam parte do mesmo amálgama e eram originários do status que também determinava que espécie de justiça êle podia esperar e onde podia obtê-la, e a maneira pela qual podia participar da administração dos negócios da comunidade à qual pertencia. Mas esse status não era de cidadania no moderno sentido da expressão. Na sociedade feudal, o status era a marca distintiva de classe e a medida de desigualdade. [...] Sua evolução envolveu um processo duplo, de fusão e de separação. [...] quando as instituições, das quais os três elementos da cidadania dependiam, se desligaram, tornou-se possível para cada um seguir seu caminho próprio, viajando numa velocidade própria sob a direção de seus próprios princípios peculiares. Antes de decorrido muito tempo, estavam distantes um do outro, e somente no século atual, na verdade, eu poderia dizer apenas nos últimos meses, é que os três corredores se aproximaram um dos outros. [...] Quando os três elementos da cidadania se distanciaram uns dos outros, logo passaram a parecer elementos estranhos entre si.” (MARSHALL, 1967, p. 64-65). 128 Coimbra (1987, p. 82) salienta, com razão, que essas indicações temporais dizem respeito à história da Inglaterra, e não à história da sociedade moderna em geral, pois o desenvolvimento da cidadania ocorreu em épocas muito diferentes em muitos outros países. O autor ressalta ainda que, no caso dos países socialistas, houve uma ruptura da ordem exposta por Marshall – e que ele “aparentemente supunha necessária” –, com a afirmação nos direitos sociais em primeiro lugar. 119 bastante imprecisa. Porém, a importância de sua obra não está na definição, mas sim no destaque conferido aos direitos sociais para a configuração da cidadania (COIMBRA, 1987, p. 83-85). Dessa forma, Marshall demonstra uma relação indissociável entre cidadania e igualdade129, tanto em seu aspecto formal quanto material130. Como resultado dessa construção, tem-se que a cidadania pressupõe o acesso a um mínimo de bens e serviços disponíveis em cada sociedade, sem os quais as condições de vida são consideradas intoleráveis. Nas palavras de Oliveira (RAICHELIS, 2011, Prefácio, p. 18), Marshall mostra que a cidadania “é a arma insubstituível para a erradicação da miséria e da indignidade que grassam na sociedade brasileira”. A conclusão de Marshall não é diferente da afirmação de Castel (2011, p. 107), para quem o pleno exercício da cidadania social “exige um mínimo de recursos e de direitos sociais que estão na base da independência social dos indivíduos”. Essa concepção, além de influenciar a definição de quais serviços e benefícios devem ser disponibilizados, exige atenção na definição de como e mediante quais requisitos os direitos sociais serão efetivados, uma vez que cidadania exige também que nenhum estigma derive do uso de serviços sociais131. Nas palavras de Parker: Defender uma distribuição de serviços e recursos baseada nos princípios da cidadania é afirmar que as condições individuais de vida devem ser protegidas por decisões políticas que garantam níveis aceitáveis de cuidados médicos e sociais, de educação, de renda e assim por diante, independentemente do poder de barganha de cada indivíduo. Todos teriam de ter os mesmos direitos de compartilhar tudo aquilo que fosse fornecido, nos mesmos termos que qualquer outra pessoa. Necessidades iguais teriam de receber tratamento igual, sem nenhuma discriminação a favor ou contra quaisquer grupos sociais, econômicos, políticos e raciais. A idéia de cidadania implica 129 Essa relação pode ser ilustrada por um exemplo brasileiro: as Constituições de 1824 e 1891, que restringiam o direito ao voto, também silenciavam quanto a garantias individuais de acesso a serviços e prestações para atender necessidades humanas básicas. 130 Marshall considera, contudo, aceitável a desigualdade decorrente de fatores como propriedade, educação e sistema econômico, insurgindo-se apenas contra o grau dessa desigualdade. É que se depreende dos excertos: “É verdade que a classe social ainda funciona. Considera-se a desigualdade social como necessária e proposital. Oferece o incentivo ao esforço e determina a distribuição de poder. Mas não há nenhum padrão geral de desigualdade no qual se associe um valor adequado, a priori, a cada nível social. A desigualdade, portanto, embora necessária pode tornar-se excessiva.” (MARSHALL, 1967, p. 77) e “desigualdades podem ser toleradas numa sociedade fundamentalmente igualitária desde que não sejam dinâmicas, isto é, que não criem incentivos que se originam do descontentamento e do sentimento de que “este tipo de vida não me agrada”, ou “estou decidido a fazer tudo para que meu filho não passe pelo que passei” (MARSHALL, 1967, p. 108). 131 Marshall (1967, p. 93) analisa a experiência britânica da Poor Law e Old Age Pension Act para apontar que a igualdade econômica poderia, conforme o caso, provocar um estigma ou discriminação: “a igualação econômica poderia ser acompanhada de discriminação de classe de natureza psicológica. O estigma atribuído à Poor Law fêz de ‘pobreza’ um termo pejorativo definindo uma classe”. 120 que nenhum estigma seja associado ao uso dos serviços sociais, quer seja por atitudes populares de condenação da dependência, quer originados de práticas administrativas ou padrões inferiores de previsão de serviços. A qualidade dos serviços públicos teria de ser a melhor possível, levando-se em conta a escassez dos recursos públicos (PARKER, 1979, p. 85 apud COIMBRA, 1987, p. 85). No que se relaciona com o tema da assistência social, essa concepção resulta no rompimento com as formas caritativas de assistência, que colocam seus destinatários em posições de subalternidade. 3.3.2 Dignidade da pessoa humana O Estado brasileiro tem a dignidade da pessoa humana como fundamento constitucional (CF, art. 1º, III). Intuitivamente muitas situações de dignidade ou indignidade são facilmente identificadas. Todavia, definir em que consiste a dignidade da pessoa humana é tarefa bem mais complexa, dado o conteúdo indeterminado da expressão. Não é difícil compreender o porquê dessa indeterminação. Como salienta Vieira (2006, p. 63), “a dignidade é multidimensional, estando associada a um grande conjunto de condições ligadas à existência humana, a começar pela própria vida, passando pela integridade física e psíquica, integridade moral, liberdade, condições materiais de bemestar etc.”. A percepção desse aspecto multidimensional – que faz a preservação da dignidade humana depender de muitos outros direitos para se concretizar – leva exatamente a essa dificuldade conceitual. Tal dificuldade, contudo, não pode levar ao esvaziamento desse postulado. Ao contrário, cabe ao intérprete compatibilizar a leitura de outros direitos com o valor dignidade humana. Cabe-lhe ainda evitar que a má compreensão de seu significado transforme o apelo à dignidade em mero recurso retórico132. 132 Com razão, Silva alerta para o que chama de “inflação no uso da dignidade humana no discurso forense” nos seguintes termos: “No Brasil, no entanto, em decorrência de uma banalização do uso da garantia da dignidade da pessoa humana, muitos casos de restrição a direitos fundamentais – às vezes, nem isso – tendem a ser considerados como uma afronta a essa garantia. [...] A inflação no uso da dignidade humana no discurso forense não tem ligação direta com a realidade social do país, e é um fenômeno limitado exclusivamente ao discurso jurídico. [...] Esse não é, contudo, um fenômeno apenas brasileiro. Em outros países a garantia da dignidade humana tem também servido como um recurso 121 Nesse esforço conceitual, muitos doutrinadores que se dedicam ao tema justificam que todas as pessoas têm um valor intrínseco que resulta em “uma esfera fundamental de seu bem-estar e de seus interesses protegida” (VIEIRA, 2006, p. 65). Na verdade, a ideia de um “valor intrínseco” resulta de uma construção teórica sedimentada ao longo de séculos. É muito importante que esse aspecto fique claro, pois argumentos deduzidos da “natureza” humana tanto podem ser invocados para justificar uma condição de liberdade e igualdade, quanto para manter situações de desigualdade e dominação. Não por outra razão, Bobbio (2004, p. 128) afirma “que os homens nasçam livres e iguais é uma exigência da razão, não uma constatação de fato ou um dado histórico”. Também enfatizando que a dignidade da pessoa humana é uma construção, e não um dado, Vieira (2006, p. 66) ensina que: A idéia de que as pessoas têm um valor que lhes é “intrínseco” não é, portanto, natural, mas uma construção de natureza moral. Assim, ninguém nasce com algum valor que lhe seja inerente. Este valor é artificialmente conferido às pessoas. Artificialmente, aqui, no sentido de que é um valor construído socialmente, e não presente na Natureza ou na ordem cósmica [...] A dignidade é, portanto, um princípio derivado das relações entre as pessoas; e o direito à dignidade está associado à proteção daquelas condições indispensáveis para a realização de uma existência que faça sentido para cada pessoa. Quanto ao conteúdo do princípio da dignidade humana, adota-se o conceito de Nunes Júnior (2009, p. 114): postulado ético que, incorporado ao ordenamento jurídico, consubstancia o princípio segundo o qual o ser humano, quer nas suas relações com seus semelhantes, quer nas suas relações com o Estado, deve ser tomado como um fim em si mesmo, e não como um meio, o que o faz dignitário de um valor absoluto. A aplicação dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal brasileira, ou decorrentes da aplicação dos parágrafos 2º e 3º de seu artigo 5º, sempre impõe alguma reflexão sobre a ideia de dignidade. universal para a solução de problemas jurídicos que poderiam ser resolvidos com o recurso a outros direitos. [...] se talvez não seja um grande problema o recurso constante à garantia da dignidade por parte dos litigantes que têm o dever de defender, com o máximo de argumentos, os seus pontos de vista, o mesmo não se aplica para os juízes e para a doutrina. Isso porque, com o passar do tempo, quanto mais se recorre a um argumento sem que ele seja necessário, maior é a chance de uma banalização de seu valor. É o que vem ocorrendo com a dignidade humana. É por isso, que, de uns tempos para cá, o entusiasmo com a garantia da dignidade da pessoa humana vem dando lugar, em alguns círculos acadêmicos, a um movimento por uma certa parcimônia no recurso à proteção da dignidade” (SILVA, 2009, p. 193-195, destaques no original). 122 No plano dos direitos e garantias individuais, não é possível debater temas como restrições às penas de morte e de caráter perpétuo, penas cruéis, tortura e outras forma de caráter degradante, sem tratar da dignidade da pessoa humana como uma premissa. No plano dos direitos sociais ocorre o mesmo. Questões relativas à alimentação, saúde, moradia e assistência remetem rapidamente à discussão sobre a ideia de vida digna. Porém, é também no plano dos direitos sociais que se colocam grandes dilemas sobre os limites da implementação de direitos sociais e as exigências de observância ao postulado ético em questão. 3.3.3 Valor social do trabalho No artigo 1º, inciso IV, da Constituição Federal são eleitos os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos da República. No artigo 170, reiterase que a ordem econômica é “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”. Finalmente, no artigo 193 preceitua-se que “a ordem social tem como base o primado do trabalho”. Nos capítulos anteriores, demonstrou-se que a assistência social configurou-se como instrumento primordialmente destinado ao atendimento das situações de não trabalho. Nessa evolução, a assistência surgiu como mecanismo de atenção subsidiária a qualquer outra proteção decorrente do trabalho. A subsidiariedade resultou no desenvolvimento do princípio da menor elegibilidade das prestações assistenciais. A relação estabelecida entre a proteção advinda do trabalho e a proteção advinda da assistência social é decisiva para a configuração do sistema de seguridade social. Essa relação mostra o modo pelo qual a sociedade compreende a existência de pessoas e grupos vulneráveis e se reflete no nível de bem-estar social que o Estado oferece a seus membros. Por isso é fundamental refletir sobre o significado do valor social do trabalho e seus reflexos no direcionamento da assistência social. Ensina Silva (2005, p. 788) que a valorização do trabalho humano, enunciada juntamente com a livre iniciativa, significa que “embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da 123 economia de mercado”. Disso resulta que o Estado deve proteger o exercício do trabalho, o que vai além da proteção do vínculo de emprego. Da mesma maneira, ao disciplinar a ordem econômica e a ordem social, o Estado deve buscar a redução das taxas de desemprego e a oferta de oportunidades para que os cidadãos tenham empregabilidade, isto é, tenham habilidades que permitam sua absorção pelo mercado de trabalho. Não há como vislumbrar desenvolvimento social e econômico sem trabalho humano desempenhado em condições dignas, com respeito aos direitos do trabalhador e remuneração adequada. A valorização do trabalho, todavia, não significa que sistemas de proteção social possam ser construídos apenas em torno desta forma de inserção social, tampouco autoriza soluções residuais para as situações de não trabalho. Compreender o emprego como “uma chave – a chave – para a solução dos problemas ao mesmo tempo da identidade pessoal socialmente aceitável, da posição social segura, da sobrevivência individual e coletiva, da ordem social e da reprodução sistêmica” (BAUMAN, 2005, p. 19) pode levar ao acirramento de exclusão social. Isso porque as mudanças sociais e econômicas decorrentes da globalização – que “liberou e pôs em movimento quantidades enormes e crescentes de seres humanos destituídos de formas e meios de sobrevivência” (BAUMAN, 2005, p. 14) – contrariam a ideia de que a todos é dada a oportunidade de prover as próprias necessidades pelo esforço individual ou familiar. Ao contrário: há uma grande parcela da população sem perspectivas de prover suas necessidades de forma autônoma, o que inclui a falta de perspectiva de colher os frutos de seu trabalho. São as pessoas retratadas por Bauman (2005) como refugadas e supranumerárias133 por Castel (2010). A impossibilidade de uma parcela crescente da população contar com a clássica segurança advinda do trabalho – seja porque não acessam postos de trabalho, seja porque o fazem em condições cada vez mais precárias – faz crescer a necessidade 133 Castel identifica no surgimento desses grupos “uma nova questão social”, afirmando que: “os supranumerários nem sequer são explorados, pois, para isso, é preciso possuir competências conversíveis em valores sociais. São supérfluos. Também é difícil ver como poderiam representar uma força de pressão, um potencial de luta, se não atuam diretamente sobre nenhum setor nevrálgico da vida social. Assim, inauguram sem dúvida uma problemática teórica e prática nova. Se, no sentido próprio do termo, não são mais atores porque não fazem nada de socialmente útil, como poderiam existir socialmente? No sentido, é claro, de que existir socialmente equivaleria a ter, efetivamente, um lugar na sociedade. Porque, ao mesmo tempo, eles estão bem presentes – e isso é o problema, pois são numerosos demais. Nisso há uma profunda ‘metamorfose’ relativa à questão anterior que era saber como um ator social subordinado e dependente poderia tornar-se um sujeito social pleno. A questão, agora, sobretudo, é amenizar essa presença, torná-la discreta a ponto de apagá-la [...]” (CASTEL, 2010, p. 33, destaques no original). 124 de reflexão sobre sistemas de proteção social não contributivos, incluindo a assistência social. As diversas formas de propiciar segurança social, vinculadas e desvinculadas do trabalho, não podem ser vistas como antagônicas ou autossuficientes. Ao contrário, o valor social do trabalho precisa ser visto de forma mais ampla do que a busca do pleno emprego ou do emprego formal, ao mesmo tempo em que o não acesso ao trabalho não pode ser visto como resultado de fracassos individuais. Por tudo isso, duas observações devem ser registradas. A primeira é a de que a valorização do trabalho humano não pode resultar em medidas residuais134 ou quase punitivas para os que não conseguem prover suas necessidades básicas com seus próprios meios. A segunda é a de que a valorização do trabalho humano não pode ser vista apenas como valorização do trabalho formal. Em síntese: “o enfraquecimento da condição salarial” (CASTEL, 2010, p. 495) reclama a revisão da histórica tensão entre trabalho e assistência135. 3.4 Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil Quatro são os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, consagrados pela Constituição Federal: “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I); “garantir o desenvolvimento nacional” (art. 3º, II); “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III); e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV). 134 Soluções residuais em matéria de proteção social – o que inclui a assistência social – são parte do que Castel descreve como a inadequação dos sistemas clássicos de proteção social para atender às demandas de um cenário de desemprego em massa, instabilidade das situações de trabalho e “multiplicidade de indivíduos que ocupam na sociedade uma posição de supranumerários, ‘inempregáveis’, inempregados ou empregados de um modo precário, intermitente” (CASTEL, 20120, p. 21). 135 Boschetti (2003, p. 58) afirma que “a relação de atração e rejeição entre assistência e trabalho predominante no capitalismo, tem origem anterior à consolidação da sociedade de mercado”. Ainda segundo a autora (BOSCHETTI, 2003, p. 47): “Trabalho e a assistência assim, mesmo quando reconhecidos como direitos sociais, vivem uma contraditória relação de tensão e atração. Tensão porque aqueles que têm o dever de trabalhar, mesmo quando não conseguem trabalho, precisam da assistência, mas não têm direito a ela. O trabalho, assim, obsta a assistência social. E atração porque a ausência de um deles impele o indivíduo para o outro, mesmo que não possa, não deva, ou não tenha direito. Em uma sociedade em que o direito à assistência é limitado e restritivo, como será demonstrado adiante, e o trabalho, embora reconhecido como direito, não é assegurado a todos, esta relação se torna excludente e provocadora de iniqüidades sociais”. 125 Nesse rol estão presentes as marcas de movimentos da sociedade civil que, durante a Constituinte, trouxeram à baila questões relacionadas com as muitas facetas de temas como igualdade e justiça social. Por outro lado, tais objetivos revelam que a Constituição deu continuidade ao discurso governamental em prol do “combate” à pobreza e do desenvolvimento do país, há muito tempo em voga no país. Existe, portanto, uma mescla entre propósitos genuinamente novos e a repetição de um discurso bastante difundido. Estado e sociedade civil devem se guiar por esses objetivos. É claro que para um e outro, as responsabilidades que advêm desse comando são diferentes. No entanto, ambos são afetados e envolvidos por esses vetores. Como diz Arzabe: A Constituição é clara ao não restringir tais objetivos com seu direcionamento apenas ao Estado. Ao dispor serem os objetivos da República, a Constituição os aplica ao Estado, aos cidadãos e aos agentes sociais e econômicos. Esse entendimento se dá em virtude do artigo 1º da Carta Magna, que assenta a República, entre outros aspectos, na cidadania e na dignidade da pessoa, o que nos envia à idéia de pessoa dotada de autonomia pública e privada, bem como nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, remetendo-nos, aqui, ao funcionamento da Ordem Econômica e seus agentes. Os objetivos fundamentais são, portanto, da República, desdobrada nos seus cidadãos, nos agentes sociais e econômicos e no Estado. Esses objetivos trazem para o Direito os fins do Estado, delimitando juridicamente sua esfera de atuação. Direcionam tanto a ação do Estado como dos agentes operando na sociedade. Representam, em suma, os parâmetros de justiça que regem a sociedade brasileira, isto é, constituem os parâmetros de ação prática erigidos como bons e justos para nortear essa sociedade. A sociedade brasileira, para ser justa, deve ter todo o aparato estatal, por seus três Poderes e nos três níveis de governo, todos os agentes econômicos e todas as pessoas ajustando suas ações para a realização dos objetivos dessa grande polis. (ARZABE, 2001, p. 135-136) Os objetivos consagrados nos incisos I, III e IV são os que influenciam de forma mais incisiva as reflexões do presente estudo. Esses dispositivos abrem espaço para a elaboração de políticas estruturais e compensatórias voltadas à promoção de igualdade, autonomia e integração social. Além disso, há um estreito vínculo entre os objetivos inscritos no artigo 3º e os objetivos da assistência social136. 136 Para Carvalho (2006, p. 1025), “há uma relação estreita entre cada um dos objetivos da assistência social com o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, expresso no art. 3º, III, da Constituição, qual seja, a erradicação da pobreza”. Em que pese o acerto da afirmação, entende-se que essa consideração deve ser estendida também aos objetivos constantes dos incisos I e IV. Da mesma maneira, Rocha e Baltazar Júnior (2007, p. 26) ensinam que “[a] seguridade social é, em última análise, um instrumento através do qual se pretendem alcançar os objetivos fundamentais da República Federativa 126 Esses objetivos exigem “sofisticação” das medidas de proteção social, pois reconhecem que a desproteção e o isolamento decorre de rupturas (SPOSATI, 2009, p. 25). Isso significa que questões relacionadas à satisfação de necessidades humanas não podem ser guiadas apenas por considerações atinentes à sobrevivência física dos cidadãos, como também não podem girar apenas em torno da renda. Conquanto estes dois aspectos sejam imprescindíveis, políticas sociais também devem contemplar participação política, construção de vínculos familiares e comunitários, possibilidade de vida autônoma etc. Portanto, práticas paternalistas ou medidas de segregação de grupos qualificados como “carentes”137 devem ser rechaçadas. Em lugar disso, impõe-se a articulação de medidas de intervenção internalizadora, destinada a corrigir relações jurídicas distorcidas, e externalizadora, destinada a suprir necessidades de pessoas em situação de vulnerabilidade, sem alterar as relações sociais que ensejam tais vulnerabilidades (ZACHER, 2002, p. 120). Somente assim – e lembrando que o potencial de transformação das medidas de intervenção internalizadora tende a ser maior, mas nem sempre resolve todas as situações de necessidades sociais desatendidas – a consecução dos objetivos traçados na Constituição Federal se torna factível. 3.5 Objetivos da Ordem Social O artigo 193 da Constituição Federal dispõe que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. As considerações sobre o primado do trabalho foram apresentadas quando se discorreu sobre o valor social do trabalho inscrito no artigo 1º da Constituição Federal (cf. supra 3.3.3 Valor social do trabalho), cabendo agora tratar desses dois objetivos. Na Constituição brasileira, os objetivos de bem-estar e justiça sociais não estão previstos apenas no artigo 193. Constam do Preâmbulo entre os “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Estão presentes ainda nos do Brasil, arrolados no art. 3º da Constituição, quais sejam: ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos’”. 137 Reitera-se aqui a observação feita no tópico 1.2 A ausência de práticas institucionalizadas de proteção social. 127 objetivos da República traçados no artigo 3º, por força das previsões de construção de uma sociedade justa (art. 3º, I) e de promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV). Ao tratar de ordem econômica, prevê-se ainda o escopo de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170). Esses objetivos condicionam todo o exercício das funções legislativa, administrativa e jurisdicional. A construção da seguridade social, nos termos concebidos por Beveridge há quase 70 anos, se fez exatamente em função deles. Especificamente em relação à assistência social, as preocupações com o bem-estar e a justiça sociais não apenas justificam a existência de um sistema de proteção social como também condicionam o conteúdo das políticas públicas. 3.5.1 Bem-estar social na Constituição Federal de 1988 No início deste capítulo (cf. supra 3.2 Estado de Bem-Estar) afirmou-se, com amparo em Rosanvallon (1995, p. 07), que o objetivo central do Estado de Bem-Estar é livrar a sociedade da necessidade e proteger o indivíduo contra os principais riscos da existência. Na esteira dessa afirmação, o objetivo de bem-estar social corresponde à finalidade de resguardar a sociedade e cada um de seus membros de situações de necessidade e riscos. Contudo, os elementos que compõem esse quadro de bem-estar social são variáveis. A forma de satisfação de necessidades é mutável, como também o são os riscos que mais afetam determinados indivíduos ou grupos. A concepção de bem-estar é, portanto, marcada por fatores históricos que resultam na positivação de normas jurídicas consentâneas com o ideal de bem-estar. Dessa forma, a despeito de possíveis alterações nos caminhos para a consecução desse objetivo, existem marcos jurídicos que mostram as prestações que devem ser afiançadas para que se configure uma situação de bem-estar social. No âmbito da ordem constitucional brasileira, pode-se afirmar que os objetivos do artigo 3º da Constituição Federal representam a síntese do ideal de bem-estar. Já os artigos 6º e 7º indicam quais direitos deverão ser afiançados para que se alcance esse ideal. 128 Como ressalta Santos (2003, p. 105), a Constituição, em seu artigo 7º, inciso IV, expõe as necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, a serem supridas pelo salário mínimo: moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Embora a norma se refira à remuneração paga em troca do trabalho, os bens indicados no referido inciso são comuns a trabalhadores e não trabalhadores, o que se conclui a partir da observação de que familiares de trabalhadores também devem ter acesso a tais prestações. Corroboram essa afirmação a previsão de que “nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo” (CF, art. 201, § 2º) e a garantia do benefício assistencial de prestação continuada no valor de um salário mínimo à pessoa idosa ou com deficiência que demonstrem sua hipossuficiência individual ou familiar (CF, art. 203, V). Mais do que assegurar o valor da renda, essas duas previsões permitem o acesso ao conjunto de bens sociais, econômicos e culturais que a própria Constituição Federal considera essenciais. Portanto, a partir da conjugação entre os artigos 6º e 7º, inciso IV, anteriormente mencionados, conclui-se que a Constituição Federal indica como componentes do bem-estar que deve ser propiciado a todo membro da comunidade: alimentação, assistência social, educação, higiene, lazer, moradia, previdência social, proteção à infância, proteção à maternidade, saúde, segurança, trabalho, transporte e vestuário138-139. 3.5.2 Justiça social na Constituição Federal de 1988 Na Constituição Federal brasileira, o propósito de assegurar justiça social está na base da existência de direitos sociais e da adoção de um modelo de Estado de BemEstar. Não por outra razão, o termo justiça social é diuturnamente empregado nas 138 Recorde-se que a garantia de direitos sociais pressupõe que direitos civis e políticos sejam respeitados. Nesse ponto, retoma-se a observação de que o surgimento do Estado de Bem-Estar está atrelado à efetivação dos direitos civis e políticos. 139 Frisa-se a afirmação de que esses são componentes do bem-estar expressamente positivados pela Constituição Federal. Não significa, contudo, que se trata de uma relação completa e sistematizada de necessidades sociais básicas, tampouco que possa prescindir da efetivação de outros direitos igualmente previstos na Constituição Federal. Como será exposto adiante, as necessidades sociais básicas e seus mecanismos de satisfação – também chamados de necessidades sociais intermediárias – comportam outra forma de sistematização, mais sofisticada e de vocação universal. A respeito desse tema, cf. infra 3.8.1 Conceito de seguridade social tendo o atendimento às necessidades sociais como eixo estruturante. 129 discussões sobre direitos e políticas sociais. Porém, como não há consenso sobre o significado de sociedade justa, esse objetivo da ordem social é bastante controvertido. Leciona Silva (2005, p. 789) que “um regime de justiça social será aquele em que cada um deve poder dispor dos meios materiais para viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política”. Essa explicação traz como primeira observação a proximidade entre justiça social e igualdade, tanto formal quanto material. Como no sistema capitalista a igualdade material não decorre naturalmente das relações sociais e econômicas estabelecidas entre os membros da sociedade, a promoção dessa igualdade passa pela dissociação entre o econômico e o social (ROSANVALLON, 1995, p. 11), o que significa que a justiça social deve ser construída, pois não decorre naturalmente das relações sociais e econômicas estabelecidas entre os membros da sociedade. No âmbito dos Estados, estabelecer o que é uma sociedade justa – ou, dizendo de outro modo, estabelecer o que é devido a cada membro da comunidade e, por conseguinte, quanto de desigualdade é tolerável – é questão afeta ao ordenamento jurídico, em especial ao ordenamento constitucional. Avançando nessas reflexões encontra-se em Nancy Fraser uma leitura abrangente sobre justiça social. Para a autora a essência da justiça social está na paridade participativa (FRASER, 2009, p. 20), o que significa que “superar a injustiça significa desmantelar os obstáculos institucionalizados que impedem alguns sujeitos de participarem, em condições de paridade com os demais, como parceiros integrais da interação social” (FRASER, 2009, p. 11). Originalmente, as reivindicações por justiça social foram agrupadas em duas grandes categorias: demandas relativas à redistribuição socioeconômica e demandas relativas ao reconhecimento legal ou cultural (FRASER, 2009, p. 11). Posteriormente – e sem negar essas duas dimensões – a autora incluiu o elemento político como mais uma dimensão da justiça (FRASER, 2009, p. 18-19). É somente a partir da conjugação dessas dimensões que se pode compreender a justiça social em sua totalidade. À dimensão econômica da redistribuição correspondem demandas em torno da desigual repartição de recursos econômicos. Nesse caso, entram em pauta as injustiças decorrentes da estrutura econômica e política da sociedade (FRASER, 1995, p. 70). As medidas redistributivas buscam neutralizar ou reduzir as diferenças sociais entre grupos (FRASER, 1995, p. 82) e, nessa medida, têm caráter universalizante. 130 À dimensão do reconhecimento correspondem demandas por igualdade de status ou reconhecimento de identidades. Cuida-se aqui de problemas como dominação cultural, não reconhecimento ou desrespeito (FRASER, 1995, p. 71). As demandas ligadas ao reconhecimento insurgem-se contra injustiças culturais ou simbólicas, decorrentes de padrões de representação, interpretação e comunicação e, nesse caso, as medidas de promoção de justiça passam pelo destaque e valorização das diferenças (FRASER, 1995, p. 82). À dimensão política140, correspondem os loci em que as demandas por distribuição e reconhecimento se desenvolvem e as regras de resolução dessas disputas. Essa dimensão – que envolve questões de pertencimento e de procedimento (FRASER, 2009, p. 19) – tem ainda o condão de expor que o direcionamento de demandas apenas aos espaços domésticos nos Estados nacionais é insuficiente para atender às reivindicações por justiça (FRASER, 2009, p. 24). As medidas de promoção de justiça social subdividem-se em políticas afirmativas e políticas transformativas. As primeiras voltam-se à correção dos resultados de relações sociais anti-isonômicas sem intervir na estrutura que enseja as desigualdades. As segundas procuram corrigir essas relações mediante a alteração das estruturas que produzem a desigualdade (FRASER, 1995, p. 82). Nessa distinção, os remédios de redistribuição afirmativa correspondem às fórmulas do Estado de Bem-Estar e seriam compatíveis com as medidas de reconhecimento afirmativo, uma vez que ambos tendem a promover a diferenciação de grupos. As medidas afirmativas, contudo, implicariam o risco de estigmatizar seus destinatários (FRASER, 1995, p. 86). 140 A autora explica em que sentido emprega o termo político, distinguindo-o da dimensão de distribuição ou reconhecimento, na seguinte passagem: “distribuição e reconhecimento são políticos por natureza, no sentido de serem contestados e permeados por poder; e eles, frequentemente, têm sido tratados como elementos que demandam a tomada de decisão do Estado. Mas eu considero o político em um sentido mais específico, constitutivo, que diz respeito à natureza da jurisdição e das regras de decisão pelas quais ele estrutura as disputas sociais. O político, nesse sentido, fornece o palco em que as lutas por distribuição e reconhecimento são conduzidas. Ao estabelecer o critério de pertencimento social, e, portanto, determinar quem conta como um membro, a dimensão política da justiça especifica o alcance daquelas outras dimensões: ela designa quem está incluído, e quem está excluído, do círculo daqueles que são titulares de uma justa distribuição e reconhecimento recíproco. Ao estabelecer regras de decisão, a dimensão política também estipula os procedimentos de apresentação e resolução das disputas tanto na dimensão econômica quanto na cultural: ela revela não apenas quem pode fazer reivindicações por redistribuição e reconhecimento, mas também como tais reivindicações devem ser introduzidas no debate e julgadas” (FRASER, 2009, p. 19). 131 As medidas de redistribuição transformativa são aquelas voltadas à transformação das estruturas produtoras de desigualdade, mediante adoção de políticas de caráter universal e tendentes a eliminar distinções de classe. Tais medidas são identificadas pela autora com o pensamento socialista e seriam compatíveis com medidas de reconhecimento transformativo, que buscam desconstruir as distinções que resultam nas estigmatizações (FRASER, 1995, p. 83). No que tange à dimensão política da justiça, as medidas afirmativas “buscam redesenhar as fronteiras dos Estados territoriais existentes ou, em alguns casos, criar novas fronteiras” (FRASER, 2009, p. 27). Depreende-se ainda que as medidas transformativas são vocacionadas a redefinir o espaço político em que as demandas por justiça social são veiculadas e dirimidas, e que também estão destinadas a rever as regras que pautam a solução dessas disputas. A compreensão de justiça social apresentada pela autora a partir da identificação de três dimensões diferentes e inter-relacionadas contribui para que o tema não seja artificialmente simplificado ou reduzido a um único aspecto. Ao incluir a dimensão política nas reflexões sobre justiça social, a autora demonstra ainda as insuficiências do Estado nacional para lidar com todas as questões relacionadas à injustiça social, evidenciando o equívoco de se tentar dirimir todas essas questões da mesma forma e na mesma instância. Essa compreensão de justiça social fornece valiosos parâmetros de avaliação das políticas públicas de assistência social141. Mostra que políticas que prestigiem apenas uma das dimensões analisadas ou que estejam desconectadas de abordagens intersetoriais têm grandes chances de falharem e perpetuarem situações de desvantagem participativa. Revela ainda os limites das medidas afirmativas na promoção de justiça social e propicia uma leitura crítica sobre os limites do Estado de Bem-Estar. 141 Fraser (1995, p. 85) menciona a assistência pública entre as medidas afirmativas – medidas que não teriam o condão de alterar as estruturas que promovem desigualdade –, o que sugere que a autora também compreende a assistência social apenas como remédio afirmativo. Mesmo concordando com as proposições da autora sobre justiça social, é possível discordar da inserção da assistência social apenas como política afirmativa. O enquadramento dessa política como afirmativa ou transformativa muda conforme a configuração que receba em cada ordenamento jurídico. No caso da Constituição Federal de 1988, os objetivos traçados no artigo 3º permitem que a assistência social, como os demais direitos sociais, seja reconhecida como medida afirmativa e transformativa. 132 3.6 O direito social à segurança e à assistência aos desamparados Remonta ao final do século XIX a constatação, nas palavras de Marshall (1967, p. 83), de “um interesse crescente pela igualdade como um princípio de justiça social e uma consciência do fato de que o reconhecimento formal de uma capacidade legal no que diz respeito aos direitos não era suficiente”. Exatamente a partir da constatação registrada pelo sociólogo, surgiram e ganharam força os direitos sociais, os quais acarretaram “mudanças significativas ao princípio igualitário como expresso na cidadania” (MARSHALL, 1967, p. 88). Essas mudanças conformaram os Estados de Bem-Estar no século XX. Como já ressaltado anteriormente, esse desenvolvimento não se deu de forma linear, não foi igual em países capitalistas e socialistas e, menos ainda, em países mais ou menos desenvolvidos. Apesar das disparidades, trata-se, sim, de um movimento marcante no século XX. do século XX. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 apresenta um rol de direitos fundamentais de cunho social142 em seu artigo 6º e dedica um título específico à disciplina da ordem social. Originalmente, esse rol era composto por educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados. Por força da Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000, o direito à moradia passou a integrar o dispositivo. Por fim, a Emenda Constitucional n. 64, de 04 de fevereiro de 2010, incluiu a alimentação entre esses direitos. Para o escopo deste trabalho, destacam-se o direito à segurança e o direito à assistência aos desamparados. 3.6.1 O direito social à segurança A expressão direito à segurança evoca ideias relacionadas à segurança jurídica ou à segurança pública. No entanto, essa primeira impressão deve ser colocada em 142 Neste trabalho, adota-se a definição de normas de direitos sociais apresentada por Novais (2010, p. 41-42), assim elaborada: “entre a multiplicidade de normas constitucionais jusfundamentais, respeitam a direitos sociais aquelas que, na sua dimensão objectiva principal, impõem ao Estado deveres de garantia aos particulares de bens económicos, sociais ou culturais fundamentais a que só se acede mediante contraprestação financeira não negligenciável”. 133 dúvida quando se constata que o direito à segurança é apresentado como um direito social e integra o artigo 6º da Constituição Federal. Da mesma forma, deve-se recordar que a palavra segurança comporta diversos significados, como expõe Silva (2005, p. 777) em um excerto de grande valia: Na teoria jurídica a palavra “segurança” assume o sentido geral de garantia, proteção, estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidos em determinada relação jurídica, esta mantém-se estável, mesmo se se modificar a base legal sob a qual se estabeleceu. “Segurança social” significa a previsão de vários meios que garantam aos indivíduos e suas famílias condições sociais dignas; tais meios se revelam basicamente no conjunto de direitos sociais. A Constituição, nesse sentido, preferiu o espanholismo seguridade social, como vimos antes. “Segurança nacional” refere-se às condições básicas de defesa do Estado. “Segurança pública” é a manutenção da ordem pública interna. O cotejo entre o mencionado pelo artigo 6º, que alude ao direito à segurança, e os dispositivos constitucionais que aludem à seguridade social (arts. 22, XXIII, 165, § 5º, III, 167, § 8º, 194, 195, 198, § 1º, 203 e 204) pode, de fato, dar a impressão de que são conceitos diversos. Admitindo-se que a Constituição de 1988 não equipara os conceitos de segurança social e seguridade social, impõe-se a procura de um novo significado para o direito social à segurança, significado dissociado da seguridade social. Por outro lado, pode-se admitir que o direito social à segurança inscrito no artigo 6º corresponde, sim, à seguridade social. A despeito de eventuais críticas à ausência de uniformidade terminológica, há que se concluir pela segunda alternativa: o artigo 6º da Constituição Federal versa sobre o direito à segurança social, de modo que segurança social e seguridade social são empregadas como expressões sinônimas143. Com efeito, nem a segurança pública, nem a segurança jurídica podem ser qualificadas como direitos sociais. A segurança pública como sinônimo de “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (ARAUJO; NUNES 143 A expressão seguridade foi alvo críticas por parte daqueles que entendiam que se tratava de um “estrangeirismo” e que, em português, seria mais correto empregar o vocábulo segurança (IBRAHIM, 2010, p. 5; MESTRINER, 1992, p. 16). Leite (2002, p. 16) anota que seguridade é vocábulo vernáculo que já teve uso corrente, mas acabou desaparecendo do vocabulário cotidiano. Ainda segundo este autor, dicionários da língua portuguesa do século XIX apresentam o termo seguridade com o sentido de tranquilidade e segurança. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2004, p. 1821) apresenta o vocábulo seguridade e coloca a segurança entre seus significados. Reforça-se assim a convicção de que a segurança mencionada no artigo 6º é, de fato, segurança ou seguridade social. 134 JÚNIOR, 2010, p. 459) não guarda relação com o escopo de promover igualdade material e justiça social, preocupações que pautam os direitos sociais (cf. ZOCKUN, 2009, p. 152). Ademais, tanto a segurança jurídica quanto a segurança individual, no sentido de incolumidade física, estão muito mais relacionadas aos direitos civis e políticos do que aos direitos sociais e já são tratados pelo artigo 5º da Constituição brasileira. Não há razão, portanto, para supor que o artigo 6º simplesmente repete o que já foi tratado a fundo no dispositivo que o antecede. E como bem salienta Zockun (2009, p. 152-153), tampouco se pode circunscrever o direito social à segurança ao campo do direito do trabalho, seja no sentido de estabilidade da relação jurídica de cunho trabalhista, seja no sentido de segurança no local de trabalho. Isso porque, como afirma a autora, as garantias de segurança próprias das relações de trabalho estão tratadas no artigo 7º, incisos I e XXII, do texto constitucional: [...] não há uma intervenção direta por parte do Estado no que tange à segurança no local do trabalho, sendo seu papel o de fiscalizador do cumprimento das normas de segurança pelos empregadores. Não se está, pois, diante de um direito social, na medida em que este exige, para sua implementação, a formação de uma relação jurídica direta entre Estado e particular – o que não se dá na hipótese vertente. Também não é a proteção do emprego medida a ser concretizada pelo Estado, já que, como visto no tópico do direito ao trabalho, não cabe ao Estado ser o fornecedor dos postos de trabalho em nosso sistema. Ademais, há previsão constitucional que alberga precisamente a idéia de segurança no trabalho e no emprego. [...] Assim, se já existe disposição constitucional expressa no sentido de garantir ao trabalhador a proteção relativa ao emprego e à segurança no local de trabalho, não faz sentido considerar que o termo “segurança” no art. 6º da CF signifique exatamente o mesmo do que foi consagrado no art. 7º, I e XXII. [...] se se reputar que o termo “segurança” foi utilizado como sinônimo de “segurança no trabalho” esvaziar-se-á o contido no art. 6º, na medida em que a prescrição garantidora do direito social à segurança seria inócua, já que mera repetição do disposto no art. 7º, I e XXII. Assim, não se pode considerar que “segurança” no art. 6º é o mesmo que “segurança nas relações trabalhistas”. Ainda, em favor da nossa posição concorre também o fato de que os direitos sociais são conferidos a todos os cidadãos indistintamente, e não apenas à classe dos trabalhadores. Entender que a “segurança” do art. 6º significa “segurança no trabalho” e restringir indevidamente o mandamento constitucional, que assegura a todos, homens, mulheres, jovens ou crianças, os direitos fundamentais sociais, e não somente a uma classe deles. (ZOCKUN, 2009, p. 153-154) 135 Quanto ao significado do direito à segurança, explica Sposati (2009, p. 21) que a segurança tanto representa uma “exigência antropológica de todo indivíduo” quanto uma necessidade da sociedade de garantir uma ordem social segura a seus membros. Segurança (ou seguridade) social abrange, pois, as seguranças necessárias à vida autônoma e sadia, o que inclui exigências de segurança econômica, segurança de convívio e promoção da saúde. Sendo assim, cabe à seguridade social proporcionar condições de sobrevivência digna a seus membros, sobretudo quando lhes faltam os meios para fazerem-no por suas próprias forças. 3.6.2 O direito social à assistência aos desamparados Sob a égide da Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na história constitucional brasileira, a assistência foi elevada à categoria de direito fundamental. A exemplo do que se disse sobre falta de uniformidade na terminologia empregada ao tratar-se de segurança e seguridade social, observa-se uma grande variedade nas referências à assistência presentes no texto constitucional. O artigo 6º da Constituição Federal aponta a assistência aos desamparados como direito social. Mais adiante, no artigo 23, inciso II, estabelece-se ser competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios cuidar da assistência pública. Finalmente, no capítulo relativo à seguridade social, emprega-se o termo assistência social144. A despeito dessa diversidade, todas essas expressões podem ser reconduzidas ao conceito de assistência social. O emprego do adjetivo “desamparados” no artigo 6º da Constituição Federal denuncia a convivência entre propósitos novos e concepções antigas das formas de 144 Stuchi (2010, p. 157-158) também observa a falta de uniformidade terminológica no texto constitucional, registrando que: “a assistência social aparece no texto constitucional com expressões diferenciadas. No art. 6º, aparece como ‘assistência aos desamparados’, termo de carga semântica que remete à lógica do favor e da benesse. Depois, no art. 23, aparece como ‘assistência pública’, que poderia caracterizar outras políticas, como a assistência jurídica, a assistência à saúde, etc. Ela não é mencionada em artigos importantes como os arts. 21 e 24, que tratam das competências legislativas, nos quais a Seguridade Social é competência privativa da União e a saúde e a previdência social, competência concorrente entre os entes. Somente a partir do Capítulo da Seguridade Social seu tratamento se torna mais uniforme”. 136 assistência. O termo desamparo denuncia a compreensão dos destinatários da assistência como pessoas e grupos identificados pelo que não são e pelo que não têm. Em outras palavras: o emprego de expressões como desamparados e carentes, por si só, revela resquícios das velhas formas de caridade e expõe o modo como a sociedade compreende a existência de pessoas e grupos vulneráveis145. A ideia de proteção é mais adequada do que a de amparo. Como distingue Sposati (2009, p. 21), o amparo “indica um estancamento da condição de deterioração”, ao passo que proteção indica “o impedimento de que ocorra a destruição”, o que impõe uma atuação mais vigilante. O destaque à vertente preventiva da assistência impõe coberturas mais abrangentes das situações de necessidade social, cuja intervenção não seja apenas reparadora. Mas o adjetivo desamparados oferece o primeiro recorte dos destinatários da assistência social. Diferentemente do que se observa a propósito da saúde e da educação, por exemplo, a assistência social não é garantida a todos, mas aos que dela tenham necessidade (BOSCHETTI, 2003, p. 45). A ideia de necessidade é retomada no artigo 203, caput, da Constituição Federal. De todo modo, os aspectos favoráveis do tratamento da assistência como direito social superam em muito essas vicissitudes, que não deixam de servir como registro de um momento de transição. O simples fato de a assistência social ter recebido status de direito social gera uma consequência para seu regime jurídico: a criação de um dever para o Estado, ao qual se atribui o protagonismo das ações relacionadas à assistência social. Rompe-se a subsidiariedade do papel do Poder Público em relação ao papel da sociedade civil – parâmetro que sempre pautou os programas de assistência no Brasil – e impõe-se uma redefinição das relações entre as esferas pública e privada no que concerne à assistência. O detalhamento da disciplina constitucional desse direito encontra-se no título Da Ordem Social, que trata da assistência social como política pública integrante da seguridade social, juntamente com os subsistemas de saúde e previdência social, sujeitos a disciplina legal. 145 Sobre a identificação dos grupos sociais atendidos pela assistência, Sposati aponta uma certa perda de identidade como consequência da exclusão social, haja vista que “as pessoas, os segmentos sociais, são conhecidos apenas pelo ‘os que não são’, ‘não têm’, ‘não sabem’, ‘não fazem’. Como resultado, chega-se à leitura dos carentes, aqueles que, para serem reconhecidos vêm processada a medição das ausências que possuem” (SPOSATI, 1987, p. 317). 137 3.7 Competências constitucionais em matéria de assistência social O artigo 22, inciso XXIII, e o artigo 23, incisos II e X, da Constituição Federal disciplinam a competência dos entes federativos em matéria de assistência social. Por força dessas regras, compete privativamente à União legislar sobre seguridade social. No tocante às competências materiais, cabe a União, Estados e Municípios cuidar da assistência pública (CF, art. 23, II), e “combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos” (CF, art. 23, X). As competências materiais provocam ainda o surgimento de competência legislativa concorrente imprópria em matéria de assistência, isto é, competência legislativa exercida com vistas a implementar as competências materiais (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2010, p. 299). A superposição das competências atribuídas aos diversos entes federativos por meio da previsão de competências materiais comuns em relação à assistência não é, por si só, boa ou má. A existência de regras de competência comum impõe que todos envidem esforços para atender à demanda da assistência, o que é positivo. Em um país como o Brasil, a ausência de uma divisão rígida de competências pode ser compreendida como uma qualidade do federalismo, pois permite à União e aos Estados membros desempenhar uma função de calibragem entre regiões ou Municípios com graus de organização e desenvolvimento díspares, buscando superar desigualdades e erradicar a pobreza. A propósito, Almeida (2000, p. 1) afirma que: não há nada de errado com o modelo federativo brasileiro, no que concerne à proteção social. E mais: a superposição de competências e atribuições está longe de ser uma distorção. Ela não só corresponde a um tipo específico de federalismo, praticado em outras partes do mundo, como também parece adequada à diversidade de situações e capacidades dos níveis subnacionais de governo no Brasil. No entanto, esse modelo implica um risco. Pode-se criar um quadro de indefinição das responsabilidades de cada ente federativo, favorecendo omissões e falta de coordenação entre os entes, o que pode significar um grave entrave aos programas de assistência. Como salienta Bercovici (2004, p. 62), a grande crítica que se pode fazer às competências comuns arroladas no artigo 23 da Constituição Federal é a não inclusão 138 do planejamento entre as matérias ali previstas. Para o autor, a ênfase dada à União no tocante ao planejamento, ignora o papel dos Estados membros e Municípios na elaboração de planos. Confunde-se, pois, preponderância da União com alijamento dos demais entes. Um dos fatores essenciais para o sucesso de uma política social é a estratégia adotada para estabelecer as atribuições de cada ente federativo, o que inclui a criação de instâncias de deliberação e pactuação entre todos os entes envolvidos. No que tange à assistência social, observa-se que o artigo 204, inciso I, da Constituição Federal complementa as disposições dos artigos 22 e 23. De acordo com esse inciso, cabe à esfera federal coordenar e elaborar normas gerais relativas às ações governamentais na área da assistência social. Já a coordenação e a execução dos respectivos programas são atribuídas às esferas estadual e municipal e às entidades beneficentes e de assistência social. Essa divisão não afasta o desafio de se criar uma concepção nacional de assistência social, questão que Sposati (2009, p. 15) aponta como problema geral do sistema de seguridade. Parte desse desafio é transitória, pois está relacionada ao fato de que a assistência social como um tema de interesse nacional e regional é tema ainda novo; com o amadurecimento das instituições incumbidas de elaborar e executar a política de assistência social, algumas dessas dificuldades tendem a desaparecer. Porém, há controvérsias que persistirão. Dada a heterogeneidade do Brasil, é inviável uma regulamentação nacional que discipline todas as peculiaridades regionais, especialmente em um tema marcado pela capilaridade das redes de atendimento. Nesse sentido, Sposati tece importantes ponderações e conclui que um modelo nacional de assistência social exigirá algum grau de generalização de seus termos: É preciso atentar que vivemos em uma federação, e por mais que se tente captar as diversidades, a tendência é manter um nível de generalização que certamente terá de ser adequado às particularidades das regiões do país, dos estados, dos municípios e das microrregiões, especialmente nas áreas metropolitanas. A concretização do modelo de proteção social sofre forte influência da territorialidade, pois ele só se instala, e opera, a partir de forças vivas e de ações com sujeitos reais. Ele não flui de uma fórmula matemática, ou laboratorial, mas de um conjunto de relações e de forças em movimento. (SPOSATI, 2009, p. 17) 139 Encerrando o tópico destinado ao estudo da repartição constitucional de competências em matéria de assistência social, chama-se atenção para o artigo 204, caput e inciso I da Constituição Federal: Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; A leitura desse dispositivo revela que se está diante de uma norma de definição de competências legislativas e materiais. Porém, a repartição de competências não envolve apenas os entes federativos, incluindo também entidades beneficentes e de assistência social. Desse modo, essas entidades aparecem no texto constitucional com atribuições iguais às dos Estados e Municípios. Essa norma indica a resistência por parte do Poder Público em assumir a responsabilidade pelas políticas públicas de assistência social e a dificuldade em definir a relação entre Poder Público e entidades privadas nessa matéria. A título de comparação, observa-se que as normas constitucionais sobre o papel da iniciativa privada em matéria de saúde e educação – direitos também efetivados por medidas de caráter universal – são completamente diferentes do que se dispõe sobre assistência. Em matéria de saúde (CF, art. 199) e educação (CF, art. 209), o Estado afirma sua responsabilidade, prevendo que agentes privados também atuem nessas áreas. Em matéria de assistência, as entidades privadas são apresentadas como agentes tão importantes quanto o Estado, o que não condiz com a responsabilidade estatal pela efetivação desse direito146. É certo que a descentralização administrativa pode conduzir ao exercício de atividades administrativas por particulares. Porém, isso pressupõe que as competências de cada ente federativo estejam bem definidas para que só então se cogite a transferência de atribuições. No caso do artigo 204, inciso I, da Constituição Federal, faltou essa delimitação. 146 A propósito, Sposati (2010, p. 29) afirma que a cidadania só será incorporada pela assistência social quando esta última for “efetivamente incorporada como política pública por anterioridade a qualquer relação de partilha entre Estado e sociedade”. 140 3.8 Seguridade Social O Título VIII da Constituição Federal trata da Ordem Social. O Capítulo II desse título, aprovado por unanimidade durante os trabalhos da Constituinte (MESTRINER, 1992, p. 15-16), dedica-se à disciplina da Seguridade Social147. No início desse capítulo, o universo da seguridade social é delineado como “conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (CF, art. 194). Rocha e Baltazar Júnior (2007, p. 26) explicam o significado da seguridade social no ordenamento constitucional brasileiro: a expressão seguridade social, como está posta na nossa Carta de Princípios, é o termo genérico utilizado pelo legislador constituinte para designar o sistema de proteção que abrange os três programas sociais de maior relevância: a previdência, a saúde e a assistência social, espécies do gênero seguridade social. Cada uma destas áreas, atualmente, tem a sua política elaborada por um Ministério específico. O sistema de seguridade social, em seu conjunto, visa a garantir que o cidadão se sinta seguro e protegido ao longo de toda sua existência, tendo por fundamento a solidariedade humana. Mestriner também capta o significado do sistema da seguridade social para o direcionamento do Estado brasileiro: Num grande salto de qualidade, o fenômeno da Seguridade Social surge então, como expressão de um direito social. Ainda que o indivíduo tenha um direito subjetivo, que se expressa por um benefício ou serviço, este será sempre outorgado em função de um direito social. Ou seja, é a proteção social, os interesses da sociedade que estão em jogo e não a proteção do indivíduo. Não é o doente ou o pobre, o objeto de preocupação do Estado, mas sim a doença, a pobreza. Dessa forma a Seguridade Social só pode ser pesada na perspectiva de um Estado de Direito Social, o que significa que suas políticas componentes – saúde, previdência e assistência social, terão que ter a mesma direção. (MESTRINER, 1992, p. 22, destaques no original) 147 O termo seguridade social só surge no ordenamento jurídico brasileiro com a promulgação da Constituição de 1988, mas a partir de entrevistas realizadas, Mestriner (1992, p. 18-19) registra que “proposta semelhante surgira anteriormente, no período da Nova República, quando no Ministério da Previdência e Assistência, gestão Waldir Pires e em seguida Rafael de Almeida Magalhães, possibilitouse a um grupo de técnicos e sanitaristas, um diagnóstico da situação da área e a elaboração de uma proposta de reestruturação. Pelo depoimento do Professor Aloisio Teixeira, foi neste contexto que se forjaram os alicerces da Proposta de Seguridade Social [...]. Naquele grupo de trabalho, segundo Aloisio Teixeira, já se adotava o termo Seguridade Social, para prever um amplo Sistema de Proteção Social”. 141 De forma inédita, o sistema de proteção social unifica vertentes não contributivas – saúde e assistência social – com uma vertente contributiva – a previdência social. Com isso cria-se uma rede que não tem como único eixo protetivo os direitos decorrentes de uma relação contributiva de vinculação ao sistema de seguridade social. Ao contrário, busca-se assegurar que todo o grupo social possa contar com alguma forma de proteção contra a necessidade e a marginalização. Um sistema de proteção social abrangente, composto por mecanismos contributivos e não contributivos, só pode existir sob uma lógica de solidariedade social. A solidariedade é essencial quando se trata do financiamento da política de seguridade social: os membros da sociedade contribuem segundo sua capacidade econômica (ALMANSA PASTOR, 1991, p. 61) para criar uma rede que ampare toda a coletividade, inclusive propiciando cooperação entre diferentes gerações. Da mesma forma, é a noção de solidariedade que garante a todos os membros da sociedade a possibilidade de usufruir de prestações da seguridade social na medida de suas necessidades (CARDONE, 1990, p. 31), ainda que sua capacidade contributiva seja diminuta ou inexistente. A ideia de segurança social como uma construção coletiva vai ao encontro da cidadania como relação de pertencimento a uma comunidade organizada. Essa mesma ideia denota que a satisfação de necessidades humanas não é apenas do interesse e responsabilidade de cada indivíduo isoladamente considerado, mas também da comunidade em que este indivíduo se insere. 3.8.1 Conceito de seguridade social tendo o atendimento às necessidades sociais como eixo estruturante Há doutrinadores que entendem que a seguridade social está estruturada em torno da ideia de risco. Essa parece ser a posição defendida por Balera (1997, p. 188) ao afirmar que “todas as pessoas, em todas as situações de risco social, fazem jus à proteção do sistema de seguridade social” (destacou-se) e por Sposati (2009, p. 33), quando afirma ser preciso “caracterizar os riscos sociais a serem enfrentados pela política de assistência social conforme a natureza do ciclo de vida, a dignidade humana e a equidade” (destacou-se). 142 A abordagem fundada na noção do risco se coaduna com as origens da seguridade social, particularmente com as primeiras formas de proteção de trabalhadores. O desenvolvimento dessa noção teve o mérito de unificar o tratamento conferido a uma gama muito diversificada de acontecimentos, como doença, velhice, desemprego e acidentes (ROSANVALLON, 1995, p. 24). Nessa medida, contribuiu para a sistematização do Direito da Seguridade Social. Ocorre que a ideia de risco como pilar da seguridade social está superada. A primeira causa dessa superação é o avanço da disciplina jurídica do tema. Segundo Almansa Pastor (1991, p. 221-223), as relações jurídicas constituídas no bojo da seguridade social têm seu foco nas consequências de um determinado evento, não em sua causa. Protegem-se, inclusive, situações preexistentes à formação da relação jurídica de seguridade social148 e eventos previstos e desejados pelos destinatários da seguridade149. Em um sistema que não se limita à cobertura de eventos futuros, incertos e que não dependam apenas da vontade dos sujeitos da relação jurídica, o risco deixa de ser elemento essencial da relação jurídica, tal como seria em um contrato de seguro. Além disso, a ideia de risco não capta a complexidade dos fenômenos sociais e econômicos que as políticas sociais, incluindo a seguridade, devem enfrentar. O risco evoca ideias como aleatoriedade, imprevisibilidade etc., as quais não se coadunam com relações econômicas e sociais que produzem necessidades, privações e vulnerabilidades de forma contínua e inexorável. Em outras palavras, o crescente número de pessoas que se tornam “sem lugar na sociedade” mostra que a seguridade social deve lidar com situações que nada têm de aleatórias ou de imprevistas150. Em contraposição a essas noções, ganha força a ideia de necessidade social como eixo ordenador do sistema de seguridade social, como sustenta Almansa Pastor (1991), seguido no Brasil por Santos (2001)151. O autor parte de um sentido impreciso da palavra necessidade – compreendida como “falta das coisas necessárias à conservação 148 É o caso de prestações que amparam filhos nascidos antes de qualquer filiação de seus genitores ao sistema da seguridade (ALMANSA PASTOR, 1991, p. 221). 149 As normas de proteção à maternidade e da concessão de benefícios programados, especialmente no caso dos segurados facultativos do RGPS exemplificam essa hipótese. 150 Como afirma Rosanvallon (1995, p. 27): “Lo social ya no puede aprehenderse únicamente en términos de riesgo. Los fenómenos de exclusión, de desempleo de larga duración, desgraciadamente definen a menudo estados estables. Se pasa así de un enfoque aleatorio y circunstancial de los ‘desperfectos sociales’ a una visión más determinista, en la cual se advierte la más débil reversibilidad de las situaciones de ruptura”. 151 A importância desse conceito para a seguridade social, em consonância com a obra de Almansa Pastor (1991), foi mencionada em trabalho anterior de mesma autoria (SALES, 2010). 143 da vida” – em busca de um significado mais técnico e mais preciso. Neste passo, chega à definição de necessidade como “carência ou escassez de um bem, unida ao desejo de sua satisfação”. A necessidade contém em seu bojo um aspecto negativo e outro positivo. A situação de carência ou escassez de um determinado bem – entendido como “coisa ou objeto, material e imaterial, que contribui para o desenvolvimento da personalidade humana” – corresponde ao aspecto negativo da necessidade. Seu aspecto positivo corresponde ao “desejo subjetivo de superá-la mediante provisão de bens, como consciência (‘mentalización’) universal da exigência de sua satisfação” (ALMANSA PASTOR, 1991, p. 30). No que concerne ao adjetivo social, Almansa Pastor (1991, p. 30) pontua que a situação de necessidade pode incidir sobre o indivíduo ou sobre a coletividade, no todo ou em parte. Baseado em Von Stein, o autor afirma que “a vida social se move em torno da cobertura das necessidades humanas, cuja satisfação verdadeira só é possível dentro da sociedade”. Ao final, frisa que o adjetivo social designa necessidades individuais que repercutem na coletividade e adquirem também a essência do social152. Discorrendo sobre o significado da proteção social não contributiva, Sposati também oferece subsídios para a compreensão do adjetivo social. Suas considerações mostram que as necessidades são sociais porque “se constituem nas relações em sociedade” e se ocupam “das condições objetivas de acesso aos modos de reprodução social (condições de vida) como componentes da dignidade humana, da justiça social e dos direitos e da vigilância social” (SPOSATI, 2009, p. 20). Resta justificar por que o conceito de necessidade social é referência para a compreensão da seguridade social. A primeira razão é o fato de essa construção considerar a seguridade social um instrumento de libertação do indivíduo em relação às necessidades sociais (ALMANSA PASTOR, 1991, p. 32). A segunda é justamente o reconhecimento da existência de necessidades materiais e imateriais, o que atende à exigência de “sofisticação” das medidas de enfrentamento à pobreza e à exclusão social mencionada anteriormente (cf. supra 3.4 Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil). 152 No mesmo sentido, pondera Leite (2002, p. 21) “As necessidades essenciais de cada indivíduo, a que a sociedade deve atender, tornam-se na realidade necessidades sociais, pois, quando não são atendidas repercutem sobre os demais indivíduos e sobre a sociedade inteira”. 144 Afirmar que a seguridade social visa satisfazer necessidades sociais conduz a dois questionamentos: quais são essas necessidades e como a seguridade social deve atuar. Para encontrar essa resposta e, com isso, buscar conceituar a seguridade social, vale trazer à tona a teoria das necessidades humanas construída por Doyal e Gough (1991). Contrapondo-se a concepções relativistas153, esses autores defendem a existência de necessidades básicas comuns a todos os seres humanos, delimitadas objetivamente e dotadas de caráter universal: saúde física e autonomia154. Apontam ainda que o atendimento a essas necessidades não é um fim em si mesmo, mas uma situação indispensável para o desempenho de qualquer outra atividade em qualquer cultura155. Como explica Pereira (2006, p. 68), são precondições para a consecução de objetivos universais de participação social156. Saúde física e autonomia são necessidades básicas e universais porque constituem aquilo que todos os seres humanos devem obter para evitar graves e duradouros prejuízos (DOYAL; GOUGH, 1991, p. 50). Os graves prejuízos (serious harm), traduzidos por Pereira como sérios prejuízos, são “impactos negativos cruciais que impedem ou põem em sério risco a possibilidade objetiva dos seres humanos de viver física e socialmente em condições de poder expressar a sua capacidade de participação ativa e crítica” (PEREIRA, 2006, p. 67). Eis, portanto, o critério de distinção das necessidades básicas em relação a outras necessidades e preferências. Doyal e Gough (1991, p. 155) ponderam que, embora as necessidades sejam universais, sua satisfação varia culturalmente. Ainda assim, avançam na identificação de 153 Sob uma óptica relativista, as necessidades sociais seriam historicamente determinadas, variáveis de uma sociedade para outra e, mesmo dentro de cada comunidade, não se poderia falar em necessidades uniformemente reconhecidas. Dessa forma, haveria um grau de subjetivismo que fragilizaria qualquer tentativa de se estabelecer um rol de necessidades a serem amparadas. 154 A autonomia, segundo Doyal e Gough (1991, p. 59-69), resulta de habilidades cognitivas (cognitive skills), saúde mental e oportunidades para o desempenho de atividades socialmente significativas. Pereira aprofunda esse conceito, ensinando que a autonomia básica refere-se à “capacidade do indivíduo de eleger objetivos e crenças, de valorá-los com discernimento e de pô-los em prática sem opressões” (PEREIRA, 2006, p. 70), ao passo que a “autonomia crítica é um estágio mais avançado de autonomia, que deve estar ao alcance de todos. Revela-se como a capacidade das pessoas de não apenas saber eleger e avaliar informações com vista à ação, mas de criticar e, se necessário, mudar as regras e práticas da cultura a que pertencem” (PEREIRA, 2006, p. 74). 155 “[...] since physical survival and personal autonomy are the preconditions for any individual action in any culture, they constitute the most basic human needs – those which must be satisfied to some degree before actors can effectively participate in their form of life to achieve any other valued goals” (DOYAL; GOUGH, 1991, p. 54). 156 Essa teoria não passa ao largo das preocupações com os direitos civis e políticos. Ao contrário, o respeito aos direitos civis e políticos é precondição para que as necessidades básicas sejam atendidas e otimizadas, o que é coerente com a ênfase conferida ao desenvolvimento da autonomia como caminho para a participação social de todos os indivíduos. 145 bens, serviços, atividades e relações que reforçam a saúde física e a autonomia humana em todas as culturas, ainda que providos de formas diferentes. Esses mecanismos são chamados de satisfiers157 universais ou necessidades intermediárias (DOYAL; GOUGH, 1991, p. 157). As necessidades intermediárias subdividem-se em onze categorias não hierarquizadas, a saber: (a) alimentação nutritiva e água potável; (b) habitação protetora; (c) ambiente de trabalho não perigoso; (d) ambiente físico não perigoso; (e) cuidados de saúde apropriados; (f) segurança na infância; (g) relações primárias significativas158; (h) segurança física; (i) segurança econômica159; (j) educação apropriada; (k) planejamento familiar, gestação e parto seguros160. É certo que essas categorias não afastam a possibilidade de cada comunidade possuir necessidades específicas tão ou mais importantes do que a relação apresentada no parágrafo anterior. Nesse caso, afirma Pereira (2006, p. 76) “há que, secundariamente, se identificarem ‘satisfadores específicos’, os quais poderão melhorar as condições de vida e de cidadania das pessoas em situações sociais particulares”. Em outras palavras, às onze necessidades intermediárias apontadas, podem ser agregadas outras necessidades específicas. A formulação teórica de Doyal e Gough (1991) tem atributos que justificam ser tomada como referência para a compreensão da seguridade social no Brasil. O trabalho dos autores permite identificar um conjunto de necessidades cujo atendimento deve pautar a formulação da seguridade social – como de resto de todas as políticas públicas – exigindo uma cuidadosa interpretação do significado de mínimos sociais. Trata-se de uma construção pluralista, pois comporta demandas de minorias ou grupos em situação 157 Pereira (2006, p. 75) traduz satisfiers como “satisfadores”. A definição de relações primárias significativas apresentada por Doyal e Gough (1991, p. 207) é traduzida por Pereira (2006, p. 79) como: “uma rede de apoios individuais que podem oferecer um ambiente educativo e emocionalmente seguro”. Como será visto no próximo capítulo, a assistência social tem entre seus propósitos o fortalecimento da família, núcleo privilegiado de desenvolvimento dessas relações de apoio. 159 Toma-se, mais uma vez a tradução que Pereira (2006, p. 80) faz da obra original (DOYAL; GOUGH, 1991, p. 211), em que insegurança econômica é definida como “risco objetivo de um declive inaceitável no nível de vida de uma pessoa, no qual o ‘inaceitável’ refere-se à ameaça à sua capacidade de participação”. 160 Para maior clareza, segue a relação em inglês: nutritional food and clean water; protective housing; a non-harzadous work environment; a non-harzadous physical environment; appropriate health care; security in childhood; significant primary relationships; physical security; economic security; appropriate education; safe birth control and child-bearing (DOYAL; GOUGH, 1991, p. 157-158) Embora os autores empreguem a expressão clean water, a tradução como água potável (PEREIRA, 2006, p. 76) é mais adequada para a compreensão do termo. 158 146 de desvantagem social e reconhece que o atendimento às necessidades intermediárias pode se dar por formas variadas161. Além disso, a sistematização das necessidades básicas e intermediárias, pautada pelo objetivo maior de promover participação social, oferece um instrumento racional da análise das hipóteses de intervenção da seguridade social. Partindo dessa teoria das necessidades humanas, compreende-se que a seguridade social deve buscar o atendimento das necessidades básicas de saúde física e autonomia em grau que permita a participação social de seus destinatários. Para tanto, cabe aos três sistemas que integram a seguridade social brasileira atender as necessidades intermediárias162 – tanto as de caráter universal, quanto as necessidades específicas previstas no ordenamento jurídico. Entretanto, não cabe à seguridade social prover diretamente o atendimento das onze categorias de necessidades intermediárias acima elencadas. Sendo uma política específica da ordem social, é preciso delimitar as hipóteses em que a seguridade atua como protagonista – ainda que sem exclusividade – e as hipóteses em que desempenha papel coadjuvante de outras políticas. Com isso pretende-se dizer que a seguridade social ora supre diretamente as necessidades intermediárias, ora cria condições para que os indivíduos o façam por seus próprios meios ou então sejam alcançados por outras políticas sociais163. No primeiro caso, está-se diante do campo específico de atuação da seguridade social. Nos outros casos, está-se diante do campo de atuação de outras políticas públicas, em que a seguridade social oferece algum tipo de suporte. 161 Afirmar que existem necessidades comuns à humanidade não implica afirmar que o atendimento delas seja invariável, tampouco implica negar que possam ser demandadas condições adicionais para que alguns grupos atinjam sua saúde física e sua autonomia. 162 Tanto as necessidades básicas quanto as intermediárias constituem necessidades sociais, pois sua origem e sua satisfação estão atreladas à dinâmica da vida em sociedade. 163 Vale ilustrar a afirmação com alguns exemplos. O primeiro: não compete à seguridade social promover a educação escolar, mas compete-lhe prover cuidados de saúde necessários para que os membros da sociedade tenham condições físicas, psíquicas e materiais de serem alcançados pelas políticas de educação. O segundo: a ocupação de vagas de emprego ou cargos públicos por pessoas com deficiência passa por medidas de proteção do trabalho dessas pessoas e, conforme o caso, por políticas econômicas de geração de postos de trabalho. Todavia, os cuidados médicos, os serviços de habilitação e reabilitação e a garantia de renda quando essas pessoas ainda não têm condições de exercer atividade laborativa são essenciais para que as políticas de inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho possam funcionar a contento. Não menos importante é consignar que essa função de “suporte” para o exercício de outros direitos também se aplica aos direitos civis e políticos, bastando recordar que a falta de acesso à saúde ou a precariedade financeira comprometem a capacidade de avaliar e eleger valores e preferências relativas ao exercício desses direitos. 147 Uma leitura atenta da Constituição Federal de 1988 em cotejo com o rol de necessidades intermediárias traçado por Doyal e Gough (1991) mostra que a seguridade social deve prover prestações relativas a: (a) alimentação nutritiva e água potável164; (b) cuidados de saúde apropriados; (c) segurança na infância; (d) relações primárias significativas; (e) segurança econômica; (f) planejamento familiar, gestação e parto seguros. Além disso, o artigo 203 da Constituição Federal prevê um “adicional específico de satisfiers” (PEREIRA, 2006, p. 85) ao prever específica proteção de pessoas adolescentes, idosas ou com deficiência165. Essas necessidades intermediárias universais e específicas podem ser sintetizadas em saúde física e psíquica, segurança econômica e segurança de convívio166. Quanto ao atendimento das necessidades de habitação protetora, ambiente de trabalho não perigoso, ambiente físico não perigoso, segurança física167 e educação apropriada, a seguridade social tem um papel coadjuvante. Isso significa que as prestações de saúde, assistência social e previdência social se refletem no acesso a esses satisfiers. Porém, nesse caso, já não se está na seara da seguridade social e sim de outras políticas sociais. Feita essa distinção, conclui-se que a seguridade social deve afiançar as proteções relativas a saúde física e psíquica, segurança econômica e segurança de 164 As necessidades de alimentação nutritiva e acesso à água potável são questões afetas à seguridade social, pois se referem ao que é essencial para a saúde e o desenvolvimento de qualquer ser humano. Além do mais, a falta desses bens dificilmente pode ser dissociada de um quadro de insegurança econômica. No entanto, há que se registrar que o acesso à alimentação e à água potável passa por questões estruturais relacionadas à política agrícola e ambiental, que assumem um papel importantíssimo no atendimento a essas demandas. Por isso mesmo, embora a distribuição de alimentos seja uma medida “clássica” de assistência social, é um erro conceber medidas de segurança alimentar e fornecimento de água potável como ações exclusivas da assistência social. 165 Entre as onze necessidades intermediárias indicadas por Doyal e Gough (1991) somente as previsões relativas às crianças e às mulheres são dotadas de especificidade. A Constituição Federal de 1988 vai além, pois reconhece que o atendimento às necessidades básicas de adolescentes, idosos e pessoas com deficiência também demanda o suprimento de necessidades intermediárias específicas desses grupos. 166 O Informe Mundial Sobre a Seguridade Social divulgado pela OIT, relativo aos anos de 2010 e 2011, enuncia que o conceito de seguridade social adotado naquele documento possui duas dimensões fundamentais: seguridade de ingressos e acesso à assistência médica. A Constituição Federal brasileira ultrapassa essas duas dimensões. A uma porque garante a saúde e não apenas a assistência médica. A duas porque elege o convívio – pela participação na comunidade ou na vida familiar – como uma dimensão muito importante da seguridade social, como se depreende da leitura de seu artigo 203, incisos III e IV. Embora esses dois dispositivos digam respeito à assistência social, a promoção do convívio também é característica da saúde e da previdência social, pois ambas promovem serviços voltados ao desenvolvimento de habilidades físicas e psíquicas, que permitem a seus destinatários participarem plenamente da vida familiar e social. 167 Como explica Pereira (2006, p. 80), Doyal e Gough (1991, p. 212-214) tratam da segurança física com o sentido de proteção contra ameaças arbitrárias oriundas da sociedade ou do Estado. Portanto, de acordo com essa acepção, seria um satisfier ligado ao respeito aos direitos e garantias individuais, com destaque para a segurança pública. 148 convívio. Para tanto, cabe ao Direito determinar a medida de atendimento dessas necessidades pela seguridade social168, fixar as prestações devidas aos seus destinatários169 e estabelecer os requisitos de acesso a essa proteção170. Porém, como se cuida sempre de promover a participação social de todos os membros da coletividade e como a saúde física e a autonomia são igualmente relevantes, constata-se que não se deve proteger apenas a sobrevivência biológica do ser humano, mas também prover prestações básicas à vida digna em sociedade. Estabelecidas as finalidades da seguridade social – satisfação de necessidades sociais básicas – e identificados os meios disponibilizados pelo constituinte para sua consecução – elaboração e implementação de programas de saúde, previdência e assistência social, tendo em vista as necessidades sociais intermediárias a serem atendidas –, estão definidos os contornos essenciais da seguridade social brasileira. Como resultado de todas essas considerações, pode-se conceituar seguridade social como política pública de proteção social, composta pelas políticas de saúde, assistência social e previdência social, que visa satisfazer necessidades sociais básicas de saúde física e autonomia e, com isso, promover a participação social de todos os indivíduos, tendo como objeto prestações que assegurem saúde física e psíquica, segurança econômica e segurança de convívio. O destaque para a ideia de necessidades sociais como aspecto central da construção da seguridade social será de grande valia para o estudo das normas que tratam especificamente da assistência social no ordenamento brasileiro. 168 Ao tratar da seguridade social espanhola, Almansa Pastor (1991, p. 227) faz um apontamento aplicável à realidade brasileira. O autor afirma que as situações de necessidade social são protegidas quando previstas pelo ordenamento jurídico. As situações não previstas pelo legislador, por conseguinte, não são consideradas ensejadoras de proteção social. 169 Como bem recorda Almansa Pastor (1991, p. 64), a proteção pela via da seguridade social consiste em um direito dos cidadãos, no que se diferencia de qualquer sistema de beneficência. 170 A satisfação de necessidades sociais pode ser condicionada à demonstração de alguma contingência selecionada pelo legislador, hipótese em que se perquire sobre a causa produtora da necessidade. Para Almansa Pastor (1991, p. 230), a previsão de contingências possui dupla função: antes da produção da necessidade a ser coberta (“momento ex ante da relação protetora”), delimita o aporte de contribuições e o conjunto de ingressos financeiros com que a seguridade social conta para efeito de equilíbrio orçamentário; após a produção da necessidade, (“momento ex post da relação protetora”), permite identificar as situações que encontram guarida no ordenamento jurídico. Para o autor, quando a proteção prescinde da demonstração das causas da necessidade, atentando apenas para os efeitos, tem-se uma seguridade social mais assistencial do que contributiva. Essa lição mostra ser comum a estruturação da assistência social em torno da necessidade isoladamente considerada – e não de suas causas – característica aplicável ao ordenamento jurídico brasileiro. Corrobora essa afirmação o ensinamento de Santos (2003, p. 199), que, tratando da assistência social na Constituição Federal, sustenta não haver seletividade de contingências, pois não importam para a assistência social as causas de necessidades, mas sim a “seletividade das necessidades protegidas e a distributividade dos beneficiários”. 149 3.8.2 Disposições gerais relativas à seguridade social O parágrafo único do artigo 194 da Constituição Federal apresenta os objetivos da seguridade social, a saber: (a) universalidade da cobertura e do atendimento; (b) uniformidade e equivalência de benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; (c) seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e dos serviços; (d) irredutibilidade do valor dos benefícios; (e) equidade na forma de participação no custeio; (f) diversidade da base de financiamento; (g) caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, empregadores, aposentados e Governo nos órgãos colegiados. Em que pese o artigo em comento utilizar o vocábulo objetivos, a mera leitura desses objetivos revela que se está diante dos princípios171 norteadores da seguridade social. São estes, portanto, os vetores que devem pautar a organização da saúde, da assistência social e da previdência social. A seu turno, o artigo 195 da Constituição Federal versa sobre o financiamento e a alocação de recursos da seguridade social, já demonstrando em seus incisos e parágrafos a aplicação dos princípios do artigo 194. Segue um breve apanhado desses princípios, com destaque para aqueles que exercem maior influência sobre o tema da assistência social. 3.8.2.1 Universalidade da cobertura e do atendimento O princípio da universalidade direciona a produção normativa infraconstitucional, a elaboração de políticas públicas e a interpretação das normas relativas à seguridade social. 171 Para fundamentar essa asserção, recorda-se o conceito de princípio elaborado por Bandeira de Mello: “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico” (BANDEIRA DE MELLO, 2003, p. 817-818). 150 A ideia ínsita a esse princípio consiste em que todos tenham acesso à proteção social. Nesse sentido, a seguridade social deve se orientar para o atendimento de situações de necessidade social relacionadas a saúde, assistência social e previdência social. Fortemente relacionada com isonomia e dignidade da pessoa humana, a universalidade veda a criação de situações de injustificada desigualdade no acesso à proteção social e rechaça tratamentos estigmatizantes aos usuários dos sistemas protetivos172. No campo da seguridade social, a universalidade apresenta uma dimensão objetiva – a da cobertura – e outra subjetiva – a do atendimento (IBRAHIM, 2010, p. 71). A universalidade da cobertura indica que todas as situações de necessidade social que se inserem no campo da seguridade social encontram proteção atendimento integral ou, como ensina Santos (2003, p. 213), recebem cobertura que “compreende as etapas de prevenção, proteção e recuperação”. Alguns autores afirmam que a universalidade da cobertura alcança “todos os riscos sociais que possam gerar estado de necessidade” (IBRAHIM, 2010, p. 71) ou as “contingências que geram necessidade” (SANTOS, 2003, p. 213). Porém, como nem toda a cobertura proporcionada pela seguridade social está condicionada à demonstração de uma contingência específica (cf. supra 3.8.1 Conceito de seguridade social tendo o atendimento às necessidades sociais como eixo estruturante), não se pode concordar integralmente com essas afirmações. Ao contrário, entende-se que a universalidade não diz respeito às contingências, mas à amplitude das situações de necessidade protegidas. A universalidade de atendimento, a seu turno, denota que todos os membros da sociedade têm direito à proteção social em igualdade de condições. Desse princípio, 172 Sobre a universalidade na efetivação dos direitos sociais, ensina (PEREIRA, 2003, p. 1-2): “O princípio da universalidade é o que melhor contempla e exige a relação entre políticas públicas e direitos sociais, sem descartar naturalmente os direitos individuais (civis e políticos). Uma razão histórica fundamental para a adoção desse princípio foi o objetivo democrático de não discriminar cidadãos no seu acesso a bens e serviços que, por serem públicos, são indivisíveis e devem estar à disposição de todos. Não discriminar, na perspectiva desse princípio, significa não estabelecer critérios desiguais de elegibilidade, que humilhem, envergonhem, estigmatizem e rebaixem o status de cidadania de quem precisa de proteção social pública. Significa também não encarar a política pública (especialmente a política social e dentro desta a assistência) como um fardo governamental ou um desperdício a ser cortado a todo custo. Além disso, uma outra justificação histórica importante para a adoção do princípio da universalidade decorreu da descoberta feita por várias forças sociais em pugna pela democracia, da idéia de prevenção nele contida. [...] Associado à prevenção prevista no princípio da universalidade, o conceito de direitos sociais se impôs como antídoto a toda sorte de agressões e constrangimentos impingidos aos pobres no processo de satisfação de suas necessidades básicas e como arma de luta coletiva por melhores condições de vida e de cidadania” (destaques no original). 151 entretanto, não resulta um direito genérico a toda e qualquer proteção social. A seguridade social cuida de necessidades sociais estabelecidas à luz de sua relevância para o indivíduo e para a comunidade em que ele se insere. O ordenamento jurídico visa atender a essas necessidades – nem mais, nem menos. Saúde, assistência social e previdência social têm limites decorrentes de suas finalidades e de seus respectivos regimes jurídicos173. Nessa medida, a fixação de um regime jurídico de seguridade social, com critérios de acesso, não representa necessariamente mitigação da universalidade. A questão é: uma vez reconhecido o dever estatal de fazer frente a determinadas necessidades, a proteção ofertada deve ser abrangente e, portanto, universal. Assim, todos aqueles que se enquadram nas hipóteses previstas na Constituição Federal ou norma infraconstitucional fazem jus à cobertura prevista ou, dizendo de outro modo, toda a população visada pela política social deve ser efetivamente alcançada. Disso decorre a obrigatoriedade de atuação abrangente – preventiva, protetiva e reparadora – e igualitária. Há que se ter especial atenção à aplicação do princípio da universalidade ao campo da assistência social, pois a aplicação desse princípio evita equívocos na compreensão e na disciplina da assistência. A universalidade de cobertura indica que a assistência social não deve atuar apenas para remediar situações pontuais. Ao invés disso, deve ser preventiva e atuar de forma abrangente sobre as situações de necessidade. Prestigiando-se a cobertura preventiva e protetiva, afasta-se a noção de que a assistência social só intervém em situações de desproteção já instaladas (SPOSATI, 2009, p. 21). Sob o prisma do atendimento assistencial, a universalidade permite avaliar positiva ou negativamente a forma pela qual se delimita o público atendido. Em muitos casos, é mais adequado tratar das necessidades protegidas do que identificar as pessoas a serem atendidas174, pois o que se pretende é fazer frente à necessidade, qualquer que 173 É evidente que, contrariando ideais de satisfação de necessidades sociais básicas ou de à igualdade, a disciplina infraconstitucional da seguridade social poderá incorrer em violação a este princípio constitucional. 174 Deve-se recordar que a assistência social não se destina apenas às situações de necessidade financeira e que qualquer pessoa pode vir a precisar de proteção estatal, sendo oportuna a transcrição da crítica feita por Stuchi a uma parte da doutrina: “Ao definir a assistência social pelo seu público, a doutrina faz um recorte a priori da sociedade, dividindo entre cidadãos ricos, amparados, suficientes e o público da assistência social (pobre, desamparado, hipossuficiente), sem considerar que as vulnerabilidades e riscos podem ser circunstanciais e não permanentes, o que contradiz o princípio da universalidade. Se o Estado brasileiro tem como fundamento a cidadania (art. 1º) e como objetivo erradicar a pobreza e a 152 seja o sujeito envolvido. Em outras situações, a identificação de grupos específicos permite uma atuação voltada para a promoção de justiça e bem-estar social175, pois se tem claro que a universalidade pressupõe que se corrija uma situação de desigualdade. Em qualquer hipótese, a universalidade é incompatível com ideias como a do “amparo ao pobre usuário” – presente, por exemplo, nas práticas da LBA – e dá lugar à compreensão de que são serviços e prestações disponibilizados aos cidadãos. Disso também decorre que o acesso às redes de proteção não pode estabelecer discriminações ou reforçar estigmas. 3.8.2.2 Uniformidade e equivalência de benefícios e serviços às populações urbanas e rurais O princípio da uniformidade e equivalência de benefícios e serviços às populações urbanas e rurais assegura tratamento isonômico às populações rurais e urbanas perante a seguridade social. Embora essa diretriz possa ser extraída até mesmo do artigo 5º da Constituição Federal, a previsão é oportuna, pois afasta qualquer resquício do tratamento desigual dispensado às populações rurais na ordem constitucional anterior a 1988. Como recorda Ibrahim (2010, p. 72), esse princípio não afasta a aplicação do princípio geral da isonomia, especialmente da igualdade material, que pode determinar alguma parcela de diferenciação entre populações urbanas e rurais. marginalização, reduzir as desigualdades sociais, e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 2º), e os direitos sociais devem ter caráter de inclusão e emancipação social, não se pode definir previamente os cidadãos brasileiros que, em circunstâncias da vida, venham a necessitar de algum serviço o benefício socioassistencial” (STUCHI, 2010, p. 168). 175 A mescla entre políticas universalistas e políticas específicas marca toda a evolução dos direitos humanos. Trata-se do processo de especificação do sujeito da proteção que Bobbio identifica como uma das formas de multiplicação dos direitos do homem ao ensinar que: “a passagem ocorreu do homem genérico – do homem enquanto homem – para o homem específico, ou tomado na diversidade de seus diversos status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (o sexo, a idade, as condições físicas), cada um dos quais revela diferenças específicas, que não permitem igual tratamento e igual proteção. A mulher é diferente do homem; a criança, do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o doente temporário, do doente crônico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos deficientes, etc.” (BOBBIO, 2004, p. 84). 153 3.8.2.3 Distributividade e seletividade na prestação dos benefícios e dos serviços Organizar o aparato administrativo e definir critérios de alocação de recursos escassos são tarefas que orientam as escolhas legislativas na construção da seguridade social. No universo de escolhas possíveis, são eleitas as necessidades a serem protegidas e direciona-se a prestação estatal às situações de maior relevância. Disso resultam outros dois princípios da seguridade social: a distributividade e a seletividade. Como ensina Santos (2003, p. 180), cabe ao legislador escolher as contingências geradoras de necessidade a serem sanadas e, ato contínuo, fixar o grau de proteção visando atingir o maior número possível de destinatários. tendo em vista a conjuntura econômica e o universo de necessidades a eliminar, o legislador tem de escolher as contingências geradoras de necessidades que deverão ter proteção pela seguridade. E, após, estabelecer a medida dessa proteção, de modo a atingir o maior número possível de beneficiários. [...] A seletividade diz quais são as contingências-necessidades objetos da relação jurídica de seguridade social. A distributividade fixa o grau de proteção a que terão direito os beneficiários das prestações previamente selecionadas.(SANTOS, 2003, p. 180) O princípio da seletividade, nas palavras de Ibrahim (2010, p. 72-73), impõe a “concessão e manutenção das prestações sociais de maior relevância, levando-se em conta os objetivos constitucionais de bem-estar e justiça social”. A seletividade indica que as prestações da seguridade social deverão ser destinadas aos que realmente estejam em situação de necessidade. Desse princípio extrai-se também um mandamento de adequação entre a prestação seja adequada ao objeto da proteção, pois as prestações devem ser orientadas em função da finalidade buscada. Em suma: por força desse princípio selecionam-se as prestações mais relevantes e adequadas às necessidades protegidas pelo ordenamento. É também por força desse princípio que a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS conta com quatro mecanismos de implantação da assistência social (benefícios, serviços, programas e projetos de enfrentamento da pobreza). Ao contrário do que se pode depreender de uma primeira leitura da Constituição Federal, os princípios de universalidade e seletividade não são 154 antagônicos176, mas estão imbricados. A universalidade diz respeito às situações de necessidade protegidas e ao conjunto de pessoas que receberão a proteção social. A seletividade diz respeito à identificação dessas necessidades e dos sujeitos que terão acesso aos direitos da seguridade social177 e, por conseguinte, à adequação das prestações às necessidades. Cabendo à seletividade direcionar corretamente a atenção socioassistencial, cabe a ela também concretizar ou contrariar a universalidade. Em outras palavras: se a seletividade resulta em atenção restrita a situações pontuais, sem medidas de fortalecimento da condição do cidadão, há incompatibilidade com a ideia de universalidade e, mais ainda, com os objetivos expressos no artigo 3º da Constituição Federal. A atenção precária ou parcial ao cidadão resulta igualmente em medidas inadequadas à necessidade, fragilizando a cobertura universal. Por fim, a aplicação do critério da menor elegibilidade, via de regra178, pode resultar na inadequação da prestação ofertada em relação à necessidade a ser suprida e, por conseguinte, em cobertura insuficiente. Em suma, concebida como focalização ou, conforme o caso, como menor elegibilidade, a seletividade contraria a universalidade. A focalização representa um desvirtuamento da seletividade como demonstra Pereira (2003, p. 02-03): A focalização afigura-se, assim, como um princípio antagônico ao da universalização – ao contrário da seletividade, que poderá manter 176 Ugatti, por exemplo, compreende a seletividade como mitigação do princípio da universalidade, como se extrai do excerto a seguir: “A proteção social constitucional dispensada à assistência social insere o conceito de necessitado para sua efetiva atuação. Nessa área de proteção social, o princípio da universalidade do atendimento e da cobertura (item 4.1, infra) é mitigado pelo texto constitucional, em seu artigo 203, caput e incisos I e V [...]. Os próprios objetivos traçados nos incisos I a V do mencionado dispositivo constitucional, decorrentes da seletividade e distributividade na prestação de benefícios e serviços (item 4.3, infra), delimitam o alcance da universalidade da cobertura e do atendimento, traçando as hipóteses que de forma prioritária merecerão proteção por parte do legislador ordinário” (UGATTI, 2003, p. 27). 177 Em sentido contrário, ao tratar da seletividade na assistência social, Boschetti (2003, p. 85-86) entende que a seletividade não guarda relação com a priorização de situações e usuários potencialmente protegidos. Para a autora, a seletividade não tem por objetivo estabelecer estratégias para ampliar o acesso aos direitos; busca apenas definir quem passará pelo crivo do acesso aos direitos, esgotando-se em si mesma. 178 O princípio da menor elegibilidade deliberadamente coloca o cidadão que se vale da assistência social em situação pior do que estaria se dependesse de seu trabalho. Há um aspecto perverso nesse raciocínio, que ignora as reais possibilidades oferecidas ao usuário da assistência social e, não raro, pressupõe que o cidadão prefere viver às expensas do Estado, o que nem sempre corresponde à verdade. Nessa medida, é uma noção criticável. Todavia, não se pode afirmar que todas as medidas pautadas pela menor elegibilidade contrariam o princípio da seletividade. Ao menos em tese, pode-se cogitar a existência de prestações da assistência social que, mesmo piores do que os recursos oriundos de outras fontes, atendam adequadamente as necessidades sociais do cidadão que as recebe. Daí a afirmação de que o critério da menor elegibilidade, via de regra (mas não necessariamente) resulta em cobertura insuficiente. 155 relações dinâmicas com este – não só no plano operacional, mas também teórico e ideológico. Trata-se, a focalização, de uma tradução dos vocábulos ingleses targeting ou target-oriented, oriundos dos Estados Unidos e adotados pelos governos conservadores europeus, principalmente o da ex-primeira ministra inglesa Margareth Thatcher – que concebem a pobreza como um fenômeno absoluto, e não relativo, com todas as implicações políticas que tal concepção acarreta, dentre as quais ressaltam: a restrição do papel do Estado na proteção social; o apelo à generosidade dos ricos e afortunados para ajudarem os mais pobres; a ênfase na família e no mercado, como principais agentes de provisão de bem-estar; a proclamação da desigualdade social como um fato natural. E mais: significa desviar a atenção pública da satisfação das necessidades sociais – dado o seu caráter complexo e multideterminado – para a adoção de soluções técnicas focalizadas, tidas como inovadoras, neutras e facilmente controláveis. Sposati (2009, p. 24) também se posiciona contra a ideia de focalização: Talvez por força de agentes financiadores internacionais, usa-se o termo focalização, que é aplicado desde o Consenso de Washington. De fato, a perspectiva em direcionar corretamente o programa para a demanda trouxe o desafio de construir-se várias ferramentas de análise da realidade, principalmente sobre a exclusão social. O fato de se aproximar os serviços da demanda deve ser referenciado a um processo de inclusão, de ampliação de acessos, e não de apartação, segregação, que o sentido de focalização, ao se contrapor à universalização, traz. Poder-se-ia contra-argumentar que a focalização é necessária para a promoção da igualdade. Desde que a focalização signifique seletividade – como adequação da prestação à necessidade – e igualdade material, pode-se concordar com essa afirmação179. O que se critica é a focalização como forma de estabelecer uma cobertura residual e ínfima. O princípio da distributividade orienta a adoção de critérios que abranjam o maior número possível de beneficiários. Segundo Santos (2003, p. 180), “presentes as contingências-necessidades, o legislador escolherá as que merecerão proteção, e a escolha deverá recair sobre aquelas que tiverem maior potencial distributivo”. Esse princípio coloca a superação de desigualdades no horizonte da seguridade social e orienta a fixação de prestações pelo ente que as provê, que deverá levar em conta esse princípio em cotejo com suas possibilidades econômicas. 179 Veja-se um exemplo desse uso: “o enfrentamento da pobreza e da desigualdade é feito de forma distinta. Enquanto um pressupõe a garantia de direitos universais para assegurar que nenhuma pessoa chegue ou permaneça no status da pobreza, o outro necessita de ações focalizadas baseadas na idéia de equidade, para que aqueles que estão em situação de desigualdade se aproximem dos patamares socioeconômicos daqueles em melhor situação. A pobreza e a desigualdade podem coexistir em uma mesma sociedade, como acontece no Brasil, e as estratégias para seu enfrentamento também precisam ser conjugadas” (TRIVELINO, 2006, p. 45-46). 156 Segundo Pontes (2006, p. 144) “a distribuição de renda própria da distributividade, é um meio eficaz, ainda que parcialmente, de se procurar reduzir as desigualdades sociais e proporcionar uma maior homogeneidade social em termos econômico-financeiros, o que se reverterá em uma solidariedade social mais intensa e com maior coesão e harmonia em sociedade”. Entre todos os princípios da seguridade social, seletividade e distributividade são os princípios que de forma mais contundente determinam o caráter emancipador ou não das políticas de assistência social. 3.8.2.4 Irredutibilidade do valor dos benefícios A irredutibilidade do valor dos benefícios representa um desdobramento do princípio da segurança jurídica, impedindo que os benefícios sejam diminuídos e privem seus titulares de rendimentos que, muitas vezes, são essenciais à sua sobrevivência. Além de preservar o valor nominal, cuida-se de um comando voltado a preservar o valor real dos benefícios pagos no âmbito da seguridade social. Esse princípio não impede que benefícios erroneamente calculados sejam revistos, inclusive com eventual cobrança de valores pagos a mais, uma vez que a atenção à legalidade também é inafastável. Para tanto, porém, deve atentar para os prazos para revisão dos atos de que decorram efeitos favoráveis aos destinatários (Decreto n. 20.910/32, art. 1º, Lei n. 8.213/91, art. 103-A e Lei n. 9.784/99, arts. 53 e 54). 3.8.2.5 Equidade na forma de participação no custeio A equidade na forma de participação no custeio destina-se a respeitar, em primeiro lugar, a capacidade contributiva de todos os agentes responsáveis pelo financiamento da seguridade social. Em segundo lugar, permite que alguns agentes contribuam em maior medida, conforme o risco da atividade exercida, por exemplo. Nisso há também expressão da solidariedade que rege a seguridade social, já que parte 157 dos destinatários desse sistema não chega a contribuir – ao menos não diretamente – para o custeio do sistema. 3.8.2.6 Diversidade da base de financiamento A diversidade da base de financiamento impõe que a seguridade social seja financiada por uma pluralidade de fontes. Essa pluralidade é essencial para a higidez do sistema, resguardando-o em caso de oscilações que atinjam um ou alguns segmentos específicos. Ademais, trata-se de princípio essencial para que os serviços de saúde e assistência social sejam prestados em caráter universal e independentemente de contribuição. Na esteira desse princípio, o artigo 195, caput, da Constituição Federal preceitua que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante recursos orçamentários da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e das contribuições sociais indicadas em seus incisos. Ao dispor dessa maneira, o constituinte retoma a ideia de solidariedade que orienta o sistema de seguridade social. Ao estabelecer que a sociedade financiará toda a seguridade – e não apenas o sistema previdenciário, que é contributivo – resgata-se a necessidade de Estado e sociedade civil proporcionarem proteção a todos os seus membros. Segundo Ibrahim (2010, p. 77), por força do princípio da diversidade da base de financiamento, “qualquer proposta de unificação das contribuições sociais em uma única, como se tem falado, é evidentemente inconstitucional, além de extremamente perigosa para a seguridade social”. 3.8.2.7 Caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, empregadores, aposentados e Governo nos órgãos colegiados O último princípio inscrito no artigo 194 da Constituição Federal diz respeito ao caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão 158 quadripartite, com participação dos trabalhadores, empregadores, aposentados e governo nos órgãos colegiados. A Constituição Federal ampliou os canais de representação de interesses de diversos segmentos da sociedade civil e criou mecanismos de democratização dos espaços de formulação de políticas públicas, os quais não se resumem aos tradicionais instrumentos da democracia representativa. Emblemáticos dessa inovação são os órgãos colegiados incumbidos da formulação e do monitoramento de políticas públicas. Por meio desses canais, surgem importantes espaços de mediação política, debate de ideias e busca de transparência nas ações do Estado. Isso evidencia também que não há favor em discutir e efetivar direitos sociais, única explicação que poderia justificar a falta de abertura desses espaços e a exclusão de sujeitos diretamente interessados na implementação desses direitos. No âmbito da seguridade social, há diversos órgãos colegiados envolvidos na formulação e execução das políticas públicas: o Conselho Nacional de Previdência Social – CNPS (Lei n. 8.213/91, art. 3º), o Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS (Lei n. 8.742/93, art. 17) e os Conselhos de Saúde (Lei n. 8.028/90, art. 23, III, a, Lei n. 8.080/90, art. e Lei n. 8.142/90, art. 1º, II). Não menos importante, é a previsão contida no artigo 195, § 2º, da Constituição Federal: a proposta de orçamento da seguridade social será elaborada de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde, previdência social e assistência social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias, assegurada a cada área a gestão de seus recursos. 3.9 Comentários aos artigos 203 e 204 da Constituição Federal 3.9.1 A definição de assistência social à luz da Constituição Federal A previsão do direito à assistência social na Constituição Federal de 1988 representou avanço ímpar, tanto no sentido de promoção de igualdade e justiça social, quanto de superação de preconceitos e confusão entre assistência social e caridade. 159 Esse caráter inovador deve-se ao tratamento da assistência social como conteúdo de política pública, não como atividades e atendimentos eventuais; à rejeição da subsidiariedade das ações estatais em relação às iniciativas da sociedade civil e da família; e ao reconhecimento de um novo campo de efetivação dos direitos sociais (SPOSATI, 2009, p. 14). Entretanto, os dois únicos dispositivos constitucionais inteiramente dedicados à assistência social (arts. 203 e 204) têm caráter sucinto e bastante genérico. De forma não exauriente e pouco sistematizada, identificam os grupos a serem atendidos, traçam objetivos a serem alcançados e apresentam diretrizes sobre a organização e o financiamento da assistência social. Com exceção do benefício de prestação continuada, não há especificação das prestações a serem instituídas ou do nível de segurança social que se quer alcançar. Essa falta de clareza na cobertura e no grau de proteção a serem propiciados pela assistência social é característica que não pode ser dissociada do momento histórico em que esse direito se consagrou. À época da promulgação da Constituição Federal, o tema não estava suficientemente amadurecido para que se formasse consenso a respeito de aspectos específicos dessa política. Isso não significa, contudo, a impossibilidade de se buscar uma definição para assistência social à luz da Constituição Federal. Neste passo, cumpre retomar as considerações apresentadas sobre o conceito de seguridade social, com destaque para o conceito-chave de necessidades sociais, e conjugá-las com a previsão contida no artigo 203 da Constituição Federal, cujo caput enuncia que “a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”. Pois bem. A assistência social, como integrante da seguridade social, é política pública de proteção social. Essa política pública possui uma característica que se apresentou em diversas épocas e sob diversas disciplinas jurídicas: o caráter não contributivo. Em outras palavras: o acesso aos benefícios, serviços, programas e projetos da assistência social dispensam qualquer contrapartida pecuniária por parte dos destinatários dessas prestações. Passando ao largo de questões relativas à prévia filiação e prévio custeio, a investidura na titularidade de direitos socioassistenciais pauta-se por outro critério, igualmente previsto no caput do artigo 203 da Constituição Federal: a necessidade. 160 De fato, a previsão de que “a assistência social será prestada a quem dela necessitar” elege a necessidade social como critério geral de acesso à assistência, sem prejuízo de outros requisitos previstos em normas constitucionais e infraconstitucionais. Isso revela que essa política está comprometida com a satisfação de necessidades sociais básicas de saúde física e autonomia, passo indispensável à promoção da participação social de todos os membros da sociedade. Para alcançar esse fim, cabe à assistência social prover a satisfação de necessidades sociais intermediárias. Partindo da afirmação feita anteriormente de que a seguridade social deve protagonizar o atendimento de necessidades intermediárias de promoção de saúde física e psíquica, segurança econômica e segurança de convívio, cabe verificar se essas três categorias estão diretamente afetas à assistência social ou se, diversamente, algumas delas devem ser assumidas por outras políticas da seguridade social. Segurança econômica e segurança de convívio são necessidades intermediárias que devem ser atendidas pela assistência social, o que significa que devem servir como referências para a formulação da política de assistência social. A segurança econômica é apresentada por Doyal e Gough (1991, p. 210) como uma necessidade a ser suprida para que a autonomia de um indivíduo seja preservada e ampliada. Isso porque, segundo os mesmos autores, o desenvolvimento da autonomia pressupõe que cada pessoa possa planejar seu futuro e buscar os meios para concretizar esse plano, bem como que possa fazê-lo levando em conta regras, recompensas e relações que presumivelmente não sofrerão grandes alterações em curto prazo. A proteção contra a insegurança econômica representa, nessa medida, a proteção contra o risco objetivo de uma queda inaceitável no padrão de vida de uma pessoa, entendendose como “inaceitável” a situação de ameaça à capacidade de essa pessoa participar da vida em sociedade (DOYAL; GOUGH, 1991, p. 211)180. No artigo 203 da Constituição Federal, o escopo de proporcionar segurança econômica se faz pela promoção da integração ao mercado de trabalho, pela habilitação e reabilitação de pessoas com deficiência e, de forma mais acentuada, pela garantia de um salário mínimo às pessoas idosas ou com deficiência sem recursos pessoais ou familiares para prover a própria manutenção. Aqui, reafirma-se que a diminuição da segurança econômica propiciada pelo trabalho e pela previdência social resulta no 180 “Let us define economic insecurity as the objective risk of an unacceptable decline in someone’s standard of living, where ‘unacceptable’ refers to a threat to their capacity to participate in their form of life” (DOYAL;GOUGH, 1991, p. 211). 161 aumento da demanda pela assistência social, como forma de proteção não contributiva que mitiga situações de insegurança econômica. A segurança de convívio – bastante enfatizada na atual redação da Lei Orgânica de Assistência Social e da Política Nacional de Assistência Social – diz respeito à participação na vida familiar e comunitária. A previsão de proteção à infância é uma das manifestações dessa segurança, recordando-se, a propósito, que Doyal e Gough (1991, p. 204-207) tratam da segurança na infância como uma categoria específica de necessidades intermediárias. De igual modo, as previsões concernentes à família, à adolescência e à velhice estão atreladas à consolidação de redes de apoio próximas, isto é, de relações primárias significativas (DOYAL; GOUGH, 1991, p. 207-210). As medidas de proteção à maternidade – que se refletem intensamente no grau de autonomia das mulheres e não se esgotam em medidas de assistência à saúde de mães e filhos – dizem respeito tanto à opção pela maternidade, quanto ao apoio dispensado às mães. Já a previsão de integração das pessoas com deficiência à vida comunitária representa um mandamento no sentido de propiciar o convívio social em igualdade de condições com o restante da sociedade. Em todos esses casos, busca-se criar ambientes propícios ao desenvolvimento da autonomia de cada indivíduo. Tanto situações involuntárias de excessivo isolamento, quanto de excessiva exposição são fatores de vulnerabilidade que a assistência social procura contornar. Para isso, não se recorre apenas a medidas de segurança econômica, pois as necessidades básicas de autonomia e saúde física não são supridas apenas com recursos financeiros181. De outra senda, as prestações voltadas diretamente à promoção de saúde física e psíquica estão afetas, primordialmente, à política pública de saúde, organizada sob a forma do Sistema Único de Saúde – SUS. Não se trata de desprezar os fatores que elevam ou reduzem os níveis de saúde da população, como alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer e acesso aos bens e serviços essenciais, previstos expressamente pelo artigo 3º da Lei n. 8.080/90, o que seria incompatível com o conceito de saúde adotado pela Organização Mundial de Saúde – OMS (WHO, 1946), a saber: “completo estado de bem-estar físico, mental e social e não 181 A corroborar a constatação de que a assistência social não é destinada apenas às situações de grave necessidade financeira, recorda-se que o critério de necessidade financeira só está previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal. Nos demais incisos do artigo 203, há um amplo escopo de proteção e inclusão social. Portanto, ainda que a necessidade de renda seja levada em conta, a necessidade não pode ser tomada apenas com esse sentido. 162 apenas ausência de doença ou enfermidade”182. Trata-se, sim, de reconhecer a existência de uma política específica, dotada de técnicas próprias e concebida exatamente para oferecer cuidados de saúde apropriados a indivíduos e grupos. Conquanto a assistência social possa oferecer suporte a essa política, não deve encampá-la183. Dessa forma, a assistência social na Constituição Federal de 1988 corresponde a uma política pública de proteção social não contributiva, integrante da seguridade social, que visa prover segurança econômica e segurança de convívio a indivíduos e grupos, como forma de satisfazer necessidades básicas de saúde física e autonomia e, com isso, promover a participação social de todos os membros da sociedade184. Assentadas essas considerações, passa-se a um exame mais detalhado dos artigos 203 e 204 da Constituição Federal. 3.9.2 As espécies de normas veiculadas no artigo 203 da Constituição Federal A Constituição Federal apresenta os objetivos da assistência social da seguinte maneira: Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: 182 Dallari e Nunes Júnior (2010, p. 10) destacam a importância do conceito de saúde adotado pela OMS, nos seguintes termos: “A contribuição conceitual trazida pela Constituição da Organização Mundial de Saúde é inegável, servindo de referência à operacionalização de diversas leis em matéria sanitária. Primeiro, porque, ao associar o conceito de saúde ao bem-estar social e psíquico, exprime a idéia do ser humano em relação com o seu meio. Segundo, porque enaltece a saúde como um bem jurídico não só individual, mas também coletivo e, nessa medida, de desenvolvimento, acenando para a necessidade da preservação presente e futura, tanto do indivíduo – tomado isoladamente – como da humanidade. Assim sendo, muito embora existam objeções teóricas a apontar eventuais inconsistências das asserções constantes da Constituição da Organização Mundial de Saúde [...], é certo que os dois pontos de partida apontados cumprem, ainda hoje, relevante função hermenêutica”. 183 Nesse ponto, reconhece-se que, embora a promoção de saúde caiba precipuamente à política pública de saúde, cabe à assistência social propiciar, por exemplo, rendimentos para que cada pessoa ou família possa cuidar da própria saúde, buscar atendimento junto ao SUS etc. Por outro lado, a assistência social não deve ser transformada em uma extensão de políticas de saúde incompletas. É o que ocorre, por exemplo, quando se espera que a assistência social forneça próteses e órteses às pessoas que não podem obtê-las, bens que deveriam ser parte do tratamento oferecido pelo sistema de saúde (cf. Lei n. 8.080/90, arts. 19-M e 19-N). 184 Reiterando a afirmação feita no tópico 3.8.1 a propósito de toda seguridade social, há que se ter claro que o atendimento a essas necessidades intermediárias pela assistência social deve ser feito de modo a criar condições para que os indivíduos atendam, por seus próprios meios, suas outras necessidades sociais ou estejam em condições de serem alcançados por outras políticas sociais. 163 I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. As normas estampadas nos incisos I a V desse artigo têm natureza programática. Esses incisos estabelecem um escopo geral de proteção social, indicando situações e grupos que devem receber atenção prioritária. Porém, deixam ao legislador a tarefa de estabelecer como esses objetivos serão concretizados. O inciso V, a seu turno, é norma de eficácia limitada (SILVA, 2008), pois depende de regulamentação infraconstitucional para produzir efeitos. Neste dispositivo, são identificados os potenciais titulares do benefício e estabelecida a renda mensal que lhes será devida. Porém, a expressão “conforme dispuser a lei” evidencia a necessidade de regulamentação infraconstitucional. 3.9.3 O artigo 203 da Constituição Federal e a identificação dos destinatários da assistência social A identificação dos sujeitos que serão atendidos pela assistência social é expressão do princípio da universalidade de atendimento, que impõe a identificação daqueles que, em igualdade de condições, receberão a mesma proteção social. De outro giro, as situações de necessidade que ensejarão essa mesma proteção refletem a aplicação dos princípios de universalidade de cobertura e de seletividade às prestações da assistência social (cf. supra 3.8.2.1 Universalidade da cobertura e do atendimento e 3.8.2.3 Distributividade e seletividade na prestação dos benefícios e dos serviços). A descrição das necessidades a serem cobertas pela assistência social ocupa espaço diminuto no artigo 203 da Constituição Federal: há uma menção genérica no caput e outra específica no inciso V, esta última tratando da necessidade de renda. No mais, o artigo 203 prestigia a identificação do público-alvo da assistência social, 164 indicando grupos em condições de vida consideradas vulneráveis, tanto em decorrência de situações específicas e transitórias, quanto de quadros permanentes. Isso mostra que os objetivos traçados pelo artigo 203 estão pautados em função dos sujeitos que se quer atender, e não da cobertura vislumbrada pelo constituinte. Na identificação do público-alvo da assistência social, é forçoso observar que o fator de discrímen subjacente ao artigo 203 é fundado na aptidão ou inaptidão para o trabalho, como aponta Boschetti (2003, p. 46): a proteção, o amparo, a habilitação e a garantia de uma renda mínima destinam-se especificamente àqueles cuja situação não lhes permite trabalhar: maternidade, infância, adolescência, velhice, deficiência. Àqueles que não se inserem nestas situações, o objetivo é outro: não assistir, mas promover a integração ao mercado de trabalho. Assim, o reconhecimento legal da assistência social como direito retoma e mantém uma distinção entre assistência e trabalho, entre capazes e incapazes que estrutura secularmente a organização social. Todavia, o princípio da universalidade, somado ao critério geral de necessidade como requisito de intervenção da assistência social, conduz à conclusão de que o rol do artigo 203 não é taxativo. Não se pode afirmar, portanto, que a assistência social se restringe ao fornecimento de recursos materiais mínimos aos que não podem trabalhar e fomentar a integração no mercado de trabalho dos que possuam condições para tal185. Como ensina Silva (2009, p. 95), a interpretação da norma que busca a intenção original do constituinte resulta na “impossibilidade de atualização do âmbito de proteção dos direitos fundamentais em uma realidade cambiante” (destaque no original). A abertura para as hipóteses não contempladas nos incisos do artigo 203 está no próprio texto constitucional, como aponta Arzabe: o desamparado mencionado no artigo 6º é toda pessoa que necessite de alguma espécie de assistência, visto determinar o artigo 203 que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, residindo aí o preceito que impõe a universalização da assistência social. A par do critério genérico da necessidade, que não se resume, mas inclui a insuficiência de renda, são também índices de atribuição do direito à assistência a idade – se criança, adolescente ou idoso – a maternidade, a diretriz de integração social e no mercado de trabalho de todos, especialmente da pessoa com deficiência. (ARZABE, 2001, p. 195) 185 A título de ilustração, anota-se que a assistência social exerce papel fundamental no atendimento à população em situação de rua, extremamente vulnerável e desprovida de bens materiais e imateriais para satisfazer suas necessidades mais elementares, sem exigir o “enquadramento” dessas pessoas entre os grupos identificados no texto constitucional. 165 A despeito da não taxatividade do rol do artigo 203 da Constituição Federal186, é essencial compreendê-lo, pois as indicações constantes dos cinco incisos do dispositivo em comento têm sua razão de ser: identificam grupos e situações de maior vulnerabilidade. Para tanto, propõe-se a divisão dos objetivos traçados no artigo 203 entre as hipóteses de proteção a grupos considerados vulneráveis e hipóteses orientadas para a promoção de convívio familiar e social desatreladas de características específicas do sujeito protegido. Principia-se pelos grupos identificados por sua maior vulnerabilidade. Crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência e pessoas à margem do mercado de trabalho estão mais sujeitas às privações de condições materiais e imateriais para sobreviver dignamente. Não raro, esses grupos dispõem de poucos instrumentos para contornar situações de privação material, abandono, maus-tratos e insegurança, que podem provocar danos irreversíveis. É por isso que não se pode conceber política de proteção social não contributiva que deixe de lado esses grupos. A referência a crianças e adolescentes está em consonância com o princípio de proteção integral às crianças e adolescentes, traçado pelo artigo 227 da Constituição Federal, com as alterações introduzidas pela Emenda Constitucional n. 65, de 13 de julho de 2010. No plano infraconstitucional, esse princípio rege o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). A Constituição Federal inovou ao dispor sobre a proteção das pessoas idosas nos artigos 203 e 230187. Entre as novidades, está a criação de um mecanismo de transferência de renda para essas pessoas: a garantia de um salário mínimo mensal ao idoso que não possua meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família188. Esse benefício permite tanto o atendimento de necessidades materiais, quanto a preservação da autonomia dos idosos em relação a terceiros. 186 Nesse sentido, cf. SALES, 2010. A proteção foi ainda aprofundada pela Política Nacional do Idoso (Lei n. 8.842/94) e pelo Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03). 188 Em um estudo sobre conhecimento de idosos a respeito de seus direitos, Martins e Massarollo (2010, p. 484) destacam que “[p]ossuir renda própria constitui um dos principais instrumentos sociais de proteção aos idosos. É através dela que o idoso suprirá suas necessidades diárias, manterá sua independência e garantirá o acesso a outros direitos como a alimentação. O EI [Estatuto do Idoso] rege que se ‘o idoso ou seus familiares não possuírem condições econômicas de prover o seu sustento, impõese ao Poder Público esse provimento, no âmbito da assistência social’. A melhor forma de prover o sustento do idoso é garantindo que ele não dependa de outra pessoa para uma atividade tão elementar como a alimentação, isto é, que ele tenha renda suficiente para viver dignamente”. 187 166 Essas previsões se mostram essenciais no Brasil, pois, à medida que a população envelhece, ficam nítidas as más condições de vida de muitos idosos, a insuficiência dos recursos materiais com que contam e as situações de discriminação, isolamento e violência que vivenciam. As mesmas considerações concernentes aos idosos são aplicáveis às pessoas com deficiência, mencionadas nos incisos IV189 e V do artigo 203. A importância do atendimento às necessidades materiais e imateriais – algumas delas específicas da deficiência – para a sobrevivência digna e sem isolamento do convívio familiar e social, enseja a garantia de habilitação e reabilitação. No mesmo sentido, tem-se a garantia do benefício de prestação continuada que, bem aplicado, contribui para romper o círculo vicioso em que pobreza e deficiência se retroalimentam. No que tange à proteção da maternidade, os elogios devem ser acompanhados de algumas ponderações. A proteção à maternidade se justifica por se tratar de um ciclo de vida em que a segurança é fundamental para mães e filhos e porque a maternidade pode interferir na autonomia e na saúde das mulheres (cf. DOYAL; GOUGH, 1991, p. 217). Além disso, é medida essencial para promoção de igualdade de gênero, pois contribui para que a mulher-mãe obtenha meios materiais e imateriais para cuidar de si e de sua prole e seja inserida em redes de serviços voltadas ao seu desenvolvimento e ao desenvolvimento de sua prole. Nesse sentido, encontra-se em consonância com a teoria de Doyal e Gough (1991), que incluem planejamento familiar, gestação e parto seguros entre as necessidades intermediárias que reforçam a saúde física e a autonomia individual em todas as culturas. No entanto, a ausência de disposição análoga relativa à figura paterna ou à paternidade responsável, inclusive em consonância com o artigo 226, § 7º, da Constituição Federal, reforça padrões culturais que conferem à mulher maior responsabilidade pelo cuidado com a família. Com isso, há que se evitar que as medidas de proteção à maternidade contenham resquícios das práticas protagonizadas pela LBA, 189 A previsão contida no inciso IV poderia ser tratada entre as hipóteses orientadas para a promoção do convívio familiar e social. Todavia, como é uma hipótese voltada para a proteção de um grupo específico – o das pessoas com deficiência – optou-se pela inclusão desse inciso na primeira categoria da divisão proposta. 167 que viam na educação das mães solução para grande parte dos problemas do país. Essa ambiguidade é captada no registro abaixo: A mulher, principalmente a mulher-mãe, tem sido a maior responsável pelos cuidados dos membros da família. Por essa razão, o trabalho social deve ter presente as relações de gênero e o papel da mulher no sistema de proteção social. É preciso considerar que quase 1/3 das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, e, ao mesmo tempo, é a mulher que comumente busca serviços sociais públicos, especialmente, no campo da proteção social, tarefa atribuída na sociedade à figura feminina. [...] Contudo, ao mesmo tempo em que se observa o importante reconhecimento da titularidade das mulheres nas Políticas Públicas, é necessário problematizar o elevado nível de pressão e expectativa da sociedade quanto às tarefas e funções a serem desempenhadas pela figura feminina no âmbito familiar. Assim, ingressar na questão de gênero requer analisar os condicionantes que limitam a participação masculina e sobrecarregam a mulher e as implicações para o desenvolvimento do trabalho social no âmbito dos Cras, que precisa construir espaços de participação e engajamento também da figura masculina (YAZBEK et al., 2010, p. 173-174). Prosseguindo, verificam-se hipóteses orientadas para o convívio familiar e social. A proteção à família prevista no artigo 203, inciso I, se coaduna com as demais disposições constitucionais que tratam da família como base da sociedade, prevendo que o Estado dispensar-lhe-á especial proteção. Essa previsão tem como primeira finalidade proporcionar segurança no âmbito das relações familiares. Além disso, visa proporcionar segurança entre as famílias e a comunidade em que estão inseridas. O enfoque na família coloca a matricialidade sociofamiliar como eixo de atuação da assistência social190, suscitando dúvidas e controvérsias a respeito da forma pela qual a matricialidade deve ser trabalhada nas políticas de proteção social191. Ensina Sposati (2009, p. 43) que a matricialidade sociofamiliar: parte da concepção de que a família é o núcleo protetivo intergeracional, presente no cotidiano e que opera tanto o circuito de relações afetivas como de acessos materiais e sociais. Fundamenta-se no direito à proteção à proteção social das famílias, mas respeitando seu direito à vida privada. O modelo de trabalho social com famílias exige o aclaramento prévio sobre qual é o conceito de capacidade protetiva da família. Ou, ainda, 190 Esse eixo é reforçado pela Política Nacional de Assistência Social – PNAS, analisada adiante. Bronzo (2009, p. 171) assevera que, embora seja reconhecida a necessidade de se colocar a família como foco de programas de proteção social, não há conhecimento acumulado o bastante para o enfrentamento de dois pontos cruciais: quais são os modelos de política de proteção social mais efetivos e como trabalhar tendo as famílias como foco. 191 168 se o trabalho social com famílias é, em si mesmo, uma das aquisições do processo de proteção social ou um administrador de acessos sociais. Portanto, o reconhecimento de que a família é o primeiro espaço de interação e proteção do indivíduo deve ser feito em conjunto com a constatação de que muitas situações de vulnerabilidade do núcleo familiar não decorrem de problemas endógenos. Neste aspecto, enfatiza-se a importância do desenvolvimento da vida laboral, como se depreende das previsões de integração ao mercado de trabalho, bem como de habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária. O propósito de inserção dos destinatários da assistência social no mercado de trabalho, previsto no inciso III do artigo 203, é relevante porque atenta para a importância do trabalho para o desenvolvimento da sociedade e de cada um de seus membros. O desempenho de uma atividade laborativa é forma de participação social que contribui para a autonomia e inclusão social dos trabalhadores e suas famílias. Desse modo, a qualificação para o trabalho deve ser um dos norteadores da assistência social. O problema identificado nesse artigo não está naquilo que ele prevê, mas naquilo que ele não prevê. Acreditar que a inserção profissional é o horizonte de qualquer política de assistência social, exceto quando se estiver diante de uma impossibilidade biológica de trabalhar, é ignorar o desafio que os inempregáveis representam para as políticas sociais. E quando se fala em inempregabilidade, fala-se de um fenômeno que atinge pessoas com e sem qualificação profissional, em que pese atingir estes últimos de forma mais intensa e extensa. Nesse ponto, cita-se novamente Castel (2010, p. 516), que qualifica como “expressão de um otimismo superado” a representação do desemprego como um fenômeno passível de erradicação “à custa de um pouco de boa vontade e de imaginação”. A constatação de que nem todos conseguirão se integrar ao mercado de trabalho – a despeito de esforços do Poder Público e dos cidadãos – reforça a importância da assistência social como mecanismo de compensação do desemprego estrutural. Ao mesmo tempo, exige reflexão sobre os limites dessa política e os arranjos necessários para que não se coloquem essas pessoas em situações de quase exclusão. 169 3.9.3.1 Estrangeiros como destinatários da assistência social Finalizando as considerações pertinentes aos destinatários da assistência social, cabe dedicar algumas linhas sobre a possibilidade de estrangeiros serem atendidos por essa política no Brasil. Ao tratar do direito de pessoas estrangeiras acessarem benefícios, serviços, programas e projetos da assistência social, percebe-se a persistência de temas que existem desde os primórdios da assistência à pobreza. Mais uma vez, o aspecto territorial e a nacionalidade surgem como fatores relevantes para o acesso ou não a esses direitos. No âmbito da assistência social, essa questão não deve ter tratamento diverso daquele que já é dispensado a outros direitos sociais. Sobre o tema, Silva (2005, p. 339) salienta que a Constituição Federal expressamente assegura aos estrangeiros residentes no país os direitos individuais previstos no caput do artigo 5º. O constitucionalista ensina que, embora não trate explicitamente do acesso aos direitos sociais, a Constituição Federal tampouco os restringe apenas aos brasileiros. Em suma: o que se pode depreender de sua doutrina é que estrangeiros residentes no país estão em situação de igualdade com os brasileiros no que tange ao gozo de direitos sociais. Tratando especificamente da assistência social, Ibrahim (2010, p. 25-26) defende a proteção aos estrangeiros residentes no país. O primeiro argumento invocado é o de que essas pessoas foram acolhidas pelo Estado brasileiro e sua exclusão vulneraria a necessária abrangência do sistema de seguridade social, fragilizando um grupo que frequentemente necessita da seguridade social. Outro argumento do autor é o de que esses estrangeiros participam do custeio do sistema, consumindo produtos ou eventualmente auferindo renda, isto é, contribuindo direta ou indiretamente com os tributos que custeiam a seguridade social. Todavia, em sendo estritamente necessário ao equilíbrio do sistema, admite o autor que a nacionalidade seja invocada como critério de distinção (IBRAHIM, 2010, p. 26). Feitos esses registros, que servem como parâmetros para início de reflexão, entende-se que a análise desta controvérsia deve ir além do que propõem os autores mencionados. 170 Em relação aos estrangeiros residentes no país – sobretudo quando se trata dos portugueses que gozam de isonomia de tratamento na forma do artigo 12, § 1º, da Constituição Federal –, a disciplina constitucional sequer abre espaço para celeuma. O caráter universal da seguridade social impõe o atendimento a todos os membros da sociedade brasileira, nacionais ou estrangeiros192. Se o critério de acesso à assistência social é o da situação de necessidade social e se o atendimento a essas necessidades está diretamente relacionado com a dignidade da pessoa humana, não há fundamento constitucional para que a nacionalidade seja o fator de discrímen. As distinções de tratamento entre nacionais e estrangeiros, no que tange aos direitos fundamentais, já estão estabelecidas no texto constitucional e não podem ser validamente modificadas por norma infraconstitucional. Por conseguinte, ao contrário do que sustenta Ibrahim, nem mesmo a busca do equilíbrio do sistema pode justificar a adoção da nacionalidade como critério de distinção. Nesse sentido, sequer é pertinente discutir se os estrangeiros residentes contribuem direta ou indiretamente para o custeio do sistema. O caráter não contributivo da assistência social deve afastar qualquer discussão a esse respeito de quem, de fato, contribui ou não para o custeio de suas ações. Tampouco é possível sustentar a restrição com base no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, cujo artigo 2º, inciso III, permite aos países em desenvolvimento delimitar em que medida direitos econômicos serão assegurados aos não nacionais193. Isso porque, à luz do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, o tratado internacional não poderia ser invocado para restringir o espectro de proteção de um direito fundamental já traçado em sede constitucional. Chama-se a atenção para o fato de que as normas que elegem a nacionalidade como requisito de acesso à assistência social são mais rigorosas do que as formas de proteção fundadas no princípio do domicílio, existentes desde as primeiras formas de assistência (CASTEL, 2010, p. 69-75). Além disso, essas normas desconsideram a importância dos movimentos migratórios na composição da sociedade brasileira, 192 Esse parece ser o posicionamento de Santos (2003, p. 173) ao afirmar que “[a] universalidade do atendimento refere-se ao campo subjetivo da seguridade social, isto é, ao universo de sujeitos de direito à proteção. São todos aqueles que vivem no território brasileiro” (destaque no original). Como se nota, a autora não estabelece distinção de nacionalidade ou regularidade da situação do estrangeiro no país. 193 “Art. 2º. 3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que medida garantirão direitos econômicos reconhecidos no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais”. 171 movimento esse fomentado pelo Estado brasileiro no interesse de seu crescimento econômico (ALARCÓN; DINIZ, 2007, p. 48-49). Na realidade, os argumentos que alimentam essa controvérsia são de ordem pragmática e financeira, mas não jurídica. O que realmente parece orientar práticas e interpretações restritivas é a dificuldade de controlar a concessão do benefício assistencial de prestação continuada em regiões de fronteira com outros países e o receio do impacto econômico da concessão desses benefícios. Em outras palavras, a preocupação com fraudes que dizem respeito ao benefício de prestação continuada é o que provoca a celeuma. No ordenamento jurídico brasileiro, sucessivos decretos vêm estabelecendo previsões que, além de inconstitucionais, contrariam o artigo 95 do Estatuto do Estrangeiro, segundo o qual “o estrangeiro residente no Brasil goza de todos os direitos reconhecidos aos brasileiros, nos termos da Constituição e das leis”. Essas previsões excluem os não nacionais do rol de potenciais titulares do benefício de prestação continuada. O Decreto n. 6.214/07, na redação original de seu artigo 7º, indicava que poderia obter benefício de prestação continuada “o brasileiro naturalizado, domiciliado no Brasil”. Apesar das alterações promovidas pelo Decreto n. 6.564/08, manteve-se a redação que, interpretada a contrario sensu, exclui o estrangeiro do rol de possíveis titulares do benefício. Recentemente, o Decreto n. 7.617/11, tornou a modificar a redação desse artigo e claramente restringiu a proteção aos brasileiros domiciliados no país, dispondo que “é devido o Benefício de Prestação Continuada ao brasileiro, naturalizado ou nato, que comprove domicílio e residência no Brasil e atenda a todos os demais critérios estabelecidos neste Regulamento”. No Poder Judiciário, diversos precedentes reconhecem aos estrangeiros residentes no país o direito ao benefício assistencial. As decisões estão fundamentadas na igualdade entre brasileiros e estrangeiros residentes no país (CF, art. 5º, caput), na não obrigatoriedade da naturalização do estrangeiro (CF, art. 5º, II), na promoção do bem de todos sem discriminação quanto à origem (CF, art. 3º, IV) e na universalidade como princípio de regência da seguridade social. A controvérsia chegou ao Supremo Tribunal Federal – STF que, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 587.970-4/SP, 172 reconheceu a existência de repercussão geral em torno da matéria, mas ainda não se pronunciou sobre o tema194. Mas não basta enfrentar a questão levando em conta apenas os estrangeiros residentes no Brasil. É necessário refletir sobre a situação dos estrangeiros em situação irregular no País. A necessidade de concatenar a assistência social com os objetivos e as possibilidades do Estado brasileiro poderia conduzir, como primeira resposta, à conclusão pela impossibilidade de serem essas pessoas beneficiárias da assistência social. Todavia, o grande número de pessoas que saem de seus países em busca de melhores condições de vida, ingressam ilegalmente no território nacional e, não raro, são submetidas às piores condições de vida imagináveis, impõe outro olhar para essa situação. Negar a assistência social às pessoas que estão no território nacional em situação irregular equivale a transferir para a assistência social a solução para a fiscalização inadequada ou insuficiente do ingresso de pessoas no país. Semelhante posicionamento é incompatível com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro perante a ONU contra o crime organizado internacional. O país ratificou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, promulgada no país pelo Decreto n. 5.015/04, e os protocolos adicionais a esta convenção, relativos ao combate ao tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e aérea e à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, promulgados, respectivamente pelos Decretos n. 5.016/04 e 5.017/04. No artigo 4º dos dois protocolos há previsão de que, além da prevenção, investigação e repressão das infrações definidas em cada um deles, haverá proteção às vítimas dessas infrações. Para concluir o tema em pauta, vale citar as considerações tecidas por Alarcón e Diniz (2007, p. 58) sobre o Estatuto do Estrangeiro e sobre o anteprojeto para suas alterações, as quais se aplicam perfeitamente ao tema em pauta: Voltando ao Estatuto brasileiro [Estatuto do Estrangeiro, Lei n. 6.815, de 19.08.1980], a redação do seu artigo 95 ainda estabelece uma discriminação que não se sustenta tendo em vista a Constituição em 194 ASSISTÊNCIA SOCIAL – GARANTIA DE SALÁRIO MÍNIMO A MENOS AFORTUNADO – ESTRANGEIRO RESIDENTE NO PAÍS – DIREITO RECONHECIDO NA ORIGEM – Possui repercussão geral a controvérsia sobre a possibilidade de conceder a estrangeiros residentes no país o benefício assistencial previsto no artigo 203, inciso V, da Carta da República. (Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n. 587.970-4/SP. Relator: Min. Marco Aurélio. Data da decisão: 25 jun. 2009. Diário da Justiça Eletrônico 186, 01 out. 2009. Publicação em: 02 out. 2009). Informação atualizada em: 01 mar. 2012. 173 vigor. Diz o artigo que “O estrangeiro residente no Brasil goza de todos os direitos reconhecidos aos brasileiros, nos termos da Constituição e das Leis”. Na verdade, uma hermenêutica ampliativa, ancorada na Carta Magna de 1988, indica que todo estrangeiro, seja residente ou portador de qualquer das modalidades de visto permitidas pelo próprio Estatuto e, ainda, aquele que carece de documentos – este último com maior razão, pois sua fragilidade é ainda maior – deve ser amparado pelo Estado diante de qualquer arbitrariedade, facilitando-se os meios, recursos e garantias necessárias para fazer valer seus direitos fundamentais. Interessa lembrar que desde o ano 2003 tramita um Anteprojeto de lei, apresentado pelo Executivo, para modificação do Estatuto do Estrangeiro. Embora a proposta contenha modificações importantes, algumas questões merecem críticas. Nesse sentido, assunto polêmico encontra-se no artigo 11 do Anteprojeto, que permite a concessão de visto para estudo, para o artista ou desportista, para trabalho com vínculo empregatício ou funcional, correspondente de jornal, revista, rádio ou televisão, ministro de confissão religiosa, voluntário de organização não-governamental ou assistentes técnicos para transferência de tecnologia ou marítimo, sem vínculo empregatício no Brasil. Observe-se que a concessão do visto leva em conta uma certa atividade da qual se deduz que o indivíduo, ainda que sem vínculo empregatício, apresenta condições de participar, sob uma condição prevista, na sociedade brasileira. Deve-se considerar, entretanto, a preocupação com os estrangeiros que não possuem qualificação alguma, muitos deles contratados em regime de escravidão ou de semi-escravidão e que não podem ser abandonados a sua sorte. O Estatuto deve oferecer uma saída a tal situação, porque sua força de trabalho já se encontra inserida no contexto brasileiro, gerando riquezas. Não é possível retirar deles o seu caráter de participantes da comunidade de esforços para o progresso brasileiro. 3.9.4 O caráter não contributivo da assistência social Ao contrário do que se passa no âmbito do Regime Geral de Previdência Social, o acesso às prestações da assistência, assim como da saúde, independe de prévia filiação e contribuição por parte do beneficiário ou do instituidor do benefício. Porém, como adverte Sposati (2009, p. 22), o caráter não contributivo não significa uma doação financiada com recursos públicos. A autora registra que a assistência social nasceu sob inspiração liberal, concepção segundo a qual os recursos públicos só podem ser destinados a uma pessoa quando ela própria já não tenha condições pessoais de suprir as próprias necessidades e esteja em situação de risco. E, 174 mesmo se superadas visões residuais da assistência social, permanece a necessidade de justificar os critérios de alocação de recursos escassos, o que remete novamente à aplicação do princípio da seletividade das prestações da assistência social. Dizendo de outro modo, o caráter não contributivo é contrabalanceado pela identificação objetiva das situações de necessidade social e pela seletividade das prestações. 3.9.5 A subsidiariedade da assistência social: um princípio inadequado O princípio da subsidiariedade situa a assistência social como sistema de apoio residual em relação aos rendimentos decorrentes do trabalho, da previdência social ou de outras fontes, como o apoio familiar. Sob essa óptica, a assistência social só seria passível de acionamento quando as demais possibilidades de sobrevivência digna já tivessem sido exauridas. Embora historicamente consagrada como característica da assistência social195, a subsidiariedade não é expressa no texto constitucional. Por isso, cabe verificar se há normas constitucionais que sustentam esse postulado. A consagração do valor social do trabalho como fundamento da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, IV) e do primado do trabalho como base da ordem social (CF, art. 193) poderia, em princípio, levar à afirmação de que a assistência social só tem lugar quando exauridas as possibilidades de satisfação de necessidades sociais por meio do trabalho, da previdência social e do apoio familiar196. 195 Olea e Plaza (2000, p. 589-590) identificam a subsidiariedade em relação a outras formas de satisfação de necessidades como uma das características da assistência social. Como afirmado na introdução deste trabalho, discorda-se da adoção da subsidiariedade como traço obrigatório da assistência social. Desse modo, há mudança de posicionamento quanto a esse aspecto em contraste com trabalho anterior de mesma autoria (SALES, 2010). 196 Eis porque boa parte os programas de assistência social, quando não voltados aos incapazes para o trabalho, têm por objetivo inserir seus beneficiários no mercado de trabalho. Isso explica também porque programas assistenciais são concebidos de forma a oferecer a seus destinatários condições materiais piores do que as que seriam obtidas mediante trabalho: o pressuposto de que haveria alternativa à disposição daqueles que se valem da assistência social. Como afirma Sposati (1987, p. 12), “o horizonte de alguns serviços considerados de assistência social é o de fazer seu usuário deixar de ser usuário. Há uma lógica invertida, se comparada à dos demais serviços públicos, onde o usuário deve cultivar o hábito de sê-lo: não faltar à escola, comparecer às consultas médicas, obedecer ao calendário de vacinas, etc.” 175 Pressupõe-se aqui que o sustento proveniente do trabalho de cada pessoa ou de seu núcleo familiar constitui a regra; a exceção seria o não trabalho ou a insuficiência de ganhos, mesmo quando houvesse trabalho. Corroborando o entendimento favorável à subsidiariedade, poderiam ainda ser invocados argumentos como a ausência de contribuição direta do beneficiário para o custeio da assistência social. Nesse ponto, chama a atenção que o caráter não contributivo seja invocado como argumento em prol da subsidiariedade da assistência social, mas não de outras políticas destinadas à efetivação de direitos sociais. De fato, políticas como saúde e educação públicas – que prescindem de contrapartida por parte do destinatário de suas prestações –, não são objeto de reflexões que privilegiem a capacidade financeira como critério de acesso. Embora todas sejam políticas orientadas pelo critério da universalidade, assim como a assistência social, parece que apenas nesta última o caráter não contributivo é destacado. Além da comparação nem sempre apropriada em relação à previdência social, o que se manifesta é também a ideia de que a assistência social ainda é uma versão da filantropia. Essa compreensão da assistência social como um sistema de “reserva” precisa ser revista. A uma, porque a ausência de trabalho para todos e a suficiência dos ganhos obtidos por aqueles que desempenham algum labor destroem o pressuposto da subsidiariedade. Conforme o desemprego se torna estrutural e cresce o contingente de pessoas não absorvidas pelo sistema capitalista, não se pode supor que todo indivíduo adulto tem, de fato, a possibilidade de obter renda por seus próprios meios. Esse é, como mencionado na introdução, um dos grandes desafios das políticas sociais. A duas, porque a subsidiariedade só leva em conta a situação de falta ou insuficiência de rendas. Assim, é ideia inadequada para lidar com as outras necessidades e, por conseguinte, com as outras seguranças que a assistência social deve enfrentar. Além do mais, a falta ou insuficiência de renda reconduz à assistência social ao papel de reparação de danos, mas nada esclarece sobre o papel de prevenção a ser desempenhado. Quando se afirma que a seguridade social está estruturada para atender necessidades sociais básicas e a assistência de forma ainda mais explícita, conclui-se que não há cobertura sem demonstração de necessidade. A seguridade social só é acionada quando faltam os meios para fazer frente à escassez. Nessa medida, pode-se entender que qualquer intervenção da seguridade social vem depois que falham as tentativas de suprir necessidades básicas. 176 Portanto, se se retomar a noção de necessidade social com os parâmetros dados por Almansa Pastor (1991) e Sposati (2009) – escassez de um bem, associada ao desejo de superação, que tem origem nas relações em sociedade e visa ao acesso às condições de vida componentes da dignidade humana, da justiça social e dos direitos e da vigilância social –, somada à preocupação específica de prevenir ou contornar situações de escassez e precariedade, a ideia de subsidiariedade se mostra supérflua na compreensão da assistência social e, mais do que isso, leva a percepções equivocadas. Quer-se dizer com isso que os princípios de universalidade e seletividade, em cotejo com a finalidade da seguridade social – propiciar a satisfação de necessidades sociais –, já são bastantes para a compreensão da assistência social à luz do sistema constitucional brasileiro. Por conseguinte, a subsidiariedade deve ser afastada como critério de análise, seja por não trazer nenhum dado que contribua para a compreensão desse tema, seja pelo risco de ofuscar o papel da assistência social no Brasil. 3.9.6 O Artigo 204 da Constituição Federal O artigo 204 da Constituição Federal versa sobre o financiamento e a organização da assistência social. Como algumas de suas disposições foram tratadas em passagens anteriores deste trabalho, o presente tópico visa apenas retomar os conteúdos abordados e registrar as previsões que ainda não foram abordadas. Esse dispositivo constitucional inova ao prever fontes de custeio para a assistência social, dispondo que o custeio das ações governamentais da assistência social deve ser feito com recursos do orçamento da seguridade social. Ressalva ainda a possibilidade de outras fontes de custeio adicionais. Independentemente do caput do artigo 204, a conclusão de que a assistência social é custeada com recursos do orçamento da seguridade social já decorreria do artigo 195 da Constituição Federal. Saliente-se, porém, que o artigo 167, inciso XI, da Carta Magna, introduzido pela Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998, veda a “utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, a, e II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios 177 do regime geral de previdência social de que trata o art. 201”197. Como o dispositivo trata de pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, há, de antemão, uma restrição aos recursos destinados à saúde e à assistência social. Ainda no que concerne ao financiamento da assistência, o parágrafo único do artigo 204 faculta aos Estados e Distrito Federal a vinculação de até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida a programas de apoio à inclusão e promoção social. Essa vinculação foi prevista pela Emenda Constitucional n. 42, de 19 de dezembro de 2003, que, para assegurar a efetiva destinação desses percentuais às políticas de assistência, vedou a aplicação de tais recursos para pagamento de: (a) “despesas com pessoal e encargos sociais”; (b) “serviço da dívida”; (c) “outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados” (CF, art. 204, p.ú., I, II e III). No tocante à organização da assistência social, o artigo 204, inciso I, reafirma o caráter democrático e descentralizado da gestão, tema abordado anteriormente (cf. supra 3.8.2.7 Caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, empregadores, aposentados e Governo nos órgãos colegiados). Além disso, esse artigo veicula uma regra de repartição de competências pouco ortodoxa, que atribui funções análogas às esferas estadual e municipal e às entidades beneficentes e de assistência social (cf. supra 3.7 Competências constitucionais em matéria de assistência social). Essa previsão indica a importância que a esfera privada teve e tem em matéria de assistência social, papel esse que deve ser prestigiado e respeitado. Porém, o reconhecimento de um direito social à assistência social impõe a repactuação da relação entre o Estado e essas entidades. Para tanto, o primeiro passo é reconhecer a responsabilidade estatal pelas políticas púbicas de assistência social, ainda que também se reafirme a importância das entidades privadas. Em outras palavras: a atuação do Estado em matéria de assistência social deve se distanciar definitivamente das práticas assistencialistas e de benemerência. Conceber a assistência social como política pública exige a rejeição de práticas que se aproximem da lógica do favor, seja pelo Estado, seja por quem lhe faça as vezes. Esse é, por certo, um dos grandes desafios que surgem nessa seara. 197 Antes mesmo dessa Emenda Constitucional, Balera (1997, p. 189) já se posicionava contra a medida, sustentando que: “Não se conforma com o objetivo primeiro do sistema de seguridade social a especialização das fontes de financiamento, segundo a qual a receita proveniente da folha de salários deverá financiar somente a previdência social enquanto as contribuições sobre o lucro líquido e sobre o faturamento custeariam dispêndios outros”. 178 Por outro lado, destaca-se a participação da população na organização e execução dessas ações. A coordenação das ações da assistência social pela esfera federal e o financiamento dessas atividades com recursos provenientes do orçamento da seguridade contribuem para que a assistência se concretize em todas as unidades da federação. A atribuição do papel de coordenação e elaboração de normas gerais à esfera federal revela-se essencial para a criação de uma concepção nacional de assistência. De outro giro, a elaboração de medidas que levem em conta peculiaridades regionais é essencial ao desenvolvimento de políticas de assistência. Essencial, pois a descentralização, observadas as diretrizes nacionais, permite o desenvolvimento de estratégias locais e possibilita maior controle pela população diretamente interessada. 4 A DISCIPLINA INFRACONSTITUCIONAL DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NA VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 4.1 O período de 1988 a 1993 A positivação do direito à assistência social na Constituição Federal encerrou o ciclo da luta por seu reconhecimento como direito e abriu um novo ciclo, visando à sua regulamentação e consequente efetivação. Na nova fase, os obstáculos enfrentados tornaram a mostrar a coexistência de concepções díspares e conflituosas sobre a assistência social. Ademais, indicaram que essa política era considerada menos importante do que as demais políticas da seguridade social. A promulgação da lei orgânica de assistência social representou, por si só, uma grande batalha198. O artigo 59 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT estipulou o prazo máximo de seis meses para apresentação dos projetos de lei atinentes à organização da seguridade social e aos planos de custeio e benefícios. O Congresso Nacional teria então seis meses para apreciar esses projetos que, após aprovados, seriam implantados progressivamente nos dezoito meses subsequentes. Ao todo, o Estado brasileiro teria trinta meses para implantar o novo sistema de seguridade social, prazo encerrado em 05 de abril de 1991. Contudo, todas as leis orgânicas da seguridade social foram promulgadas após os prazos previstos no ADCT. Sua implantação, igualmente, extrapolou o prazo de dezoito meses. Ainda assim, a assistência social ficou em pior situação do que a saúde e a previdência. A Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080) é de 19 de setembro de 1990. O Plano de Custeio da Seguridade Social e o Plano de Benefícios da Previdência Social (Leis n. 8.212 e n. 8.213, respectivamente) datam de 24 de julho de 1991199. Já a promulgação da Lei 198 O registro dessas dificuldades é essencial para que se tenha clareza sobre o significado de cada conquista da assistência social no Brasil; com menor profundidade, discorreu-se sobre esse tema em trabalho anterior de mesma autoria (cf. SALES, 2011, p. 4). 199 Quanto ao Plano de Benefícios da Previdência Social, os efeitos da demora em sua aprovação foram mitigados pela previsão contida em seu artigo 145, prevendo que os efeitos da nova lei retroagiriam a 05 180 Orgânica de Assistência Social – LOAS (Lei n. 8.742) ocorreu em 07 de dezembro de 1993, mais de cinco anos depois da promulgação da Constituição Federal. As dificuldades, contudo, não se resumiram à demora na aprovação da LOAS. Antes de 1993, tentou-se a aprovação do Projeto de Lei n. 3.099/89. Elaborado sob coordenação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, do Instituto de Planejamento de Gestão Governamental – IPLAN e da Universidade de Brasília (NEPPOS-NESP/CEAM) (PEREIRA, 1996, p. 70), o projeto procurava definir a assistência social e seus beneficiários, conectando-os com os objetivos previstos na Constituição Federal. O artigo 1º do projeto definia assistência social como “política social que provê, a quem necessitar, benefícios e serviços para o acesso à renda mínima e o atendimento das necessidades humanas básicas, historicamente determinadas”. Seu artigo 2º estabelecia que “as ações da assistência social devem cumprir, no âmbito de sua competência, os objetivos constitucionais de erradicação da pobreza e de proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice e à pessoa portadora de deficiência, entre outros”. Já o artigo 3º indicava como “beneficiário da assistência social todo cidadão em situação de incapacidade ou impedimento permanente ou temporário, por razões sociais, pessoais ou de calamidade pública, de prover para si e sua família, ou ter por ela provido, o acesso à renda mínima e aos serviços sociais básicos”. O projeto foi apresentado pelo Deputado Raimundo Bezerra, que justificou sua iniciativa com o não cumprimento, pelo Poder Executivo, do prazo previsto no artigo 59 do ADCT200. O texto sofreu modificações, com a apresentação de substitutivo pelo Deputado Nelson Seixas201. Após sua aprovação no Congresso Nacional, o Presidente da República, à época Fernando Collor de Mello, vetou integralmente o Projeto de Lei. O teor do veto denota a concepção da assistência social como política residual, destinada apenas aos casos extremos de necessidade: Entre as razões ponderáveis que justificam o veto, sobressai a da existência, na proposição, de dispositivos contrários aos princípios de uma assistência social responsável, que se limite ao auxílio às camadas mais carentes da população, sem, contudo, comprometer-se de abril de 1991, com o consequente recálculo dos benefícios de prestação continuada concedidos pela Previdência Social a partir daquela data. 200 Diário do Congresso Nacional, Seção I, 28.06.1989, p. 5614. 201 Diário do Congresso Nacional, Seção I, 27.10.1989, p. 12447 apud RAICHELIS, 2011, p. 97, nota de rodapé n. 35. 181 com a complementação de renda, papel este de uma ação voltada à maior disponibilidade de empregos e salários dignos. Na verdade, além de ampliar a concessão do benefício de renda mensal vitalícia para carentes, idosos ou deficientes, estes sem limite de idade, o projeto cria um abono-família mensal, com característica de complemento da renda familiar, incompatível com os fins da assistência social, de complexa operacionalização e absorvedor de uma gama de recursos que afetaria a dotação para outras ações mais condizentes com os princípios insculpidos na Constituição202. Esse veto não foi recebido com placidez pelas entidades e movimentos organizados em torno da assistência social (GOMES, 2000, p. 23). Prova dessa afirmação foi o fato de que, em 08 de novembro de 1993, um grupo de pessoas com deficiência impetrou o Mandado de Injunção n. 448-0/RS insurgindo-se contra a falta de norma regulamentadora do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal. A ação foi só foi julgada em 05 de setembro de 1994, após a promulgação da LOAS, ocasião em que a mora foi reconhecida, dando-se ciência ao Congresso Nacional. A proximidade entre a data de impetração do mandado de injunção e a promulgação da LOAS demonstra que a provocação do STF catalisou a aprovação da lei. À dificuldade na implementação da nova política, agrega-se a corrosão da antiga estrutura. Em 1991, a LBA viveu outra crise, desencadeada por denúncias de corrupção e desvios de recursos203. Iniciaram-se então medidas de redimensionamento de seu quadro de pessoal, com remanejamento de parte dos cargos para os quadros de outros órgãos públicos, o que ocorreu até sua extinção em 1995. Em meio a essa movimentação, passou despercebida a definição de assistência social contida no artigo 4º do Plano de Custeio da Seguridade Social (Lei n. 8.212/91), a saber: “política social que provê o atendimento das necessidades básicas, traduzidas em proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice e à pessoa portadora de deficiência, independentemente de contribuição à Seguridade Social”. Trata-se de definição formulada em conformidade com a Constituição Federal, que reconhece a assistência social como política de satisfação de necessidades básicas, sem aludir à controvertida noção de mínimos sociais. Essa norma não teve desdobramentos relevantes, tendo sido somente em 1993 que a assistência social se estruturou sob a nova ordem constitucional. 202 Mensagem de Veto n. 672, publicada no Diário Oficial da União, 18 set. 1990, p. 1782, destacou-se. Citando uma notícia do Jornal do Brasil, veiculada em 11 de abril de 1993, Lima (1994, p. 33) registra ainda que “avaliação efetuada pelo então Presidente da LBA, Paulo Sotero, revela corrupção e empreguismo, apontando a existência de um índice de 25% de servidores ociosos na instituição”. 203 182 4.2 A Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS 4.2.1 Observações iniciais A promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei n. 8.742/93) em 07 de dezembro de 1993 resultou de intensa mobilização e debates em torno do modelo de assistência social a ser construído no país (GOMES, 2000, p. 22-23). Observa Pereira (1996, p. 66) que as oposições e embates que precederam a aprovação da lei transparecem nos dispositivos promulgados, especialmente nas imprecisões existentes em seu texto, por exemplo, no que tange aos serviços assistenciais, programas de assistência social e projetos de enfrentamento de pobreza. Comparada ao texto do Projeto de Lei n. 3.099/89, a redação original da LOAS apresenta menor grau de detalhamento no tocante às prestações devidas no âmbito da assistência social, objetivos e destinatários. Foram necessários ainda outros dezoito anos para que o país avançasse na regulamentação da assistência social. As mudanças substanciais dessa LOAS, com detalhamento das ações de assistência social e estruturação de um sistema de assistência social, somente ocorreram com a promulgação das Leis n. 12.435, de 06 de julho de 2011, e n.12.470, de 31 de agosto de 2011204. Esses dois diplomas incorporaram definições, objetivos e diretrizes extraídos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, nas Conferências de Assistência Social, na Política Nacional de Assistência Social de 2004 (PNAS/2004) e na Norma Operacional Básica da Assistência Social (NOB/SUAS). Portanto, embora a LOAS atualmente estabeleça uma estrutura complexa e bastante avançada em termos de proteção social, há que se considerar que as principais normas responsáveis por esse progresso são muito recentes. Dizendo de outro modo – e recordando que o escopo deste estudo é examinar a trajetória da assistência social no 204 Como já informado na Introdução, as principais inovações promovidas por essas duas leis foram tratadas em um artigo publicado em outubro de 2011, sob o título A construção da assistência social no Brasil: notas sobre as Leis n. 12.435/11 e 12.470/11. Nesse trabalho, discorreu-se sobre a LOAS antes e depois dessas alterações, buscando estabelecer uma comparação entre os textos (SALES, 2011). Já o artigo A assistência social na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Assistência Social (SALES, 2010) foi elaborado muito antes de tais alterações legislativas. 183 Brasil –, constatar que atualmente a LOAS contém uma boa disciplina da assistência social não deve encobrir o fato de que durante quase duas décadas essa regulamentação não existiu. Atualmente, a LOAS reproduz dispositivos constitucionais e detalha a política de assistência social ao longo de seis capítulos, subdivididos em: definições e objetivos; princípios e diretrizes; organização e gestão; benefícios, serviços, programas e projetos de assistência social; financiamento da assistência social; e disposições gerais e transitórias. 4.2.2 Definições e objetivos A assistência social é definida na LOAS da seguinte forma: Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas. Em consonância com o texto constitucional, essa definição ratifica a assistência social como um direito e seu atendimento como um dever estatal. Importa mencionar também que, tratando da assistência social como política, rejeitam-se soluções ad hoc. Da mesma forma, o dispositivo reafirma a participação da sociedade que constava do artigo 204 da Constituição Federal. Desse dispositivo, extraem-se dois elementos fundamentais para a compreensão da segurança que a assistência social deve proporcionar: mínimos sociais e necessidades básicas. A ideia de mínimos sociais sempre oferece dificuldades, pois não há clareza sobre o que significam os “mínimos” que devem ser assegurados. Mesmo quando se trata de provisões cuja necessidade não se discute – como alimentação, moradia e vestuário –, não há consenso sobre as formas de seu atendimento. Encerra-se a discussão sobre quais direitos são assegurados e abre-se o debate em torno da extensão dessa proteção. 184 Com percuciência, Novais (2010, p. 205) aponta que mínimos sociais, mais do resolver problemas, servem como ponto de partida para controvérsias sobre o conteúdo de direitos sociais: este modelo do mínimo social acaba por funcionar como menor denominador comum das várias aproximações ao tema da dimensão positiva dos direitos sociais ou como momento de confluência que esconde divergências mais profundas no domínio dos direitos sociais. Na realidade, mais que resolução do problema, o modelo funciona como compromisso ou pausa no desacordo, já que tudo acaba por ser remetido para os planos nunca perfeitamente esclarecidos do que se entende por mínimo social e, sobretudo, de como deve o poder judicial, no respeito pela separação de poderes, chegar à respectiva fixação num processo de competição/controlo relativamente às escolhas alternativas da responsabilidade do poder político. Apelos ou remissões convergentes para o princípio da dignidade da pessoa humana, como critério ou padrão da delimitação de um tal mínimo, inscrevem-se nas mesmas dificuldades, uma vez que obrigam, a seguir, a apurar quais as exigências e sentido normativo do princípio da dignidade da pessoa humana neste domínio. Em grande medida, o modelo funciona bem nos casos extremos, produzindo resultados na base de um controlo de evidência, o que, não deixando de ser positivo, tem um alcance jurídico-constitucional relativamente reduzido, na medida em que os casos extremos ou as chamadas violações grosseiras são, regra geral, em Estado de Direito democrático, resolúveis no quadro e através dos meios do debate e luta política, sem necessidade de recurso à via judicial. Analisando o artigo 1º da LOAS, Pereira (2006, p. 26-27) direciona uma dura crítica à ideia de mínimos, fazendo questão de apontar a diferença entre mínimo e básico. Em síntese, a autora sustenta que os mínimos estão relacionados a prestações ínfimas, ao passo que o adjetivo básico designa aquilo que é primordial. Ao final, conclui que a proteção social só cumpre sua finalidade quando os mínimos dão lugar às prestações básicas. Nas palavras da autora (PEREIRA, 2006, p. 26-27): Mínimo e básico são, na verdade, conceitos distintos, pois, enquanto o primeiro tem conotação de menor, de menos, em sua acepção mais ínfima, identificada com patamares de satisfação de necessidades básicas que beiram a desproteção social, o segundo não. O básico expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de sustentação indispensável e fecunda ao que a ela se acrescenta. Por conseguinte, a nosso ver, o básico que na LOAS qualifica as necessidades a serem satisfeitas (necessidades básicas) constitui o prérequisito ou as condições prévias suficientes para o exercício da cidadania em acepção mais larga. Assim, enquanto o mínimo pressupõe supressão ou cortes de atendimentos, tal como propõe a 185 ideologia liberal, o básico requer investimentos sociais de qualidade para preparar o terreno a partir do qual maiores atendimentos podem ser prestados e otimizados. Em outros termos, enquanto o mínimo nega o “ótimo” de atendimento, o básico é a mola mestra que impulsiona a satisfação básica de necessidades em direção ao ótimo. Sendo assim, mínimo e básico, ao contrário do que tem sido apressada e mecanicamente inferido do texto da LOAS, são noções assimétricas, que não guardam, do ponto de vista empírico, conceitual e político, compatibilidades entre si. Isso nos leva a concluir que, para que a provisão social prevista na LOAS seja compatível com os requerimentos das necessidades que lhe dão origem, ela tem que deixar de ser mínima ou menor, para ser básica, essencial ou precondição à gradativa otimização da satisfação dessas necessidades. Só então será possível falar em direitos fundamentais, perante aos quais todo cidadão é titular, e cuja concretização se dá por meio de políticas sociais correspondentes. Essa acurada crítica mostra a dificuldade em se conceber prestações mínimas que possam resultar em medidas de proteção social, emancipação e redução de desigualdades. Aliás, não parece ser sem razão que o texto da LOAS utiliza um conceito controvertido e até antagônico em relação ao conceito de necessidades básicas. Um forte indício de que o emprego do termo mínimos sociais serviu como a “pausa no desacordo”, para usar as palavras de Novais (2010, p. 205), é o fato de que a definição de assistência social adotada pelo Projeto de Lei n. 3.099/89 empregava os conceitos de renda mínima e atendimento de necessidades humanas básicas, mas não se referia a mínimos sociais. O artigo 4º da Lei n. 8.212/91 também se vale da expressão necessidades básicas, sem qualquer menção a mínimos sociais. Essas duas definições ofereciam menor margem para interpretações restritivas da assistência social e a mensagem de veto ao Projeto de Lei n. 3.099/89 claramente reagiu à proposta de uma política social abrangente. Portanto, como dito anteriormente, a redação do artigo 1º da LOAS representou o consenso possível, não a proposta ideal. De toda sorte, a previsão de mínimos sociais contida na lei exige interpretação compatível com as outras disposições constitucionais e infraconstitucionais que tratam da proteção social. Embora Pereira (2006, p. 26-27) sustente que a noção de mínimo social não se coaduna com a de necessidades básicas – e sendo certo que não são expressões equivalentes – entende-se ser imprescindível conferir àquela expressão um significado que não vá de encontro aos objetivos da 186 República Federativa do Brasil. Em suma: é realmente necessário buscar uma interpretação que concilie os dois conceitos205. Nesse esforço interpretativo, mínimos sociais devem ser dimensionados de forma a assegurarem o atendimento de necessidades básicas. As necessidades básicas, a seu turno, correspondem às necessidades sociais básicas, sem as quais não se pode falar em exercício de cidadania e vida autônoma. Na linha do que se defende neste trabalho, Stuchi (2010, p. 168) sustenta que os mínimos sociais correspondem a “um conjunto de direitos prestacionais que visam a condições dignas de sobrevivência” e não a prestações ínfimas. Segundo essa autora, haveria uma distorção da ideia de mínimo social do que resultaria a concepção de que “qualquer serviço ou benefício que o Estado ou as entidades de assistência social ofertassem, deveria ser considerado suficiente, ainda que não fosse suficiente para garantir acesso a outros direitos ou a uma existência digna”. Com relação aos objetivos da assistência social, originalmente o artigo 2º da LOAS reproduzia o artigo 203 da Constituição Federal. Com o advento da Lei n. 12.435/11, definiu-se que a assistência social tem por objetivo promover proteção social, vigilância socioassistencial e defesa de direitos. Analisados adiante (cf. infra 4.2.4.2 Proteção social, defesa de direitos e vigilância socioassistencial na LOAS), esses três vetores estavam enunciados na PNAS/2004 sob a forma de referências para organização dos serviços socioassistenciais no Sistema Único de Assistência Social – SUAS. As finalidades constantes do artigo 203 estão agora indicadas como formas prioritárias de proteção social. O parágrafo único do artigo 2º da LOAS – tanto na redação original, quando na atual redação – prevê a intersetorialidade da assistência social, visando “ao enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos sociais, ao provimento de condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais”. Trata-se, na 205 “Supõe-se que o legislador, e também o escritor do Direito, exprimiram o seu pensamento com o necessário método, cautela, segurança; de sorte que haja unidade de pensamento, coerência de idéias; todas as expressões se combinem e harmonizem. Militam as probabilidades lógicas no sentido de não existirem, sobre o mesmo objeto, disposições contraditórias ou entre si incompatíveis, em repositório, lei, tratado, ou sistema jurídico. Não raro, à primeira vista duas expressões se contradizem; porém, se as examinarmos atentamente (subtili animo), descobrimos o nexo culto que as concilia. É quase sempre possível integrar o sistema jurídico; descobrir a correlação entre as regras aparentemente antinômicas. Sempre que descobre uma contradição, deve o hermeneuta desconfiar de si; presumir que não compreendeu bem o sentido de cada um dos trechos ao parecer inconciliáveis, sobretudo se ambos se acham no mesmo repositório” (MAXIMILIANO, 2005, p. 110). 187 realidade, não de um objetivo da assistência social, mas sim de uma diretriz de organização da assistência social. Sendo assim, a previsão estaria melhor situada no artigo 5º da LOAS. Segundo Chaves (2008, p. 101), a intersetorialidade nos programas da seguridade social é exigência que decorre do artigo 194 da Constituição Federal. Tratase, segundo ele, de característica acentuada na assistência social, o que favorece ações transformadoras. Porém – prossegue o autor –, essa característica permite concepções de assistência social como mecanismo supletivo, influenciadas por uma concepção paternalista arraigada. Nas palavras do autor (CHAVES, 2008, p. 109): A intersetorialidade se refere a uma característica marcante das ações de assistência social que é a aglutinação de outras políticas públicas para sua realização satisfatória. A vantagem está na possibilidade de ações mais complexas e transformadoras da realidade de cidadãos materialmente excluídos. A desvantagem localiza-se no fato de que, devido sua compreensão histórica, a assistência social é vista como tendo um papel supletivo e secundário, quando deveria ser vista como um instrumento de coordenação de outras políticas para consecução de suas finalidades emancipatórias. Já no artigo 3º, ao invés de definições relativas à assistência social propriamente dita, foram definidos os agentes dessas políticas, a saber: entidades e organizações de assistência social. Originalmente essas entidades foram definidas como “aquelas que prestam, sem fins lucrativos, atendimento e assessoramento aos beneficiários abrangidos pela lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de seus direitos”. Com a alteração da Lei n. 12.435/11 a definição foi aclarada, para fazer constar que o atendimento e assessoramento em questão poderiam ser prestados “isolada ou cumulativamente” por essas entidades e organizações, não sendo obrigatório que se dirigissem apenas aos beneficiários abrangidos pela LOAS. Além disso, foram também definidas entidades de atendimento, de assessoramento e de defesa e garantia de direitos206. 206 “Art. 3o Consideram-se entidades e organizações de assistência social aquelas sem fins lucrativos que, isolada ou cumulativamente, prestam atendimento e assessoramento aos beneficiários abrangidos por esta Lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de direitos. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011) § 1o São de atendimento aquelas entidades que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços, executam programas ou projetos e concedem benefícios de prestação social básica ou especial, dirigidos às famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade ou risco social e pessoal, nos termos desta Lei, e respeitadas as deliberações do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), de que tratam os incisos I e II do art. 18. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)“. § 2o São de assessoramento aquelas que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços e executam programas ou projetos voltados prioritariamente para o fortalecimento dos movimentos sociais 188 A nova redação do artigo 3º deixa claro o propósito de zelar para que entidades e organizações de assistência social atuem em consonância com as diretrizes do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, passo essencial para que a política de assistência social se desenvolva de forma ordenada, eficiente e atenta à sua natureza de direito social. 4.2.3 Princípios e diretrizes O artigo 4º da LOAS enuncia quatro princípios da assistência social. O primeiro deles é a supremacia do atendimento às necessidades sociais. Trata-se de um desdobramento da dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Reconhece-se que a identificação e satisfação de necessidades sociais básicas não podem ser realizadas pela perspectiva de rentabilidade econômica, como também não podem ser relegadas à iniciativa privada ou à sorte da população. Esse princípio impõe cuidado na apropriação, pelo setor público, de práticas da iniciativa privada voltadas à redução de custos ou à alocação lucrativa de recursos econômicos. O segundo princípio é a universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas. A partir da análise de Boschetti (2003, p. 83), a universalização “indica que a assistência social deve ser entendida e implementada tendo como horizonte a redução das desigualdades sociais”, o que significa que “é preciso agir no sentido de buscar a inclusão de cidadãos no universo de bens, serviços e direitos que são matrimônio de todos”. Esse princípio pressupõe o reconhecimento de que a satisfação de necessidades sociais básicas é essencial para que indivíduos, famílias e grupos possam ser inseridos nas redes de proteção de outros direitos sociais. Externa-se aqui o intento de criarem-se condições para a plena participação na vida comunitária, à noção de cidadania estampada no artigo 1º da Constituição Federal. e das organizações de usuários, formação e capacitação de lideranças, dirigidos ao público da política de assistência social, nos termos desta Lei, e respeitadas as deliberações do CNAS, de que tratam os incisos I e II do art. 18. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011) § 3o São de defesa e garantia de direitos aquelas que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços e executam programas e projetos voltados prioritariamente para a defesa e efetivação dos direitos socioassistenciais, construção de novos direitos, promoção da cidadania, enfrentamento das desigualdades sociais, articulação com órgãos públicos de defesa de direitos, dirigidos ao público da política de assistência social, nos termos desta Lei, e respeitadas as deliberações do CNAS, de que tratam os incisos I e II do art. 18. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011) 189 O terceiro princípio é o respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade. A ideia expressa nessa norma representa outra ruptura com antigos padrões da assistência social. Ao se reforçar a autonomia, impede-se que a assistência social ostente papel moralista, voltado a incutir padrões de comportamento considerados “desejáveis” em seus destinatários. O estímulo ao convívio familiar e comunitário favorece o desenvolvimento de potencialidades, rejeita medidas segregacionistas e indica respeito à vida privada e aos laços construídos pelos cidadãos usuários da assistência. A proibição de medidas vexatórias significa o fim de práticas estigmatizantes ou de modernas versões das “provas de indigência” aplicadas na seleção das pessoas assistidas nas Workhouses (cf. supra 1.4 A evolução do modelo britânico de proteção social). O quarto princípio veiculado é a igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais. Esse postulado decorre do texto constitucional, que determina a observância desses princípios em relação a toda a seguridade social. Tem-se aqui mais uma forma de prestígio à isonomia. O quinto princípio é a ampla divulgação dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão. Eis uma importante garantia de aplicação dos princípios de publicidade e impessoalidade que regem a administração pública. E – mais importante – trata-se da imposição da adoção de medidas que levem ao conhecimento dos cidadãos a existência de direito à proteção social não contributiva, reconhecendo-a como um dever estatal e não de qualquer benesse. O artigo 5º da LOAS estabelece ainda três diretrizes. As duas primeiras correspondem ao artigo 204 da Constituição Federal: descentralização políticoadministrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e comando único das ações em cada esfera de governo, bem como participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. A terceira delas – primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo –, embora decorra do simples fato de a assistência social ser um direito social, tem grande valor simbólico, pois evidencia que eventuais articulações entre Estado e sociedade civil não implicam desresponsabilização do primeiro. 190 4.2.4 Organização e gestão O terceiro capítulo da LOAS é dedicado à organização e à disciplina da gestão da assistência social em todo o país. Neste capítulo concentram-se as principais mudanças efetuadas pela Lei n. 12.435/11, concernentes à instituição do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Destaque-se que a criação e a implantação desse sistema foi prevista na Política Nacional de Assistência Social de 2004 – PNAS/2004 e na Norma Operacional Básica da Assistência Social de 2005 – NOB/SUAS; portanto a criação do SUAS antecede a alteração legislativa. 4.2.4.1 A gestão das ações na área da assistência social Esse capítulo se inicia com o artigo 6º, que retoma as diretrizes de descentralização e participação na organização de assistência social, a qual deverá ser estruturada sob a forma do Sistema Único de Assistência Social – SUAS207. O SUAS é composto pelos entes federativos, por seus respectivos conselhos de assistência social e pelas entidades e organizações de assistência social abrangidas pela LOAS (art. 6º, § 2º). As ações a serem desenvolvidas deverão ser voltadas para proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, tendo o território como base de organização (art. 6º, § 1º). A gestão operacionalizada pelo SUAS visa definir responsabilidades e promover ações articuladas, o que significa uma resposta à dispersão e superposição de ações anteriormente criticada. A ideia de articulação fica clara a partir do exame dos objetivos do SUAS, a saber: (a) consolidação da gestão compartilhada, do cofinanciamento e da cooperação 207 Considerando o propósito de demonstrar a difícil construção da assistência social como um direito no Brasil, observa-se que o SUAS, embora previsto na PNAS/2004 e regulamentado pela NOB/SUAS em 2005, só foi incorporado ao texto da LOAS no ano de 2011, por força da Lei n. 12.435/11. Em comparação, o Sistema Único de Saúde encontra-se previsto na Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080) desde 1990, como se depreende de seu artigo 4º, caput (“Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS)”). 191 técnica entre os entes federativos que operam a proteção social não contributiva (art. 6º, I); (b) integração da rede pública e privada de serviços, programas, projetos e benefícios de assistência social (art. 6º, II); (c) fixação de responsabilidades dos entes federativos na organização, regulação, manutenção e expansão das ações de assistência social (art. 6º, III); (d) definição dos níveis de gestão, respeitadas as diversidades regionais e municipais (art. 6º, IV); (e) implementação da gestão do trabalho e a educação permanente na assistência social (art. 6º, V); (f) fixação de gestão integrada de serviços e benefícios (art. 6º,. VI); (g) garantia de vigilância socioassistencial e de direitos (art. 6º, VII). Originalmente, o parágrafo único do artigo 6º estabelecia que a coordenação da Política Nacional de Assistência Social – PNAS caberia ao Ministério do Bem-Estar Social. Com a extinção desse ministério em 1995, essa atribuição passou ao Ministério da Previdência e Assistência Social. Atualmente, a União coordena essa política por meio do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS (art. 6º, § 3º). Fruto da Lei n. 12.435/11, os artigos 6-A a 6-E da LOAS absorveram diversos postulado da PNAS de 2004. Os novos artigos estabelecem níveis de proteção social diferenciados conforme a situação de necessidade, em clara expressão do princípio da seletividade das prestações da seguridade social. Ademais, disciplinam de que modo a proteção será ofertada pelo Poder Público e entidades privadas de assistência social. 4.2.4.2 Proteção social, defesa de direitos e vigilância socioassistencial na LOAS Na organização da rede socioassistencial impõe-se a observância dos três objetivos mencionados no artigo 2º da LOAS, isto é, promoção de proteção social, vigilância socioassistencial e defesa de direitos. O objetivo de proteção social está relacionado “à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos” (art. 2º, I) e tem em mira a consecução das finalidades previstas no artigo 203 da Constituição Federal. Para tanto, a assistência social deverá ser organizada em consonância com o tipo de atenção proporcionada. No atual sistema, a proteção social está subdividida em básica e especial. A proteção social básica corresponde ao “conjunto de serviços, programas, projetos e 192 benefícios208 da assistência social que visa a prevenir situações de vulnerabilidade e risco social por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários” (art. 6º-A, I). A proteção social especial corresponde ao “conjunto de serviços, programas e projetos que tem por objetivo contribuir para a reconstrução de vínculos familiares e comunitários, a defesa de direito, o fortalecimento das potencialidades e aquisições e a proteção de famílias e indivíduos para o enfrentamento das situações de violação de direitos” (art. 6º-A, II). A diferença fundamental entre a cobertura proporcionada pela proteção social básica e pela proteção social especial está na complexidade da situação a ser enfrentada. No nível básico, a intervenção da assistência é preventiva, ao passo que, no nível especial, tem viés reparador. Em vista da diferença entre as necessidades a serem atendidas, as formas de atuação devem ser diferentes nesses níveis, mas ambas adotam estratégias de desenvolvimento de potencialidades e aquisições, bem como de valorização de vínculos familiares e comunitários. A cada tipo de proteção social corresponde um tipo diferente de unidade de atendimento; os Centros de Referência de Assistência Social – CRAS e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social – CREAS (art. 6º-C) são responsáveis, respectivamente, pela proteção social básica e pela proteção social especial. Essas unidades devem contar com instalações adequadas ao atendimento prestado (art. 6º-D) e equipes de referência dimensionadas de acordo com o tamanho da população atendida e com o atendimento assegurado (art. 6º-E, p.ú.). O CRAS é definido como “unidade pública municipal, de base territorial, localizada em áreas com maiores índices de vulnerabilidade e risco social, destinada à articulação dos serviços socioassistenciais no seu território de abrangência e à prestação de serviços, programas e projetos socioassistenciais de proteção social básica às famílias” (art. 6º-C, § 1º). O CREAS é “unidade pública de abrangência e gestão municipal, estadual ou regional, destinada à prestação de serviços a indivíduos e famílias que se encontram em 208 Observe-se que os benefícios da assistência social integram o nível básico de proteção social. Isso quer dizer que a concessão dos diversos tipos de benefícios assistenciais não deve estar condicionada à demonstração de que o requerente se encontra em situação de penúria ou de completa ruptura de vínculos com sua família e sua comunidade. A prova de uma situação que pode resultar em desproteção social deveria ser o bastante para que o direito a essas prestações fosse reconhecido. 193 situação de risco pessoal ou social, por violação de direitos ou contingência, que demandam intervenções especializadas209 da proteção social especial” (art. 6º-C, § 2º). O objetivo de defesa de direitos “visa a garantir o pleno acesso aos direitos no conjunto das provisões socioassistenciais” (art. 2º, III). Vale dizer que a rede socioassistencial não deve apenas respeitar, mas deve também promover os direitos dos cidadãos. Portanto, no interior dessa rede, o atendimento deve se pautar pela perspectiva do direito e não do favor, do que resulta a especial atenção para os princípios do artigo 4º da LOAS. Por fim, a vigilância socioassistencial atua como uma função exercida com o intuito de promover os objetivos de proteção social e a defesa de direitos. Nos termos da LOAS, a vigilância socioassistencial “visa a analisar territorialmente a capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos” (art. 2º, II). Como explica Sposati (2009, p. 41), o termo designa a “capacidade de detectar, monitorar as ocorrências de vulnerabilidade e fragilidade que possam causar a desproteção, além da ocorrência de riscos e vitimizações”. Portanto, não se trata de uma atuação policialesca ou de controle dos cidadãos, mas sim de monitoramento das situações que ensejam a proteção assistencial. Apesar de ser identificada como objetivo da assistência social, a vigilância não é um fim em si mesmo. É uma atividade exercida com o fito de identificar as hipóteses de intervenção da assistência, orientada a partir de análises territoriais, para então acionar as medidas de proteção ou defesa de direito pertinentes. A vigilância é função, dotada de caráter instrumental, e não um objetivo. É de se ressaltar que esse artigo reafirma a territorialização da política de assistência social, traço presente desde as primeiras formas de assistência. Contudo, ao contrário do que se verificava nos primórdios da assistência, a intervenção no território atualmente não visa isolar ou confinar os destinatários da assistência em seus locais de domicílio. O escopo dessas medidas é concentrar esforços e recursos nas regiões onde as vulnerabilidades são maiores, visando superar situações de desvantagens que atingem comunidades inteiras – e não tratar as situações de necessidade como casos isolados –, conferindo a seus habitantes “a possibilidade de mobilizar-se para não permanecerem 209 Um exemplo de especialização dessas unidades é o “Centro-Pop” – Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, unidade destinada ao atendimento de pessoas em situação de rua. 194 eternamente cativos deste ambiente” (CASTEL, 2011, p. 107)210. Além disso, uma intervenção mais ativa, com a criação de soluções para problemas específicos de cada região e busca, pelo Poder Público, dos potenciais destinatários da assistência social recomenda essa proximidade. 4.2.4.3 As competências dos entes federativos na área da assistência social Além da União, Estados, Municípios e Distrito Federal devem fixar suas Políticas de Assistência Social (LOAS, art. 8º). Porém, essa disposição se faz acompanhar de previsões destinadas a evitar desarticulação de ações socioassistenciais entre os entes federativos. Nesse sentido, o artigo 11 prevê que “as ações das três esferas de governo na área de assistência social realizam-se de forma articulada”. Prevê ainda que, nessas ações, a coordenação e elaboração de normas gerais competem à esfera federal, ao passo que a coordenação e execução dos programas competem aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, em suas respectivas esferas. O final desse dispositivo reproduz parcialmente o inciso I do artigo 204 da Constituição Federal, deixando de aludir às entidades beneficentes e de assistência social. Nesse ponto, a lei corretamente reafirma a primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social. As competências entre os entes federativos estão nos artigos 12 a 15 da LOAS, que tratam, respectivamente, das competências da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Nos termos do artigo 12, incumbe à União: (a) conceder e manter os benefícios de prestação continuada previstos no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal211 (inciso I); (b) cofinanciar o aprimoramento da gestão, serviços, programas e 210 Essas afirmações são feitas com amparo na análise de CASTEL (2011) a respeito de problemas enfrentados pelas minorias étnicas na França. Depreende-se de suas considerações que a territorialização de políticas sociais, além de beneficiar grupos nas piores posições da estrutura social, torna visíveis as relações entre questão social e questão racial, consideração que pode ser ampliada para as relações entre questão social e outras formas de discriminação. Respondendo às críticas a estas políticas, o autor afirma que o que se deve criticar “é a insuficiência de seus meios e de suas modalidades excessivamente limitadas de aplicação” (CASTEL, 2011, p. 105) e não seus princípios. 211 O artigo 35 da LOAS estabelece que o órgão da Administração Pública Federal responsável pela coordenação da PNAS – atualmente, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – é 195 projetos da assistência social em âmbito nacional, assegurando-se que esse cofinanciamento se faça por transferências automáticas (inciso II); (c) prestar ações assistenciais de caráter emergencial juntamente com os demais entes federativos (inciso III); (d) monitorar e avaliar a política de assistência social e assessorar os demais entes federativos para seu desenvolvimento (inciso IV). Dentro da estrutura da Administração Pública Federal, a PNAS está incluída no âmbito de competência do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (Lei n. 10.683/03, art. 27, II, “c”), a quem incumbe, nos termos do artigo 19 da LOAS: (a) coordenar e articular as ações no campo da assistência social; (b) propor a PNAS ao Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, suas normas gerais, bem como os critérios de prioridade e de elegibilidade, além de padrões de qualidade na prestação de benefícios, serviços, programas e projetos; (c) prover recursos para o pagamento dos benefícios de prestação continuada; (d) elaborar e encaminhar a proposta orçamentária da assistência social, em conjunto com as demais da Seguridade Social; (e) propor os critérios de transferência dos recursos de que trata a LOAS; (f) proceder à transferência dos recursos destinados à assistência social, na forma prevista na lei; (g) encaminhar à apreciação do CNAS relatórios trimestrais e anuais de atividades e de realização financeira dos recursos; (h) prestar assessoramento técnico aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às entidades e organizações de assistência social; (i) formular política para a qualificação sistemática e continuada de recursos humanos no campo da assistência social; (j) desenvolver estudos e pesquisas para fundamentar as análises de necessidades e formulação de proposições para a área; (k) coordenar e manter atualizado o sistema de cadastro de entidades e organizações de assistência social, em articulação com os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; (l) articular-se com os órgãos responsáveis pelas políticas de saúde e previdência social, bem como com os demais responsáveis pelas políticas socioeconômicas setoriais, visando à elevação do patamar mínimo de atendimento às necessidades básicas; (m) expedir os atos responsável por operar os benefícios de prestação continuada previstos na lei. Esse dispositivo permite ainda que a operacionalização se faça com o concurso de outros órgãos do Governo Federal, conforme disponha o regulamento da lei. Nessa atribuição, destaca-se o papel do INSS, responsável por conceder e manter esse benefício desde o advento de seu primeiro regulamento (Decreto n. 1.744/95, art. 7º), o que inclui as atribuições de avaliar a condição de deficiência e de hipossuficiência dos requerentes, bem como de realizar as reavaliações periódicas previstas na LOAS (art. 20, § 3º). Por isso mesmo, há anos a jurisprudência brasileira entende que o INSS é o único legitimado para demandas que versem sobre a concessão desse benefício, afastando a legitimidade da União para integrar o polo passivo dessas demanda. 196 normativos necessários à gestão do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS, de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo CNAS; (n) elaborar e submeter ao CNAS os programas anuais e plurianuais de aplicação dos recursos do FNAS. Os Estados, cujas atribuições estão previstas no artigo 13, têm atribuições de apoio técnico e financeiro a outros agentes responsáveis pela implantação das políticas de assistência social, mas não são responsáveis pelo pagamento de benefícios assistenciais. Quanto ao financiamento, os Estados são responsáveis por destinar recursos financeiros aos Municípios visando ao custeio dos benefícios eventuais (inciso I). Também por transferências automáticas, devem cofinanciar o aprimoramento da gestão, os serviços, os programas e os projetos de assistência social em âmbito regional ou local (inciso II). Ainda conforme dito anteriormente, ações assistenciais de caráter de emergência também cabem à esfera estadual (inciso III). A cooperação que os Estados devem manter com outros atores da política de assistência social está prevista nos incisos IV e VI do artigo 13. O primeiro estabelece que os Estados devem estimular e apoiar técnica e financeiramente as associações e consórcios municipais na prestação de serviços de assistência social; o outro inciso dispõe que os Estados devem monitorar e avaliar a política de assistência social e assessorar os Municípios para seu desenvolvimento. Passando-se ao artigo 15, chega-se às competências municipais. Os Municípios concorrem com os demais entes federativos nas ações assistenciais de caráter de emergência (inciso IV). Ao lado dos Estados e Distrito Federal, são responsáveis pelo aporte de recursos para custeio dos benefícios eventuais (inciso I), ao que se agrega a incumbência de pagar os benefícios de auxílio-natalidade e auxílio-funeral (inciso II). São ainda competentes para executar os projetos de enfrentamento da pobreza (inciso III) – com ou sem parceria com entidades da sociedade civil –, prestar os serviços assistenciais previstos no artigo 23 da LOAS (inciso V), cofinanciar o aprimoramento da gestão, os serviços, os programas e os projetos de assistência social em âmbito local (inciso IV) e realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social em seu âmbito (inciso VII). No artigo 14, encontram-se as competências do Distrito Federal, equivalentes às dos Municípios. 197 4.2.4.4 Entidades e organizações da assistência social A LOAS regulamenta a atuação das entidades e organizações da assistência social, explicitando a primazia estatal na definição das políticas de assistência. Em seu artigo 10º, prevê que os entes federativos podem celebrar convênios com entidades e organizações de assistência social. Porém, esses convênios devem estar em harmonia com os Planos de Assistência Social aprovados pelos Conselhos de Assistência Social do ente federativo que pretende celebrar o convênio. Além disso, a atuação dessas entidades e organizações deverão se pautar pelas normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS (art. 7º). Quanto ao funcionamento dessas entidades, o artigo 9º, caput, da LOAS exige prévia inscrição no Conselho de Assistência Social do Município ou do Distrito Federal, os quais devem fiscalizar tais entidades (§ 2º). No caso de entidades que atuem em mais de um Município no mesmo Estado, ou em mais de um Estado ou Distrito Federal, a inscrição e funcionamento será objeto de regulamento na esfera federal (§ 1º). O § 4º do artigo 9º garante às entidades e organizações de assistência social o direito de recorrer aos Conselhos Nacional, Estaduais, Municipais e do Distrito Federal para tratar de direitos relativos às sua inscrição e funcionamento. As entidades privadas podem tanto podem proporcionar serviços e ações de proteção social básica quanto especial. Em todos os casos deverão estar vinculadas ao SUAS, o que pressupõe o preenchimento de todos os requisitos previstos na LOAS. A integração ao SUAS se faz mediante convênios, contratos, acordos ou ajustes com o Poder Público e isso garante a tais entidades o acesso ao financiamento de suas ações pelo Poder Público (art. 6º-B). A irregularidade na aplicação dos recursos públicos transferidos a essas entidades é sancionada com o cancelamento de sua vinculação ao SUAS, sem prejuízo de apuração de eventual responsabilidade civil e criminal (art. 36). 4.2.4.5 As instâncias deliberativas do SUAS A Constituição Federal assegurou a participação da sociedade civil nos loci de definição e monitoramento das políticas públicas, fazendo-o de forma expressa no tocante à seguridade social. 198 Em relação à assistência social, a participação foi garantida nas três esferas de governo e se materializou por meio da criação dos Conselhos de Assistência Social. Esses conselhos foram originalmente definidos pelo artigo 16 da LOAS como “instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo de assistência social, de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil”. Atualmente, são identificados como “instâncias deliberativas do SUAS, de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil”. Existem, portanto, quatro instâncias, todas elas vinculadas aos respectivos órgãos gestores da assistência social: o Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, os Conselhos Estaduais de Assistência Social, o Conselho de Assistência Social do Distrito Federal e os Conselhos Municipais de Assistência Social. A instituição dos Conselhos Estaduais de Assistência Social, do Conselho de Assistência Social do Distrito Federal e dos Conselhos Municipais de Assistência Social deve ser feita por lei específica dos respectivos entes federativos (art. 17, § 3º). Os conselhos têm competência para acompanhar a execução da política de assistência social, e apreciar e aprovar a proposta orçamentária, levando em consideração as diretrizes das conferências de assistência social de sua esfera de atuação (art. 17, § 4º). Todavia, a LOAS interfere na composição desses órgãos ao condicionar o repasse de recursos à existência e funcionamento de Conselho de Assistência Social, composto por governo e sociedade civil de forma paritária (art. 30, I). Na esfera federal, podem ser identificados dois fóruns de participação na política de assistência social: o CNAS e as Conferências Nacionais de Assistência Social. 4.2.4.5.1 O Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS Instituído pelo artigo 17 da LOAS, o CNAS é o órgão superior de deliberação colegiada da Política Nacional de Assistência Social. Trata-se de órgão de composição paritária, que conta com 18 membros e seus suplentes. Nessa composição, estão presentes dois grandes grupos: 9 representantes governamentais – incluindo um representante dos Estados e outro dos Municípios – e 9 representantes da sociedade civil, escolhidos entre representantes dos usuários, 199 organizações de usuários, entidades e organizações de assistência social, bem como trabalhadores do setor. A escolha dos representantes da sociedade civil deve ser feita “em foro próprio sob fiscalização do Ministério Público Federal” (art. 17, § 1º, II). Os representantes assim escolhidos são indicados ao órgão da Administração Pública Federal responsável pela coordenação da Política Nacional de Assistência Social e nomeados pelo Presidente da República para mandatos de dois anos, sendo permitida uma recondução. Entre esses integrantes, um é eleito para presidir o CNAS em mandato anual, também sendo permitida uma recondução. O CNAS conta ainda com uma Secretaria Executiva (art. 17, § 3º). Raichelis (2011, p. 43) ressalta que a composição paritária de uma instância deliberativa representa um grande avanço, sobretudo quando comparada com os conselhos consultivos ou não paritários, desprovidos de competência para deliberar sobre matérias concernentes a seu campo de ação e não representativos dos segmentos organizados da sociedade civil. Segundo a autora (RAICHELIS, 2011, p. 44), a implantação dos conselhos de assistência social: pode significar um impulso na publicização dessa política, na medida em que se consiga deslocar a assistência social do campo da regulação ad hoc, em que sempre esteve, para a cena pública e que se contemple a definição de regras e critérios públicos, mediadores das relações entre o público-estatal e o público-privado. As competências do CNAS estão proclamadas no artigo 18 da LOAS, mas também se fazem presentes em outras disposições esparsas dessa lei. Parte substancial dessas atribuições está relacionada com a formulação e implementação da Política Nacional de Assistência Social, a saber: (a) aprovar a PNAS; (b) normatizar as ações e regular a prestação de serviços de natureza pública e privada no campo da assistência social; (c) zelar pela efetivação do sistema descentralizado e participativo de assistência social; (d) desde a realização da II Conferência Nacional de Assistência Social em 1997, convocar ordinariamente a cada quatro anos212 a Conferência Nacional de Assistência Social, que tem a atribuição de avaliar a situação da assistência social e propor diretrizes para o aperfeiçoamento do sistema; (e) apreciar e aprovar a proposta orçamentária da Assistência Social a ser encaminhada pelo órgão da Administração Pública Federal responsável pela coordenação da Política Nacional de 212 Na redação original da LOAS, a convocação teria periodicidade bienal. Com a Lei n. 9.720, de 30 de novembro de 1998, a periodicidade passou a ser quadrienal. 200 Assistência Social; (f) aprovar critérios de transferência de recursos para os Estados, Municípios e Distrito Federal; (g) acompanhar e avaliar a gestão dos recursos, bem como os ganhos sociais e o desempenho dos programas e projetos aprovados; (h) estabelecer diretrizes, apreciar e aprovar os programas anuais e plurianuais do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS; (i) por decisão da maioria absoluta de seus membros, respeitados o orçamento da seguridade social e a disponibilidade do FNAS, propor ao Poder Executivo a alteração dos limites de renda mensal per capita definidos no § 3º do artigo 20 da LOAS (art. 39)213. Há competências relacionadas à organização e funcionamento do CNAS, como: (a) indicar o representante do CNAS junto ao Conselho Nacional da Seguridade Social (art. 18, XII); (b) elaborar e aprovar seu regimento interno (art. 18, XIII); (c) divulgar, no Diário Oficial da União, todas as suas decisões, bem como as contas do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS e os respectivos pareceres emitidos (art. 18, XIV). Outro importante grupo de atribuições refere-se à disciplina das atividades das entidades e organizações da assistência social, o que significa competência para: (a) acompanhar e fiscalizar o processo de certificação das entidades e organizações de assistência social no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (art. 18, III); (b) apreciar relatório anual que conterá a relação de entidades e organizações de assistência social certificadas como beneficentes e encaminhá-lo para conhecimento dos Conselhos de Assistência Social dos Estados, Municípios e do Distrito Federal (art. 18, IV). Tais atribuições resultam de alteração legislativa relativamente recente. Na redação original dos incisos III e IV, incumbia ao CNAS “fixar normas para a concessão de registro e certificado de fins filantrópicos às entidades privadas prestadoras de serviços e assessoramento de assistência social” e “conceder atestado de registro e certificado de entidades de fins filantrópicos”. A assunção dessa competência era de se esperar, pois a LOAS extinguiu o CNSS (art. 33) e previu a transferência de suas atividades para o CNAS, de forma que não houvesse solução de continuidade. Com isso, além da atribuição de conceder atestado de registro e certificado para entidades de fins filantrópicos que visem obter isenções fiscais e celebrar convênios (art. 18, IV, na 213 Cumpre observar que o artigo 39 da LOAS dispõe sobre “alteração dos limites de renda mensal per capita definidos no § 3º do art. 20 e caput do art. 22”. Todavia, com a alteração promovida pela Lei n. 12.435/11, que deixou de prever qualquer limite per capita no caput do artigo 22, a aplicabilidade da regra contida no artigo 39 passou a se restringir ao benefício de prestação continuada. 201 redação original), o CNAS recebeu como “herança” do CNSS a incumbência de revisar os processos de registro e certificado de entidade de fins filantrópicos das entidades e organização de assistência social. Essa “função cartorial” trazida do CNSS (GOMES, 2000, p. 23) acabava por se sobrepor à função de planejamento da política de assistência social e, por isso, sempre foi criticada. A primeira tentativa de alterar essas funções foi promovida pela Medida Provisória n. 446, de 07 de novembro de 2008, que acabou sendo rejeitada no Congresso Nacional. Pouco tempo depois, a Lei n. 12.101, de 27 de novembro de 2009, conferiu nova redação aos incisos III e IV e distribuiu entre os ministérios responsáveis pelas políticas de saúde, assistência social e educação a competência para análise e decisão dos requerimentos de concessão ou renovação dos certificados das entidades beneficentes de assistência social (art. 21). Essas alterações “liberaram” o CNAS para o exercício das funções de elaboração, implementação e acompanhamento da política de assistência social. Tratase de um avanço significativo, pois demonstra a compreensão de que a assistência social não deve se ocupar primordialmente da filantropia privada. Além disso, a veiculação de notícias de fraudes envolvendo a concessão desses títulos214 impulsionaram a revisão do modelo concebido há mais de 70 anos. 4.2.4.5.2 As Conferências Nacionais de Assistência Social As Conferências Nacionais de Assistência Social foram concebidas com a função de se avaliar a situação da assistência social e proporem-se diretrizes para o aperfeiçoamento do sistema. Na redação original da LOAS, artigo 18, inciso VI, as conferências ordinárias eram bienais e as extraordinárias dependiam de deliberação da maioria absoluta dos membros do CNAS. Após alteração introduzida pela Lei n. 9.720, de 30 de novembro de 1998, a convocação ordinária passou a ser quadrienal. 214 No ano de 2008, a Polícia Federal deflagrou a Operação Fariseu, que visava apurar supostas irregularidades na concessão de Certificados de Entidades Beneficentes de Assistência Social. Cf. WOLFF, Adriana. Operação Fariseu: União aciona duas supostas entidades beneficentes e exconselheiros do CNAS. 19 out. 2010. Disponível em: <http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=151099&id_site=844>. Acesso em: 06 fev. 2012; PF DEFLAGRA operação contra grupo que obtinha títulos falsos de filantropia. Folha Online, 13 mar. 2008. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u381516.shtml>. Acesso em: 06 fev. 2012. 202 Essas conferências constituem um importante fórum de debate público sobre a política de assistência social e representam clara manifestação contrária à construção de decisões a “portas fechadas”. Ao convocar as conferências, o CNAS define os temas que serão discutidos. Esses temas são transmitidos como diretrizes aos Estados que, por sua vez, os transmitem aos Municípios. São realizadas, então, as Conferências Municipais, cujas conclusões subsidiam as Conferências Estaduais. Por fim, a Conferência Nacional reúne e sistematiza as discussões e propostas provenientes das Conferências Estaduais, para cumprir sua função prevista no artigo 18, inciso VI, da LOAS. Até o presente foram realizadas oito conferências – a última delas em dezembro de 2011 – e os temas escolhidos sempre retratam as discussões mais candentes de cada época na área de assistência social. Ocorrida em 1995, a I Conferência tratou do tema Assistência Social – Direito do Cidadão e Dever do Estado. Houve à época uma firme defesa do comando único da assistência social. Nessa perspectiva, deliberou-se a extinção do recém-criado Programa Comunidade Solidária e de outros programas e organismos governamentais com atuação paralela na área da assistência social. Defendeu-se ainda mais controle sobre o financiamento da assistência social, sem a concessão de repasses ou subvenções por mecanismos alheios aos Conselhos, Fundos e Planos municipais e estaduais de assistência social. Como sintetiza Madeira (2006, p. 62): Desta feita, esta I Conferência trouxe essencialmente para o debate público as contradições em relação ao tipo de Assistência Social assinalada pelo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, quando institui uma Secretaria Nacional de Assistência Social com a competência de executar a política de assistência social e concomitantemente cria o Programa Comunidade Solidária, com total autonomia na condução desta política. Também nessa ocasião deliberou-se que a Conferência operacionalizasse e aprovasse indicativos para a definição dos mínimos sociais, referidos no artigo 1º da LOAS, estabelecendo-se a garantia de acesso a educação, saúde, habitação, saneamento, trabalho, lazer, transporte urbano e terra215. 215 CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Relatório Final da I Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 20 a 23 de novembro de 1995. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/i-conferencia-nacional/iconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. 203 A II Conferência – O Sistema descentralizado e participativo da Assistência Social: Construindo a Inclusão, Universalizando Direitos (1997) – buscou avaliar o sistema descentralizado a participativo que começava a se instalar. Seus trabalhos foram divididos em cinco eixos: inclusão social, descentralização, participação popular, financiamento e controle social na assistência social, e assistência como política. Como sintetiza Madeira (2006, p. 73), essa Conferência expôs a precariedade da rede de assistência social, a falta de interlocução entre os atores da assistência e entre esses atores e os conselhos de outras políticas públicas, bem como a dificuldade em se definir a entidade de assistência social216. Na III Conferência – Política de Assistência Social: Uma Trajetória de Avanços e Desafios (2001) – foram enfatizados aspectos de gestão, financiamento e controle social Madeira (2006, p. 80-88). Os debates e deliberações desse evento mostraram que o maior desafio da assistência social ainda era seu reconhecimento como política pública sob comando único, com a extinção de programas precários. Não por outra razão, delibera-se novamente o fim de “programas que ferem o comando único e se contrapõem à LOAS como o Comunidade Solidária” e a adoção de medidas para evitar que recursos da seguridade social sejam alocados em outras áreas217. A IV Conferência – Assistência Social como Política de Inclusão: uma nova agenda para a cidadania - LOAS 10 anos (2003) – avaliou os dez anos de vigência da LOAS e, como aspecto mais importante, logrou a proposição e aprovação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, conferindo novo desenho institucional à política de assistência social218. Na V Conferência, SUAS – PLANO 10: Estratégias e Metas para a Implantação da Política Nacional de Assistência Social (2005), – adotou-se uma posição prospectiva em relação à assistência social. Já com a perspectiva de 216 CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Anais da II Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 9 a 12 de dezembro de 1997. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/ii-conferencia-nacional/iiconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. 217 CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Deliberações da III Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 4 a 8 de dezembro de 2001. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/iii-conferencia-nacional/iiiconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. 218 CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Relatório da IV Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 7 a 10 de dezembro de 2003. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/iv-conferencia-nacional/ivconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. 204 implantação do SUAS, a conferência aprovou um plano decenal de metas da assistência social no país, acompanhado de um rol de compromissos éticos que deverão nortear a dinâmica da política de assistência social219. Em 2007, a VI Conferência teve o tema Compromissos e Responsabilidades para Assegurar Proteção Social pelo Sistema Único da Assistência Social (SUAS). A partir das metas deliberadas em 2005, essa conferência avaliou os primeiros resultados na implantação do SUAS e abordou as dificuldades para implantação dos direitos socioassistenciais. Foram definidos seis subtemas para debate e deliberações, a saber: o plano decenal; direitos socioassistenciais; controle social e protagonismo dos usuários; financiamento; gestão do trabalho; e intersetorialidade entre as políticas sociais e destas com o desenvolvimento econômico220. Por fim, em 2009, a VII Conferência versou sobre Participação e Controle Social no Sistema Único de Assistência Social – SUAS. O mote dos debates foi a participação popular e o controle social sobre as ações de assistência. Foram deliberados temas atinentes à representatividade dos Conselhos de Assistência Social, à criação de Fóruns Permanentes de Assistência Social, ao aumento do controle social na política de assistência social, à participação do usuário nas conferências de assistência social, bem como à ampliação da infraestrutura e dos espaços públicos destinados aos serviços socioassistenciais221. A VIII Conferência versou sobre o tema Avançando na Consolidação do Sistema único de Assistência Social com a Valorização dos Trabalhadores e a Qualificação da Gestão dos Serviços, Programas e Projetos e Benefícios. As 65 deliberações aprovadas na plenária final dessa conferência foram divididas em quatro subtemas, a saber: estratégias para a estruturação da gestão do trabalho no SUAS; reordenamento e qualificação dos serviços socioassistenciais; fortalecimento da participação e do controle social; e a centralidade do SUAS na erradicação da extrema pobreza no Brasil. 219 CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Anais da V Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 5 a 8 de dezembro de 2005. Disponível em: < http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/v-conferencia-nacional/vconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. 220 O Relatório Final da VI Conferência Nacional de Assistência Social, assim como as metas e estratégias deliberadas na Conferência e as metas específicas do Governo Federal estão disponíveis em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais>. Acesso em: 3 jul. 2011. 221 As deliberações da VII Conferência Nacional de Assistência Social foram divulgadas por meio da Resolução do CNAS n. 105, de 3 de dezembro de 2009, e publicadas no Diário Oficial da União, Seção 1, de 10 de dezembro de 2009; além disso, constam dos Anais da VII Conferência Nacional de Assistência Social. Ambos estão disponíveis em: < http://www.mds.gov.br/cnas/vii-conferencia-nacional>. Acesso em: 3 jul. 2011. 205 Nas propostas aprovadas na VIII Conferência, sobressaem temas como: (a) valorização dos recursos humanos dedicados ao SUAS; (b) melhoria das condições materiais disponíveis para a prestações dos serviços socioassistenciais, incluindo a garantia do recebimento de recursos orçamentários; (c) divulgação e expansão das ações de assistência social, incluindo divulgação sobre a PNAS para a população; (d) fomento a estudos que possam orientar essa política; (e) criação de mecanismos que permitam maior conhecimento acerca da realidade com a qual a assistência social deve lidar e melhor avaliação sobre os custos e resultados das ações da assistência social; (f) fortalecimento do papel das Secretarias de Assistência Social; (g) fomento ao controle e fiscalização do efetivo cumprimento da legislação que trata dos Conselhos de Assistência Social; (h) aproximação entre os órgãos responsáveis pelas ações socioassistenciais e as sociedade civil, com destaque para associações de moradores e movimentos sociais; (i) estratégias de inclusão produtiva dos destinatários da assistência social; modificação dos critérios de elegibilidade do benefício de prestação continuada previsto na LOAS; fomento ao caráter intersetorial e transversal da Política de Assistência Social; (j) reafirmação da centralidade do SUAS na erradicação da pobreza extrema no país222. Ainda na VIII Conferência foi deliberado que o tema da IX Conferência será A gestão e o financiamento da efetivação do SUAS. 4.2.5 Benefícios, serviços, programas e projetos de assistência social O Capítulo IV da LOAS é dedicado aos mecanismos de implantação da assistência social: benefícios, serviços, programas e projetos de enfrentamento da pobreza. 222 As deliberações da VIII Conferência Nacional de Assistência Social foram divulgadas por meio da Resolução do CNAS n. 1, de 9 de janeiro de 2012, e publicadas no Diário Oficial da União, Seção 1, de 10 de janeiro de 2012. Esse documento está disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/viiiconferencia-nacional>. Acesso em: 9 fev. 2012. 206 4.2.5.1 Benefícios da assistência social Os benefícios consistem em provisões concedidas mediante preenchimento de requisitos específicos. A LOAS prevê duas categorias de benefícios: benefícios de prestação continuada e benefícios eventuais. Os primeiros são custeados pela União; os segundos, por Estados, Distrito Federal e Municípios. Embora não seja e não deva ser a única forma de prestação assistencial, a previsão de pagamento de determinadas quantias ao cidadão é essencial para a criação de um sistema de assistência social. A uma, porque assegura o direito subjetivo a um rendimento mínimo. A duas, porque o pagamento de benefícios confere maior liberdade ao cidadão, que decide como empregar tais rendimentos. A três, por significar uma regulação em matéria de assistência social de amplo alcance e com critérios claramente definidos em lei. 4.2.5.1.1 Benefício de prestação continuada A Constituição Federal inaugurou um programa de transferência direta de renda sem precedentes na história no país223 ao prever, em seu artigo 203, inciso V, “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”. 223 Antes de 1988, existia um benefício previdenciário com alguns traços semelhantes ao do benefício assistencial. Trata-se da Renda Mensal Vitalícia – RMV, criada pela Lei n. 6.179, de 11 de dezembro de 1974 e que continuou integrando o rol de benefícios da Previdência Social até a efetivação da garantia contida no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, por expressa disposição da Lei n. 8.213/91 (art. 139). A RMV consistia numa renda equivalente à metade do maior salário mínimo vigente, arredondada para a unidade de cruzeiro imediatamente superior, não podendo ultrapassar 60% do valor do saláriomínimo do local de pagamento. Nos termos dos artigos 1º e 2º da Lei n. 6.179/74, era devida aos idosos com mais de 70 anos ou inválidos de forma definitiva, mediante comprovação de: (a) impossibilidade de prover o próprio sustento ou tê-lo provido pela família; (b) renda inferior a 60% do salário mínimo; (c) período mínimo de filiação ao INPS, com posterior perda de qualidade de segurado, ou exercício de atividade abrangida pelo INPS ou FUNRURAL , ainda que sem filiação. Nos termos do artigo 40 da LOAS, a RMV foi extinta em 1º de janeiro de 1996. A despeito das semelhanças nos critérios de concessão, há diferenças substanciais em relação ao benefício assistencial, que se caracteriza por sua matriz constitucional, seu caráter não contributivo e renda equivalente a um salário mínimo. 207 O exercício do direito subjetivo ao benefício de prestação continuada ficou, portanto, condicionado à disciplina legislativa224. Essa disciplina foi traçada pela LOAS, mas o benefício só foi implementado em 1996, nos termos do artigo 40 do Decreto n. 1.744/95. Alguns autores entendem que o único aspecto o inciso V do artigo 203 passível de regulamentação por lei ordinária seria o da necessidade financeira, haja vista que os beneficiários já estariam identificados na própria Constituição Federal (NUNES JÚNIOR, 2009; ARZABE, 2001). Embora a redação do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal desperte dúvidas sobre quais seriam os aspectos passíveis de regulamentação, este não parece ser o maior problema que dificulta a efetivação do direito ao benefício de prestação continuada. O exercício de um direito fundamental pode ser regulamentado e, nessa medida, pode sofrer algum tipo de restrição. O maior risco à efetivação do direito ao benefício assistencial não está na possibilidade de lei ordinária dispor sobre os requisitos para sua concessão, mas na possibilidade de esse conteúdo esvaziar o propósito de atendimento às situações de necessidade social estampadas na Constituição Federal. Examinando o texto da LOAS, percebe-se que os aspectos negativos dessa lei decorrem da falta de sintonia entre seus termos e os propósitos da assistência social. Não por outra razão, a regra cuja constitucionalidade foi debatida de forma mais intensa diz respeito a um tema que o legislador evidentemente estava autorizado a disciplinar: a comprovação da necessidade financeira. Os tópicos que se seguem procuram esmiuçar de que forma a LOAS tratou dessa garantia de renda mínima. 4.2.5.1.1.1 Destinatários do benefício assistencial: idosos e pessoas com deficiência A Constituição Federal identificou claramente os titulares do benefício assistencial: idosos e pessoas com deficiência. Quanto aos primeiros, a Constituição Federal não define o limite etário para que uma pessoa seja considerada idosa. Na LOAS, 224 Em razão do impacto financeiro que adviria da implantação do benefício de prestação continuada, pode-se encontrar aqui mais uma explicação para a demora na aprovação da LOAS e um dos motivos do veto ao primeiro Projeto de Lei. 208 esse limite foi inicialmente fixado em 70 anos e reduzido para 67 anos a partir de 01 de janeiro de 1998225. A partir de 01 de janeiro de 2004, por força do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03, arts. 34 e 118), o direito ao benefício foi reconhecido aos idosos a partir de 65 anos226. Esse critério ainda vige e, por força da Lei n. 12.435/11, foi integrado ao caput do artigo 20 da LOAS. Quanto ao segundo grupo, até 2011 a disciplina foi bastante rigorosa e extravasou o propósito de definir pessoa com deficiência. Na redação original do artigo 20, § 2º, considerava-se pessoa com deficiência aquela incapacitada para o trabalho e para a vida independente. Não bastava assim a prova de uma restrição sensorial, motora ou mental com repercussões na prática de um ou mais atos da vida cotidiana. Tampouco bastava a prova de incapacidade laborativa, por si só ensejadora de inúmeras restrições para o atendimento das necessidades elementares de uma pessoa. Exigia-se a demonstração de graves restrições que tornassem a pessoa dependente de terceiros. Com a menção à incapacidade para a vida independente, os titulares do benefício praticamente se restringiam às pessoas com vida vegetativa ou que demandassem assistência de outra pessoa para atos cotidianos. Esses critérios sequer levavam em conta que a pessoa incapaz para o trabalho dificilmente terá como prover suas necessidades mais elementares, como alimentação, moradia, vestuário, educação, saúde etc. A exigência de incapacidade para o trabalho e para a vida independente favorecia uma situação paradoxal, pois tornava a habilitação e reabilitação uma verdadeira ameaça para as pessoas com deficiência que necessitassem do benefício para sobreviver. De forma até incomum, o regulamento do benefício de prestação continuada, Decreto n. 6.214/07, atenuou a rigidez dos critérios legais. Coube ao decreto reconhecer que a incapacidade não é apenas critério médico, mas também socioeconômico227, 225 Na redação original do artigo 38 da LOAS, previa-se que a idade mínima para pleitear o benefício seria reduzida para 67 anos e 65 anos, respectivamente após 24 e 48 meses do início de sua concessão. Porém, por meio da Lei n. 9.720, de 30 de novembro de 1998, o artigo 38 teve sua redação alterada apenas para manter que o limite etário seria de 67 anos a partir de 01 de janeiro de 1998. Eliminou-se, naquele momento, a perspectiva de redução gradual do requisito etário. 226 É necessário observar que o Estatuto do Idoso considera idosas as pessoas com mais de 60 anos (art. 1º), mas o benefício só foi destinado às pessoas a partir dos 65 anos. 227 Nesse sentido, merece destaque a criação de metodologia de avaliação de deficiência contemplando critérios médicos e sociais, prevista no artigo 16 do Decreto n. 6.214/07. Esse instrumento de avaliação foi desenvolvido e instituído pela Portaria Conjunta MDS/ INSS n. 01, de 29 de maio de 2009, publicada integralmente do Diário Oficial da União de 02 de junho de 2009, seção 1, p. 50-59. 209 definindo-a como “fenômeno multidimensional que abrange limitação do desempenho de atividade e restrição da participação, com redução efetiva e acentuada da capacidade de inclusão social, em correspondência à interação entre a pessoa com deficiência e seu ambiente físico e social” (art. 3º, III). Esse diploma também sanou impasses para a concessão do benefício a crianças e adolescentes. Não sendo admissível tomar a incapacidade para o trabalho como parâmetro de avaliação nesses casos, ex vi o artigo 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal, estabeleceu-se que a necessidade de avaliar o impacto da deficiência “na limitação do desempenho de atividade e restrição da participação social, compatível com a idade, sendo dispensável proceder à avaliação da incapacidade para o trabalho”. Esses critérios de avaliação de deficiência foram mantidos mesmo com a promulgação da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, por meio do Decreto n. 3.956, de 08 de outubro de 2001, que definiu deficiência como “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social” (art. 1º). Em 2008, a aprovação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, com status de emenda constitucional, deveria ter sido bastante para que se reconhecesse a revogação tácita do artigo 20, § 2º, da LOAS. Eis a definição de pessoa com deficiência veiculada pela Convenção: Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. Todavia, foram necessários mais alguns anos para que essa definição fosse assimilada pela LOAS. Da mesma forma, consoante será demonstrado no Capítulo 5, essa definição não encontrou grande repercussão no Poder Judiciário. Com a promulgação da Lei n. 12.435/11, a LOAS adotou a definição de pessoa com deficiência como “aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (art. 20, § 2º, I). 210 No entanto, manteve a exigência de incapacidade para a vida independente e para o trabalho por, no mínimo, dois anos (art. 20, § 2º, II). Essa definição é semelhante à prevista pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (art. 1º). No entanto, alude à “participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas”, ao passo que a Convenção trata da “participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Ocorre que essa omissão é significativa, pois um dos aspectos mais importantes da proteção de pessoas com deficiência refere-se à promoção da igualdade. o patrimônio jurídico das pessoas com deficiência se resume no cumprimento do direito à igualdade, quer apenas cuidando de resguardar a obediência à isonomia de todos diante do texto legal, evitando discriminações, quer colocando as pessoas com deficiência em situação privilegiada em relação aos demais cidadãos, benefícios perfeitamente justificados e explicados pela própria dificuldade de inclusão natural desse grupo de pessoas. (ARAUJO, 2011) Somente com a promulgação da Lei n. 12.470/11 é que se alterou o artigo 20, § 2º, da LOAS, adotando-se a definição trazida pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em sua íntegra. Finalmente a exigência de incapacidade para a vida independente e para o trabalho foi suprimida. No lugar dessas exigências instituiu-se a avaliação do potencial de cada pessoa com deficiência participar plena e igualitariamente da vida em sociedade. Isso representa um inegável avanço da assistência social no sentido de sua universalização. No que concerne à duração e natureza dos impedimentos que caracterizam a deficiência, o artigo 20, § 10º, passou a dispor que “considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2º deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos”. A concessão do benefício sempre demandou avaliação médica, como se depreende das quatro redações até hoje atribuídas ao artigo 20, § 6º, da LOAS. A Lei n. 12.435/11 agregou a avaliação social para a aferição do grau de deficiência e da incapacidade. Por fim, a Lei n. 12.470/11, passou a prever que as perícias médica e socioeconômica devem recair sobre o grau de deficiência e de impedimento, não mais de incapacidade. 211 4.2.5.1.1.2 A aferição da necessidade financeira como requisito para concessão do benefício assistencial de prestação continuada Dentre os critérios de elegibilidade previstos na LOAS para concessão do benefício de prestação continuada, consta a renda per capita familiar inferior a um quarto do salário mínimo por mês (art. 20, § 3º). Duas são as questões que emergem dessas previsões. A primeira diz respeito à fixação de um quarto do salário mínimo por membro da família como critério de aferição de hipossuficiência. A segunda, diz respeito à metodologia de cálculo para se chegar ao valor da renda per capita. O limite de renda per capita inferior a um quarto de salário mínimo constitui um claro exemplo de falha na aplicação do princípio da seletividade e distributividade das prestações da seguridade social. Essa falha acarreta a desproteção de um grande contingente de pessoas idosas ou com deficiência em situação de necessidade social. Em outras palavras, tem-se uma restrição inconstitucional a um direito fundamental. É que, como afirmam Penalva, Diniz e Medeiros (2010, p. 63), o critério legal “não tem fundamentação técnica que vincule sua origem aos princípios constitucionais que guiam a assistência”. Os autores sublinham que esse montante é inferior às linhas de pobreza adotadas no Brasil para monitoramento e pesquisa, o que torna o benefício não “um programa para pessoas pobres, mas para pessoas extremamente pobres” (PENALVA; DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 63). Na mesma linha, Santos (2003, p. 202) demonstra que o fator de discrímen empregado na seleção e distribuição dessa prestação da assistência social é inconstitucional. A autora sustenta que, ao adotar o limite de renda em questão, “o legislador admitiu que há possibilidade de sobreviver sem os mínimos essenciais” (SANTOS, 2003, p. 202). E, com razão, aponta a criação de “um universo de necessitados, marginalizados, que não tem proteção previdenciária nem assistencial” (SANTOS, 2003, p. 202). Não é diferente a crítica feita por Branco (2007, p. 102) de que “o corte feito pela norma alcança apenas situações de gravidade tão extrema, que a ajuda fará pouca diferença na miserabilidade do grupo”. Ainda em 1995, o tema foi levado ao STF por meio da ADI n. 1.232-1/DF. A ação foi ajuizada pelo Procurador-Geral da República, visando à declaração de 212 inconstitucionalidade do artigo 20, § 3º, da LOAS. Argumentava-se que o dispositivo restringia o direito à assistência social assegurado pela Constituição Federal, deixando desprotegida grande parte das pessoas que o constituinte tinha em mira. O pedido de suspensão cautelar desse dispositivo foi indeferido. Entendeu-se que a pretendida suspensão seria mais danosa do que a manutenção de sua eficácia, pois impossibilitaria a concessão administrativa de benefícios até o julgamento final da ação228. Em 1998, o pedido formulado na ADI n. 1.232-1/DF foi julgado improcedente229. Prevaleceu o entendimento do Ministro Nelson Jobim no sentido de que a Constituição Federal remetera a fixação dos critérios de concessão ao legislador ordinário, não havendo indevida restrição do direito230. Como sintetiza Branco (2007, p. 103), essa decisão baseou-se no pressuposto de que, por se tratar de norma de eficácia limitada, o legislador poderia decidir como quisesse a propósito desse direito, o que não se coaduna com uma interpretação sistemática da Constituição. É de se destacar que o relator, Ministro Ilmar Galvão, foi vencido no julgamento. Propugnando uma interpretação conforme a Constituição, o Ministro votou pelo acolhimento parcial da ação para reconhecer a constitucionalidade da norma, sem prejuízo do reconhecimento da miserabilidade por outros meios de prova231. Isso possibilitaria o exame da capacidade financeira em cada caso concreto. Depois do julgamento da ADI n. 1.232-1/DF, decisões judiciais em todo o país continuaram reconhecendo o direito ao benefício mesmo quando superado o critério legal da renda per capita (cf. Capítulo 5). Boa parte dessas decisões sustentava o entendimento estampado no voto vencido do Ministro Ilmar Galvão de que a renda 228 Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.232-1/DF. Relator: Min. Maurício Corrêa. Tribunal Pleno. Data da decisão: 22 mar. 1995. Diário da Justiça, 26 maio 1995, p. 15154. 229 Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.232-1/DF. Relator: Min. Ilmar Galvão. Relator para o Acórdão: Min. Nelson Jobim. Tribunal Pleno. Data da decisão: 27 ago. 1998. Diário da Justiça, 01 jun. 2001, p. 75. 230 Extrai-se do voto vencedor a afirmação de que “compete à lei dispor a forma da comprovação. Se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da própria lei. O gozo do benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar dessa forma. Portanto não há interpretação conforme possível porque, mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de direito algum, pois depende da existência da lei, da definição”. 231 Em seu voto, o Ministro Ilmar Galvão assevera que “não se pode vislumbrar inconstitucionalidade no texto legal, posto revelar ele uma verdade irrefutável, seja, a de que é incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo. A questão que resta é a de saber se com a hipótese prevista pela norma é a única suscetível de caracterizar a situação de incapacidade econômica da família do portador de deficiência ou do idoso inválido. Revelando-se manifesta a impossibilidade da resposta positiva, que afastaria grande parte dos destinatários do benefício assistencial previsto na Constituição, outra alternativa não resta senão emprestar ao texto impugnado interpretação segundo a qual não limita ele os meios de prova da condição de miserabilidade da família do necessitado deficiente ou idoso”. 213 inferior a um quarto do salário mínimo não impediria a demonstração da necessidade financeira por meio de outros elementos de prova. Em razão disso, recursos e reclamações foram levados ao STF tratando dos limites da previsão legal e da extensão do julgado proferido na ADI n. 1.232-1/DF. Durante algum tempo, a Corte sustentou o entendimento de que a concessão do benefício à pessoa com renda familiar superior ao limite estabelecido na LOAS contrariava a decisão proferida no julgamento232. Emblemática desse posicionamento é decisão que deu provimento à Reclamação n. 2.303-6/RS, julgando prejudicado o agravo regimental interposto pela parte autora, representada pela Defensoria Pública. Neste feito, que teve como relatora a Ministra Ellen Gracie, reconheceu-se que o entendimento de que a necessidade financeira poderia ser demonstrada por meios de prova diversos da renda per capita inferior à quarta parte do salário mínimo restara vencido no julgamento da ADI n. 1.232-1/DF. A relatora afirmou ainda que “a decisão do Supremo Tribunal Federal foi exatamente a de fixar como parâmetro objetivo a ocorrência, a existência ou não deste limitador de ganhos da família: um quarto do salário mínimo”. A relatora consignou em seu voto que o afastamento do critério objetivo da renda implicaria conferir “ao juiz do Juizado Especial o direito de criar e aumentar benefício”, “deixando de indicar a fonte de custeio, exigência que se faz até àqueles que têm competência legislativa”. A esse respeito, Penalva, Diniz e Medeiros (2010, p. 57) apontam que essa reclamação foi decidida com base em um “argumento orçamentário” e que “a argumentação prevalecente teve como pressuposto a compreensão de que os critérios de elegibilidade para a concessão do benefício assistencial só poderiam ser fixados na esfera política” (PENALVA; DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 55). De fato, a discussão sobre a adequação do critério legal às diretrizes constitucionais da assistência social – o que implicaria discutir o significado das necessidades a serem atendidas e contempladas pelo legislador, e não a evidente possibilidade de lei ordinária dispor sobre a matéria – não teve destaque. Porém, no âmbito do próprio STF, vislumbra-se a possibilidade de revisão desse entendimento. Ao indeferir o pedido de liminar na Reclamação n. 4.374/PE, o 232 Nesse sentido, as decisões proferidas nos seguintes feitos: Agravo Regimental na Reclamação n. 2.303-6/RS, Relatora: Min. Ellen Gracie. Tribunal Pleno. Data da decisão: 13 maio 2004. Diário da Justiça, 01 abr. 2005, p. 05; Reclamação n. 2.323-1/PR, Relator: Min. Eros Grau. Tribunal Pleno. Data da decisão: 07 abr. 2005. Diário da Justiça, 20 maio 2005, p. 08; Agravo Regimental na Medida Cautelar na Reclamação n. 4.427-1/RS. Relator: Min. Cezar Peluso. Tribunal Pleno. Data da decisão: 06 jun. 2007. Diário da Justiça Eletrônico 047, 28 jun. 2007. Publicação em: 29 jun. 2007. 214 Ministro Gilmar Mendes chamou a atenção para a legislação mais recente contendo “novos critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais” e para os casos concretos levados àquela corte, demonstrando “que os critérios objetivos estabelecidos pela Lei n. 8.742/93 são insuficientes para atestar que o idoso ou o deficiente não possuem meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”. O Ministro afirma ainda que a manutenção do entendimento constante da Reclamação n. 2.303-6/RS “ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3o do art. 20 da Lei n. 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art. 203, inciso V, da Constituição”. Há, portanto, claras perspectivas de alteração da jurisprudência da mais alta corte do país. Confirmando-se essa possibilidade, aumentará a probabilidade de a legislação ordinária incorporar critérios mais elásticos para aferir a necessidade financeira. Reitera-se aqui afirmação feita em trabalho anterior no sentido de que, considerando a polêmica existente em torno do critério da renda e o impacto orçamentário que decorreria da ampliação das hipóteses de concessão do benefício, eventuais alterações legislativas relacionadas a esse critério serão influenciadas pelo pronunciamento do STF (SALES, 2011, p. 23)233. Quanto ao segundo aspecto suscitado no início deste tópico – a metodologia de aferição da renda – percebe-se que a legislação sobre benefício assistencial de prestação continuada posterior à Lei n. 8.742/93 não mudou o critério da renda. Porém, foram instituídas metodologias de cálculo mais benéficas a alguns dos potenciais titulares do benefício, aplicáveis em determinadas hipóteses. Basicamente, a metodologia consiste em desprezar algumas receitas antes de se aferir se a renda é ou não inferior a um quarto do salário mínimo. O Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03) contém uma dessas hipóteses: Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) saláriomínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas. 233 Em resposta ao que chamam de “argumento orçamentário” da Reclamação n. 2.303-6/RS, Penalva, Diniz e Medeiros (2010) analisam o impacto da elevação do critério de elegibilidade para meio salário mínimo e concluem que essa elevação seria compatível com as capacidades orçamentárias do Estado brasileiro. Os autores concluem ainda que “devido a atuais erros de focalização da política, a expansão de custos será inferior ao aumento no tamanho da população legalmente elegível” (PENALVA; DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 53). 215 Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas. A previsão permite a idosos integrantes do mesmo núcleo familiar receberem benefícios assistenciais de forma concomitante. Isso porque o benefício concedido a um idoso não é considerado no cálculo da renda do outro idoso que também pleiteia o benefício234. Com isso, ampliou-se a população elegível para o recebimento do benefício. A Lei n. 12.470/11, de igual modo, estabeleceu metodologias de cálculo mais favoráveis aos potenciais destinatários do benefício, com nítido propósito de fomentar a participação social de jovens com deficiência, estimulando seu ingresso no mercado de trabalho. O novo artigo 20, § 9º, da LOAS determina que a remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz não seja considerada para cálculo da renda per capita familiar. Já o artigo 21-A, § 2º, dispõe que “a contratação de pessoa com deficiência como aprendiz não acarreta a suspensão do benefício de prestação continuada, limitado a 2 (dois) anos o recebimento concomitante da remuneração e do benefício”. A medida é relevante para o desenvolvimento pessoal dos beneficiários, pois possibilita a inserção profissional desses adolescentes no mercado de trabalho, nos termos do artigo 203, inciso III, da Constituição Federal. Ao mesmo tempo, sugere a preocupação do Poder Público com a expressiva quantidade de jovens que recebem esse benefício em razão de alguma deficiência, demonstrando uma tentativa de evitar que todos eles passem suas vidas recebendo esse benefício. Porém, seu êxito dependerá ainda do adequado cumprimento das cotas de empregos a serem destinadas às pessoas reabilitadas ou com deficiência (Lei n. 8.213/91, art. 93) e da promoção do direito à acessibilidade. 234 Conforme será analisado no capítulo seguinte, o Poder Judiciário vem se pronunciando sobre algumas questões suscitadas por essa norma, sobretudo no que tange à aplicação analógica desse dispositivo. No STF, reconheceu-se a repercussão geral da questão concernente à interpretação extensiva do artigo 34 da Lei n. 10.741/03, sem pronunciamento quanto ao mérito da controvérsia (Cf. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n. 580.963/PR. Relator: Min. Gilmar Mendes. Data da decisão: 16 set. 2010. Diário da Justiça Eletrônico 190, 07 out. 2010. Publicação em: 08 out. 2010) Informação atualizada em: 01 mar. 2012. 216 4.2.5.1.1.3 A definição de família para efeito de concessão do benefício assistencial de prestação continuada Ao prever como requisito para concessão do benefício assistencial a impossibilidade de o idoso ou a pessoa com deficiência proverem o próprio sustento ou tê-lo provido por sua família, a LOAS reconhece a família como primeira responsável pela proteção e atendimento de necessidades de seus membros, em consonância com as demais diretrizes da assistência social. Por conta disso, a definição de família adotada para aferição da necessidade financeira torna-se crucial para a concessão ou não do benefício assistencial. E esse é um ponto bastante delicado, haja vista a dificuldade em se estabelecer uma definição que comporte os múltiplos arranjos familiares possíveis. A dificuldade explica porque, até a presente data, o artigo 20, § 1º, da LOAS apresentou três definições distintas de família, convergentes em um só ponto: a concepção da família como grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto. Originalmente, definiu-se família “a unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes”. Com o advento da Lei n. 9.720/98, o termo passou a ser definido como “conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei n. 8.213/91, desde que vivam sob o mesmo teto”. Desde a promulgação e entrada em vigor da Lei n. 12.435/11, a família representa o conjunto composto pelo “requerente [do benefício assistencial], o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto”. Todavia, a definição adotada pela LOAS é insuficiente para assegurar a proteção de idosos ou pessoa com deficiência pela via da assistência social. Esse critério revela-se, ademais, incompatível com a proteção à família prevista pela Constituição Federal. Por isso, justifica-se a crítica à regra vigente e a defesa de outro critério de identificação do grupo familiar, contida nos parágrafos que se seguem. A Constituição de 1988 não elegeu um modelo único de entidade familiar merecedor de proteção, o que, aliás, seria contrário ao objetivo de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). 217 É certo que seu artigo 226 reconhece as entidades familiares formadas pelo casamento e união estável, como também reconhece entidades monoparentais e sua descendência. Contudo, essas três entidades familiares não são as únicas que fazem jus à proteção constitucional, inclusive pela via da assistência social. Ao contrário, existem outras entidades familiares igualmente protegidas e não se extrai do citado artigo nenhuma previsão que impeça o reconhecimento ou que autorize tratamento antiisonômico a entidades familiares que não estejam expressamente descritas na Constituição Federal235. E não poderia ser de outra forma. A noção de família não se resume à ideia de núcleo econômico e reprodutivo; ao contrário, comporta também a ideia de unidade socioafetiva. Com isso, “as entidades familiares tornam-se plurais, já que existem ou não em razão do sentimento (afeto) dos membros que as compõem” (GALIA, 2007, p. 05). Na esteira de uma concepção pluralista de família, a atual redação da LOAS merece elogios, pois reconhece que padrastos, madrastas, enteados e menores tutelados, vivendo sob o mesmo teto, constituem o mesmo núcleo familiar. Dessa forma, essas pessoas não são mais artificialmente desconsideradas para o cálculo da renda per capita, como ocorria na redação anterior do artigo 20, § 1º, da LOAS. Além do mais, ao mencionar o companheiro, a lei não estabelece distinção entre pessoas do mesmo sexo e pessoas de sexos opostos. Contempla-se, assim, o tratamento igualitário dispensado às entidades familiares constituídas a partir de uniões heteroafetivas e homoafetivas, tal como resultou do julgamento da ADI n. 4.277/DF e da ADPF n. 132 pelo STF. Por outro lado, há aspectos negativos que não podem ser ignorados. A primeira observação é a de que a definição contida na LOAS é diferente da definição adotada para o acesso a outros programas sociais que também têm a família como foco de intervenção – discrepância criticável por indicar falta de sistematização e uniformidade quanto a conceitos essenciais para a operacionalização de políticas sociais236. A segunda – e mais importante – observação é de que se toma como 235 No julgamento da ADI n. 4.277/DF e da ADPF n. 132/RJ, que trataram do reconhecimento das uniões homoafetivas, o voto do Ministro Ayres Brito, relator, sintetiza essa ideia ao afirmar que “nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo ‘família’ nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser”. 236 Diversos programas sociais implementados no país a partir de 1997 adotaram definições de família desvinculadas de um rol taxativo de laços de parentesco, o que se aproxima da redação original do artigo 20, § 1º, da LOAS. Como afirmado em outras passagens deste trabalho, há uma tendência a se reconhecer 218 referência um modelo específico de entidade familiar, em detrimento de muitas organizações familiares que de fato existem e merecem proteção. A definição estampada na LOAS pressupõe relações familiares enxutas, aglutinadas em torno de uma estrutura monoparental ou conjugal. Além disso, o foco de análise da capacidade econômica é estreito: priorizam-se relações de parentesco de primeiro grau; as relações de parentesco de segundo grau são restritas aos irmãos solteiros. Essa estrutura, todavia, não dá conta da complexidade e pluralidade das organizações familiares. A identificação do potencial protetivo e a delimitação das responsabilidades familiares são tarefas bem mais complexas do que se pode supor pelo exame do rol de pessoas indicado na lei. As simplificações da definição de família, por mais necessárias ou convenientes que se mostrem, não poderiam resultar em prejuízo para a identificação do universo de pessoas que precisam da assistência social ou que, diversamente, dela podem prescindir. A previsão do artigo 20, § 1º, da LOAS, não permite, por exemplo, compreender a real situação de núcleos familiares compostos por pessoas de diversas gerações da mesma família, isto é, famílias ampliadas pela presença de parentes em linha reta e colateral. Da mesma forma, não apresenta uma resposta para as hipóteses de crianças colocadas sob a guarda e adultos sob a curatela de pessoas com quem não mantenham os vínculos de parentesco previstos na lei. A presença de outros familiares vivendo sob o mesmo teto – seja contribuindo para o sustento do grupo, seja demandando do grupo o atendimento de suas necessidades básicas – acaba sendo ignorada. Se a pessoa excluída do cálculo da renda per capita possuir rendimentos, a aplicação do artigo 20, § 1º, favorecerá o interessado em obter o benefício, pois a operação resultará em uma renda inferior à que seria obtida com a inclusão do referido familiar237. Se, ao invés de possuir renda, a pessoa a ser que todas as pessoas unidas por um laço de parentesco e que residam sob o mesmo teto integram o mesmo grupo familiar (cf. infra 4.2.5.3.1 Programas de assistência social desenvolvidos entre a promulgação da LOAS e a aprovação da PNAS/2004 e 4.2.5.3.2 Programas de transferência de renda de paralelos à política de assistência social). A pluralidade de definições mostra que o legislador brasileiro reconhece não ser adequada a identificação do grupo familiar a partir de relações de parentesco predefinidas, como consta da LOAS. 237 A título de exemplo, tome-se um grupo familiar assim composto: uma mulher (A), com renda de um salário mínimo; seu cônjuge (B), sem renda; três filhos solteiros (C, D e E), sem renda; e o pai dessa mulher (F), com rendimentos equivalentes a cinco salários mínimos. Adotando-se a regra prevista na LOAS, considerar-se-ia como família as pessoas A, B, C, D e E, de modo que o cálculo da renda per capita familiar resultaria em um quinto (20%) do salário mínimo, valor sugestivo de uma condição de extrema pobreza. Porém, de fato, esse núcleo familiar teria a renda per capita de um salário mínimo. Na hipótese, a discrepância entre a situação real e a situação contemplada pela norma resultaria no 219 excluída do cálculo demandar apoio financeiro de outros membros da família, a aplicação do artigo 20, § 1º, indicará que o requerente do benefício tem uma renda superior àquela que realmente é disponibilizada para sua manutenção238. Levando-se em conta, inclusive, que situações mais agudas de necessidade financeira ensejam arranjos familiares mais amplos239, percebe-se que a previsão legal não é suficiente para captar a situação de boa parte do público que seria atendido pela assistência social. Por isso mesmo, está correta a crítica de Fortes (2009, p. 268) no sentido de que a noção de família não promove a efetivação de direitos de cunho assistencial quando concebida de forma estanque, pouco contribuindo para a superação da profunda desigualdade que assola o país. Também é problemático o fato de serem consideradas apenas as pessoas que vivem sob o mesmo teto240. favorecimento do grupo, pois atenderiam ao critério previsto na LOAS, apesar de não haver uma situação real de necessidade. 238 A título de exemplo, tome-se um grupo familiar assim composto: uma mulher (A), com renda de um salário mínimo; seu cônjuge (B), sem renda; um filho solteiro (C), sem renda; o pai e a mãe dessa mulher (D e E), ambos desprovidos de renda. Adotando-se a regra prevista na LOAS, considerar-se-ia como família as pessoas A, B e C, de modo que o cálculo da renda per capita familiar resultaria em um terço (33,33%) do salário mínimo, valor que retiraria essa família do âmbito de proteção da norma. Porém, efetivamente, o núcleo familiar em questão teria a renda per capita de um quinto do salário mínimo (20%). Nesse caso, a discrepância entre a situação real e a situação contemplada pela norma resultaria em prejuízo ao grupo, a despeito de real necessidade. 239 É pertinente transcrever as considerações apresentadas por Fortes (2009, p. 273-274): “Em especial nas famílias de menor renda, o agrupamento de pessoas constitui-se em forma que encontram para melhor fazer face ao contingenciamento da vida, para tentar reunir recursos conjuntos e depender de um único local para habitar. [...] no permanente esforço para afastar o espectro da fome, as famílias pobres desenvolvem arranjos para gerar renda, garantindo a sobrevivência, produzindo-se uma solidariedade no grupo doméstico que vai além da família nuclear, constituindo a “família extensa”, obrigando à cooperação não somente de todos os membros da família conjugal, como de outros parentes e agregados, de forma que a renda familiar conta com contribuição substancial de todos. Assim, não se podem desconsiderar outros parentes, como, por exemplo, filhos maiores e netos, e mesmo pessoas não vinculadas por consanguinidade ou afinidade, cuja parentalidade é dada a partir da afetividade do grupo, pois evidentemente também fazem parte da família, o que promove como consequência que tanto a renda que eventualmente tiverem deve ser somada à renda familiar, quanto que devem ser considerados como usuários da renda do grupo”. 240 As ponderações ora tecidas a respeito desse assunto já foram apresentadas em outro trabalho de mesma autoria, em excerto aqui reproduzido: “[...] a ideia de ‘pessoas sob o mesmo teto’ mantida no art. 20, § 1º, da LOAS apresenta aspectos criticáveis, favoráveis e desfavoráveis aos potenciais titulares desse benefício. Como ponderação que pode implicar no não-reconhecimento do direito ao benefício de prestação continuada, frisa-se que o dever de sustento entre familiares não se limita àqueles que vivem sob o mesmo teto. A Constituição Federal elege a paternidade responsável como um dos princípios do planejamento familiar (CF, art. 226, § 7º) e prevê o dever de assistência entre pais e filhos, bem como em relação aos idosos (CF, arts. 229 e 230). Além disso, o Código Civil (arts. 1694 e ss.) disciplina o dever de alimentos entre ascendentes, descendentes e irmãos, sem ressalvas quanto à existência ou não de domicílio em comum. Por outro lado, a concepção de família adotada na LOAS pode acarretar o agravamento ou a manutenção de situações de vida precárias. A noção de família quase identificada com a noção de domicílio pode 220 Ao estabelecer que a capacidade financeira familiar seja aferida a partir dos ganhos das pessoas que vivem sob o mesmo teto, pressupõe-se que a responsabilidade pelo sustento do idoso ou da pessoa com deficiência é primordialmente dos familiares com quem coabitam, contanto que integrem o rol do artigo 20, § 1º. Ocorre que limitar o exame da capacidade financeira da família à mera soma dos rendimentos das pessoas que vivem sob o mesmo teto pode impor cobranças mais acentuadas sobre aqueles que se agregam até mesmo para enfrentar situações de precariedade financeira. Quando um benefício é indeferido em razão da renda de um dos componentes da família, subentende-se que aquela pessoa pode e deve prestar assistência ao familiar idoso ou com deficiência. Porém, sem os devidos temperamentos, essa ideia pode ensejar distorções. Pode-se afirmar, portanto, que, à luz da LOAS, a cobrança de colaboração financeira é mais incisiva sobre os que residem com os idosos ou pessoas com deficiência, pois é a renda daquelas pessoas que determinará a concessão ou não do benefício pleiteado. O resultado disso é o risco de perpetuar-se a situação de pessoas que sacrificam o atendimento das próprias necessidades e o desenvolvimento de suas potencialidades para prover necessidades básicas de seus familiares. Essa situação é particularmente grave quando envolve pessoas que ainda precisam cuidar da própria formação intelectual e profissional, já que o estudo tende a ser sacrificado pelo ingresso precoce no mercado de trabalho241. Ao invés de ruptura, tem-se a perpetuação do círculo vicioso de reprodução da pobreza. Portanto, mesmo para considerar as pessoas vivendo sob o mesmo teto, seria necessária mais atenção para com as necessidades de despesas com educação, saúde, habitação do requerente do benefício e seus familiares, sob pena de se negar a concessão do benefício às famílias que ainda precisam utilizar seus rendimentos para se emanciparem e desenvolverem as potencialidades de seus membros. implicar exigências excessivas em relação às pessoas que vivem sob o mesmo teto. Isso pode impor, por exemplo, que jovens ingressem precocemente no mercado de trabalho para auxiliar o sustento de familiares, abdicando ou negligenciando o investimento na própria educação, o que, a médio e longo prazo, pode se refletir negativamente nas condições de vida de toda a família”. (SALES, 2011, p. 22). 241 A título de ilustração, recorda-se a situação de jovens que ingressam precocemente no mercado de trabalho para sustentar pais e irmãos com deficiência. Muitos deixam de investir na formação intelectual e profissional que, no futuro, poderia trazer melhores condições para si e para seus familiares. Exatamente pela falta de qualificação, acabam exercendo atividades mal remuneradas e submetendo-se a jornadas de trabalho extenuantes. 221 Além disso, a análise é incompleta quando se ignora a situação financeira das pessoas que têm dever de sustento para com seus familiares idosos ou com deficiência, mas vivem em outro domicílio242. A paternidade responsável (CF, art. 226, § 7º), o dever de assistência entre pais e filhos (CF, art. 229), o dever de assistência aos idosos (CF, art. 229) e o dever de alimentos entre ascendentes, descendentes e irmãos (CC, art. 1694 e ss.) independem do domicílio comum. O ordenamento jurídico não admite que familiares se esquivem da prestação de alimentos aos que deles necessitem, tanto assim que existe a figura típica penal de abandono material prevista no Código Penal (art. 244). Por uma questão de coerência interna do sistema, além da situação de um núcleo familiar, seria necessário considerar a situação das pessoas juridicamente obrigadas a prestarem assistência a seus familiares. Como se verifica, as distorções na aplicação do artigo 20, § 1º, da LOAS podem resultar em prejuízo tanto aos requerentes do benefício de prestação continuada, quanto ao Poder Público. Assim, não se trata de defender uma definição que, a priori, possa aumentar ou reduzir o número de potenciais destinatários do benefício de prestação continuada, pois as distorções podem operar nos dois sentidos. A questão é, antes de tudo, pensar em um critério compatível com o caráter dinâmico das estruturas familiares e permeável “às inflexões que os acordos sociais pragmáticos operam” (FORTES, 2009, p. 267). A identificação do grupo familiar em cada caso concreto evitaria distorções, tanto na concessão quanto no indeferimento do benefício e seria mais condizente com a diretriz constitucional de proteção à família por meio da assistência social. No entanto, essa proposta poderia se mostrar inviável e, inclusive, resultar em falta de uniformidade nos critérios de concessão do benefício, com franca quebra de isonomia. A excessiva abertura ao caso concreto poderia criar dificuldades adicionais de planejamento nas ações concernentes a esse benefício, pela impossibilidade de prever o contingente de pessoas elegíveis. 242 Mais uma vez, é pertinente citar Fortes (2009, p. 273): “Efetivamente, a exigência de coabitação acaba, muitas vezes, por encobrir renda familiar que poderia, de fato, enfrentar a contingência, de acordo com os pertinentes ditames do Código Civil”. 222 4.2.5.1.1.4 Uma alternativa aos critérios previstos no artigo 20, § § 1º e 2º, da LOAS As críticas apresentadas nos tópicos anteriores demonstram que os atuais critérios adotados pela LOAS carecem de aprimoramento. A aferição da situação financeira não deveria se resumir a duas operações aritméticas de soma e divisão, tampouco é suficiente considerarem-se as relações familiares presumidas na LOAS para prover proteção ao indivíduo. Em outras palavras, uma análise mais completa da capacidade econômica do idoso ou da pessoa com deficiência e de sua família passa pelo desenvolvimento de instrumentos de análise melhor elaborados. Fatores como a variação do custo de vida nas diversas regiões do país, as demandas pessoais específicas daqueles que requerem o benefício, a natureza e o valor das despesas da família deveriam ser sopesados na análise. A presença de pessoas em idade escolar ou com baixa escolaridade é exemplo de um fator que deveria ser levado em conta na avaliação socioeconômica, pois indica a necessidade de algum grau de investimento em formação. Da mesma maneira, a adequabilidade de condições de moradia, alimentação, acesso à saúde etc. interfere na maior ou menor vulnerabilidade social. Uma alternativa ao atual critério seria a reunião dessas e de outras variáveis para compor um índice apto a demonstrar a situação socioeconômica individual e familiar de cada interessado na obtenção do benefício assistencial243. A criação de um índice evitaria que situações de necessidade ensejadoras do benefício assistencial fossem identificadas exclusivamente em função da renda per capita244. Da mesma forma, evitaria subjetivismos e arbitrariedade no exame das hipóteses de concessão do benefício. 243 A proposta de criação desse índice é fruto de maior reflexão e busca de parâmetros racionais e objetivos para lidar com a questão em exame, representando, pois, uma análise mais detida e cuidadosa em contraste com afirmação mais singela apresentada em trabalho anterior, no sentido de que “mais adequado seria a adoção de metodologias de avaliação que contemplassem variáveis como as necessidades específicas do idoso ou da pessoa com deficiência que solicita o benefício, o custo de vida nas diversas cidades brasileiras” (SALES, 2011, p. 23). 244 A título de comparação, recorda- se que o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH foi concebido para permitir que o exame do nível de desenvolvimento de uma população não se restringisse ao exame de riqueza econômica. Ainda que não deixe de representar uma forma simplificada de analisar uma determinada sociedade, a pluralidade de variáveis que compõem o índice favorece a compreensão dessa sociedade de forma mais aprofundada do que a análise meramente econômica, frequentemente ancorada no Produto Interno Bruto – PIB. Cf. informações disponíveis em: <http://www.pnud.org.br/idh/>. Acesso em: 22 dez. 2011. 223 Para que essa proposta pudesse avançar, porém, seria relevante a expansão dos CRAS e CREAS, a valorização dos profissionais do serviço social e a consolidação de bancos de dados com informações dos cidadãos atendidos pela rede socioassistencial, de modo a se obterem subsídios para a realização dessa forma de avaliação. Já no tocante à identificação da família, propõe-se também a adoção de outro critério. Como ponto de partida, seria adequado tomar a definição de família contida na Lei n. 10.836/04, que instituiu o Programa Bolsa Família, a saber: “unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se mantém pela contribuição de seus membros” (art. 2º, § 1º, I). A esse núcleo, deveriam ser agregadas as pessoas que, embora vivendo em outros domicílios, têm dever de alimentos para com o requerente do benefício. A partir dessa conjugação, ter-se-ia um diagnóstico mais preciso sobre a capacidade de uma determinada família assegurar o atendimento das necessidades de seus membros. 4.2.5.1.1.5 Manutenção, suspensão e cessação do benefício assistencial de prestação continuada A concessão do benefício de prestação continuada é ato administrativo vinculado. Sua concessão depende da demonstração dos requisitos previstos em lei, expostos nos tópicos anteriores. Sua manutenção, da mesma maneira, depende da persistência das condições que ensejaram a concessão do benefício. Nesse diapasão, dispõe o artigo 21 da LOAS que a continuidade das condições que deram origem ao benefício devem ser revistas a cada dois anos. Ocorrendo a superação dessas condições ou em caso de morte do titular, o benefício cessa (art. 21, § 1º). Além disso, o benefício será cessado se constatada irregularidade em sua concessão – o que decorre do princípio da legalidade e da natureza vinculada do ato administrativo de concessão – ou em sua utilização (art. 21, § 2º). A irregularidade na utilização do benefício não é definida na LOAS nem no Decreto n. 6.214/07. O Decreto prevê a cessação do benefício por irregularidade em sua concessão ou manutenção, sem definir o que se considera “irregularidade em 224 utilização”. Como o benefício de prestação continuada não exige contrapartidas, não pode haver ingerência na forma de utilização desse rendimento por seu titular, sob pena de se ferir o princípio de respeito à autonomia do cidadão (LOAS, art. 4º, III). Também no que tange à manutenção e cessação do benefício, verifica-se que as últimas alterações da LOAS tendem a atenuar a dinâmica que, ao invés de reduzir, acaba por aumentar a dependência de muitas pessoas em relação à assistência social. O artigo 21 passou a prever, em seu § 3º, que “o desenvolvimento das capacidades cognitivas, motoras ou educacionais e a realização de atividadesnão remuneradas de habilitação e reabilitação, entre outras, não constituem motivo de suspensão ou cessação do benefício da pessoa com deficiência”. Além disso, seu § 4º, com redação dada pela Lei n. 12.470/11, estabelece que a cessação do benefício concedido à pessoa com deficiência não impede nova concessão do benefício, desde que presentes os requisitos previstos em regulamento. No curto tempo em que vigeu com redação conferida pela Lei n. 12.435/11, esse parágrafo previa que tal possibilidade seria assegurada inclusive quando a cessação fosse motivada pelo ingresso no mercado de trabalho. No entanto, a supressão da expressão “inclusive em razão do seu ingresso no mercado de trabalho” não altera o sentido da norma. O novo artigo 21-A prevê a suspensão do benefício pelo desempenho de atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual. Ao mesmo tempo, cria mecanismos para que titulares de benefício assistencial transitem para o mercado de trabalho com mais segurança, dispondo em seu parágrafo primeiro que: § 1º Extinta a relação trabalhista ou a atividade empreendedora de que trata o caput deste artigo e, quando for o caso, encerrado o prazo de pagamento do seguro-desemprego e não tendo o beneficiário adquirido direito a qualquer benefício previdenciário, poderá ser requerida a continuidade do pagamento do benefício suspenso, sem necessidade de realização de perícia médica ou reavaliação da deficiência e do grau de incapacidade para esse fim, respeitado o período de revisão previsto no caput do art. 21. Note-se que o dispositivo trata da suspensão do benefício e não de sua cessação, o que permite às pessoas compreendidas na hipótese prevista nesse parágrafo voltarem a receber o benefício sem ter de demonstrar novamente o preenchimento dos requisitos. 225 4.2.5.1.2 Benefícios eventuais Na redação original da LOAS, o artigo 22 fazia referência ao pagamento de benefícios assistenciais de natureza eventual. Sua concessão deveria estar atrelada aos eventos nascimento ou morte de integrantes de famílias com renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo. Além dessas hipóteses, facultava-se a instituição de outros benefícios eventuais para atender situações de vulnerabilidade temporária e calamidade pública. Aparentemente benéficas, essas previsões foram aplicadas de forma prejudicial a muitos cidadãos no início de vigências da LOAS. Isso porque, até 1993, os benefícios eventuais tinham natureza previdenciária e eram custeados com os recursos arrecadados na forma do Plano de Custeio da Seguridade Social, destinados à Fazenda Federal. A mudança de natureza jurídica e ente mantenedor promovida pela LOAS, contudo, não foi acompanhada por mudanças na arrecadação. Assim, o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS e, posteriormente, a União continuaram arrecadando as verbas que antes eram destinadas ao custeio de benefícios eventuais, mas sem o dever de fazê-lo. Estados, Distrito Federal e Municípios, por sua vez, receberam a incumbência de pagar esses benefícios, mas não a correspondente fonte de custeio. Em tese, o atendimento à população não seria prejudicado. O artigo 40 da LOAS previu uma transição entre os regimes, além de determinar que “a transferência dos beneficiários do sistema previdenciário para a assistência social deve ser estabelecida de forma que o atendimento à população não sofra solução de continuidade”245. No entanto, isso não ocorreu. O Decreto n. 1.744, de 08 de dezembro de 1995, extinguiu o auxílio-natalidade, o auxílio-funeral e a renda mensal vitalícia a partir de 01 de janeiro de 1996 (art. 39). De outro lado, os benefícios eventuais devidos em razão dos eventos nascimento e morte não foram regulamentados, como também não existiram iniciativas visando à criação de outros benefícios eventuais (BOSCHETTI, 2003, p. 89). 245 A disposição constou tanto do parágrafo único do artigo 40, em sua redação original, quanto do parágrafo primeiro desse dispositivo após a alteração promovida pela Lei n. 9.711, de 20 de novembro de 1998. 226 A simples constatação de que um decreto determinou a extinção de benefício previsto em lei ordinária demonstra a inconstitucionalidade da medida. A corroborar essa assertiva, frisa-se que, em 10 de dezembro de 1997, a Lei n. 9.528 alterou a redação da Lei n. 8.213/91, novamente prevendo a extinção desses benefícios, desta vez por norma de mesma hierarquia. Essa observação revela a forma pouco técnica com que temas atinentes à assistência social foram tratados mesmo após a Constituição Federal. Atualmente, por força das alterações de 2011, o artigo 22 define benefícios eventuais não apenas como “pagamentos”, mas como “provisões suplementares e provisórias que integram organicamente as garantias do SUAS”. Com algumas alterações de redação, foram mantidas as quatro hipóteses de concessão previstas desde 1993 – nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade pública – e foi suprimido o critério da renda per capita inferior a um quarto de salário mínimo. Ao contrário do benefício de prestação continuada, esses benefícios são instituídos e custeados por Estados, Distrito Federal e Municípios, com base em parâmetros fixados por seus Conselhos de Assistência Social (art. 22, § 1º). No âmbito federal, o CNAS apenas pode propor a instituição de benefícios subsidiários no valor de até um quarto de salário mínimo por criança de até 6 anos de idade (art. 22, § 2º). Nesta hipótese, os benefícios são inacumuláveis com os pagamentos decorrentes do Programa Bolsa Renda e do Auxílio Emergencial Financeiro, instituídos, respectivamente, pelas Leis n. 10.458/02 e n. 10.954/04 (art. 22, § 3º). 4.2.5.2 Serviços assistenciais O artigo 23 da LOAS define serviços assistenciais como atividades continuadas que visem à melhoria de vida da população, com ações voltadas para o atendimento de necessidades básicas, e que observem os parâmetros da LOAS. A disciplina desses serviços deve ser feita em regulamento (art. 23, § 1º). De antemão, porém, são indicados dois grupos que necessariamente devem ser atendidos na organização desses serviços: crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, bem como pessoas vivendo em situação de rua (art. 23, § 2º). 227 4.2.5.3 Programas de assistência social Os programas de assistência social estão previstos no artigo 24 da LOAS como “ações integradas e complementares com objetivos, tempo e área de abrangência definidos para qualificar, incentivar e melhorar os benefícios e os serviços assistenciais”. O que se depreende dessa definição é a finalidade de atendimento às situações de necessidade social que exijam intervenção mais intensa, potencializando-se o resultado de benefícios e serviços. Cabe aos Conselhos de Assistência Social definir esses programas, que devem atender a duas diretrizes: a prioridade para a inserção profissional e social (§ 1º) e, no caso dos programas voltados aos idosos e pessoas com deficiência, a articulação com o benefício de prestação continuada (§ 2º). 4.2.5.3.1 Programas de assistência social desenvolvidos entre a promulgação da LOAS e a aprovação da PNAS/2004 A partir de 1996, e com mais intensidade a partir do ano 2000, houve um incremento de programas de assistência social. Boschetti (2003, p. 90)246 registra o surgimento de três novos programas entre 1996 e 1998. O primeiro deles foi o programa “Brasil Criança Cidadã”, que vigeu entre 1996 e 1999. O segundo foi o “Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI”, instituído em 1996 e atualmente incorporado ao texto da LOAS, com alterações de regramento em relação à disciplina original. O terceiro foi o programa “Sentinela”, instituído em 1997 e destinado ao Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Ainda em 1997, a Lei n. 9.533 autorizou a União a conceder apoio financeiro aos Municípios que instituíssem programas de garantia de renda mínima associados a 246 A principal referência bibliográfica em relação ao período de 1996 a 2002 é o trabalho de Boschetti (2003), que analisou a Política de Assistência Social implementada pelo governo do período 1994-2002. 228 ações socioeducativas247. Regulamentado pelo Decreto n. 2.609, de 02 de junho de 1998, e posteriormente pelo Decreto n. 3.117, de 13 de julho de 1999, previu-se que os recursos orçamentários destinados a esse apoio seriam alocados no FNAS. A concessão desse apoio, contudo, era feita por meio do Ministério da Educação e do Desporto e, segundo Boschetti (2003, p. 91), “suas diretrizes nunca foram submetidas ao Conselho Nacional de Assistência Social”. O programa criado pela Lei n. 9.533/97 foi substituído pelo outro Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação – “Bolsa Escola”, criado pela Medida Provisória n. 2.140, de 13 de fevereiro de 2001, a qual foi reeditada pela Medida Provisória n. 2.140-1, de 14 de março de 2001 e convertida na Lei n. 10.219, de 11 de abril de 2001248. A partir de então, seu financiamento passou a seu feito pelo Fundo de Erradicação e Combate à Pobreza (BOSCHETTI, 2003, p. 91). Boschetti (2003, p. 91) registra que a partir de 2000, com a aprovação do Plano Plurianual de 2000-2003, a condução desses programas passou por mudanças. Criou-se o Projeto Alvorada, que focaliza sua atuação em locais de menor Índice de Desenvolvimento Humano – IDH. Também em 2000, o Programa Brasil Jovem foi implantado, com o desenvolvimento de Centros da Juventude e do projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social. Boschetti (2003, p. 90-91) explica que o projeto Agente Jovem consistia em um programa de transferência de renda, custeado com recursos do FNAS, que visava capacitar jovens “agentes sociais” em suas comunidades. Entre os requisitos para a seleção dos beneficiários estava a renda per capita familiar de até meio salário mínimo por mês. 247 Entre as regras que pautavam esse apoio financeiro, previu-se que os recursos federais seriam destinados às famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo (Lei n. 9.533/97, art. 5º, I). Para tanto, definiu-se família como “unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e mantendo sua economia pela contribuição de seus membros”. 248 Gerido pelo Ministério da Educação, o programa constitui “instrumento de participação financeira da União em programas municipais de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas” (art. 1º, § 1º). O apoio financeiro prestado pela União compreendia o pagamento à família beneficiária do valor de R$ 15,00 (quinze reais) mensais por criança, até o limite de três crianças por família (art. 4º). As famílias, cuja definição era igual à contida na Lei n. 9.533/97, deveriam ter renda per capita mensal inferior ao valor fixado por ato do Poder Executivo. 229 4.2.5.3.2 Programas de transferência de renda paralelos à política de assistência social Paralelamente, desenvolveram-se programas que, embora compatíveis com a definição de assistência social, não foram vinculados a essa política e, portanto, não seguiam as diretrizes da LOAS. O primeiro deles foi o Bolsa Alimentação, criado pela Medida Provisória n. 2.206-1, de 06 de setembro de 2001. Vinculado às ações de saúde (art. 1º), o Bolsa Alimentação visava à “promoção das condições de saúde e nutrição de gestantes, nutrizes e crianças de seis meses a seis anos e onze meses de idade, mediante a complementação da renda familiar para melhoria da alimentação” (art. 2º) ou desde o nascimento em caso de filhos de mães soropositivas (art. 3º, caput e § 1º). Dirigido às famílias249 com renda per capita inferior ao limite fixado em ato do Poder Executivo, o programa consistia em um pagamento mensal de R$ 15,00 por beneficiário, até o limite de R$ 45,00 por família beneficiada (art. 4º)250. Em 28 de dezembro de 2001, o artigo 5º da Medida Provisória n. 18, convertida na Lei n. 10.453/02, criou o programa Auxílio-Gás. Regulamentado pelo Decreto n. 4.102/02 e coordenado pelo Ministério de Minas e Energia, o programa consistia na concessão de subsídio de R$ 7,50 ao preço do gás liquefeito de petróleo – GLP para famílias de baixa renda. Para efeito de acesso a esse subsídio, estabelecia-se como requisito a renda per capita não superior a meio salário mínimo. O Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA foi instituído pela Medida Provisória n. 108, de 27 de fevereiro de 2003, convertida na Lei n. 10.689, de 13 de junho de 2003, e visava “ao combate à fome e à promoção da segurança alimentar e nutricional” (art. 1º). Por meio desse programa famílias em situação de insegurança alimentar recebiam um pagamento mediante cartão unificado ou alimentos em espécie (art. 1º, § 2º). A lei estabeleceu ainda que o público-alvo do programa seriam destinados às famílias251 249 Para aferição da renda, família foi definida como “unidade nuclear formada pelos pais e filhos, ainda que eventualmente possa ser ampliada por outros indivíduos com parentesco, que forme grupo doméstico vivendo sob a mesma moradia e que se mantenha economicamente com renda dos próprios membros”. 250 Esse valor é passível de alteração por ato do Poder Executivo mediante “disponibilidade orçamentária para tal fim” (art. 4º, § 2º). 251 Nessa lei, compreende-se por família a “unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e mantendo sua economia pela contribuição de seus membros” (art. 2º, § 3). 230 com renda per capita inferior a meio salário mínimo (art. 2º, § 2º), excluindo-se do cálculo rendimentos provenientes do próprio PNAA, do Bolsa Alimentação e do Bolsa Escola. Chama a atenção na Lei n. 10.689/03 a previsão de que “a concessão do benefício do PNAA tem caráter temporário e não gera direito adquirido” e a ampla competência conferida ao Poder Executivo para regulamentar o programa, fixando inclusive o valor das prestações. Com isso, ao invés de estabelecer as hipóteses de concessão, manutenção e cessação do benefício, criou-se uma previsão inespecífica que reforça o caráter ad hoc das ações socioassistenciais e retira as garantias do cidadão. Por meio da Medida Provisória n. 132, de 20 de outubro de 2003, convertida na Lei n. 10.836, de 09 de janeiro de 2004, o Programa Bolsa Família foi instituído. Tratase de programa intersetorial, que estabeleceu transferência de renda252 com condicionalidades e unificou procedimentos de gestão e execução das ações de transferência de renda do Governo Federal. Tido atualmente como maior programa de transferência de renda do mundo (SILVA; LIMA, 2010, p. 28), a unificação proposta pelo programa abrangeu os programas Bolsa Escola, PNAA, Bolsa Alimentação e Auxílio-Gás; posteriormente, houve integração do PETI ao Bolsa Família (SILVA; LIMA, 2010, p. 34). 4.2.5.3.3 Uma avaliação dos programas de assistência social antes da PNAS/2004 Os programas desenvolvidos entre a promulgação da LOAS e a aprovação da PNAS revelam que, durante a última década, houve uma dinamização das ações de assistência social com significativa expansão dos programas de transferência de renda. 252 O Programa Bolsa Família prevê uma modalidade de benefício básico e duas modalidades de benefícios variáveis, concedidos em conformidade com a composição da unidade familiar beneficiária (art. 2º). Para efeito de aferição da situação de necessidade adota-se o critério da renda per capita familiar, entendendo-se por família “a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se mantém pela contribuição de seus membros” (art. 2º, § 1º, I). Citando uma palestra proferida por Eduardo Picarelli, Fortes (2009, p. 260) ressalta que a definição de família prevista nesse programa é mais abrangente e mais explícita quanto às pessoas que podem ser consideradas integrantes do núcleo familiar, permitindo inclusive o cômputo de pessoas que possuam laços de afinidade. A autora registra duas críticas feitas por Eduardo Picarelli a esse conceito: a exigência de coabitação e o não reconhecimento expresso do parentesco socioafetivo. 231 No entanto, sobretudo até a criação do Programa Bolsa Família253, a dispersão dessas ações é bastante evidente. Particularmente grave é a existência de políticas de transferência de renda desvinculadas da assistência social e distanciadas dos parâmetros previstos na LOAS. Essa dispersão não se reflete apenas no maior ou menor prestígio das políticas claramente afetas à assistência social; afeta também os custos operacionais e a capacidade do Poder Público de conhecer melhor os beneficiários desses programas, essencial para que a proteção social seja corretamente direcionada para as necessidades sociais. Ainda sobre o aspecto organizacional, ressalta-se que o Governo Federal concentrou o papel de definidor das ações. Analisando o período de 1994 a 2002, Boschetti (2003, p. 93) aponta que “a relação que se estabelece entre a União e os entes federados (Municípios e Estados) é de agente financiador e definidor de ações, enquanto o poder local assume a tarefa de executor”. Quanto aos destinatários dos programas, nota-se ainda a persistência da extrema focalização. Programas como PETI, Agente Jovem, Sentinela e PNAA alcançaram apenas as pessoas já expostas a alguma situação de necessidade social, especialmente crianças e adolescentes, sem atuação preventiva. Ademais, a exigência de demonstração da renda per capita dentro dos limites previstos para cada programa e a delimitação territorial de muitos deles restringe mais ainda o número de cidadãos beneficiados. Quanto às proteções afiançadas predominam as prestações em dinheiro e a oferta de prestações ínfimas. São esses pagamentos diretos aos beneficiários que inauguram o sistema de “bolsas” que se faz muito presente nas políticas sociais brasileiras. Por um lado, esses pagamentos representam um avanço na medida em que prestigiam a autonomia dos destinatários, levam em conta suas necessidades de consumo e propiciam melhora imediata de suas condições de vida. Por outro lado, as 253 Apesar do avanço promovido pelo Programa Bolsa Família – e lembrando que a unificação de programas sociais já é, por si só, uma conquista em matéria de política social – há pontos fundamentais ainda não superados que obstam o êxito do programa e que repetem os aspectos negativos que vêm marcando as políticas brasileiras de enfrentamento da pobreza e atendimento de necessidades sociais básicas. Com base em Silva e Lima (2010, p. 34-36), esses aspectos podem ser assim resumidos: (a) pouca integração com outros programas sociais, além daqueles já mencionados, especialmente com os programas estaduais e municipais; (b) fragmentação da pobreza, mediante classificação de famílias em pobres e extremamente pobres em função apenas da renda per capita; (c) inexistência de alterações significativas na condição de vida das famílias, dada a insuficiência dos valores transferidos; (d) articulação insatisfatória entre a transferência monetária e a participação de seus membros em programas estruturantes; (e) ausência de melhora significativa na oferta de ensino e na saúde, “aspectos fundamentais que configuram a dimensão estruturante do Bolsa Família” (SILVA; LIMA, 2010, p. 36). 232 medidas não vão muito além da monetarização da assistência, o que reduz as perspectivas de transformar as estruturas que produzem as vulnerabilidades a serem combatidas. A despeito das falhas apontadas, a expansão desses programas foi essencial para que a política de assistência social começasse a caminhar no país. A criação das “bolsas”, conquanto insuficientes como medidas de proteção social, favoreceu o amadurecimento das discussões sobre as garantias de renda mínima. Essas experiências foram essenciais para a formulação da PNAS/2004 e para a reforma da LOAS em 2011. 4.2.5.3.4 Os programas de assistência social na atual redação da LOAS Atualmente – e sem prejuízo de outros programas que venham ser instituídos – a LOAS prevê três programas específicos, a saber: Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF; Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos – PAEFI; Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI. Todos esses programas constam de dispositivos da Lei n. 12.435/11. Nos termos do artigo 24-A, o PAIF integra a proteção social básica. Dirige-se às famílias em situação de vulnerabilidade social e tem função preventiva, visando evitar a ruptura de vínculos familiares e a violência dessas relações. O trabalho desenvolvido junto a essas famílias visa promover a convivência familiar, prevenindo situações de isolamento. De outro giro, o PAEFI, previsto no artigo 24-B, prevê a intervenção em situações de necessidade mais acentuada, constituindo uma forma de proteção social especial. Esse programa é voltado para famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos, escopo que demanda um trabalho social mais presente no cotidiano das pessoas atendidas. As medidas, nesse caso, não se resumem à promoção de convivência; consistem em apoio, orientação e acompanhamento. A intersetorialidade se faz nítida na previsão de articulação dos serviços socioassistenciais com outras políticas públicas e com órgãos do sistema de garantia de direitos. Finalmente, o PETI, previsto no artigo 24-C, visa coibir a exploração do trabalho de crianças e adolescentes. Criado em 1997, e tendo sofrido algumas alterações, esse programa integra a PNAS/2004 e compreende transferências de renda, 233 trabalho social junto às famílias e oferta de serviços socioeducativos. Com essas ações, pretende-se retirar da situação de trabalho crianças e adolescentes com menos de 16 anos, ressalvada a situação do aprendiz. Dadas as circunstâncias familiares e sociais que ensejam o precoce ingresso no mercado de trabalho e as consequências desse ingresso na vida de crianças e adolescentes, a intersetorialidade do programa é indispensável para sua efetividade, conclusão a que se chegaria independentemente da previsão legal. Prevê-se ainda que o PETI tem abrangência nacional e deve ser desenvolvido por todos os entes federativos, com participação da sociedade civil (art. 24-C, § 1º). A lei prevê ainda a identificação das crianças e adolescentes em situação de trabalho para a composição do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, o que é fundamental para viabilizar a proteção pretendida (art. 24-C, § 2º). 4.2.5.4 Projetos de enfrentamento da pobreza Nos termos do artigo 25 da LOAS, projetos de enfrentamento da pobreza “compreendem a instituição de investimento econômico social nos grupos populares, buscando subsidiar, financeira e tecnicamente, iniciativas que lhes garantam meios, capacidade produtiva e de gestão para melhoria das condições gerais de subsistência, elevação do padrão da qualidade de vida, a preservação do meio-ambiente e sua organização social”. Esses projetos pressupõem intersetorialidade e envolvimento de diferentes atores, tanto é assim que o artigo 26 da LOAS estabelece que “o incentivo a projetos de enfrentamento da pobreza assentar-se-á em mecanismos de articulação e de participação de diferentes áreas governamentais, não governamentais e da sociedade civil”. 4.2.6 Financiamento da assistência social No capítulo anterior, verificou-se que o financiamento da assistência social se faz com recursos provenientes do orçamento da seguridade social, observadas as 234 restrições do artigo 167, inciso XI, da Constituição Federal, e de fontes de custeio adicionais. Verificou-se ainda que Estados e Distrito Federal podem vincular até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida a programas de apoio à inclusão e promoção social, observadas as restrições contidas no artigo 204 da Constituição Federal. Na esteira dessa previsão constitucional, a LOAS estabelece que o financiamento da assistência social é feito com recursos dos entes federados, com as contribuições sociais previstas no artigo 195 da Constituição Federal e com recursos do FNAS (art. 28). O FNAS – resultante da transformação do Fundo Nacional de Ação Comunitária – FUNAC – é gerido pelo MDS, sob supervisão dos Conselhos de Assistência Social. Seus recursos destinam-se à operacionalização, prestação, aprimoramento e viabilização dos serviços, programas, projetos e benefícios da política de assistência social (art. 28, § 3º). Para a formação desse capital, concorrem os aportes feitos por todos os entes federativos e o produto da venda de bens da extinta LBA. Por parte da União, o artigo 29 da LOAS autoriza uma bipartição: os recursos destinados ao pagamento do benefício de prestação continuada podem ser repassados diretamente pelo Ministério da Previdência Social ao INSS, ao passo que os demais aportes financeiros destinados à assistência social devem ser automaticamente repassados ao FNAS. O cofinanciamento das atividades desenvolvidas no SUAS é feito por transferências automáticas entre os fundos de assistência social e mediante alocação de recursos dos próprios entes em seus respectivos Fundos de Assistência Social (art. 30-A). Os entes federados devem se valer de seus respectivos órgãos de controle para fiscalizar e monitorar a aplicação dos recursos de seu respectivo Fundo de Assistência Social (art. 30-B). Além disso, todos aqueles que efetuam transferências de recursos podem requisitar informações relativas à aplicação do montante proveniente de seu fundo de assistência social e avaliar sua utilização (art. 30-C, p.ú.). O tema dos repasses de verbas aos Estados, Distrito Federal e Municípios é de extrema importância. A forma como o repasse ocorre contribui para a adesão desses entes às estratégias da política que se quer implantar. Ademais, a adoção de critérios racionais e objetivos para essas transferências é essencial para que a política se desenvolva com eficiência e pautada por critérios isonômicos. Nesse sentido, o artigo 12-A prevê que o apoio financeiro prestado pela União ao aprimoramento da assistência social será guiado pelo Índice de Gestão 235 Descentralizada – IGD do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Esse índice visa: (a) medir os resultados da gestão descentralizada do SUAS, com base na atuação do gestor estadual, municipal e do Distrito Federal e na articulação intersetorial da política de assistência social; (b) fomentar resultados qualitativos na gestão estadual, municipal e do Distrito Federal do SUAS; e (c) calcular o montante de recursos a serem repassados aos entes federados a título desse apoio financeiro. O artigo 30-C, a seu turno, obriga os entes destinatários de recursos federais a apresentar ao CNAS relatório de gestão, com periodicidade anual, comprovando a execução das ações na forma de regulamento e autoriza os entes transferidores a requisitarem informações sobre a aplicação dos recursos por eles transferidos. Há clara intenção de aprimorar qualitativamente a assistência social em âmbito local e regional, nos moldes previstos na Constituição Federal e em consonância com a PNAS. Para tanto, prevê-se que, visando ao fortalecimento dos Conselhos de Assistência Social dos Estados, Municípios e Distrito Federal, parte dos recursos transferidos pela União será gasto com atividades de apoio técnico e operacional a esses colegiados, vedando-se o emprego desses recursos no pagamento de pessoal efetivo e de gratificações de qualquer natureza a servidor público (art. 12-A, § 4º). Os repasses aos Municípios, aos Estados e ao Distrito Federal são condicionados ao efetivo funcionamento de um Conselho de Assistência Social, de composição paritária entre governo e sociedade civil; à existência de um Fundo de Assistência Social, sob orientação e controle do respectivo Conselho de Assistência Social; à existência de Plano de Assistência Social; à comprovação orçamentária de que Estados, Distrito Federal e Municípios fazem suas próprias dotações de recursos para a Assistência Social, alocando-as em seus respectivos Fundos de Assistência Social. Essas previsões, contidas no artigo 30 da LOAS, representam a concretização dos artigos 23, inciso II, 194, inciso VII, e 204, inciso II, da Constituição Federal. Por fim, registra-se que os recursos do cofinanciamento do SUAS podem ser aplicados no pagamento dos integrantes das equipes de referência que executam as ações continuadas de assistência social (art. 6-E). Para tanto, cabe ao MDS estipular os percentuais que poderão ser empregados com este fim. A previsão favorece a valorização dos profissionais da assistência social e sua qualificação para melhor desempenho de suas atribuições. 236 4.3 A Medida Provisória n. 813/1995 No dia 01 de janeiro de 1995 foi editada a Medida Provisória n. 813, dispondo sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios. Essa reforma administrativa interferiu negativamente no desenvolvimento da assistência social por duas razões. A MP n. 813/1995 extinguiu os órgãos e entidades que, naquele momento, poderiam dar suporte à efetivação da política de assistência social: a LBA e o Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência – CBIA (art. 19, I). Tanto a LBA quanto o CBIA estavam vinculados ao Ministério do Bem-Estar Social, igualmente extinto (art. 19, II). Criou-se então a Secretaria de Assistência Social, vinculada ao Ministério da Previdência e Assistência Social (art. 16, XIII, h), que deveria absorver as atribuições em matéria de assistência social. Por força dessa reorganização – e muito embora as críticas à atuação da LBA pudessem justificar uma mudança radical nos órgãos responsáveis pela assistência social –, a gestão da assistência social acabou por ficar prejudicada. As ações assistenciais em curso foram desorganizadas (RAICHELIS, 2011, p. 108), criando-se um “vácuo na área da assistência social”, com manutenção de apenas alguns serviços e projetos (BOSCHETTI, 2003, p. 90). Além disso, essa Medida Provisória foi responsável pela instituição do Programa Comunidade Solidária, que ocupou um espaço que caberia à LOAS e não atentou para as diretrizes desta lei254. O Programa Comunidade Solidária era vinculado à Presidência da República e tinha por objetivo “coordenar as ações governamentais visando o atendimento da parcela da população que não dispõe de meios para prover suas necessidades básicas, em especial o combate à fome e à pobreza” (art. 12). Previu-se ainda que a existência de um Conselho do Programa Comunidade Solidária, com composição e competências estabelecidas pelo Poder Executivo (art. 12, p.ú.). Dispondo sobre o Programa Comunidade Solidária, o Decreto n. 1.366, de 12 de janeiro de 1995, reiterou o objetivo do programa, conferindo especial atenção às ações 254 Uma sucinta menção ao Programa Comunidade Solidária como um movimento em sentido contrário à LOAS também consta de trabalho anterior de mesma autoria (cf. SALES, 2011, p. 11). 237 governamentais “nas áreas de alimentação e nutrição, serviços urbanos, desenvolvimento rural, geração de emprego e renda, defesa de direitos e promoção social”. Esse Decreto previu ainda a existência de um conselho de caráter consultivo, formado por Ministros de Estado, pelo Secretário Executivo do Programa e por 21 membros da sociedade, designados pelo Presidente da República. Sua presidência ficaria a cargo de um dos membros representantes da sociedade, nomeado pelo Presidente da República. As atribuições do conselho são definidas da seguinte forma: Art. 3º Compete ao Conselho do Programa Comunidade Solidária: I - propor e opinar sobre ações prioritárias na área social; II - incentivar na sociedade o desenvolvimento de organizações que realizem, em parceria com o governo, o combate à pobreza e à fome; III - incentivar a parceria e a integração entre os órgãos públicos federais, estaduais e municipais, visando à complementariedade das ações desenvolvidas; IV - promover campanhas de conscientização da opinião pública para o combate à pobreza e à fome, visando à integração de esforços do governo e da sociedade; V - estimular e apoiar a criação de conselhos estaduais e municipais de combate à fome e à pobreza; VI - elaborar seu regimento interno. As diretrizes previstas na LOAS seriam suficientes para a articulação da política de assistência social, abrangendo as medidas de enfrentamento da pobreza e da fome preconizadas pelo Programa Comunidade Solidária. Em vez de concentrar esforços para a implementação da LOAS, optou-se por um paralelismo de ações com ofuscamento desta lei ainda no início de sua vigência. Como bem observa Raichelis (2011, p. 110), reforçou-se “a diluição de competência e a inorganicidade das ações da assistência social, retrocedendo-se em relação aos avanços contidos na Carta Constitucional e na LOAS” e deu-se ensejo ao surgimento de áreas de atritos entre a assistência social e o Comunidade Solidária (RAICHELIS, 2011, p. 113). Foram ainda contrariadas as previsões constitucionais e legais da assistência social, que prestigiam posturas democratizantes e enfatizam a primazia da responsabilidade do Poder Público. Isso porque a presidência do Conselho do Comunidade Solidária foi entregue à Primeira-Dama (RAICHELIS, 2011, p. 107, nota de rodapé 48), exatamente como fizera Getúlio Vargas à época da fundação da LBA. No lugar de um conjunto de instâncias deliberativas criou-se um único conselho de caráter consultivo, com membros nomeados pelo Presidente da República. Dessa forma, fóruns 238 de discussão e deliberação foram enfraquecidos e a representação da sociedade civil restou desprestigiada. O apelo “à integração de esforços do governo e da sociedade”, antes da consolidação dos esforços governamentais, repetiu padrões de atendimento sobejamente criticados em matéria de assistência social. O programa valeu-se da solidariedade entendida como filantropia, procurando sanar graves problemas como fome e pobreza por meio de apelo à ajuda graciosa de alguns segmentos da sociedade e de medidas focalizadas, e não pela afirmação de direitos (RAICHELIS, 2011, p. 111-112). Todos esses pontos são abordados na crítica de Oliveira (RAICHELIS, 2011, Prefácio, p. 17): Não sem razão, a Comunidade Solidária anulou, imediatamente, o CNAS como locus da formulação da assistência social como política pública. [...] A ação da Comunidade Solidária reproduz, ponto por ponto, a trajetória da assistência social na estrutura do Estado brasileiro: assistencialista no pior sentido do termo, fisiológica, clientelista, fonte de corrupção política, e, sobretudo, o nãoreconhecimento dos agentes da assistência social e do serviço social como sujeitos da política. Salta-se por cima das instituições, para realizar a assistência diretamente, numa das características que mais aproximam o neoliberalismo do autoritarismo.[...] Destrói-se a esfera pública não-burguesa, para voltar-se ao modelo tradicional: o projeto e a forma de atuação da Comunidade Solidária são a cara da privatização do Estado na área da assistência social, que corresponde ao lado privatizante que se passa na questão das empresas públicas e na concepção do Estado Mínimo, do Estado clean e lean, cuja lógica de atuação deve ser a mesma das empresas privadas. Na I Conferência Nacional de Assistência Social, duras críticas foram dirigidas ao Comunidade Solidária, com a aprovação de moções de repúdio durante o evento. As críticas se referiam tanto às concepções de assistência social e de enfrentamento da pobreza subjacentes ao Programa255, quanto à forma como se desenvolviam as ações a 255 A moção de repúdio n. 31 afirma que o Programa Comunidade Solidária “rebaixa o cidadão à qualidade de pedinte do Estado e a assistência como benemerência”. As moções de repúdio n. 34 e n. 35 sustentam que esse programa contrariava os princípios fundamentais e deslegitimava as diretrizes da LOAS no tocante à descentralização político-administrativa, ao comando único das ações e à participação da sociedade civil na discussão e formulação de políticas de assistência social. Da mesma forma, a moção de repúdio n. 36 afirma o emprego de mecanismos de exclusão e clientelismo pelo Programa e critica sua base assistencialista, contrária à LOAS. CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Relatório Final da I Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 20 a 23 de novembro de 1995. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/iconferencia-nacional/i-conferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. 239 que o programa se propunha, a exemplo da distribuição de alimentos impróprios para o consumo e entrega de cestas básicas com apenas três gêneros alimentícios256. Esse Programa durou até a instalação do Programa Fome Zero, em 2002, e constituiu um bom exemplo de como a nebulosa relação público-privado na assistência social, presente desde os anos 1930, é apresentada no final do século XX como uma “nova” proposta de ordenação das relações sociais (MESTRINER, 2011, p. 23). Mostra ainda como o estímulo à filantropia e ao voluntariado sempre trazem à baila a ideia de que necessidades sociais se resolvem por meio de solidariedade individual – e não de solidariedade social. Portanto, mesmo sob a égide de normas constitucionais absolutamente diversas, a forma de atenção a essas necessidades pouco se alterou. 4.4 A Política Nacional de Assistência Social de 1998 e as Normas Operacionais Básicas de 1997 e 1998 Por meio da Resolução n. 204, de 04 de dezembro de 1997 veio a lume a Norma Operacional Básica – NOB/1997. A NOB/1997 estabeleceu diretrizes para a organização de um sistema descentralizado e participativo na assistência social. Para tanto, elegeu como estratégia de gestão o estabelecimento de relações intergovernamentais, propondo a formação de Comissão Tripartite para deliberar e pactuar aspectos relativos à gestão da política de assistência social. Foram propostos dois níveis de gestão da assistência social: estadual e municipal (NOB/SUAS 2005, tópico 1). As regras sobre o financiamento da política não constaram da NOB/1997 e sim de documentos à parte. De um lado, disciplinou-se o financiamento de projetos e, de outro, o 256 A moção de repúdio n. 32 menciona que o Estado do Amazonas recebeu do Programa Comunidade Solidária alimentos estragados, como fubá, feijão, bala e arroz com gorgulho, provenientes dos estoques da Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB. Acrescenta-se ainda que esses alimentos “foram considerados inservíveis até para o consumo de animais”. A moção de repúdio n. 33 critica a distribuição de Cestas Básicas pelo Comunidade Solidária, por conter apenas arroz, fubá e macarrão; por ser distribuída sob “vigilância de soldados do Exército, armados ostensivamente”; e por reforçar a “Prefeiturização”, afirmando que os conselhos eram, em sua maioria, “forjados e manipulados pelos Prefeitos”. CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Relatório Final da I Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 20 a 23 de novembro de 1995. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/i-conferencia-nacional/iconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. 240 financiamento de serviços. Porém, não ficaram claras as responsabilidades de cada ente federativo em relação à proteção social a ser provida (NOB/SUAS 2005, tópico 1). Em 16 de dezembro de 1998, mais de uma década após a promulgação da Constituição Federal, a Resolução n. 207 do CNAS aprovou a primeira Política Nacional de Assistência Social – PNAS/1998, na forma preconizada pela LOAS, juntamente com a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB 2/1998257. A PNAS/1998 enunciou o propósito de “efetivar a assistência social como Política Pública de Seguridade Social propondo ações de caráter permanente comprometidas com a construção de uma civilização mais justa e igualitária”. O público atendido de forma prioritária foi definido com base no preenchimento concomitante de dois requisitos. O primeiro deles era a situação de vulnerabilidade decorrente de ciclo de vida ou condição de desvantagem pessoal; o segundo era a situação de pobreza, identificada como renda per capita mensal de até meio salário mínimo. (PNAS/1998, tópico 3). Para Mestriner (2011, p. 248), a PNAS/1998 era “voltada para frações praticamente ‘terminais’ na linha da pobreza”, afirmação correta por se tratar de uma política que só intervinha nas hipóteses em que pobreza e vulnerabilidades estivessem agregadas258. Nesse documento são enfatizadas as estratégias de atuação pautadas pela centralidade da família, entendida como “unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e mantendo sua economia pela contribuição de seus membros”, nos termos do artigo 5º, § 1º, da Lei n. 9.533/97. Além de previsões específicas de atendimento a crianças, adolescentes, idosos e pessoa com deficiência, foram previstos programas de transferência de renda e projetos de enfrentamento da pobreza. Por fim, foram definidas as competências dos entes federativos e das instâncias de controle social. Entre as diretrizes, menciona-se o “estreitamento da parceria entre Estado e organizações de assistência social da Sociedade Civil” (PNAS/1998, 257 A Resolução n. 207, de 16 de dezembro de 1998, contendo a PNAS e a NOB em seus anexos, foi publicada no Diário Oficial em 18 de dezembro de1998 e, em razão de omissões, republicada no Diário Oficial de 16 de abril de 1999, suplemento ao n. 72, Seção 1, p. 1-15. Neste trabalho, consultou-se a segunda publicação. 258 Ainda assim, o público destinatário da intervenção socioassistencial foi identificado por um critério de renda menos rígido do que o fixado para concessão do benefício de prestação continuada (LOAS, art. 20). 241 Diretrizes). A aproximação com a sociedade civil, que não representa nenhuma novidade em matéria de assistência social, justifica a crítica de Mestriner (2011, p. 248) a respeito da falta de critérios transparentes e democráticos na articulação entre instâncias governamentais e não governamentais. A NOB 2, por sua vez, tratou das estratégias, princípios e diretrizes para a implementação da PNAS/1998, retomando alguns aspectos da NOB/1997. Esse documento propôs a habilitação de Municípios, Estados e Distrito Federal para o exercício da gestão descentralização da assistência social. Além disso, previu a instituição de espaços permanentes de negociação e pactuação, consistentes em Comissão Intergestores Tripartite e Comissão Intergestores Bipartite (NOB 2, tópico 2). Para o financiamento de serviços assistenciais, adotou-se o sistema de transferências automáticas, mantendo-se o financiamento ad hoc para programas e projetos (NOB 2, tópicos 1.2 e 1.3). 4.5 A Política Nacional de Assistência Social de 2004 A Resolução n. 145, de 15 de outubro de 2004, do CNAS aprovou nova Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004. O texto final partiu da versão preliminar apresentada pelo MDS/SNAS ao CNAS em 23 de junho de 2004, e passou por debates e deliberações na Reunião Descentralizada e Participativa do CNAS, no período de 20 a 22 de setembro de 2004, ocasião em que foi aprovada por unanimidade. A aprovação da PNAS/2004 representa uma grande conquista democrática da assistência social259, pois sua elaboração contou com a efetiva participação dos entes federativos e da sociedade civil, como se extrai do registro abaixo: O processo de aprovação da PNAS e da NOB-SUAS deve ser destacado pelo caráter democrático e pela preocupação com a 259 Para que se tenha a dimensão dessa conquista, deve-se recordar a ausência de espaços democráticos de elaboração de políticas sociais antes da Constituição Federal de 1988, a forma de composição e o caráter consultivo do Conselho do Programa Comunidade Solidária, bem como o aumento do intervalo entre as Conferências Nacionais de Assistência Social – na redação original da LOAS, a periodicidade da convocação ordinária para essas Conferências era bienal e passou a ser quadrienal a partir da Lei n. 9.720/98 (LOAS, art. 18, VI). 242 construção de um federalismo cooperativo. Os documentos foram inicialmente elaborados pela equipe da Secretaria Nacional de Assistência Social do MDS, submetidos à consulta pública e objeto de dezenas de contribuições de representações dos governos estaduais e municipais e da sociedade civil, discutidos em inúmeros debates e reuniões descentralizadas pelo país, sistematizado e submetido à aprovação do CNAS. O sistema foi organizado de modo que valoriza a adesão e a capacidade de gestão dos Estados e Municípios e o papel dos conselhos (que obrigatoriamente devem ser paritários entre governo e sociedade civil) que ganham centralidade na aprovação do financiamento (e da prestação de contas dos recursos utilizados) da área (STUCHI, 2010, p. 164-165). Essa política proporcionou diversos ganhos em termos de aprofundamento e sistematização da assistência social. Em seu bojo, foram identificados princípios, diretrizes e objetivos da assistência social, bem como os beneficiários e as proteções afiançadas. Além disso, estabeleceu-se que os elementos necessários à execução dessa política devem ser ordenados sob a forma de Sistema Único de Assistência Social, observando-se padrões normatizados de serviço, atendimento e divulgação, aplicação de indicadores de avaliação e adoção de eixos estruturantes comuns por todos os órgãos e agentes envolvidos, incluindo novas bases na relação com a sociedade civil. Coube à PNAS/2004 a afirmação de que o SUAS deveria atentar para três referências: proteção social, vigilância social e defesa social e institucional. Essas três funções foram incorporadas ao texto da LOAS em 2011 sob a forma de objetivos, conforme explanação anterior (cf. supra 4.2.4.2 Proteção social, defesa de direitos e vigilância socioassistencial na LOAS). Não é caso de repetir as considerações já apresentadas, mas sim de destacar que a PNAS/2004 detalhou as seguranças que devem ser garantidas por meio da proteção social. Extrai-se desse documento que a proteção social deve afiançar a segurança social em três dimensões: sobrevivência, acolhida e convívio. Isso significa que a assistência social, como política de proteção social não contributiva, deve intervir para prevenir ou reparar situações que digam respeito à perda de meios de sobrevivência, ao abandono ou ao isolamento. A segurança de sobrevivência traduz-se em segurança de rendimentos e autonomia. A segurança de rendimentos designa a “garantia de que todos tenham uma forma monetária de garantir sua sobrevivência, independentemente de suas limitações para o trabalho ou do desemprego” (PNAS/2004, tópico 2). A autonomia reforça a ideia 243 de que as prestações socioassistenciais devem preservar a dignidade do cidadão, sem a imposição de provas aviltantes de necessidade e sem medidas de cunho paternalista ou moralista. O destinatário da assistência social deve ser tratado como protagonista de suas escolhas. A segurança de acolhida diz respeito à provisão de necessidades básicas inerentes à vida em sociedade. Essa acolhida passa pela garantia de alimentação, vestuário e abrigo àqueles que não possam obtê-los de forma autônoma. Inclui ainda medida de apoio em caso de necessidade de separação da família, desastres, acidentes naturais ou abandono. A segurança de convívio ou de vivência familiar aponta para a preservação e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Nesse caso, a assistência social opera de forma a superar situações de isolamento e barreiras relacionais “criadas por questões individuais, grupais, sociais por discriminação ou múltiplas inaceitações ou intolerâncias” (PNAS/2004, tópico 2). Coube à PNAS/2004 a fixação de dois patamares de proteção social – básico e especial –, incorporados pela LOAS. Além das definições, são apresentados exemplos de situações que deverão ser enfrentadas. De forma mais detalhada do que faz a LOAS, a PNAS/2004 subdivide a proteção social conforme sua complexidade seja média ou alta. Os serviços de média complexidade atendem pessoas e famílias cujos direitos foram violados sem, contudo, perderem seus vínculos comunitários e familiares. Os serviços de alta complexidade destinam-se a prover proteção integral às pessoas e famílias sem referências ou sob ameaça, que necessitem ser retiradas de seu núcleo familiar ou comunitário. No tocante aos princípios e diretrizes, a PNAS/2004 reproduz os artigos 4º e 5º da LOAS, acrescentando mais uma diretriz: a “centralidade na família para concepção e implementação de benefícios, serviços, programas e projetos” (PNAS/2004, tópico 2.2, IV). No tocante aos objetivos da Política Pública de Assistência Social (PNAS/2004, tópico 2.3), são enumerados objetivos de caráter geral e outros mais específicos, que sugerem inclusive as estratégias de atuação a serem empregadas na política de proteção social. Entre os objetivos de caráter geral estão o enfrentamento de desigualdades socioterritoriais, a garantia de mínimos sociais, o provimento de condições para atender contingências sociais e a universalização dos direitos sociais. Os objetivos específicos são: (a) provimento de serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e, ou, especial para famílias, indivíduos e grupos; (b) inclusão 244 e promoção de equidade dos usuários e grupos específicos, com ampliação de acesso aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbanas e rurais; (c) garantia de que as ações no âmbito da assistência social se pautem na centralidade da família e assegurem convivência familiar e comunitária. Enuncia-se ainda que o público usuário da Política de Assistência Social é constituído por “cidadãos e grupos que se encontram em situação de vulnerabilidade e riscos”, ao que se seguem alguns exemplos de potenciais destinatários da política (PNAS/2004, tópico 2.3). Para o recorte desse público são utilizados dois elementos de identificação: vulnerabilidades e riscos. Essas duas noções ganham relevo na PNAS/2004, na NOB/SUAS e na LOAS. Sposati (2009, p. 28-37) conecta as noções de risco social e vulnerabilidade para caracterizar um sistema que procura construir seguranças sociais. A despeito da discordância em relação ao emprego do risco social como eixo ordenador do sistema de seguridade social, as considerações da autora sobre vulnerabilidade são compatíveis com a noção de necessidade social adotadas neste trabalho. Portanto, as considerações que se seguem têm como ponto de partida a construção apresentada pela professora. Sposati (2009, p. 34) associa a ideia de vulnerabilidade à predisposição de pessoas, famílias ou outros grupos à “precarização, vitimização, agressão”, salientando que “a vulnerabilidade social não é só econômica”. Ainda em suas palavras, “o exame da vulnerabilidade social diz respeito à densidade e à intensidade de condições que portam pessoas e famílias para reagir e enfrentar um risco, ou, mesmo, de sofrer menos danos em face de um risco”, sendo que “atuar com vulnerabilidades significa reduzir fragilidades e capacitar potencialidades” (SPOSATI, 2009, p. 35). Aproximando esses ensinamentos do conceito de necessidade social, chega-se à conclusão de que a vulnerabilidade diz respeito ao conjunto de situações que predispõem uma pessoa, uma família ou um grupo a uma necessidade social ou que tornam mais difícil a reação e recuperação em caso de uma necessidade já instalada. Isso significa que lidar com vulnerabilidades implica prevenir necessidades, fortalecer as capacidades de reagir e reduzir danos já ocorridos. Por outro lado, Mota, Maranhão e Sitcovsky (2009, p. 191) pontuam que a amplitude do público-alvo da PNAS/2004 pode comprometer a normatização e a padronização dos serviços prestados. Para os autores, as categorias de vulnerabilidade e risco são relativamente frágeis para delimitar os usuários e os serviços a serem prestados. 245 Realmente podem surgir dificuldades para o emprego dessas duas noções, até porque o rol exemplificativo apresentado pela PNAS/2004 é bastante amplo260. No entanto, esses critérios estão em consonância com o princípio de universalização do atendimento, pois reconhecem que qualquer cidadão poderá, em algum momento de sua vida, precisar das prestações socioassistenciais. Sendo assim, os principais “filtros” que determinam a alocação dos recursos materiais e humanos da assistência social são oferecidos pelo tipo de necessidade a ser protegida e pelo tipo de prestação ofertada, não pelo tipo de usuário. Com isso, a PNAS/2004 complementa a disciplina da assistência social na Constituição Federal que, como afirmado anteriormente, dedicou mais atenção aos destinatários da política do que às necessidades protegidas e prestações asseguradas. 4.6 O Sistema Único de Assistência Social – SUAS 4.6.1 Aspectos gerais A PNAS/2004 previu a organização e gestão das ações socioassistenciais em um sistema único: o SUAS. No texto da PNAS/2004, o SUAS é apresentado como sistema que: define e organiza os elementos essenciais e imprescindíveis à execução da política de assistência social possibilitando a normatização dos padrões nos serviços, qualidade no atendimento, indicadores de avaliação e resultado, nomenclatura dos serviços e da rede socioassistencial e, ainda, os eixos estruturantes e de subsistemas [...] (PNAS/2004, tópico 3.1) 260 A fim de indicar que a enunciação dos destinatários da Política de Assistência Social é de fato muito ampla, vale a transcrição: “Constitui o público usuário da Política de Assistência Social, cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos, tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substancias psicoativas; diferentes formas de violência advinda no núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal ou informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social” (PNAS/2004, tópico 2.4). 246 Depreende-se dessa leitura a pretensão de racionalizar e uniformizar os serviços de assistência social prestados em todo o país. Isso, é claro, não se faz com prejuízo da observância das particularidades locais. No entanto, o que se busca é a organização dessa política em todos os níveis de governo até como condição para a universalização da assistência social. Previu-se que o SUAS seria estruturado em torno da matricialidade sociofamiliar, da descentralização político-administrativa e territorial, da redefinição das relações entre Estado e Sociedade Civil, dos mecanismos de financiamento, do controle social, da participação popular, da existência de uma política de recursos humanos e da criação de subsistemas de informação, monitoramento e avaliação. Na organização dos serviços socioassistenciais também deveriam ser consideradas as referências de vigilância social, proteção social e defesa social e institucional (PNAS/2004, tópico 3.1). Nas considerações finais da PNAS/2004 (tópico 4) enunciou-se a necessidade de aprovação de uma nova Norma Operacional Básica da Assistência Social e de uma Norma Operacional Básica de Recursos Humanos da Assistência Social. A Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS foi aprovada pelo CNAS por meio da Resolução n. 130, de 15 de julho de 2005. Esse diploma vale-se de algumas construções da NOB 2/1998, especialmente no que tange à existência de espaços permanentes de negociação e pactuação em torno de aspectos operacionais da gestão da assistência social, caso da Comissão Intergestores Tripartite – CIT e da Comissão Intergestores Bipartite – CIB. Essa regulamentação tem por escopo definir os conteúdos do pacto federativo em torno da PNAS/2004, estabelecer os requisitos para que Estados, Distrito Federal e Municípios contem com recursos federais e fixar os critérios de alocação desses recursos (NOB/SUAS, tópico 1)261. Assim como a PNAS/2004, a NOB/SUAS contribui para a sistematização do regime jurídico e o aprimoramento técnico da assistência social. Mota, Maranhão e Sitcovsky (2009, p. 90-91) vislumbram nesse sistema a possibilidade de superar-se a cultura assistencialista brasileira, “cujos traços principais são a ideologia do favor, da ajuda, da dádiva, aliados às práticas fisiológicas e ao nepotismo”, e colocar fim à lógica 261 A síntese desses objetivos está no próprio texto da NOB/SUAS: “Um dos objetivos desta NOB/SUAS é transformar a política de Assistência Social em uma política realmente federativa, por meio da cooperação efetiva entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal” (tópico 1.1, item “d”). 247 da caridade e do primeiro-damismo, mediante a “criação de parâmetros técnicos e da profissionalização da execução da Assistência Social”. Essa perspectiva não pode ser desvalorizada ou vista como evolução “natural” do ordenamento jurídico, haja vista a trajetória da assistência social no Brasil. 4.6.2 A gestão do SUAS e as competências dos entes federativos Por meio da NOB/SUAS foram delimitadas as competências dos entes federativos e definidas as espécies e os níveis de gestão no SUAS. A disciplina mais detalhada contida nesse instrumento afeta os Municípios. Para eles, foram instituídos três níveis de gestão: inicial, básica e plena. Aos Municípios já habilitados para gerir a assistência social, assegurou-se a habilitação no nível de gestão inicial; para aceder aos demais níveis exige-se a demonstração de outros requisitos. Para a habilitação em cada nível, deve ser demonstrado o preenchimento de requisitos que, em síntese, dizem respeito à demonstração de que o Município tem condições de gerir a assistência social em consonância com os propósitos da LOAS e da PNAS/2004. A cada nível de gestão correspondem responsabilidades maiores e maiores incentivos, assim entendidos como repasses de recursos, recebimento de apoio técnico e participação de programas de capacitação dos atores envolvidos com a assistência social em cada Município. No Distrito Federal a gestão da assistência social implica assunção de responsabilidades básicas, com perspectiva de aprimoramento do sistema. Nas duas hipóteses são estabelecidos procedimentos para comprovação da gestão do Distrito Federal. As responsabilidades básicas relacionam-se ao cumprimento dos artigos 14 e 30 da LOAS e se desdobram nos seguintes temas: (a) financiamento: alocação de recursos no Fundo de Assistência Social; custeio de benefícios eventuais; (b) organização: estruturação de CRAS; 248 (c) planejamento: definição de critérios de custeio das ações de proteção social básica e especial; identificação de áreas de vulnerabilidade e risco; (d) prestação de serviços: prestação dos serviços de proteção básica e especial, com prioridade para os destinatários dos programas de transferência da renda instituídos pela Lei n. 10.836/04; gestão do benefício de prestação continuada e dos benefícios eventuais, incluindo seleção, acompanhamento dos beneficiários e elaboração de Plano de Inserção e Acompanhamento dos titulares do Benefício de Prestação Continuada –BPC; (e) gestão: apresentação de relatórios e planos de ação; inserção de informações relativas a famílias em situação de vulnerabilidade social e riscos nos bancos de dados. As responsabilidades de aprimoramento, uma vez assumidas, possibilitam maiores repasses de recursos, mais autonomia de gestão e recebimento de apoio técnico da União. Assim como as responsabilidades básicas, essas responsabilidades podem ser agrupadas em: (a) financiamento: cofinanciamento dos serviços de proteção social de média e alta complexidade; cofinanciamento do sistema de informação; (b) organização: declaração da capacidade instalada na proteção social de alta complexidade; instalação do sistema do Distrito Federal; (c) planejamento: estabelecimento de indicadores de monitoramento e avaliação das ações da assistência social; fixação de pactos de resultados com a rede prestadora de serviços; celebração de pactos de aprimoramento de gestão; elaboração da política de recursos humanos; (d) prestação de serviços: ampliação dos atendimentos pela expansão dos CREAS e pela execução de programas e projetos de inclusão produtiva e promoção do desenvolvimento de famílias em situação de vulnerabilidade; prestação de serviços de proteção social de média e alta complexidade; (e) gestão: identificação de entidades de assistência social aptas e se vincularem ao SUAS; implantação de programas de capacitação profissional dos agentes envolvidos com as ações socioassistenciais; coordenação do sistema de assistência social do Distrito Federal; coordenação do sistema de informação monitoramento e avaliação da do Distrito Federal; execução da política de recursos humanos. 249 Para os Estados há apenas um nível de gestão, ao qual correspondem incentivos consistentes no recebimento de recursos e apoio técnico da União, além de participação dos operadores da assistência social em programas de capacitação promovidos pela União. As competências estaduais principiam com o cumprimento dos artigos 13 e 30 da LOAS e são detalhadas da seguinte forma: (a) financiamento: cofinanciamento da proteção social básica e das ações regionalizadas de proteção social especial; cofinanciamento de consórcios públicos e, ou, de ações regionalizadas de proteção social especial; cofinanciamento de projetos de inclusão produtiva; cofinanciamento de programas de capacitação dos operadores da assistência social; cofinanciamento dos benefícios eventuais; (b) organização: estruturação de Secretaria Executiva da Comissão Intergestores Bipartite; estruturação de Secretaria Executiva do Conselho Estadual de Assistência Social; instalação de sistema estadual de monitoramento e avaliação das ações socioassistenciais; (c) planejamento: definição e implementação de política de acompanhamento da rede conveniada prestadora de serviços socioassistenciais na esfera estadual ou regional; análise e definição, juntamente com os Municípios, da construção de Unidades de Referência Regional, dos serviços ofertados e dos fluxos de atendimento; realização de diagnósticos e estabelecimento de pactos para elaboração do Plano Estadual de Assistência Social; definição de parâmetros de custeio para ações de proteção social básica e especial; elaboração de política de recursos humanos; proposição de projetos de inclusão produtiva. (d) gestão: organização, coordenação e monitoramento do Sistema Estadual de Assistência Social; prestação de apoio técnico aos Municípios para instituição de seus Sistemas Municipais de Assistência Social e para implantação dos CRAS; coordenação do processo de revisão do BPC em âmbito estadual, acompanhando os Municípios; gestão dos recursos federais e estaduais; coordenação de sistema estadual de monitoramento e avaliação das ações socioassistenciais; coordenação e regulação de ações regionalizadas de proteção social especial; manutenção de bases de dados da REDE SUAS; promoção de consórcios públicos e, ou, de ações regionalizadas de proteção social especial; execução de política de recursos humanos; coordenação e execução de programas de capacitação dos operadores da assistência social; 250 identificação de entidades de assistência social aptas e se vincularem ao SUAS; apresentação de relatórios e planos de ação. Como se observa, a prestação de serviços socioassistenciais pelos Estados restringe-se às hipóteses do artigo 13 da LOAS. As responsabilidades de gestão da União, a seu turno, estão atreladas ao planejamento da política pública e ao apoio técnico e financeiro visando descentralizar a gestão da assistência social. São elas: (a) financiamento: financiamento da implementação de serviços e programas de proteção social básica e especial; oferecimento de apoio técnico aos demais entes federativos na implantação das ações socioassistenciais; (b) organização: proposição e pactuação do sistema de informação da Assistência Social; incentivo à criação de instâncias públicas de defesa dos direitos dos usuários dos programas, serviços e projetos de assistência social; articulação e coordenação de ações de fortalecimento das instâncias de participação e deliberação do SUAS; instituição de sistema de informação, monitoramento e avaliação. (c) planejamento: coordenação da formulação e implementação da PNAS/2004 e do SUAS; coordenação e regulação do acesso às seguranças de proteção social; definição das condições e do modo de acesso aos direitos relativos à Assistência Social; coordenação e regulação da implementação de serviços e programas de proteção social básica e especial; regulação dos pisos de proteção social básica e especial; formulação das diretrizes e participação das definições sobre o financiamento e o orçamento da Assistência Social; proposição de diretrizes para prestação de serviços socioassistenciais e pactuação de regulações entre os entes públicos e privados; formulação de política para a formação sistemática das instâncias de participação e deliberação do SUAS; promoção do estabelecimento de pactos de resultados; definição de padrões de custeio e de qualidade para as ações de proteção social; estabelecimento de pactos nacionais visando efetivar as seguranças previstas na PNAS/2004; elaboração da política de recursos humanos; (d) gestão: coordenação da gestão do benefício de prestação continuada; gestão, acompanhamento e avaliação da execução do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS; coordenação da implementação da Política Nacional do Idoso; articulação das políticas socioeconômicas setoriais; coordenação do sistema de informação da Assistência Social; oferecimento de apoio técnico aos demais entes 251 federativos na implantação das ações socioassistenciais e na implantação dos Sistemas Estaduais e do Distrito Federal de Assistência Social; desenvolvimento de estudos e pesquisas para fundamentar análises de necessidade e formulação de proposições para a área; execução da política de recursos humanos; oferecimento de apoio aos demais entes federativos na implementação de sistemas de informação, monitoramento e avaliação. 4.6.2.1 Entre cooperação e subsidiariedade: as estratégias da descentralização A NOB/SUAS adota como estratégia o fortalecimento dos governos locais e regionais para gerir a política de assistência social, conferindo às instâncias federativas mais amplas papel subsidiário nesta gestão, enunciando categoricamente que “as instâncias federativas mais amplas não devem realizar aquilo que pode ser exercido por instâncias federativas locais” (tópico 1.1, item “d”). Esse princípio de subsidiariedade262 não contraria a ideia de cooperação federativa – essencial para atender às demandas que as instâncias locais não conseguem atender –, pois revela o escopo de descentralizar a gestão da assistência social até o ponto em que isso não inviabilize suas ações. 4.6.2.2 Os instrumentos de gestão da PNAS/2004 e do SUAS A NOB/SUAS instituiu quatro instrumentos de gestão da PNAS e do SUAS (NOB/SUAS, tópico 3). O primeiro deles é o Plano de Assistência Social, definido como “instrumento de planejamento estratégico que organiza, regula e norteia a execução da PNAS/2004 na perspectiva do SUAS”(NOB/SUAS, tópico 3.1). Esse plano é elaborado pelo órgão gestor da política de assistência social em cada nível de governo e submetido à 262 Não é demais frisar que a subsidiariedade na forma tratada pela NOB/SUAS é um princípio de organização dos entes federativos, que em nada se relaciona com a ideia de subsidiariedade da assistência social em relação ao trabalho e à previdência. 252 aprovação do respectivo Conselho de Assistência Social. Nos Municípios, no Distrito Federal e nos Estados que respondem pela gestão financeira de Municípios não habilitados, deve ser elaborado um Plano de Ação com periodicidade anual. O segundo instrumento de gestão é o Orçamento da Assistência Social, que, nos termos do artigo 165 da Constituição Federal se faz por meio da elaboração de Plano Plurianual, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei Orçamentária Anual. A NOB/SUAS ressalta que “para efetivamente expressarem o conteúdo da PNAS/2004 e do SUAS, tais instrumentos de planejamento público deverão contemplar a apresentação dos programas e das ações, em coerência com os Planos de Assistência Social” (NOB/SUAS, tópico 3.2). O terceiro desses instrumentos reúne a gestão da informação e as operações de monitoramento e avaliação do SUAS. A gestão de informação deve ser feita pelo sistema de informação do SUAS, a REDE SUAS. A perspectiva é de que esse sistema ofereça elementos para gestão e acompanhamento dos programas, serviços, projetos e benefícios da assistência social. O quarto mecanismo de controle consiste no Relatório Anual de Gestão. Cada ente federativo deve elaborar seu relatório anual, avaliando os resultados obtidos, comparando-os com as metas estabelecidas e tratando da aplicação dos recursos em cada esfera de governo. 4.6.3 As instâncias de articulação, pactuação e deliberação Visando democratizar e descentralizar a gestão da assistência social, foram previstas instâncias de articulação, pactuação e deliberação no âmbito do SUAS (NOB/SUAS, tópico 4). Essas instâncias de articulação são definidas pela NOB/SUAS como “espaços de participação aberta, com função propositiva” (tópico 4.1); estão presentes em todos os níveis de governo e podem ser instituídas em nível regional. Participam desses fóruns entidades governamentais e não governamentais. As instâncias de pactuação, a seu turno, são estabelecidas com o escopo de permitir a definição consensual de procedimentos de gestão e outros aspectos 253 operacionais. Em seu âmbito ocorrem negociações e acordos em torno da forma pela qual a gestão ocorrerá. Os pactos celebrados nessas instâncias decorrem do consenso, nunca de votações ou deliberações, e sua formalização se faz por publicação e submissão às instâncias de deliberativas do SUAS. Há duas instâncias de pactuação previstas na NOB/SUAS: a Comissão Intergestores Bipartite – CIB e a Comissão Intergestores Tripartite – CIT. A primeira compõe-se por gestores de Estados e seus Municípios. A segunda, por gestores de todos os níveis de governo. As instâncias de deliberação do SUAS são o Conselho Nacional de Assistência Social, os Conselhos Estaduais de Assistência Social, o Conselho de Assistência Social do Distrito Federal, os Conselhos Municipais de Assistência Social e as Conferências de Assistência Social. Os conselhos foram instituídos pelas LOAS que, na redação original, os designava como “instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo de assistência social” e, a partir da Lei n. 12.435/11, passou a utilizar a expressão “instâncias deliberativas do SUAS” (LOAS, art. 16). Essas instâncias já foram descritas nos tópicos destinados ao exame da LOAS. 4.6.4 O financiamento da assistência social Ao tratar da gestão financeira da assistência social, a NOB/SUAS valoriza a instituição dos Fundos de Assistência Social em todas as esferas de governo. A virtude desses fundos é conferir transparência aos recursos destinados à assistência social e adotar critérios objetivos de partilha e repasses dessas verbas. Além de permitir maior controle social, a gestão dos fundos se faz com intensa participação dos Conselhos de Assistência Social, o que contribui para adequar a alocação dos recursos às ações socioassistenciais. Destaca-se ainda a necessidade de que o financiamento da assistência social seja feito de acordo com as atribuições de cada ente federativo na dinâmica do SUAS, o que, nas palavras da NOB/SUAS, significa tomar “o sistema como referência” (tópicos 5.2). Isso implica estabelecer condições para transferências de recursos (NOB/SUAS, 254 tópico 5.3), o que fica claro pela fixação de metodologias diversas de repasse orçamentário, conforme o nível de gestão do destinatário das transferências. Outra exigência da assistência social como política pública a ser efetivada por meio de um sistema é a regularidade nas ações socioassistenciais, o que pressupõe regularidade nos repasses de verbas (NOB/SUAS, tópico 5.4). A racionalização no uso dos recursos e na gestão da assistência social impõe ainda critérios de partilha e transferências. Esses critérios estão na própria NOB/SUAS que leva em consideração os indicadores socioeconômicos, a população em situação de vulnerabilidade social e a definição de pisos de proteção social a serem proporcionados (NOB/SUAS, tópico 5.5). O cofinanciamento é definido pela NOB/SUAS da seguinte maneira (tópico 5.6): (a) Municípios de pequeno porte I e II263: protagonizam o financiamento da proteção social básica e cofinanciam serviços de referência regional e consórcios públicos para serviços de proteção social especial de média e alta complexidade; (b) Municípios de médio porte: protagonizam o financiamento da proteção social básica e especial de média complexidade e cofinanciam serviços de referência regional e consórcios públicos para serviços de proteção social especial de alta complexidade; (c) Municípios de grande porte: protagonizam o financiamento da proteção social básica e especial de média e alta complexidade e cofinanciam serviços de referência regional e consórcios públicos para serviços de proteção social especial de alta complexidade; (d) Metrópoles: protagonizam o financiamento da proteção social básica e especial de média e alta complexidade e cofinanciam serviços de referência regional e consórcios públicos para serviços de proteção social especial de alta complexidade, levando em conta as demandas específicas das regiões metropolitanas; (e) Distrito Federal: protagoniza o financiamento da proteção social básica e especial de média e alta complexidade e conta com o cofinanciamento de serviços de referência regional e consórcios públicos com o Estado de Goiás e, ou, Municípios do entorno, para os serviços de proteção social especial de alta complexidade, levando em conta as demandas específicas da região que inclui o Distrito Federal e seu entorno; 263 Na classificação dos Municípios quanto ao tamanho de sua população, a PNAS/2004 adota o seguinte critério: (a) Municípios de pequeno porte I: até 20.000 habitantes; (b) Municípios de pequeno porte II: de 20.001 a 50.000 habitantes; (c) Municípios de médio porte: de 50.001 a 100.000 habitantes; (d) Municípios de grande porte: 100.001 a 900.000 habitantes. (e) Metrópoles: a partir de 900.001 habitantes. (PNAS/2004, tópico 1). 255 (f) Estados: cofinanciam a proteção social básica e o aprimoramento de gestão mediante aporte de recursos para o sistema de informação, monitoramento, avaliação, capacitação, apoio técnico e outras ações pactuadas progressivamente; (g) União: cofinancia a proteção social básica e a proteção social especial e provê o pagamento dos benefícios de prestação continuada às pessoas idosas ou com deficiência. 5 ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS SOBRE A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA 5.1 Considerações iniciais Ao longo deste trabalho, discorreu-se sobre a forma como a assistência social foi assimilada pelo ordenamento jurídico brasileiro, antes e depois da Constituição Federal de 1988. Demonstrou-se que a implementação da assistência como direito social encontrou inúmeros percalços, os quais, a seu turno, indicam como as concepções da assistência social forjadas antes da Constituição Federal de 1988 interferiram na efetivação desse direito após a mudança da ordem constitucional. No capítulo anterior, foi possível verificar a leitura que os Poderes Legislativo e Executivo fizeram da assistência social a partir de 1988. Em síntese, identificou-se um longo período de resistência à implementação desse direito social, seguido de ações focalizadas – na acepção criticada neste trabalho (cf. supra 3.8.2.3 Distributividade e seletividade na prestação dos benefícios e dos serviços) – e de um avanço na última década. Embora seja cedo para avaliar os resultados dessa nova fase, o progresso é evidente. Para encerrar o estudo sobre a forma como o Estado brasileiro vem construindo o direito à assistência social, resta examinar a forma pela qual o Poder Judiciário trata esse direito. Ao se pronunciarem sobre determinado direito, juízes e tribunais não se limitam a extrair o conteúdo dos enunciados normativos de forma absolutamente neutra264 e atemporal. Ao contrário, o Poder Judiciário atribui e atualiza o significado dos enunciados normativos do ordenamento jurídico. Para além dos métodos e princípios sistematizados pela hermenêutica jurídica, a realidade fática regulada influencia a construção das decisões judiciais e permite entrever nos julgados ideias 264 Santos (1986, p. 23-24) afirma que a concepção dos tribunais, como subsistema do sistema político global, teve como uma de suas consequências “desmentir por completo a ideia convencional da administração da justiça como uma função neutra protagonizada por um juiz apostado apenas em fazer justiça acima e equidistante das partes”. 257 subjacentes à argumentação jurídica que, tanto quanto o enunciado normativo, influenciam a concretização do texto constitucional. A importância do estudo sobre a atuação do Poder Judiciário é reforçada porque está em discussão um direito social voltado para grupos sociais vulneráveis que, além de enfrentarem frequentes privações de recursos econômicos, lidam com obstáculos no acesso à informação sobre seus direitos e aos meios de fazer valê-los. Não por outro motivo, está entre os objetivos da assistência social a defesa de direitos (LOAS, art. 2º, III) e entre seus princípios a “divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão” (LOAS, art. 4º, V). Nesse cenário, saber que existe e como se efetiva o acesso à justiça em prol da efetivação da assistência social é indispensável265. 5.2 Delimitação da pesquisa Diante da necessidade de estabelecer um recorte para a pesquisa, a análise de jurisprudência recai sobre o benefício assistencial de prestação continuada previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal e regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social. Justifica-se a escolha desse benefício como foco de estudo por duas razões principais. Em primeiro lugar, o benefício assistencial de prestação continuada constitui o único programa de transferência direta de renda previsto na própria Constituição Federal. Essa previsão, como afirma Sposati (2011, p. 125), representa a “primeira atenção social de massa” da política de assistência social, divorciada das tradicionais regulações ad hoc das situações de necessidade. Em segundo lugar, as hipóteses de 265 Sobre a importância do acesso à justiça para a efetivação dos direito econômicos e sociais, Santos (1986, p. 18) afirma que “a consagração constitucional dos novos direitos económicos e sociais e sua expansão paralela à do Estado de bem estar transformou o direito ao acesso efectivo à justiça num direito charneira, um direito cuja denegação acarretaria a de todos os demais. Uma vez destituídos de mecanismos que fizessem impor o seu respeito, os novos direitos sociais e económicos passariam a meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores. Daí a constatação de que a organização da justiça civil e, em particular, a tramitação processual não podiam ser reduzidas à sua dimensão técnica, socialmente neutra, como era comum serem concebidas pela teoria processualista, devendo investigar-se as funções sociais por elas desempenhadas e em particular o modo como as opções técnicas no seu seio veiculavam opções a favor ou contra interesses sociais divergentes ou mesmo antagónicos [...]”. 258 concessão desse benefício vêm sendo analisadas há muitos anos pelo Poder Judiciário. Esse dado permite supor que o Poder Judiciário tenha familiaridade com os critérios constitucionais e legais de concessão e tenha desenvolvido critérios de interpretação e aplicação da LOAS. Embora não haja “jurisprudência sedimentada” em relação a muitos pontos, há profundidade e amadurecimento nas análises. Na delimitação do conjunto de decisões a ser analisado, a escolha recaiu sobre os acórdãos da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais – TNU, órgão relativamente jovem, criado pela Lei n. 10.259/01. Nos termos da Lei n. 10.259/01 (art. 14), incumbe à TNU apreciar Pedidos de Uniformização de Interpretação de Lei Federal, nas hipóteses de divergência de decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais de diferentes regiões ou pela divergência entre uma Turma Recursal e súmula ou jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. A TNU compõe-se de dez juízes federais de Turmas Recursais, sob a presidência do Corregedor-Geral da Justiça Federal. O interesse pelas decisões proferidas pela TNU decorre do reconhecimento da contribuição ímpar dos Juizados Especiais Federais – com seu peculiar sistema recursal – para a promoção do acesso à justiça e discussão de temas diretamente relacionados aos direitos sociais e econômicos. Após a instalação dos Juizados Especiais Federais, parte significativa das demandas sobre o direito à seguridade social foi canalizada para esses órgãos. Isso porque a Lei n. 10.259/01 prevê, em seu artigo 3º, a competência desses juizados para “processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos”, acrescentando em seu parágrafo 3º que “no foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua competência é absoluta”. Essa previsão transformou os juizados e, por conseguinte, a TNU em loci privilegiados de debate sobre o benefício assistencial de prestação continuada. Nos Juizados Especiais Federais, a assistência por advogado ou defensor público é dispensada em primeiro grau de jurisdição, independentemente do valor da causa266. Esse regramento contribui para remover um dos obstáculos ao acesso à justiça: 266 Essa situação difere do regramento válido para os Juizados Estaduais Cíveis, em que a dispensa da assistência por profissional legalmente habilitado só atinge causas de valor não superior a vinte salários mínimos (Lei n. 9.099/95, art. 9º). 259 a dificuldade encontrada por potenciais litigantes em se fazer representar por advogados ou defensores públicos. Portanto, essa dispensa tem o condão aumentar a quantidade de casos levados ao Poder Judiciário. A natureza das ações insertas na competência da Justiça Federal (CF, art. 109), a facilitação de acesso aos Juizados Especiais Federais pela ampliação da capacidade postulatória dos cidadãos não assistidos por defensor e a previsão de que União, autarquias, fundações e empresas públicas federais podem ser somente rés nos juizados (Lei n. 10.259/01, art. 6º, II) – e não autoras – definem a vocação dos juizados para o exame de questões relacionadas com a efetivação de direitos sociais. A maior parte das demandas que tramita nesses juizados coloca o cidadão em face do Poder Público, provocando contínuos pronunciamentos judiciais sobre direitos econômicos e sociais consagrados na Constituição Federal. No que diz respeito especificamente à TNU, há outros fatores de interesse. As decisões desse órgão representam, em sua maioria, enunciados gerais sobre direito material, pois seu papel é uniformizar a jurisprudência nesse âmbito de apreciação, sem que haja reexame da prova ou apenas de questões de direito processual. Examinam-se, portanto, controvérsias jurídicas de direito material. O fato de ser um órgão de terceiro grau de jurisdição composto por juízes federais de primeira instância é outro fator de interesse. É possível que o entendimento desses juízes federais reflita o de boa parte dos juízes de primeira instância que lidam com as questões concernentes ao benefício de prestação continuada, aspecto que aumenta o interesse sobre as decisões tomadas nesse órgão. Pode-se aventar ainda a hipótese de a atividade interpretativa desempenhada no âmbito da TNU ser influenciada pelo contato que os juízes mantêm – muitas vezes concomitantemente – com a matéria em suas varas de origem267. Por fim, como a composição da amostragem analisada268 conta com acórdãos provenientes de diversas Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais, pretende-se 267 Essas duas hipóteses foram suscitadas, mas não chegaram a ser verificadas no curso desta pesquisa. Para tanto, seria necessário confrontar as decisões da TNU com outras decisões de primeira instância, o que não chegou a ser feito. Ficam, portanto, registradas apenas como hipóteses. 268 A pesquisa das decisões se fez por meio de busca no site do Conselho da Justiça Federal, mais especificamente do link “jurisprudência unificada”, que permite a seleção de decisões da TNU. Como a ideia inicial era analisar dez acórdãos provenientes de cada região, a primeira tentativa foi efetuar buscas pelas expressões benefício assistencial e prestação continuada, seguidas do nome das capitais dos Estados que compõem cada região. Todavia, verificou-se que um grande número de respostas à pesquisa não correspondia aos dados buscados, especialmente porque não há mecanismo que permita filtrar de 260 que as conclusões encontradas sirvam como panorama da realidade nacional. Como as divergências entre julgados de mesma região são apreciadas pelas turmas regionais (Lei n. 10.259/01, art. 14, § 1º), a seleção dos casos submetidos à TNU confere uma visão mais abrangente do tema em exame e, consequentemente, menos sujeita a particularidades regionais. Sem descuidar da importância da jurisprudência regional, entende-se que o estudo da jurisprudência nacional mostra de que forma os debates em torno da assistência social vêm evoluindo em todo o país. 5.3 Temas destacados 5.3.1 Deficiência, incapacidade laborativa e incapacidade para a vida independente Até o advento da Lei n. 12.470/11, a deficiência ensejadora do benefício de prestação continuada era aquela que impedisse o desempenho do trabalho e da vida independente269. Reforçando a subsidiariedade da assistência social em relação à previdência, essa disposição condicionava a concessão do benefício assistencial a um grau de incapacidade mais severo do que o exigido para concessão de benefício previdenciário por incapacidade laborativa (auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez). antemão o órgão de origem. Essa primeira busca serviu para identificar os temas recorrentes das decisões, o que contribuiu para a continuidade da pesquisa. Tentou-se em seguida a busca pela expressão benefício assistencial, o que retornou 481 resultados, muitos deles versando sobre direito previdenciário. Assim, esse critério se mostrou muito genérico. Após diversas tentativas, seguiu-se a pesquisa pelas expressões benefício assistencial e 203. Essa pesquisa retornou 157 resultados, número bastante razoável para a análise pretendida. Foram então excluídas as decisões de não conhecimento de pedido de uniformização; as decisões de mera admissibilidade de recurso, sem análise de mérito; resultados obtidos em duplicidade; decisões sobre outras matérias; e decisões proferidas por Turmas Recursais. Ao final, a busca resultou em 75 decisões, todas indicadas na bibliografia final. O emprego de termos de pesquisa genéricos e neutros foi proposital: visava-se evitar a pré-seleção de temas e de entendimentos jurisprudenciais. A partir da leitura desses acórdãos foram identificados os temas recorrentes quando se trata da concessão de benefício de prestação continuada. Os temas destacados correspondem não apenas ao que é controvertido na jurisprudência, mas também às questões que permeiam grande parte da discussão em torno da assistência social. 269 Alguns fatores justificam a relevância de um estudo mais detalhado sobre um critério legal que restou superado. Como o propósito deste trabalho é analisar de que forma a assistência social foi construída como um direito, o estudo não pode se deter nos aspectos atuais da legislação; ao contrário, deve evidenciar aquilo que a jurisprudência trouxe de ganhos para a compreensão do tema. Além disso, não se pode deduzir que a mudança legislativa é imediatamente acompanhada pelo abandono de todos os parâmetros adotados para análise das hipóteses de concessão do benefício. 261 Buscando a ideia de subsidiariedade da assistência social aplicada a casos concretos, encontra-se, por exemplo, trecho do voto proferido nos autos do processo 200870950011540: A questão no presente Pedido de Uniformização é saber se a interpretação a ser dada para a concessão do LOAS é a mesma a ser dada para a concessão de benefícios previdenciários, desde já, discordando de tal opção, pelo caráter contributivo da Previdência Social. O próprio perito judicial fala em possibilidade de reabilitação em função que o Autor já exerceu (guarda florestal), logo, aproximando a hipótese muito mais de um auxílio-doença, do que uma aposentadoria por invalidez, por ser incapacidade parcial. Por mais que a Súmula nº 29 da TNU tenha abrandado a regra legal do art. 20, § 2º da Lei n.º 8.742/93, definindo incapacidade para a vida independente como aquela que impossibilita a pessoa de prover ao próprio sustento, não chega a ponto de permitir a concessão do LOAS para casos de incapacidade parcial, em atividades já exercidas pelo requerente. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950011540. Relator: Juiz Federal Eduardo André Brandão de Brito Fernandes, destacou-se) As decisões estudadas mostram que, em relação a pessoas com mais de 16 anos, a deficiência é identificada com a impossibilidade de obter o próprio sustento por meio do trabalho. Esse critério é utilizado tanto nas hipóteses de concessão do benefício, quando de negativa dela. Isso mostra a exigência de uma situação mais grave do que a de limitação para alguns atos da vida diária ou participação social em igualdade de condições com as demais pessoas. Nesse ponto, nas decisões analisadas, a noção de deficiência tem sido compreendida de forma mais rigorosa do que as noções depreendidas da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência ou da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Por outro lado, a conceituação de deficiência (ou mesmo de incapacidade para o trabalho) a partir de variáveis médicas e socioeconômicas é constante nessas decisões. Mesmo na vigência do dispositivo que exigia incapacidade para a vida independente, a jurisprudência apontava para a relativização desse critério. Dos autos do processo 200361840011029 consta expressamente a desnecessidade de prova de vida independente quando presente a incapacidade para o trabalho: O art. 20, da Lei n. 8.742/93, é expresso no sentido de que o benefício assistencial de prestação continuada, assegurado pelo art. 203 da 262 Constituição Federal se destina àqueles que não possuem meios de prover a própria subsistência ou tê-la provida por sua família. Na hipótese dos autos, ficou comprovado através de prova pericial que a autora está incapacitada total e permanentemente para o trabalho, o que lhe impede de prover o próprio sustento, além de ter sido, também comprovado que a família da autora sobrevive de ganhos irregulares de um filho e doações de igreja. Dentro desse contexto, desnecessária a comprovação de incapacidade para a vida independente a justificar a percepção do benefício em discussão. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200361840011029. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa, destacou-se) Outras decisões seguem linha argumentativa diversa. Em vez de negarem o requisito da vida independente, procuram dissociá-lo da ideia de vida vegetativa ou restrita a atos da vida cotidiana. É o que se depreende, por exemplo, do voto proferido no processo 200430007021290: O conceito de incapacidade para a vida independente, portanto, deve considerar todas as condições peculiares do indivíduo, sejam elas de natureza cultural, psíquica, etária – em face da reinserção no mercado do trabalho – e todas aquelas que venham a demonstrar, in concreto, que o pretendente ao benefício efetivamente tenha comprometida sua capacidade produtiva lato sensu. Por certo que a interpretação não pode ser restritiva a ponto de limitar o conceito dessa incapacidade à impossibilidade de desenvolvimento das atividades cotidianas. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200430007021290. Relator: Juiz Federal Wilson Zauhy Filho.) Ainda a propósito de uma noção de deficiência que não perpetue situações de grave necessidade ou que imponha excessivos sacrifícios, ressalta-se o acordão proferido no processo 200683035011995, assim ementado: EMENTA TURMA NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL A DEFICIENTE. TRABALHADOR RURAL. AMPUTAÇÃO DE QUATRO DEDOS DA MÃO ESQUERDA. INCAPACIDADE PARA O TRABALHO E PARA OS ATOS DA VIDA INDEPENDENTE ATESTADA EM LAUDO PERICIAL. ADAPTAÇÃO NÃO CONFIGURADA. PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO PROVIDO. 1. Conviver com a deficiência incapacitante não torna, por si só, a pessoa adaptada ao seu trabalho. Raciocínio contrário, além de criar conceito jurídico novo de adaptação, atribui ao interessado sacrifício desmesurado e inaceitável, importando patente violação à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR/88). 2. A sobrevivência do requerente, apesar da deficiência incapacitante existente há algum tempo, não implica dispensa peremptória da proteção estatal garantida no art. 203, V, da CF/88, e nem torna preclusa a oportunidade para o exercício do direito à assistência legal devida. 3. Pedido de Uniformização conhecido e 263 provido para reformar o acórdão recorrido, condenando o INSS na concessão do benefício assistencial postulado. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200683035011995. Relator: Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho.) 5.3.2 Pessoas com deficiência menores de 16 anos Os critérios de concessão do benefício de prestação continuada para pessoas com menos de 16 anos foram construídos em um período em que o marco legal para aferição da deficiência estava centrado na capacidade para o trabalho. Ante a inadequação de se perquirir a capacidade laborativa nessa hipótese, a jurisprudência buscou critérios condizentes com o ciclo de vida de crianças e adolescentes. A tônica de análise desses casos recai sobre dois aspectos centrais: o impacto da deficiência na dinâmica familiar e as repercussões da deficiência para a participação social compatível com a faixa etária. Esses dois critérios não são cumulativos, mas sim alternativos: a deficiência, para ensejar o direito ao benefício, deve acarretar uma restrição ao desempenho de atividades ou participação social compatíveis com a idade do requerente, ou implicar impacto financeiro significativo para seu núcleo familiar. Eis alguns excertos de decisões: ao menor de dezesseis anos, salvo o que se veja na condição de aprendiz a partir dos quatorze anos, bastam o atestado médico da deficiência, e que tal deficiência provoque impacto no desempenho de atividades ou participação social, compatíveis com sua idade, ou ainda que provoque significativo impacto na economia do grupo familiar do menor, seja por exigir a dedicação de um dos membros do grupo para seus cuidados, prejudicando a capacidade daquele familiar de gerar renda para o grupo, seja por terem que dispor de recursos maiores que os normais para sua idade, em razão de remédios ou tratamentos; aferindo-se, ainda, a miserabilidade de sua família, prejudicial ao seu sustento, para que faça jus à percepção do benefício assistencial previsto no art. 203, inc. V, da Constituição e no art. 20 da Lei n° 8.742/93. [...] (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200783035014125. Relator: Juiz Federal Manoel Rolim Campbell Penna, destacou-se.) [...] a par da discussão da incapacidade laboral de menor de 16 (dezesseis) anos, seja por não ter ainda idade legal para tanto, seja em face da cegueira (deficiência) de um dos olhos, o conceito de capacidade para a vida independente não deve ficar adstrito apenas à atividade de andar, comer, beber, tomar banho e etc. Como já dito e 264 frisado à exaustão, até para firmar o entendimento desta Turma Nacional, a leitura desse conceito deve ser aprofundada, no sentido de se verificar até que ponto a cegueira poderá impactar a sua vida – no âmbito cultural, profissional, financeiro, entre outros – e bem como a de seus familiares, na localidade e no meio onde vive. Em outras palavras, considerando a sua condição pessoal, afetiva, cultural, profissional, entre outras, até que ponto a sua cegueira realmente poderá ocasionar um peso, um transtorno à sua pessoa, seja como limitação da sua capacidade laboral, inserção no mercado de trabalho, ou mesmo para o desenvolvimento de uma vida normal? Além disso, é de se perquirir se a sua família não sofrerá qualquer repercussão com essa sua deficiência, de modo a exigir a permanência de um de seus membros para auxiliá-lo, a custear despesas, a reduzir também a capacidade laboral da família como um todo? [...] a incapacidade para a vida independente não pode ser reduzida para apenas à prática dos atos do dia-a-dia. Se a deficiência visual da parte autora impactar a sua vida, diminuindo-lhe as possibilidades e as oportunidades, e bem como a da sua família, considerando o meio em que vive, a sua condição cultural, profissional, entre outras, de acordo com diretriz já posta por esta TNU, factível é a concessão do benefício assistencial. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200932007033423. Relator: Juiz Federal Paulo Ricardo Arena Filho, destacou-se) Em dois recentes acórdãos da TNU, um proferido no pedido 200682025020500 (Relator: Juiz Federal José Antonio Savaris) e outro no pedido 200743009012182 (Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky), esses critérios foram apresentados como entendimento consolidado da TNU. Em ambas as decisões encontra-se a seguinte afirmação: firma-se a compreensão de que ao menor de dezesseis anos, ao qual o trabalho é proibido pela Constituição, salvo o que se veja na condição de aprendiz a partir dos quatorze anos, bastam a confirmação da sua deficiência, que implique limitação ao desempenho de atividades ou restrição na participação social, compatíveis com sua idade, ou impacto na economia do grupo familiar do menor, seja por exigir a dedicação de um dos membros do grupo para seus cuidados, prejudicando a capacidade daquele familiar de gerar renda, seja por terem que dispor de recursos maiores que os normais para sua idade, em razão de remédios ou tratamentos; confirmando-se ainda a miserabilidade de sua família, para que faça jus à percepção do benefício assistencial previsto no art. 203, inc. V, da Constituição e no art. 20 da Lei n° 8.742/93. (destacou-se) No tocante à valoração da deficiência como fator restritivo da participação em igualdade de condições com outras pessoas de mesma faixa etária, a solução encontrada pela TNU se aproximou dos conceitos de deficiência previstos nas Convenções mencionadas (cf. supra 5.3.1 Deficiência, incapacidade laborativa e incapacidade para a vida independente). 265 Esse caminho, aliás, não destoa daquele encontrado pelo Poder Executivo e explicitado no Decreto n. 6.214/07 (art. 4º, § 2º). No entanto, as decisões judiciais não foram impulsionadas pelo Decreto – que, inclusive, inova no ordenamento ao prever um critério de concessão do benefício que passa ao largo da incapacidade laborativa; ao contrário, a invocação da norma regulamentar aparece apenas como reforço de argumentação. Em suma, pode-se dizer que essas decisões possuem dois grandes méritos. Em primeiro lugar, como dito, afastam a assistência social de questionamentos restritos à capacidade laborativa. Em segundo, analisam a situação de toda a família, o que condiz com as finalidades da proteção social básica (LOAS, art. 6º-A, I). 5.3.3 Definição de família para aferição da renda Nos capítulos anteriores, procurou-se demonstrar que a assistência social tem como eixo de atuação a matricialidade sociofamiliar. Verificou-se que, para intervenção pela via da assistência social, a situação familiar tem grande importância. Não por outra razão, a proteção social básica e a proteção social especial têm entre seus escopos a preservação ou reconstrução de vínculos e a proteção de núcleos familiares. No tocante ao benefício de prestação continuada, a capacidade familiar de prover o sustento do idoso ou da pessoa com deficiência é determinante para concessão (ou não) do benefício. Por isso mesmo, torna-se relevante compreender o que a LOAS define como família e se há flexibilizações do texto legal pela jurisprudência270. A partir dos acórdãos consultados, observa-se a tendência a uma interpretação especificadora271 do artigo 20, § 1º, da LOAS, isto é, considera-se o rol estrito de pessoas mencionadas nesse artigo. Ainda que esse dispositivo tenha sofrido alteração recente, a análise da jurisprudência não perde sua utilidade, pois lida com uma questão que continuará presente nos casos concretos levados à TNU: a oposição entre um 270 As sucessivas definições legal de família foram tratadas anteriormente, cabendo agora apurar como a jurisprudência se pronuncia. 271 Ferraz Júnior (1994, p. 294) afirma que “uma interpretação especificadora parte do pressuposto de que o sentido da norma cabe na letra do seu enunciado”, esclarecendo que, para a teoria dogmática “na interpretação especificadora, a letra da lei está em harmonia com a mens legis ou o espírito da lei, cabendo ao intérprete apenas constatar a coincidência”. 266 critério formal de identificação de grupo familiar e um critério que priorize a configuração observada em cada caso concreto. Além disso, as alterações não afetaram um aspecto essencial da definição legal de família: a importância conferida às pessoas que vivem sob o mesmo teto. Em duas decisões do ano de 2007 (processos 200563060141557 e 200563060083879), interpretação restrita do artigo 20, § 1º, da LOAS é afirmada nos seguintes termos: cristalizou-se no âmbito desta Turma Nacional o entendimento de que o conceito de grupo familiar deve ser obtido mediante interpretação restrita das disposições contidas no § 1º do art. 20 da Lei nº 8.742/93 e no art. 16 da Lei nº 8.213/91, em respeito ao mandamento constitucional que ampara o portador de deficiência e o idoso. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200563060141557. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza e Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200563060083879. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza) Esse entendimento foi reafirmado em julgamento de 2011, no qual acolhe-se a alegação de impossibilidade de cômputo da renda da amiga e das irmãs maiores da autora da ação. A conclusão em relação à amiga poderia decorrer do simples fato de esta não ter dever de alimentos para com a demandante ou da aplicação literal da definição de família contida na LOAS. No caso em exame, a argumentação seguida pelo acórdão foi idêntica em relação às irmãs e amigas e baseou-se na aplicação literal do artigo 20, § 1º, da LOAS: entendo que o acórdão violou entendimento já firmado por esta Turma Nacional no sentido de que para a aferição da composição da renda, a noção de grupo familiar deve ser aferida conforme interpretação restrita do disposto no art. 16 da Lei nº 8.213/91 e no art. 20 da Lei nº 8.742/93, o que exclui do grupo familiar os irmãos maiores não inválidos e a amiga. Considerando que esta foi a razão do provimento do recurso e da improcedência do pedido, merece ser reformado o acórdão para julgar procedente o pedido restabelecendo a sentença. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200461841542217. Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky. Relatora Suplente: Juíza Federal Cristiane Conde Chmatalik.) A mesma orientação é reafirmada em diversos outros julgados. No julgamento do pedido 200770950106637 (Rel. Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho, 16/01/2009) afastou-se do conceito de grupo familiar a sobrinha do autor. Já quanto ao pedido 200835007004024 (Rel. Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho, 267 22/04/2009), a exclusão atingiu o irmão que residia com a autora idosa e os filhos dela, maiores e casados, que residiam em outros locais. A controvérsia foi examinada de forma detida no pedido 200770530025203 (Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano). Discutia-se na ocasião a possibilidade ou não de se considerarem os rendimentos da filha maior, vivendo sob o mesmo teto da requerente. Houve empate entre os juízes e o Presidente da TNU proferiu voto de desempate. Em seu voto, o relator, ao final vencido, pondera que: está fora de questão a possibilidade de a matéria ser regulada pelo legislador ordinário, porquanto é a própria Constituição que, ao prever o benefício de prestação continuada, remeteu a ele a sua disciplina. De qualquer forma, não significa que daí se possa sedimentar nos textos infraconstitucionais qualquer conteúdo, sobretudo com a pretensão de, matematizando o Direito, promover um seqüestro metafísico da realidade. Esse poder divinatório não lhe pertence, pelo que seus discursos somente podem reclamar validade se adequados ao que se mostra àquele que o interpreta e aplica, mediante um processo de cotejo com o que se lhe mostra, para daí construir a norma jurídica resultante. Apenas para tornar mais clara a minha exposição, ilustro com um exemplo. Se temos uma família composta por pai, mãe e um filho maior, esse último, solteiro e único trabalhador da família, com apenas 25 anos e possuidor de uma renda mensal de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), preenchidos os demais requisitos para a percepção do benefício, nenhum óbice haveria para o recebimento do benefício pela mãe ou pai, uma vez que a renda mensal familiar seria nula, exatamente porque o filho, sendo maior, estaria excluído do seu cômputo, nos termos do dispositivo legal mencionado acima. Por outro lado, se temos um pai que recebe um benefício de apenas um salário mínimo, com ele convivendo a esposa e mais dois filhos e um neto, todos menores e sem qualquer renda, ainda que preenchidos os demais requisitos e comprovada a miserabilidade da família, por incontestável laudo sócio-econômico, não faria ele jus ao benefício, eis que, sendo o neto excluído do conceito de família, a renda mensal estaria acima do limite legal (menor que um quarto e aqui igual a um quarto do s.m.). Veja que, mesmo que o laudo social tenha atestado o contrário, no primeiro caso caberia ao Estado prestar assistência a quem dela não necessita efetivamente e, no segundo caso, negá-la, mesmo diante da evidente necessidade! É esta a preocupação que demonstro, ou seja, o apego desenfreado e acrítico ao conteúdo legal, que, sob o marco de uma pretensa pseudocerteza e segurança jurídica, exorciza a realidade, obnubilando o acontecer da Constituição. A prevalecer esse modo de enxergar o Direito, estaremos impedindo o constituir da Constituição e a realização do projeto de vida boa que a sociedade persegue, segundo esse projeto constitucional que pretende projetar-se em seu seio. É ela, a Constituição, que permeia todo o Direito e é a ela, a Constituição, que deve submeter-se o legislador. 268 Não se trata de apologia a qualquer ativismo judicial, mas de por sob a visada constitucional a obra do legislador, a fim de perquirir se da sua atuação resulta qualquer contradição com a Carta. E parece-me que, a tornar absoluto o matemático critério, acabamos por colocar o Direito à margem do mundo da vida, uma desconexão que somente se presta a ratificar a inefetividade dos direitos fundamentais e o acontecer da própria Constituição. Todavia, o voto-desempate segue linha diversa, conforme se observa: A questão está, pois, em definir se o filho maior e capaz, residente com o idoso ou deficiente que pleiteia a obtenção do benefício, se insere no rol de pessoas cuja renda deve ser considerada para aferição da miserabilidade do núcleo familiar, requisito socioeconômico exigido para a concessão do benefício de prestação continuada. [...] Como se vê, para o cálculo da renda familiar per capita mensal admitem-se como integrantes do núcleo familiar: I) o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido; II - os pais; e III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido, concluindo-se daí que o legislador excluiu expressamente o filho maior e capaz, cujos rendimentos, portanto, não podem ser considerados para fins de concessão do amparo social que, gize-se, possui caráter personalíssimo. E nem se diga, d’outro lado, que o benefício deve ser indeferido ao fundamento de que a exclusão dos rendimentos auferidos pelo filho maior conduziria a situações de disparidade, primeiro, porque a norma de regência é expressa e o rol do artigo 16 da Lei nº 8.213/91, taxativo, sendo descabida na espécie interpretação in dubio contra misero, ainda mais tratando-se, como se trata, de benefício de caráter assistencialista, segundo, por ser, em geral, esporádica a colaboração dos filhos maiores no sustento dos seus ascendentes, não sendo razoável deixar a mantença do idoso ou do portador de deficiência ad eternum ao alvitre de outro integrante do grupo familiar, que pode, eventualmente, cessar a cooperação no sustento do hipossuficiente, deixando-o sem condições de prover à sua própria subsistência. (destaques no original) Os casos de adoção de outros critérios para definição de grupo familiar são mais raros, mas estão presentes e indicam que a TNU vem sendo continuamente instada a refletir sobre o tema. Entre os resultados da pesquisa, destaca-se o processo 200770950064928 (Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória). Neste feito, votação majoritária conferiu prevalência ao entendimento de que, no caso concreto, o juiz poderia alterar o alcance do grupo familiar a ser considerado para concessão de benefício assistencial. A relatora chama a atenção para a multiplicidade de arranjos familiares que podem se apresentar. Destaca que o conceito de família sofreu grandes alterações a 269 partir da Constituição Federal de 1988, permitindo que agrupamentos muito diversos sejam igualmente reconhecidos como entidade familiar. Por fim, invoca o conceito de família previsto no artigo 5, inciso II, da Lei n. 11.340, de 07 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha –, isto é, “comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”. Vale transcrever alguns excertos do voto: esta Turma Nacional de Uniformização tem excluído do cálculo da renda familiar per capita os rendimentos obtidos por pessoas estranhas ao núcleo familiar propriamente dito, ou até mesmo de integrantes deste, mas que efetivamente não tenham o necessário comprometimento no tocante à manutenção da família.[...] Não podemos nos esquecer do alcance das decisões da Turma Nacional de Uniformização. Ainda que o incidente seja proposto em face de questões singulares, justamente porque o precedente poderá influir no julgamento de milhares de ações por este país afora, é que entendo que devamos analisar a questão posta da forma mais ampla possível, evitando que decisões fragmentárias venham a destoar do sistema legal e, sobretudo, comprometê-lo. Além de contrariar a própria natureza de nossa sociedade. E é por isso que digo a Vossas Excelências que devemos repensar o que seja família, para os fins de concessão de benefício assistencial. Urge volver os olhos para a realidade presente, tendo o passado apenas como uma referência, um exemplo. Neste aspecto, no período anterior a promulgação da Constituição Federal de 1988, o conceito jurídico de família era extremamente limitado e taxativo, uma vez que o já revogado Código Civil de 1916 somente atribuía o status de família àqueles agrupamentos originados do instituto do matrimônio legítimo. A introdução dos princípios preconizados na Constituição Federal de 1988 acarretaram uma sensível alteração do conceito de família até então predominante no nosso ordenamento jurídico. Sobre o tema, oportuno se faz destacar que os dispositivos constitucionais que tratam do reconhecimento da união estável (art. 226, parágrafo 3º) e da família monoparental (art. 226, parágrafo 4º) de imediato já romperam o monopólio do casamento como único meio legitimador da formação da família. Com a promulgação da Constituição Federal a família passou a ser considerada um agrupamento aberto, plural, multifacetário, fundamentada na busca comum do bem-estar de seus membros, no apoio mútuo, na solidariedade e no afeto. É tão aberto o conceito de família que hoje já se fala, ainda que de forma incipiente, da possibilidade de atribuir aos relacionamentos homo-afetivos o status de entidade familiar, sendo que inúmeros casos julgados pelo Poder Judiciário já foram veiculados na mídia nacional, além de tal possibilidade já ser reconhecida administrativamente por entidades de direito público e privado. Infere-se, portanto, que o conceito moderno de entidade familiar há muito ultrapassou os limites do direito positivado (casamento, união estável e família monoparental) para abarcar todo e qualquer agrupamento de pessoas onde permeie o 270 elemento afeto e exista o ânimo de viver em família. Por outras palavras, o ordenamento jurídico deverá sempre reconhecer como família todo e qualquer grupo no qual os seus membros enxergam uns aos outros como seu familiar. Muito importante se faz destacar que, no plano infra-constitucional, a Lei n.11.340/2006, conhecida por Lei Maria da Penha, em seu artigo 5º, II, adotou expressamente tal conceito moderno de família. [...] proponho, que, na aplicação do art. 20, § 1º, da Lei 8.742/93, o grupo familiar não seja apurado apenas com base no art. 16 da Lei 8.213/91. Não. Proponho que, para fins da concessão do benefício assistencial, esse rol possa ser considerado meramente exemplificativo. Que se tenha em conta a novel alteração trazida pela famosa Lei Maria da Penha. E mais: que seja no caso concreto que o juiz estabeleça, segundo seu juízo, quem integra ou não o grupo familiar. Também reconhecendo entidades familiares diversas daquelas previstas pela LOAS, tem-se o pedido de uniformização 200772950064726 (Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha), em que se discutia a definição de grupo familiar na hipótese de residirem juntos apenas avó e neto. O relator defendeu a preponderância da situação real sobre o critério matemático previsto em lei, sendo acompanhado por outros quatro juízes federais (Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho, Otávio Port, João Carlos Mayer e Élio Wanderley). Portanto, cinco membros da TNU externaram o posicionamento de que o critério então previsto na LOAS não poderia ser acatado em toda e qualquer situação. Em voto-vista, contudo, a Juíza Federal Jacqueline Bilhalva acompanhou a conclusão do relator por fundamento diverso. A magistrada entendeu que, na falta dos pais, o neto é equiparado ao filho, por interpretação do art. 16, § 2º, da Lei n. 8.213/91. Tal entendimento foi acompanhado pelos Juízes Federais Cláudio Canata, Manoel Rolim, Joana Carolina e Sebastião Ogê. No voto-vista, um aspecto deve ser destacado. Defende-se a “interpretação restrita” do artigo 16 da Lei n. 8.213/91 – à qual a LOAS fazia referência para efeito de definição de grupo familiar –, interpretação essa que, na realidade, é de natureza especificadora. Admite-se, porém, a equiparação do neto ao filho, de acordo com a regra do artigo 16, § 2º, da Lei n. 8.213/91: “O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento”. Em suma: 271 preconiza-se uma interpretação especificadora, mas admite-se a analogia na identificação de relações de parentesco. ainda que seja adotada a interpretação restrita do art. 16 da Lei nº 8.213/91 para fins de verificação da composição de grupo familiar em se tratando de benefício assistencial, avô e neto compõem o mesmo núcleo familiar quando, como no caso, na ausência dos pais, o neto se equipara a filho, de acordo com a inteligência do § 2º do mencionado art. 16. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200772950064726. Voto-vista da Juíza Federal Jacqueline Bilhalva) Ainda nesse acordão, constata-se que, embora a conclusão tenha sido unânime, a divisão observada em relação aos fundamentos da decisão indica que não se pode falar em pacificação do entendimento acerca do grupo familiar. Embora prevaleça o entendimento em favor da interpretação literal do conceito de grupo familiar, há registros de posicionamentos em contrário. A existência de divergência ensejadora do pedido de uniformização mostra que essa questão continua sendo debatida em primeiro e segundo grau de jurisdição. O reconhecimento de situações não compreendidas nos exatos limites das hipóteses legais – ainda que por fundamentos que não relativizam esses critérios de forma explícita – somado a mais uma alteração do artigo 20, § 1º, da LOAS indica a possibilidade de revisão da jurisprudência dominante da TNU. 5.3.4 Critério objetivo de renda Aspecto muito criticado na disciplina legal do benefício assistencial de prestação continuada é a restrição do benefício às hipóteses de renda per capita familiar inferior a um quarto do salário mínimo, ao lado do requisito deficiência ou idade superior a 65 anos. A relativização desse critério sempre esteve presente na jurisprudência brasileira. Além disso, como já ressaltado, a constitucionalidade do artigo 20, § 3º, da LOAS foi apreciada (e afirmada) no STF. Apesar disso, os órgãos do Poder Judiciário continuaram a se pronunciar no sentido de que a renda per capita familiar inferior a um quarto do salário mínimo não era o único critério a ser observado para identificar a 272 situação de necessidade daquele que postula o benefício – ou, nas palavras de muitas dessas decisões, da miserabilidade do postulante do benefício. No âmbito da TNU, há clara predominância de decisões que não se atêm ao limite de renda previsto em lei para concessão do benefício assistencial. A maior parte das decisões afirma que a renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo é um limite mínimo, que não afasta o exame de outros elementos do caso concreto. O argumento de que o artigo 20, § 3º, da LOAS não seria incompatível com o exame da hipossuficiência em cada caso concreto surge até como forma de compatibilizar as decisões judiciais ao texto da LOAS e à decisão do STF acerca da constitucionalidade desse dispositivo. Em síntese, esses acórdãos indicam que, além do cálculo da renda per capita, devem ser avaliadas as condições específicas de cada caso concreto. Constrói-se um raciocínio segundo o qual haveria presunção absoluta de hipossuficiência quando a renda estivesse abaixo do limite legal. Superado este patamar, seria conferida primazia à realidade na aferição da hipossuficiência. Nas decisões analisadas, não se identificam hipóteses de sobreposição da primazia da realidade ao atendimento do critério objetivo, daí porque se fala em uma presunção absoluta. Explicando melhor: ainda que as situações observadas em um determinado caso concreto afastem a prova da hipossuficiência, a constatação de que a renda per capita não supera um quarto do salário mínimo é bastante para a concessão do benefício. Entre os acórdãos analisados, no único caso em que a sobreposição da prova de hipossuficiência ao critério da renda foi ventilada, a questão foi enfrentada nos seguintes moldes: Em seu artigo 20, § 3º, a referida lei menciona ser incapaz de prover o seu sustento aquele cuja renda mensal per capita do grupo familiar não ultrapasse ¼ do salário mínimo. Ocorre que tal critério possui caráter de presunção absoluta de miserabilidade, não tendo a lei previsto exceções. Assim, não cabe ao intérprete restringir direitos que não foram restringidos pela norma, sob pena de violar a própria legalidade, já que estaria criando critério não previsto em lei para o caso. Ademais, o montante de ¼ do salário mínimo para cada integrante do grupo familiar constitui o mínimo apto a gerar a satisfação das necessidades básicas, considerando-se hipossuficiente economicamente para fins de concessão de LOAS aquele que se encontra com renda neste patamar, independente de – aparentemente – possuir residência que lhe garanta um mínimo de conforto. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870650015977. Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky. Relatora Suplente: Juíza Federal Cristiane Conde Chmatalik, destacou-se.) 273 Na grande maioria dos processos que envolviam a discussão da renda, a TNU consignou a não exclusividade do limite de renda para análise da situação financeira do requerente do benefício e de sua família. É necessário ressaltar, contudo, que houve um período em que o órgão aplicou o limite previsto na LOAS como único critério de aferição da hipossuficiência em matéria de benefício assistencial. No conjunto de acórdãos analisados, verifica-se que são julgamentos ocorridos entre o início de 2006 e o início de 2007, conforme tabela: Processos em que houve aplicação do critério objetivo de renda per capita Processo Data do julgamento Data da publicação 200270040071041 04.12.2006 26.02.2007 200351510059076 27.03.2006 02.05.2006 200463060057293 05.02.2007 26.02.2007 200470950095456 24.04.2006 30.05.2006 200536007023553 14.08.2006 11.09.2006 200570950110656 04.12.2006 18.12.2006 200663060020461 04.12.2006 26.02.2007 Depreende-se da leitura dessas decisões que o julgamento da ADI n. 1.232-1/DF pelo STF – seguido do acolhimento de diversas reclamações impetradas contra decisões que flexibilizavam o critério legal – foi determinante para a adoção de posicionamento mais restritivo pela TNU. Entre as sete decisões, a proferida no processo 200351510059076 é a única que não faz referência expressa à ADI n. 1.232-1/DF. Essa conclusão decorre da observação de que na imensa maioria das decisões que aplicaram estritamente o critério legal invocou-se a decisão do STF, como exemplificam alguns excertos ora transcritos: Discute-se no presente incidente a aplicação do limite estabelecido pelo § 3º do artigo 20 da Lei 8.742/1993 para aferição da hipossuficiência econômica em sede de pedido de benefício assistencial. Com efeito, esse colegiado vinha concluindo pela possibilidade de adoção de outros critérios, a par do previsto no dispositivo supramencionado, para fins de aferição da miserabilidade, levando, inclusive, à edição da Súmula 11 nesse sentido. 274 Ocorre, todavia, que a partir do julgamento do Pedido de Uniformização nº 2004.70.95.009545-6, ocorrido na sessão de 24 de abril de 2006, a Turma Nacional de Uniformização passou a adequar seus julgados ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal segundo o qual o único critério para aferição da miserabilidade é a observância da renda per capita familiar não superior a ¼ de salário mínimo, nos exatos termos do art. 20 § 3º da Lei nº 8.742/1993, não comportando temperamentos ou adequações caso a caso levando ao cancelamento da Súmula mencionada. Assim, em que pese meu posicionamento no sentido de sopesar outras provas da miserabilidade, passo também a adotar o entendimento do STF. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200463060057293. Relatora: Juíza Federal Renata Andrade Lotufo, destacou-se) Verificado o dissenso, adentrando ao mérito da questão, acosto-me ao entendimento sufragado pela colenda Corte Suprema, no sentido de que limite legal de ¼ salário-mínimo, como renda per capita do grupo familiar, é critério objetivo (ver ADIN 1232), não podendo ser afastado, pois, afastar o critério adotado pelo artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/93, equivale à declaração de sua inconstitucionalidade, impondo-se, assim, a necessidade de comprovação de que a renda per capita da família seja inferior a um quarto do salário-mínimo. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200663060020461. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos.) Cuidam-se de embargos declaratórios, interpostos pelo INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, perseguindo édito judicial que, com eficácia infringente, negue provimento ao recurso inominado, alegando o seguinte: a) consoante o decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN 1.232 – DF, bem como na Reclamação 2.323-1 – PR, o requisito da miserabilidade não admite outro critério de demonstração senão o previsto no art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93; b) visando adequar-se ao entendimento do Pretório Excelso, esta Turma Nacional de Uniformização resolveu por cancelar o verbete de sua Súmula 11. [...] Ressalto que, sem sombra de dúvida, o aresto embargado não padece de omissão, obscuridade, dúvida ou contradição. Por essa razão, poder-se-ia, ao primeiro súbito de olhos, apontar o não cabimento dos declaratórios. No entanto, não posso negar que a decisão atacada se atrita com o deliberado pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN 1.232 – DF, a qual, ex vi do art. 102, § 2º, da Lei Fundamental, porta efeito vinculativo para os demais órgãos do Poder Judiciário. [...] Considerando-se os princípios da informalidade e da simplicidade que informam o rito procedimental dos juizados especiais (Lei 9.099/95, art. 2º; Lei 10.259/2001, art. 1º), aprovou-se, no 3º FONAJEF, Enunciado, sob o nº 56, entendendo aplicável os arts. 475 – L, § 1º, e 741, parágrafo único, ambos do CPC, para que o basta simples petição. Em sendo assim, não vislumbro, sob o prisma formal, a impossibilidade desta Turma Nacional, em sede de embargos de declaração, mesmo à falta dos pressupostos do art. 535, I e II, do CPC, 275 determinar a adequação de seu julgamento à jurisprudência vinculativa do Supremo Tribunal Federal. [...] Com essas considerações, VOTO pelo conhecimento dos embargos de declaração, dando-lhes efeitos infringentes para negar provimento ao recurso inominado, haja vista a inexigibilidade da decisão embargada. (Embargos de Declaração no Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200270040071041. Relator: Juiz Federal Edilson Pereira Nobre Júnior, destacou-se) A partir da leitura desses acórdãos e da verificação de que posicionamentos mais restritivos acabaram por ser superados, constata-se que a TNU vem adotando entendimento que prioriza o exame de cada situação financeira concreta, salvo prova de que a renda se encontra dentro do limite previsto no art. 20, § 3º, da LOAS. Isso revela que a análise de hipossuficiência na concessão do benefício deve, alternativamente, identificar algumas dessas hipóteses: (a) preenchido o critério de renda previsto na LOAS, presume-se a hipossuficiência; (b) não preenchido o critério previsto na LOAS, cabe ao interessado demonstrar sua necessidade. Assim, o critério aritmético coexiste com um critério qualitativo, atento para a situação real de cada postulante do benefício. Deixando de limitar as análises de necessidade financeira a meros cálculos aritméticos, a jurisprudência prestigia a garantia constitucional de que a assistência social será prestada a quem dela necessitar. Nessa medida, a TNU demonstra interpretar o artigo 203 da Constituição Federal à luz dos objetivos da República, especialmente dos objetivos traçados no artigo 3º, inciso III, da Constituição Federal. No entanto, as decisões analisadas não fixam os critérios que, para além dos cálculos aritméticos, devem reger a concessão do benefício assistencial. Não se estabelecem, por exemplo, as necessidades cujo atendimento ou desatendimento são considerados relevantes para a concessão do benefício. A fixação desses parâmetros poderia contribuir para a adoção de critérios uniformes de concessão judicial desse benefício, evitando o casuísmo. 5.3.5 Aplicação do Estatuto do Idoso, artigo 34, parágrafo único Ainda no tocante à análise da renda individual e familiar para concessão de benefício assistencial, observa-se que o Estatuto do Idoso – Lei n. 10.741, de 03 de outubro de 2003 –, especialmente em seu artigo 34, parágrafo único, impulsionou a 276 construção de argumentos que ampliam o espectro de concessão do benefício de prestação continuada. Conforme explanado anteriormente, o dispositivo permitiu a concessão de benefício assistencial à pessoa idosa ainda que outro integrante idoso do mesmo núcleo familiar já receba o mesmo benefício. Diversos órgãos do Poder Judiciário estenderam a aplicação de tal dispositivo a outras hipóteses não albergadas pelo texto da lei. Muitas decisões se valem da aplicação analógica dessa previsão a outras situações. Seguem alguns exemplos: Entendo ainda que na aferição da renda familiar da família do postulante de benefício assistencial, não deve ser incluída a renda auferida pelo idoso que auferir exclusivamente renda proveniente de benefício previdenciário, no valor de um salário mínimo, seja benefício assistencial ou outro benefício previdenciário qualquer. E esse vem sendo o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça e por essa Turma Nacional de Uniformização concluindo que, a partir da exegese das disposições do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) e do contido no art. 203, V, da Constituição Federal deriva a conclusão de que não apenas o valor de benefício assistencial concedido ao idoso deve ser excluído para o cômputo da renda familiar com a finalidade de concessão de outro benefício assistencial, mas também o valor do benefício previdenciário no valor mínimo, pago ao idoso componente no núcleo familiar. Entender de forma contrária seria dar tratamento desigual para situações fáticas idênticas, sob o ângulo do pretendente do novo benefício assistencial. Saliento, outrossim, que esta Turma Nacional de Uniformização posicionou-se no sentido de que a aplicação analógica do disposto no parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, independe de quaisquer sinais de miserabilidade. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200832007038700. Relator: Juiz Federal Cláudio Roberto Canata, destacou-se) Por força do disposto no art. 34 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003): [...] De acordo com a interpretação literal deste dispositivo legal, temos: I - como destinatário da norma um idoso, que pretende a concessão de um benefício assistencial (dimensão subjetiva); II - como titular de benefício já concedido qualquer membro da família (composta por idosos) (dimensão subjetiva); e III como benefício já concedido suscetível de não ser computado no cálculo da renda familiar per capita um benefício assistencial (dimensão objetiva). Literalmente, fora desse contexto não seria possível fazer outra exclusão do cálculo da renda familiar per capita. Ocorre que nesta seara o Direito Positivo apresenta as seguintes lacunas: 1) quando quem está pretendendo a concessão do benefício assistencial é um deficiente; 2) quando o titular de benefício já concedido é um membro da família, mas não é idoso (e pode nem ser deficiente); e 3) quando o benefício já concedido a qualquer membro da família é um benefício previdenciário, e, à semelhança do benefício 277 assistencial, é um benefício de valor mínimo, com proventos mensais de um salário mínimo. Diante da existência destas lacunas se descortina a possibilidade do uso da analogia para a integração da lei. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950034000. Relatora: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. destacou-se.) Uma vez que as decisões recorrem à analogia para ampliar o espectro de proteção da norma jurídica, a primeira pergunta que cabe fazer é se realmente há uma lacuna a ser preenchida. Sim, porque se a analogia é técnica de integração de lacunas, o pressuposto é de que existe alguma incompletude. De acordo com Bobbio, pode-se falar em incompletude diante de “um sistema no qual não existem nem a norma que proíbe um certo comportamento nem aquela que o permite” (BOBBIO, 1997, p. 16). A lacuna não decorreria propriamente da ausência de soluções jurídicas para um determinado caso, mas da falta de critério para escolha da norma a ser aplicada a esse caso (BOBBIO, 1997, p. 137-139). A incompletude do sistema estaria demonstrada pela falta de critério apto a direcionar a tomada de decisões entre escolhas diametralmente opostas. Além das lacunas reais, Bobbio esclarece ainda a possibilidade de se falar em lacunas ideológicas. Estas últimas não se configuram pela falta de solução, mas pela falta de solução satisfatória ou de norma justa, assim entendida como “norma que se desejaria que existisse mas não existe” (BOBBIO, 1997, p. 140). Bobbio pondera que, em relação ao direito positivo, as lacunas de que se deve ocupar são as reais, não as ideológicas. Os problemas relativos às lacunas reais são sanados pelos tradicionais métodos de integração do ordenamento jurídico. No Brasil, há uma regra geral de preenchimento de lacunas mediante emprego de analogia, costumes e princípios gerais do direito (Decreto-Lei n. 4.657/42, art. 4º). No âmbito dos juizados especiais, o artigo 6º da Lei n. 9.099/95, ao prever que “o Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum”, franqueia a resolução de controvérsias por meio de juízos de equidade272. Configurada a incompletude e, portanto, lacunas reais, a norma estabelecida para uma facti species pode ser aplicada a outra, para a qual não existe norma, mediante 272 A disposição é aplicável no âmbito dos Juizados Especiais Federais por força da Lei n. 10.259/01, artigo 1º: “Art. 1º São instituídos os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, aos quais se aplica, no que não conflitar com esta Lei, o disposto na Lei no 9.099, de 26.091995”. 278 identificação de semelhanças entre os supostos fáticos de uma e outra (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 300). De outra senda, lacunas ideológicas não são supridas por meio dos métodos de integração, o que inclui a analogia. E não o são porque a incompletude do ordenamento não se verifica nessas hipóteses. O que há é a constatação de que os efeitos da aplicação da norma, tal qual positivada, de alguma forma podem ser tidos como injustos. Nessas hipóteses a interpretação jurídica pode, de fato, trazer instrumentos para a construção de respostas equânimes – ou que possam, de qualquer forma, ser consideradas mais justas – sem o recurso à analogia. No caso da assistência social, a análise do princípio da igualdade e do critério geral de necessidade como requisito de acesso às prestações da seguridade social pode ser de grande valia. Em qualquer hipótese, é essencial ter claro que não se trata de lacuna real. Essa explicação é necessária para que se verifique se, nos casos analisados, a aplicação do artigo 34 do Estatuto do Idoso decorre de lacunas reais. Basta um exame do artigo 20, § 3º, da LOAS e do artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso para que sejam identificadas, respectivamente, uma norma geral e uma norma especial. Os casos que não se amoldam à descrição contida na norma especial podem ser subsumidos à norma geral. Portanto, admitindo-se como válidas as duas normas em questão, não há lacuna. A hipótese prevista na norma especial não abrange situações como: (a) concessão de dois benefícios assistenciais a duas pessoas com deficiência integrantes do mesmo núcleo familiar; (b) concessão de dois benefícios assistenciais a um idoso e uma pessoa com deficiência integrantes do mesmo núcleo familiar; (c) concessão de benefício assistencial a idoso quando outro membro da família, também idoso, auferir renda mensal de um salário mínimo, proveniente de benefício previdenciário ou de rendimentos de trabalho; (d) concessão de benefício assistencial a idoso quando outro membro da família, em qualquer condição, auferir renda mensal de um salário mínimo, proveniente de benefício previdenciário ou de rendimentos de trabalho; (e) concessão de benefício assistencial a pessoa com deficiência quando outro membro da família, em qualquer condição, auferir renda mensal de um salário mínimo, proveniente de benefício previdenciário ou de rendimentos de trabalho; (f) concessão de benefício assistencial a idoso ou pessoa com deficiência quando outro membro da família, em qualquer condição, auferir renda mensal superior a um salário mínimo. 279 A questão passa, na realidade, pela falta de isonomia no tratamento dos potenciais requerentes do benefício de prestação continuada. Por força do Estatuto do Idoso, dois idosos integrantes do mesmo núcleo familiar podem receber dois benefícios assistenciais. Nessas hipóteses, não se aplica o critério de renda inferior a um quarto de salário mínimo, de modo que a norma especial se mostra nitidamente mais benéfica aos requerentes do benefício. A distinção estabelecida pelo artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso em relação aos que se submetem apenas ao artigo 20, § 3º, da LOAS é de fato anti-isonômica. Ensina Bandeira de Mello (2009, p. 17) que discriminações são compatíveis com a cláusula igualitária quando existente uma correlação lógica entre a peculiaridade diferencial residente no objeto – e acolhida pela norma – e a desigualdade de tratamento decorrente dessa peculiaridade. Ainda segundo o autor, a correlação deve ser compatível com interesses prestigiados na Constituição. Bandeira de Mello (2009, p. 21) aponta três aspectos que devem ser analisados para que se reconheça se uma diferenciação pode ou não resultar em quebra da isonomia: o elemento que serve como fator de desigualação; a correlação lógica abstrata entre o fator de discrímen e a disparidade de tratamento jurídico; e a consonância da correlação lógica com interesses absorvidos no sistema constitucional. Trazendo essas considerações para as normas em exame, percebe-se que o fator de desigualação eleito pelo Estatuto do Idoso diz respeito aos destinatários da proteção (idosos) e à natureza do benefício recebido pelo membro da família (assistencial). Ocorre que não há justificativa racional nessa desigualdade. A adoção de um critério formal pelo artigo 34, parágrafo único, seria justificável se fosse possível reconhecer que as necessidades financeiras de uma pessoa idosa são superiores às de uma pessoa com deficiência, suposição que pode ser contrariada até mesmo pela variedade de quadros de deficiência que demandam atenções muitos específicas e onerosas. Tampouco se pode afirmar que a renda de um salário mínimo recebida por uma pessoa com deficiência integrante de uma determinada família supre as necessidades do grupo de forma mais adequada do que a renda auferida por um idoso. Além disso, a natureza do rendimento – benefício previdenciário, benefício assistencial, rendimentos de trabalho ou qualquer outra fonte de renda – não poderia ser tomada como fator de discrímen se o que determina a necessidade é a disponibilidade de recursos da família, e não a natureza do rendimento. 280 A distinção não se coaduna com as diretrizes constitucionais que regem a assistência social. Não se coaduna porque, no tocante ao benefício em pauta, idosos e pessoas com deficiência gozam de mesma proteção constitucional e essa proteção obedece ao critério geral de necessidade previsto no caput do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal. Tampouco leva-se em conta o critério constitucional de necessidade que ampara os dois grupos de destinatários do benefício. Por fim, se a Constituição Federal elege o valor social do trabalho como um de seus fundamentos, não há sentido em adotar um critério que favoreça apenas titulares de benefícios assistenciais em detrimento daqueles que têm sua renda calcada no trabalho, seja pela remuneração direta deste, seja pela proteção previdenciária que, na maioria das vezes, resulta do trabalho. A partir dessas considerações e do exame das decisões da TNU, depreende-se que há o reconhecimento de um tratamento anti-isonômico injustificado. A essa constatação segue-se o afastamento do critério previsto no artigo 20, § 3º, da LOAS, o que pressupõe que essa norma seja considerada inválida, ao menos para parte das hipóteses levada ao exame daquele órgão. Diante do reconhecimento de invalidade – no que estaria implícita a conclusão pela inconstitucionalidade da regra geral – é que surge a lacuna e, aí sim, justifica-se o recurso à aplicação analógica do artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso. O raciocínio é mais complexo do que pode parecer à primeira vista. Note-se que as decisões não explicitam juízos de inconstitucionalidade sobre as duas normas invocadas. Isso é compreensível até em razão da celeuma envolvendo o pronunciamento de constitucionalidade do artigo 20, § 3º, da LOAS na ADI n. 1.232-1/DF. Todavia, a reconstrução da linha de raciocínio que leva à aplicação da norma especial às hipóteses que, em princípio, poderiam ser sanadas pela norma geral, conduz a essa conclusão. Uma vez reconhecida a possibilidade de aplicação analógica da regra especial contida no Estatuto do Idoso, resta verificar as relações de semelhança que estão na base da aplicação dessa norma a outros casos concretos. Nesse ponto, surgem outras dificuldades relacionadas à identificação de quais relações de semelhança entre os supostos fáticos serão levadas em conta. A semelhança pode se dar em relação às seguintes variáveis: (a) a pessoa que pretende a concessão do 281 benefício assistencial; (b) o familiar do requente que possui renda; (c) a natureza da renda; (d) o valor do benefício. Algumas possibilidades acerca do que se quer proteger por meio dessas normas – possibilidades que não se excluem reciprocamente – podem ser consideradas. A primeira delas é assegurar que o titular da renda conte com um salário mínimo para atender às próprias necessidades, antes de prover o sustento de seu familiar. Outra possibilidade é, admitindo-se a insuficiência do salário mínimo recebido por outro membro do núcleo familiar para custear as despesas do idoso ou pessoa com deficiência, assegurar a estes últimos a obtenção de rendimentos para as próprias necessidades. Conforme a resposta, surgem muitas possibilidades de aplicação analógica do artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, destacando-se: (a) exclusão do cálculo da renda per capita do benefício previdenciário de um salário mínimo recebido por outro idoso do grupo familiar; (b) aplicação da regra para concessão do benefício à pessoa com deficiência, e não apenas ao idoso; (c) exclusão, no cálculo da renda per capita, do benefício assistencial auferido por uma pessoa com deficiência integrante do grupo familiar; (d) exclusão de qualquer outro rendimento de um salário mínimo recebido por membro do grupo familiar, independentemente de ser pessoa idosa ou com deficiência; (e) reserva do equivalente a um salário mínimo em favor do titular da renda, dividindo-se o restante entre os demais membros do grupo familiar. Vale analisar as relações de semelhança admitidas pela TNU. Com relação à pessoa que pretende a concessão do benefício assistencial, constata-se que a analogia amplia a aplicação do artigo 34 para a hipótese em que o requerente é pessoa com deficiência. Isso fica claro no Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950034000, anteriormente mencionado, em que se reconhece que idosos e pessoa com deficiência são destinatários da mesma proteção constitucional e, por esse motivo, fazem jus à mesma proteção. o presente caso envolve um benefício assistencial destinado a uma deficiente [...] embora o idoso não se identifique socialmente, culturalmente e fisicamente com o deficiente, tanto o idoso quanto o deficiente que buscam a concessão de benefício assistencial são dotados da mesma dignidade enquanto beneficiários de um mesmo benefício de mesmo valor por força de expressa disposição constitucional (art. 203, inc. V, da CF/88) e de expressas disposições legais [no que diz respeito ao princípio da igualdade de direitos no 282 acesso ao atendimento (art. 4º, inc. IV, primeira parte, Lei nº 8.742/93) e quanto à previsão de um mesmo benefício de mesmo valor (art. 20 da Lei nº 8.742/93)]. Portanto, nada justifica que se lhes dispense tratamento normativo diferenciado, não havendo justificativa para a proteção do idoso ser mais ampla do que a proteção do deficiente. Ora, a Assistência Social se destina à cobertura do mínimo existencial consubstanciado nos bens absolutamente necessários à sobrevivência de qualquer cidadão. E o mínimo existencial do idoso não difere do mínimo existencial do deficiente. (destacou-se) Quanto ao familiar do requente que possui renda duas controvérsia surgem. A primeira refere-se à aplicação da analogia apenas quando o titular de renda é idoso ou também quando se tratar de pessoa com deficiência ou pessoa não enquadrada em nenhuma dessas duas possibilidades. A segunda, diz respeito à natureza da renda que pode ser excluída. Com relação ao titular da renda, há uma certa oscilação nos posicionamentos. No pedido de uniformização 200563060143270, julgado em 25 de abril de 2007, a leitura do voto-vista proferido pelo Juiz Federal Marcos Roberto Araújo dos Santos e seguido pelos demais membros da TNU com exceção da relatora, poderia indicar limitação da analogia aos rendimentos do idoso com mais de 65 anos: Dentre as peculiaridades do caso concreto, a decisão recorrida deixou de sopesar que, no caso do idoso, ante a disposição contida no parágrafo único, do art. 34, da Lei nº 10.741/03, é necessário excluir da renda familiar, para efeito de aferição da renda per capita, aquela proveniente do membro da família que, contando com mais de 65 anos de idade, receba benefício de valor mínimo, seja ele de natureza previdenciária ou assistencial. Importante salientar, neste particular, que embora a norma em referência faça menção apenas à hipótese do benefício referido em seu caput (assistencial), evidencia-se que, em atenção ao princípio da isonomia, deve a mesma ser observada nos casos de qualquer benefício de valor mínimo, atendido, sempre, o requisito etário do respectivo beneficiário. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200563060143270. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Relator para o Acórdão: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo dos Santos, destacou-se) Uma interpretação a contrario sensu desse excerto sugere que apenas rendimentos de pessoas idosas seriam excluídas do cálculo da renda, mas outros acórdãos indicam o contrário. Porém, em julgamento ocorrido em 13 de agosto de 2007, menos de quatro meses depois do julgamento do Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei 283 Federal 200563060143270, assegurou-se a concessão de benefício assistencial numa situação em que o familiar do requerente era pessoa com deficiência que auferia benefício de valor mínimo: por meio de uma interpretação de eqüidade, com fulcro no disposto no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, o benefício de valor mínimo, assistencial ou aposentadoria, tanto ao idoso como ao deficiente, não podem ser levados em consideração para o cômputo da renda familiar per capita para concessão de outro benefício assistencial. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009040777. Relatora: Juíza Federal Mônica Autran Machado Nobre, destacou-se) Também em votação unânime, o acórdão proferido no Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200683005103371 consigna que a renda da pessoa com deficiência deveria ser descontada para efeito de aplicação da regra especial do artigo 34. Por outro lado, no aresto desta Turma, indicado pela autora, registro o restabelecimento “do benefício assistencial, interpretando o art. 34, parágrafo único do estatuto do idoso, para o fim de excluir do cômputo da renda familiar o benefício assistencial concedido ao deficiente, por estar juntamente com o idoso protegido pelo art. 203, V, da CF”. Ora, deste simples cotejo já se percebe que se trata de causas fundadas em um mesmo suporte fático, porém com desfechos diversos, o que caracteriza a dissidência jurisprudencial a justificar a intervenção deste colegiado. De fato, se o fundamento principal para a não exclusão do benefício previdenciário da mãe da requerente é o de que esta última recebe um benefício previdenciário e não um benefício assistencial motivado pela idade avançada, então é contrário à situação análoga, em que o benefício assistencial do deficiente foi desconsiderado para o cômputo da renda mensal familiar per capita. Pouco importa em que pólo esteja o deficiente, se figura como requerente do benefício assistencial ou se já o percebe e deve ter essa renda excluída. Se o fundamento do acórdão impugnado é o de que somente idosos poderiam gozar do benefício da exclusão da renda, aqui o aresto da Turma o desconfirma. [...] Ante o exposto CONHEÇO E DOU PROVIMENTO AO INCIDENTE. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200683005103371. Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha, destaque no original) Em outra decisão, cuidando de concessão de benefício assistencial a pessoa com deficiência em cuja família existia outra pessoa com deficiência titular de benefício 284 assistencial, entendeu-se que caberia a exclusão de outro benefício assistencial, de qualquer espécie, conforme trecho do voto vencedor: [...] o presente caso envolve um benefício assistencial destinado a um deficiente, em cuja família há um outro deficiente que recebe um benefício assistencial de valor mínimo, passo à análise da primeira e da segunda lacunas mencionadas. [...] Destarte, aplicando-se analogicamente o disposto no parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003), um benefício assistencial recebido pelo pai (no caso uma pessoa não idosa) do autor (no caso um deficiente), deve ser excluído da renda do grupo familiar para fins de apuração da renda per capita, assim como também deve ser excluída a própria pessoa do pai do autor para fins de cálculo, o que significa que para fins de concessão do benefício a renda deverá ser aferida com base no grupo familiar composto apenas pelo autor e por sua mãe, como entendeu o acórdão ora recorrido. Ante o exposto, voto por negar provimento ao pedido para uniformizar o entendimento de que “para fins de concessão de benefício assistencial a deficiente, o disposto no parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) se aplica por analogia para a exclusão de um benefício assistencial recebido por outro membro do grupo familiar, ainda que não seja idoso, o qual também fica excluído do grupo para fins de cálculo da renda familiar per capita”. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200783005023811. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Relatora para o Acórdão: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva, destaque no original) Essas decisões sugerem que a proteção da renda abarcaria idosos e pessoas com deficiência. No entanto, esses acórdãos não autorizam a exclusão do benefício de valor mínimo ainda que não se trate de familiar idoso ou com deficiência273. A natureza do rendimento, da mesma forma, é tomada como outra relação de semelhança relevante. Esse entendimento, inclusive, afasta a aplicação analógica do artigo 34 do Estatuto do Idoso quando os ganhos de um salário mínimo decorram de remuneração do trabalho. Nesse caso, deve ser aplicada a regra geral da LOAS, com possibilidade de se aferir a necessidade financeira por outros meios de prova. Em suma: 273 Em reforço a essa afirmação, foram encontradas decisões dando conta de que a condição do titular da renda de um salário mínimo é determinante para a aplicação do artigo 34 do Estatuto do Idoso, sugerindo inclusive que somente seja excluída a renda de outro idoso. Foram localizadas, fora do universo de decisões inicialmente selecionadas, 10 acórdãos contendo a afirmação de que o propósito do Estatuto do Idoso é proteger a renda do idoso contra aviltamento decorrente da necessidade de empregar esses ganhos nas despesas de outro idoso ou pessoa com deficiência. Cuida-se das decisões proferidas nos Pedidos de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200672950022673, 200770510074026, 200770510079127, 200770590036096, 200770950147159, 200772510007868, 200772520024887, 200772640007923, 200870950034436 e 200870950035910. 285 não se admite a exclusão da renda de um salário mínimo. É o que se depreende da seguinte decisão abaixo: A partir da exegese das disposições do supracitado diploma legal, bem como do contido no art. 203, V, da Constituição Federal, aferindo-se de forma sistemática e teleológica o sentido e alcance da norma veiculada no parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso, tendose em conta os princípios da igualdade e da razoabilidade, a finalidade da legislação protetiva e o valor da dignidade da pessoa humana, que perpassa todo o sistema constitucional, forçoso concluir que lícita é a interpretação extensiva do dispositivo, considerando não computável na renda mensal familiar per capita qualquer outro benefício percebido por idoso no valor de 1 (um) salário mínimo. Isto porque a hipótese normativa descrita quis enfatizar, mais do que a natureza ou origem, o valor do benefício mensal de 1 (um) salário mínimo, recebido por outro membro da família do idoso, como única fonte de recursos, como discrímen logicamente relevante na avaliação da situação econômica e caracterização da condição de pobreza ou miserabilidade do grupo familiar. Assim, por meio de uma interpretação de eqüidade, com fulcro no disposto no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, o benefício de valor mínimo, assistencial ou aposentadoria, tanto ao idoso como ao deficiente, não podem ser levados em consideração para o cômputo da renda familiar per capita para concessão de outro benefício assistencial. Verifico, no entanto, que no caso dos autos a renda da esposa do autor é proveniente da remuneração percebida como servidora pública que, apesar de corresponder ao valor mínimo, não se enquadra como benefício assistencial ou aposentadoria. Todavia, com razão o requerente quanto à alegação de que art. 20, § 3º da Lei nº 8.742/93 não pode ser utilizado como o único critério válido para comprovar a condição de miserabilidade preceituado no artigo 203, V, da Constituição Federal. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009039683. Relatora: Juíza Federal Mônica Autran Machado Nobre, destacou-se) No Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200584015002615, a relatora do acórdão expressamente afirma que: a renda familiar de um salário mínimo, percebida por um membro da família, independentemente da origem da receita, não poderá ser impedimento para que outro membro, cumprindo os demais requisitos exigidos pela Lei nº 8.742/93, aufira o benefício assistencial, pois a condição econômica para a sobrevivência é idêntica àquela situação de que trata o parágrafo único do artigo 34 da Lei nº 10.741/2003. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200584015002615. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória.) 286 Porém, em voto-vista, o Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza discordou desse entendimento: na hipótese ora analisada, não cabe analogia ao disposto no art.34, parágrafo único da Lei nº 10.741/2003. O referido dispositivo legal é taxativo ao fixar sua aplicabilidade apenas aos idosos maiores de 65 anos, o que não é o caso; a genitora do autor possui 63 anos, motivo pelo qual a renda advinda da aposentadoria que percebe deve ser considerada para fins de apuração da renda familiar. Não há que se falar em interpretação extensiva no caso concreto, uma vez que o próprio Estatuto protetivo do idoso condiciona a aplicação do dispositivo aos beneficiários com mais de 65 anos de idade. Não obstante, mister esclarecer que o dispositivo regulamentador do conceito constitucional de necessidade (art. 203, V) deve ser interpretado de acordo com a Constituição e serve apenas como parâmetro objetivo de medida das condições de sustento dos pretendentes ao benefício. Embora não se possa depreender qual argumento prevaleceu no julgamento do Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200584015002615, a constatação da divergência entre os integrantes da TNU, somada ao teor da decisão proferida no processo 200543009039683 e às considerações sobre a importância de se perquirir quem é o titular da renda antes de se proceder à exclusão do valor da renda, indicam a prevalência do entendimento segundo o qual a exclusão da renda de um salário mínimo não é indiscriminada. Nesse sentido, a exclusão só atinge ganhos que decorram de benefícios mantidos pela seguridade social e que sejam titularizados por pessoas idosas ou com deficiência. A última variável a ser avaliada refere-se ao valor do benefício. Sobre esse ponto, importa saber se o titular do rendimento sempre terá direito à reserva de um salário mínimo em seu favor. Em caso afirmativo, não haveria a exclusão do rendimento, mas sim o desconto do equivalente ao salário mínimo como etapa prévia ao cálculo da renda per capita. Esse tema foi enfrentado no pedido de uniformização 200663060074275. Na votação, discutia-se a possibilidade de se calcular a renda per capita mediante desconto do equivalente a um salário mínimo recebido por idoso, quando a renda deste ultrapassasse o valor mínimo. Houve empate entre os juízes que participaram da votação e, após pronunciamento do Presidente da TNU, prevaleceu o entendimento pela 287 impossibilidade de aplicação do artigo 34 na hipótese de rendimentos superiores ao mínimo pagos a outro membro do grupo familiar. O acordão está assim ementado: PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO. DIVERGÊNCIA ENTRE TURMAS RECURSAIS DE REGIÕES DIVERSAS. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. EXCLUSÃO DO ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 10.741/2003. NÃO APLICAÇÃO AOS BENEFÍCIOS DE VALOR SUPERIOR A UM SALÁRIO MÍNIMO. CONHECIMENTO E PROVIMENTO. I - Divergência entre turmas recursais sitas em regiões distintas, acerca do alcance do art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003, para fins de concessão de benefício assistencial, enseja o conhecimento de pedido de uniformização. II - Embora se possa sustentar que a exclusão da renda do idoso do conjunto de rendimentos da entidade familiar, prevista no art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003, abranja igualmente as aposentadorias e as prestações assistenciais, não se concebe que tal ocorra quando o seu valor supere o montante de um salário mínimo. Isto porque, tratando-se o mencionado preceito legal de norma que anuncia exceção, a sua aplicação a situações análogas deve ser operada com restrições. III - Recurso conhecido e provido. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200663060074275, Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Relator para o Acórdão Juiz Federal Edilson Pereira Nobre Júnior.) PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ESTATUTO DO IDOSO. ARTIGO 34, ‘CAPUT’ E PARÁGRAFO ÚNICO. APLICAÇÃO ANALÓGICA. CÔNJUGE QUE PERCEBE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO SUPERIOR AO VALOR MÍNIMO. 1. O parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) pode ser aplicado por analogia à hipótese em que o benefício percebido pelo cônjuge é de natureza previdenciária. 2. Embora esta Turma Nacional de Uniformização já tenha decidido que o parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741/2003 possa ser interpretado de maneira extensiva, a fim de excluir do cálculo da renda familiar não só o benefício assistencial, percebido por outro idoso integrante do grupo familiar, mas também a aposentadoria deste, não se tem admitido tal interpretação quando o valor da aposentadoria supere o do salário mínimo. 3. Precedente desta TNU no Processo nº 2006.63.06.00.7427-5. 4. Pedido de Uniformização não provido. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950009582. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira.) Portanto, acerca da aplicação analógica do artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, as observações sobre o entendimento predominante nos arestos analisados podem ser sintetizadas na tabela a seguir: 288 Aplicação literal do Estatuto do Idoso Analogia admitida na TNU Requerente idoso idoso ou pessoa com deficiência Familiar titular de rendimentos idoso idoso ou pessoa com deficiência Natureza dos rendimentos benefício assistencial Valor dos rendimentos um salário mínimo benefício mantido pela seguridade social um salário mínimo 5.3.6 As referências à miserabilidade Nos capítulos anteriores, destacou-se por diversas vezes que a assistência social historicamente surgiu como sistema destinado a atender apenas situações de penúria, isto é, de necessidade extrema. Atualmente, embora não seja possível dizer que exista um cenário completamente diferente, é possível identificar uma tendência à ampliação do rol de necessidades sociais atendidas. Ainda assim – como, de resto, em tudo na assistência social – coexistem novas e antigas formas de pensar e proceder. Na leitura dos acórdãos, a recorrente alusão à “miserabilidade” como requisito da concessão do benefício de prestação continuada, sugere a persistência da noção de que a assistência social destina-se apenas às situações de penúria. Eis alguns trechos: peço uniformização com a feitura de súmula de maneira a consagrar o entendimento no sentido de que a comprovação da renda per capita não superior ao ¼ (um quarto) do salário mínimo, estabelecido no artigo 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93 não exclui que a condição de miserabilidade, necessária à concessão do benefício assistencial, resulte de outros meios de prova, de acordo com cada caso em concreto. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200270090033412. Relator: Juiz Federal Marcelo Mesquita Saraiva, destacou-se) a prova da miserabilidade é importante, eis que há possibilidade de se respeitar o limite objetivo da Lei 8742/93, mesmo que a renda per capita seja, em tese, superior àquele limite, pois outros fatores (por exemplo, despesas médicas habituais) podem fazer com que o limite legal não seja atingido, devido à existência de despesas obrigatórias, a ponto de não considerá-las como componentes da renda. No caso concreto, em que há evidentes indícios de invalidez para toda a vida de uma criança de cinco anos de idade, avulta a necessidade de se 289 perquirir a real situação econômica do núcleo familiar. Pelo exposto, voto pelo conhecimento do incidente e seu provimento, para ANULAR O ACÓRDÃO da Turma Recursal do Rio Grande do Norte, e que a instância de origem julgue o caso como entender de direito, considerando a possibilidade de a parte autora comprovar seu estado de miserabilidade, e não apenas limitar-se à exigência da renda familiar até ¼ do salário mínimo. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200584130012658. Relator: Juiz Federal Guilherme Bollorini Pereira, destacou-se) [...] não estando a questão definitivamente pacificada no âmbito do STF e já existindo posicionamento dominante no Superior Tribunal de Justiça em sentido diverso, tenho que deva prevalecer o entendimento que possibilita ao juiz avaliar outras provas do estado de miserabilidade, não sendo o critério da renda familiar inferior a 1/4 do salário mínimo o único a ser utilizado para tanto. Acrescento que diante da nova posição do Supremo Tribunal Federal, que se revela nas decisões monocráticas de seus Ministros, o fato é que, decidindo a favor do miserável deficiente ou idoso, esta Turma não estará afrontando decisão daquela Corte, mas apenas e tão-somente cumprindo mandamento constitucional, já que o critério de ¼ do salário mínimo é insuficiente para comprovação do estado de miserabilidade. Pelo exposto, conheço do pedido de uniformização e lhe dou provimento para anular o acórdão e a sentença proferidos, determinando o retorno dos autos ao juízo de primeiro grau para que proceda a devida instrução do feito, possibilitando à recorrente a produção de outras provas com vistas a demonstração do alegado estado de miserabilidade. É como voto. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200251510229469. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória, destacou-se) Assim, depreende-se da leitura do aresto recorrido estar ele fincado exclusivamente no posicionamento anteriormente adotado pelo Supremo Tribunal Federal. No entanto, constatada a mudança no rumo do entendimento daquela Corte, sendo tal entendimento acompanhado por essa Turma Nacional, como se depreende de seus mais recentes julgados, forçoso reconhecer o ¼ do salário mínimo, estabelecido no § 3º, do art. 20, da Lei 8.742/93, como um limite mínimo, não impedindo a complementado por outros critérios para comprovação da miserabilidade. No caso, tendo a Turma Recursal limitado o julgamento da causa ao enquadramento da renda per capita ao mínimo legal, não adentrando em outros elementos de prova, necessário o retorno dos autos à Turma de origem para reexame das provas, a partir da interpretação dada por esta Turma Nacional de Uniformização. (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200643009023178. Relator: Juiz Federal Leonardo Safi de Melo, destacou-se) O recorrente emprego do termo miserabilidade como requisito de concessão do benefício – mesmo que, de fato, as decisões judiciais não protejam apenas as situações de indigência ou pobreza extrema – indica o uso muito disseminado de um termo frequentemente associado às hipóteses de intervenção da assistência social. Em 290 contraste, poucas são as decisões que utilizam, por exemplo, o termo necessidades básicas, previsto na LOAS, como é caso do pedido de uniformização 200870650015977 (cf. supra 5.3.4 Critério objetivo de renda). A observação quanto à terminologia empregada é relevante, ainda que não altere o resultado final dos provimentos jurisdicionais concedidos pela TNU. A mudança na terminologia empregada teria o importante papel de demarcar a transformação de paradigma de atuação da política de assistência social. Isso porque a concepção de que “apenas” a miséria – leia-se: pobreza extrema ou indigência – enseja proteção não contributiva pode transmitir a ideia de que a “mera” pobreza não justifica a ação estatal pela via assistencial, o que não se coaduna com a ordem constitucional brasileira274. Uma vez que houve um longo percurso até que a assistência social se consolidasse como sistema de promoção de cidadania e deixasse de exigir constrangedoras provas de miserabilidade, é importante que essas conquistas se reflitam também no vocabulário empregado. Sendo assim, e lembrando que a TNU vem adotando posturas tendentes a ampliar o espectro da proteção social, percebe-se que suas decisões não buscam proteger apenas aqueles que estão em situação de pobreza extrema, isto é, de miserabilidade patente. Ao contrário, entende-se que a assistência social alcança cidadãos que necessitam do benefício de prestação continuada para sobreviver de forma digna. Sendo assim, conclui-se que o emprego de termo miserabilidade revela muito mais um hábito de linguagem do que um requisito jurídico. 5.4 Crítica aos acórdãos A pesquisa à jurisprudência evidencia o emprego de diversos métodos interpretativos na busca de soluções para os problemas concretos que são apresentados à TNU. Denota ainda a mescla entre os tipos de interpretações – especificadora, restritiva e extensiva – e um amplo emprego do raciocínio analógico. 274 Aliás, é oportuno recordar que os benefícios assistenciais se inserem no nível de proteção social básica e, portanto, não constituem modalidade de intervenção destinada apenas a casos extremos (cf. supra 4.2.4.2 Proteção social, defesa de direitos e vigilância socioassistencial na LOAS). 291 Os dois primeiros temas destacados dizem respeito às condições pessoais de possíveis titulares do benefício que, por disposição constitucional, devem ser pessoas idosas ou com deficiência. Não foram encontradas discussões sobre o limite etário de 65 anos para concessão do benefício, mesmo diante da definição de idoso como pessoa com idade igual ou superior a 60 anos. As controvérsias quanto aos destinatários do benefício somente surgem quando se trata de pessoa com deficiência. Em relação a este grupo, a TNU vem adotando critérios de identificação de deficiência mais elásticos do que os constantes da LOAS antes das alterações promovidas pelas Leis n. 12.435/11 e n. 12.470/11. A análise da deficiência sempre prestigiou a perspectiva socioeconômica em detrimento de perspectivas puramente biológicas. No caso de pessoas com mais de 16 anos, a capacidade laborativa ganha relevo, mas esse aspecto é analisado sob um enfoque socioeconômico. Desse modo, o termo incapacidade para a vida independente, atualmente suprimido da LOAS, acabou sendo interpretado como sinônimo de incapacidade para a vida autônoma. Os outros temas destacados concernem aos critérios de identificação da necessidade financeira. Quanto ao primeiro deles – a definição de família –, prevalecem interpretações especificadoras da definição legal. Esse aspecto contrasta com a tendência à flexibilização dos requisitos legais para concessão do benefício assistencial. Nas decisões transparece a preocupação em evitar que a situação financeira de pessoas que, de fato, não podem ser juridicamente compelidas a auxiliar seus familiares seja prejudicial ao idoso ou à pessoa com deficiência. A preocupação é relevante, pois a concepção de família como primeiro núcleo de proteção ao indivíduo deve levar em conta a real capacidade protetiva de cada grupo familiar e as necessidades de renda de todos os familiares. No entanto, como o critério legal não capta a pluralidade de arranjos familiares possíveis e igualmente merecedores de proteção, causa surpresa que as decisões judiciais não tenham se aprofundado na discussão do conceito de família à luz da Constituição Federal. Acerca da análise de necessidade financeira, é clara a tendência à flexibilização do critério de renda per capita previsto em lei. Coexistem entendimentos que aplicam presunções – acatando os critérios de hipossuficiência previstos na legislação – e entendimentos que valorizam a demonstração da necessidade em cada caso concreto. E, 292 com relação a este último ponto, há que se reconhecer que a persistência de diversos órgãos jurisdicionais em valorizar a prova de hipossuficiência, em detrimento de efetuar apenas um cálculo aritmético para aferir a renda per capita muito contribuiu para que o próprio STF definisse seu posicionamento. Observe-se que o entendimento exposto em diversas decisões da TNU é exatamente o entendimento estampado no voto vencido proferido no julgamento da ADI n. 1.232-1/DF. Ainda sobre o critério da necessidade financeira, um aspecto positivo é a rejeição de concepções de assistência social como política dirigida apenas às pessoas que estejam em situações de absoluta miséria e, ou, em condições físicas que impeçam o desempenho de toda e qualquer atividade. No tocante ao artigo 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, a aplicação analógica desse dispositivo nos casos em que uma pessoa com deficiência figura como requerente do benefício e, ou, como integrante do grupo familiar titular de renda atende à isonomia na proteção constitucional ofertada pelo artigo 203, inciso V, da Constituição Federal. Quando se discute se a natureza da renda faz diferença para que seja ou não excluída do cálculo da renda, entende-se que esta variável não é relevante para a identificação das relações de semelhança que justificam a analogia. Se se busca assegurar que a pessoa idosa ou com deficiência tenha reservada para si um salário mínimo, leva-se em conta a situação de necessidade de renda dessa pessoa. Como a natureza do rendimento não interfere na maior ou menor satisfação das necessidades, a aplicação desse critério não guarda relação com a finalidade que se quer proteger. Da mesma forma, quando se analisa o cálculo da renda per capita mediante desconto do equivalente a um salário mínimo recebido por idoso ou por pessoa com deficiência, percebe-se que situações fáticas muito semelhantes recebem tratamentos bem diferentes. Tome-se como exemplo a situação de um casal que sobrevive com um salário mínimo por mês (R$ 622,00) e a de outro casal que possua rendimento um pouco superior ao mínimo (R$ 630,00, v.g.). No primeiro caso, o cônjuge sem renda tende a ser beneficiado pela aplicação literal ou analógica do artigo 34 do Estatuto do Idoso – proporcionando-se ao casal a renda per capita final de um salário mínimo – que pode até dispensar um exame mais detido sobre a situação de necessidade, a exemplo do que se depreende da transcrição do Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200832007038700. No segundo caso, a existência de ganhos ligeiramente 293 superiores ao mínimo implicará a não aplicação do artigo 34, exigindo-se prova inequívoca da necessidade como requisito para concessão do benefício. Mais do que discutir se o acolhimento da tese contrária à que prevalece na TNU representaria um excessivo distanciamento em relação ao que consta do Estatuto do Idoso, o que se quer destacar é a racionalidade que orienta essas decisões. Diferentemente da isonomia que se busca pela equiparação de tratamento a pessoas idosas ou com deficiência e pela não distinção entre a natureza dos rendimentos, a reflexão sobre a tese do “desconto” de um salário mínimo no cálculo da renda per capita não se detém tanto na preocupação em dispensar proteção isonômica a indivíduos cujas necessidades são muito semelhantes. Mais uma vez, percebe-se que a necessidade social aparece pouco como elemento norteador dessas decisões. De modo geral – e apesar de alguns acórdãos fazerem referência à subsidiariedade da assistência em relação à previdência social – não prevalece uma concepção restritiva da assistência social. Entretanto, não parecem definidos os critérios norteadores da concessão do benefício fora das hipóteses previstas na LOAS ou decorrentes de aplicação analógica do Estatuto do Idoso. Isso significa que não se pode falar ainda em definição de padrões que permitam identificar as hipóteses de concessão do benefício quando superados os critérios previstos em lei. Nas decisões analisadas – que, recorde-se, fixam parâmetros de interpretação e aplicação das normas sobre assistência social – percebe-se a pouca utilização de conceitos presentes na própria LOAS como necessidades básicas, mínimos sociais e vulnerabilidades. Não se identifica, por exemplo, um rol de necessidades – materiais e imateriais – cuja satisfação deve ser analisada para concessão ou não do benefício de prestação continuada ou referências ao escopo de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas. Percebe-se ainda que as decisões judiciais que tratam do benefício assistencial de prestação continuada transitam pouco pelas demais disposições da LOAS. Há análises cuidadosas e sempre renovadas a respeito do benefício assistencial, mas a compreensão desse benefício como parte de um sistema mais complexo – e que funciona como uma rede socioassistencial – ainda pode ser melhor explorada pela comunidade jurídica. CONCLUSÕES Após estudar o surgimento da assistência social no Ocidente e sua evolução no Brasil, antes e depois de seu reconhecimento como direito social pela Constituição Federal de 1988, encerra-se o presente estudo com as respostas às três indagações formuladas na introdução deste trabalho, o que exige a recapitulação de alguns dos registros apresentados. A primeira questão apresentada – e cuja resposta demanda uma digressão histórica, ainda que sucinta – foi: em que medida a assistência social delineada antes da Constituição Federal de 1988 contribuiu para seu pouco destaque como direito social após 1988? Medidas de amparo às pessoas em situação de necessidade existem há muito tempo desde o início da vida em sociedade. A organização e institucionalização dessas medidas, contudo, são mais recentes. No Ocidente, foi apenas a partir do século XIV que os governos, agindo isoladamente ou em conjunto com outras instituições, organizaram medidas de atenção às situações de privação material. Do século XIV até o século XVII a legislação e as práticas assistenciais evoluíram de forma semelhante em toda a Europa. Essas práticas acabaram sendo assimiladas pelas colônias inglesas da América do Norte – que posteriormente constituiriam os Estados Unidos da América – e se refletiram nas primeiras medidas de assistência à pobreza adotadas no Brasil. Nesse período, a legislação era pautada pelo propósito de evitar grandes comoções sociais e preservar o baixo custo da mão de obra, e não pelo intuito de proporcionar melhores condições de vida e justiça social às pessoas em situação de vulnerabilidade. Não por outro motivo, a assistência esteve conjugada com rígidas medidas de controle dos assistidos e, em muitas situações, com o dever de trabalhar, ainda que sob condições aviltantes. Esse cenário começou a mudar a partir do século XVIII, com o pioneirismo da França em reconhecer a assistência como um dever, o que ocorreu em 1793. Tal evento foi um significativo contraponto à noção de pobreza como mero resultado de fracassos individuais e à ideia de que os assistidos contraíam uma dívida para com a sociedade. Porém, não se pode falar em uma generalizada mudança de paradigma a partir de então, 295 tanto assim que a mais draconiana das medidas de assistência pública, consistente na experiência das Workhouses inglesas, ocorreu no século XIX, a partir do Poor Law Amendment Act de 1834. Foi somente no final do século XIX e, mais intensamente, a partir do século XX que os fundamentos das políticas assistenciais de satisfação de necessidades básicas começaram a ser questionados, valendo recordar dois marcos importantes – embora não os únicos – dessa transformação. O primeiro foi a instituição do sistema germânico de seguros sociais obrigatórios, concebido por Otto von Bismarck, que representou uma nova forma de compreender as situações de necessidades individuais que deveriam ser supridas por toda a sociedade. O segundo, já no século XX, foi o Plano Beveridge, que inaugurou na Inglaterra um modelo de segurança social que se tornaria a principal referência sobre o assunto até os dias de hoje; desde então a assistência social passou a integrar um plano de segurança social mais amplo, cujo objetivo era libertar os indivíduos da situação de necessidade, sem expô-los a tratamentos degradantes e vexatórios. Em que pese a inegável mudança operada ao longo de séculos de evolução da assistência social, pode-se apontar algumas características que persistiram e que ainda hoje condicionam as reflexões sobre o tema, a saber: (a) distinção entre pessoas capazes e incapazes para o trabalho conforme a aptidão física e mental, com prioridade de atendimento aos incapazes; (b) estruturação da assistência social como mecanismo de proteção social subsidiário ao trabalho e à previdência; (c) adoção do critério da menor elegibilidade, segundo o qual as prestações da assistência devem ser sempre piores do que as prestações obtidas por meio do trabalho ou da previdência, critério este que pode ser interpretado como um reflexo das duas características anteriormente elencadas; (d) mescla entre assistência social e caridade, com forte apelo a esta como forma de sanar as situações de falta de meios necessários à sobrevivência digna de indivíduos e grupos, bem como presença significativa da Igreja Católica na distribuição de auxílios materiais; (e) valorização da localidade de origem ou de residência do interessado como critério de acesso às prestações da assistência social. Essas características foram incorporadas às práticas socioassistenciais desenvolvidas no Brasil, às quais foram agregadas a distinção entre escravos e não escravos, no período anterior à abolição da escravatura, e a exacerbação da assistência 296 social como caridade e como um mecanismo subsidiário e de menor importância em relação a outras formas de satisfação de necessidades sociais. A história anterior à Constituição Federal de 1988 mostra a inexistência de um projeto governamental de assistência social, a qual, até a década de 1980, sequer era tratada como um tema relacionado com as políticas de desenvolvimento do país. A regulação verificada a partir da década de 1930 consistiu predominantemente em financiamento à filantropia. A seu turno, a LBA – Legião Brasileira de Assistência, a primeira grande instituição de assistência social do país – sobrevalorizou o trabalho voluntário da elite feminina e inaugurou a transferência da responsabilidade pela condução da assistência social às esposas dos governantes, enaltecendo a figura das damas de caridade. A estrutura disponibilizada aos serviços socioassistenciais e o conteúdo de suas ações também refletiu a noção da assistência social como um mecanismo subsidiário e de pouca importância, destinado a desaparecer em um horizonte de desenvolvimento econômico. Essa pouca importância conferida ao tema significou falta de planejamento das ações, ausência de coordenação entre os níveis federativos, precariedade dos serviços e descontinuidade na destinação dos recursos públicos; já a pouca importância conferida ao tema e a exacerbação da noção de subsidiariedade refletiram-se no caráter paliativo e pontual de suas ações, bem como no atendimento restrito às situações de extrema penúria. Além disso, as ações da assistência social não conseguiram se desvencilhar da criação de estigmas em torno dos assistidos. As situações de necessidade não foram tratadas como consequência da estrutura socioeconômica do país, mas como resultado de fracassos dos indivíduos ou das comunidades em situação de pobreza. Em alguns momentos, o enfrentamento da pobreza foi considerado uma questão de “educação para a maternidade” ou, melhor dizendo, visava-se preparar mulheres para que se dedicassem à vida doméstica, criando filhos que posteriormente se tornassem aptos para o trabalho, sem qualquer perspectiva emancipadora das populações atendidas. A soma entre as características herdadas da experiência de outros países e as que se desenvolveram no Brasil explica o pouco prestígio da assistência social, mesmo após sua consagração constitucional em 1988. As práticas anteriores transformavam a assistência social em um conjunto de medidas precárias, confundidas com 297 benemerência, relegadas a entidades alheias ao governo – mas extremamente dependentes de financiamento público –, cujos destinatários eram tratados como grandes responsáveis pela própria penúria, sem a devida atenção a todas as causas estruturais que subjazem a essas situações. Nesse cenário – e sempre registrando o papel decisivo dos profissionais e estudiosos do serviço social, muitas vezes vozes isoladas em prol de uma assistência social pautada por critérios mais técnicos e transformadores – compreende-se por que a assistência social foi vista como um tema pouco relevante para o desenvolvimento do país e a promoção de bem-estar social. Seu reconhecimento como direito social foi uma inegável conquista, mas não foi o suficiente para desconstruir um ambiente manifestamente hostil a seu fortalecimento e ampliação. Por isso mesmo, a promulgação da Constituição Federal não encerrou a luta em defesa da efetivação desse direito. Isso remete à segunda indagação formulada: em que medida o Brasil avançou no tratamento jurídico da assistência social desde a promulgação da Constituição Federal até a presente data? Afirmou-se anteriormente que a compreensão da assistência social como um não direito e como uma política de pouca relevância para o desenvolvimento do país foi decisiva para seu lento desenvolvimento após a promulgação da Constituição Federal. Apesar dos percalços, ocorreram significativos avanços na efetivação desse direito. A inclusão da assistência social entre os direitos sociais previstos pela Constituição Federal e a previsão expressa de primazia da responsabilidade estatal pela condução dessa política, contida na Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, impuseram ao Poder Público o dever de assumir o protagonismo no planejamento e na implantação de um sistema de proteção social não contributivo. Provocou-se, dessa forma, uma ruptura com a transferência da responsabilidade pela assistência social à iniciativa privada, o que havia marcado a formação da assistência social no Brasil. As normas constitucionais e infraconstitucionais sobre o tema também demonstram que não se busca apenas proteger indivíduos e grupos de situações extremas de necessidades financeiras. A uma porque, além da segurança econômica, a assistência social ocupa-se da promoção de segurança de convívio, lidando com 298 situações cuja solução não passa apenas pela necessidade de renda, mas também pela atenção às situações de isolamento, violência, discriminação etc. A duas porque a promoção de segurança econômica não se limita ao atendimento pontual de situações de necessidade já instaladas; antes, demanda atuações preventivas. Outra grande conquista foi a instituição do benefício de prestação continuada à pessoa idosa ou com deficiência em situação de necessidade financeira. Essa previsão representou o reconhecimento de um direito subjetivo à proteção pela via da assistência social, um avanço significativo em uma seara marcada por regulações ad hoc e pela ausência de garantias ao cidadão. O país progrediu também no tocante ao planejamento e coordenação da assistência social. Além das disposições contidas na Constituição Federal de 1988 e na LOAS, a aprovação de duas Políticas Nacionais de Assistência Social e de diversas Normas Operacionais Básicas tratando da organização de um sistema descentralizado e participativo mostram a dinamização e a crescente atenção conferida ao tema. Para essa organização e envolvimento de todos os níveis federativos, contribuiu a criação de espaços intergovernamentais de deliberação e pactuação de temas relacionados à política de assistência social. A criação de espaços democráticos de debates e deliberações a propósito da assistência social é outro aspecto a ser exaltado. Os conselhos de composição paritária entre governo e sociedade civil, dotados de competência deliberativa, se tornaram fóruns importantes de definição dos rumos dessa política pública. Da mesma forma, as Conferências de Assistência Social assumiram um papel importante no monitoramento e na avaliação crítica das ações realizadas. Favoreceu-se assim a pluralidade de ideias e o debate público sobre os parâmetros de atuação a serem observados. A partir do ano de 2004, intensificou-se o aprimoramento da política de assistência social. O aprofundamento de sua disciplina legal, por meio da Política Nacional de Assistência Social – PNAS, em 2004, e a instituição do Sistema Único de Assistência Social – SUAS lançaram uma perspectiva de maior racionalidade da política pública de assistência social, de novas bases para a relação entre a esfera pública e a privada, bem como da observância de padrões mínimos de qualidade em todas as ações socioassistenciais. As recentes alterações da LOAS corroboram esses esforços e permitem uma leitura otimista a respeito do tema. 299 O amadurecimento da concepção da assistência social como direito social também se nota nos pronunciamentos judiciais. As decisões que tratam do benefício de prestação continuada previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal veiculam análises cuidadosas sobre os diversos aspectos envolvidos na concessão desse benefício. De modo geral, verifica-se que a assistência social não é compreendida pelo Poder Judiciário como mecanismo restrito às situações de extrema penúria, mas sim como uma proteção voltada para as situações em que a ausência de rendimentos, somada a um quadro de idade avançada ou deficiência, pode comprometer a vida digna e a participação social do indivíduo. Registrada a evolução da assistência social até a promulgação da Constituição Federal, bem como as medidas que se seguiram à nova ordem constitucional, chega-se à terceira indagação: o tratamento dispensado à assistência social a partir de 1988 é norteado pelas disposições contidas na Constituição Federal ou pelas concepções e práticas que pautaram a assistência social antes de seu reconhecimento como direito social? Essa última pergunta não comporta uma resposta maniqueísta. Isso porque a assistência social brasileira não se desvinculou de todas as características que, como já afirmado, criaram um ambiente desfavorável à sua efetivação como direito social desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Por outro lado, as mudanças implementadas nos últimos anos, sobretudo a partir de 2004, mostram uma nova leitura a respeito do tema, mais atenta às diretrizes constitucionais do que às práticas dispersas, paliativas e caritativas sobejamente criticadas ao longo deste trabalho. Para exemplificar os resquícios das práticas anteriores ao advento na nova Constituição, vale mencionar a manutenção de programas sociais focalizados e fragmentados, especialmente até a criação do Programa Bolsa Família, responsável pela unificação de outros programas em curso no país. Um grande exemplo disso foi a previsão inicial do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, com atendimento a crianças com idade entre 7 e 14 anos, sem previsão de atendimento a crianças com menos de 7 anos. Ainda hoje, faltam medidas de assistência social que ultrapassem a lógica meramente monetarista, ao mesmo tempo em que fica evidente que o valor das prestações assistenciais oferecidas é baixo para promover a superação de muitas situações de vulnerabilidade. 300 Da mesma forma, no tocante ao benefício de prestação continuada, há pontos que precisam ser revistos à luz da Constituição Federal. O primeiro deles é a adoção de rigorosos critérios de identificação de necessidade financeira, demonstrando a persistência da ideia de que a assistência social deve intervir apenas em situações de extrema necessidade, ainda que isso signifique deixar um grande contingente de pessoas sem proteção. O segundo é a exclusão de estrangeiros não naturalizados do rol de potenciais titulares desse benefício. Com isso, os critérios previstos na LOAS falham na identificação de situações de necessidade de renda e podem resultar em tratamento antiisonômico em face de pessoas que materialmente estejam na mesma situação. Outro argumento que demonstra que parte da assistência social pós-1988 foi pautada pela tradição existente a respeito do tema – e não pelas diretrizes constitucionais – é a dificuldade de se deixar de recorrer à solidariedade individual para a construção de um modelo de solidariedade coletiva, a exemplo do Programa Comunidade Solidária. Por fim, a falta de recursos materiais e humanos suficientes para atender à demanda por assistência social pode perpetuar o histórico de oferta de ações precárias e descontínuas. Este aspecto vem sendo tratado nas Conferências de Assistência Social e sua superação será decisiva para o sucesso na implementação do SUAS e para que a sociedade brasileira modifique a concepção de assistência social como mecanismo paliativo e sem qualquer potencial emancipador para seus destinatários. Ao mesmo tempo é inegável que a assistência social no Brasil vem progredindo tanto no que diz respeito a seu espectro de proteção social, quanto no tocante à organização e melhoria de suas ações. Há um forte movimento em prol da revisão da qualidade dos serviços e da natureza das prestações, bem como do prestígio à universalidade das políticas de assistência, em detrimento das leituras da extrema focalização dessas políticas. De igual modo, as críticas quanto à dualização da proteção social entre trabalhadores e não trabalhadores representam uma compreensão da ideia de necessidade social à luz da Constituição Federal. O mesmo deve ser dito a respeito da preocupação dos atores envolvidos na efetivação desse direito com necessidades sociais que vão além da necessidade de renda e prestigiam a dimensão do convívio e da participação social em igualdade de condições. 301 A reflexão desenvolvida ao longo desta dissertação evidencia a contradição da política de assistência social. Vislumbra-se que a assistência social pode proporcionar grandes mudanças no quadro social brasileiro, sobretudo porque ainda se trata de um direito recente, cujo potencial não foi exaurido; por outro lado, seus limites são perceptíveis. De todo modo, se ao longo de décadas prevaleceu o discurso que relegava a assistência social a segundo plano exatamente em função de seus limites, o país encontra-se atualmente em condições de explorar as potencialidades dessa política. Portanto, sem ignorar as contradições e as limitações da assistência social, é tempo de desenvolvê-la como instrumento de proteção social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRANCHES, Sérgio Henrique. Política Social e Combate à Pobreza: A teoria da prática. In:______; SANTOS, Wanderley Guilherme dos; COIMBRA, Marcos Antônio. Política social e combate à pobreza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. p. 9-31. ADORNO, Sérgio. A gestão filantrópica da pobreza urbana. São Paulo em perspectiva. São Paulo: Fundação SEADE, n. 4, p. 8-17, 1990. ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. DINIZ, Carlos Alberto. Estrangeiros e Inclusão Social: Uma Análise com Fundamento na Universalidade dos Direitos Humanos e as Intenções Constitucionais. Novos Estudos Jurídicos, v. 12, n. 1, p. 43-62, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/452/394>. Acesso em: 4 dez. 2011. ALMANSA PASTOR, José Manuel. Derecho de la Seguridad Social. 7. ed. Madri: Tecnos, 1991. ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. Federalismo e proteção social: a experiência brasileira em perspectiva comparada. 2000. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dcp/assets/docs/MariaHerminia/federalismodef.pdf>. Acesso em: 28 jun. 2010. ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. 4. ed. rev., ampl. e atual. Brasília: CORDE, 2011. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/corde/protecao_const1.asp#Os efeitos dos incisos do artigo_203_da_Constituicao_Federal>. Acesso em: 02 nov. 2011. ______; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil. 13 ed. São Paulo: Ática, 2007. ARZABE, Patrícia Helena Massa. O direito à proteção contra a pobreza e a exclusão social. São Paulo, 2001. 309 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. BALERA, Wagner. Introdução à Seguridade Social. In: MONTEIRO, Meire Lúcia Gomes (Coord.). Introdução ao Direito Previdenciário. São Paulo: LTr, 1998. p. 9-85. 303 BALERA, Wagner. Reforma Constitucional da Seguridade Social. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, v. 5, n. 18, p. 188-194, jan./mar. 1997. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. ______. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3 ed. 17. tir., São Paulo: Malheiros, 2009. BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BERCOVICI, Gilberto. Dilemas do Estado Federal Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. BEVERIDGE, William. Relatório sobre o Seguro Social e Serviços Afins. Trad. Almir de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943. BOARATI, Vanessa. A discussão entre os economistas na década de 1970 sobre a estratégia de desenvolvimento econômico II PND: motivações, custos e resultados. São Paulo, 2003. 109 f. Dissertação (Mestrado em Economia). Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. ______. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. ______; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. v. 1. Trad. Carmen C. Varriale et al.. 12. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004. BOSCHETTI, Ivanete. Assistência social no Brasil: um direito entre originalidade e conservadorismo. 2. ed. Brasília: Ivanete Boschetti, 2003. BRANCO, Luciana de Toledo Temer Castelo. Controle concentrado e a possibilidade de revisão nos casos onde a norma foi declarada inconstitucional. In: SILVA, Roberto B. Dias da (Org.). Direito Constitucional. Temas atuais. Homenagem à Professora Leda Pereira da Mota. São Paulo: Método, 2007. p. 93-106. BRASIL. Metas e estratégias – Plano decenal SUAS Plano 10 (Metas e Estratégias deliberadas nas Conferências Nacionais e Metas Governo Federal). Brasília, 2007. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais>. Acesso em: 3 jul. 2011. 304 BRONZO, Carla. Vulnerabilidade, empoderamento e metodologias centradas na família: conexões e uma experiência para reflexão. In: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; UNESCO. Concepção e gestão da proteção social não contributiva no Brasil. Brasília, 2009. p. 171-201. BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: ______ (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 01-49. CARDONE, Marly A. Previdência, assistência, saúde: o não trabalho na Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 1990. CARRO. Silvina Maria. A assistência social no universo da proteção social – Brasil, França e Argentina. São Paulo, 2008. 237 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 12. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. CASTEL, Robert. A discriminação negativa: cidadãos ou autóctones?. Trad. Franscisco Morás. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. ______. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Trad. Iraci D. Poleti. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2010. CHAVES, Vitor Pinto. Justiça Social como reconhecimento e justiça deliberativa: estudo sobre garantias procedimentais de participação na gestão e de controle social como instrumento para uma nova leitura e para (re)construção de alternativas institucionais de concretização do direito constitucional à assistência social no Brasil. Brasília, 2008. 170 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Brasília. Disponível em: <http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=587 8>. Acesso em: 24 fev. 2012. COIMBRA. Marcos Antônio. Abordagens Teóricas ao Estudo das Políticas Sociais. In: ______; ABRANCHES, Sérgio Henrique; SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Política social e combate à pobreza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. p. 65-104. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2006. CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Anais da II Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 9 a 12 de dezembro de 1997. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferenciasnacionais/ii-conferencia-nacional/ii-conferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. ______. Anais da V Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 5 a 8 de dezembro de 2005. Disponível em: < http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias- 305 nacionais/conferencias-nacionais/v-conferencia-nacional/v-conferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Anais da VII Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 30 de novembro a 03 de dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/vii-conferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. ______. Deliberações da III Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 4 a 8 de dezembro de 2001. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferenciasnacionais/conferencias-nacionais/iii-conferencia-nacional/iii-conferencianacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. ______. Deliberações da IV Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 7 a 10 de dezembro de 2003. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/ivconferencia-nacional/iv-conferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. ______. Deliberações da V Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 5 a 8 de dezembro de 2005. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferenciasnacionais/conferencias-nacionais/v-conferencia-nacional/v-conferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. ______. Relatório da IV Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 7 a 10 de dezembro de 2003. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferenciasnacionais/conferencias-nacionais/iv-conferencia-nacional/iv-conferencianacional>. Acesso em: 28 fev. 2012 ______. Relatório Final da I Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 20 a 23 de novembro de 1995. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/iconferencia-nacional/i-conferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. ______. Relatório Final da VI Conferência Nacional de Assistência Social. Brasília, 14 a 17 de dezembro de 2007. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/conferencias-nacionais/viconferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. ______. Resolução 1, 09 de janeiro de 2012. Publica as deliberações da VIII Conferência Nacional de Assistência Social. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/viii-conferencia-nacional>. Acesso em: 28 fev. 2012. ______. Resolução 105, 03 de dezembro de 2009. Publica as deliberações da VII Conferência Nacional de Assistência Social. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/vii-conferencia-nacional/as-deliberacoes-da-viiconferencia/>. Acesso em: 28 fev. 2012. 306 DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Direito sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010. DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Trad. Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. Entrevista concedida a Maria Serena Palieri. DOYAL, Len; GOUGH, Ian. A Theory of Human Need. London: Macmillan, 1991. ESTADOS UNIDOS MEXICANOS. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. 5 de fevereiro de 1917. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em: 22 out. 2011. FALEIROS, Vicente. A política social do Estado capitalista: as funções da Previdência e da Assistência Social. São Paulo: Cortez, 1980. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004. FERREIRA, Lauro Cesar Mazetto. Seguridade social e direitos humanos. São Paulo: LTr, 2007. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 24. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1997. FORTES, Simone Barbisan. Conceito aberto de família e seguridade social. In: VAZ, Paulo Afonso Brum; SAVARIS, José Antônio (Org.). Direito da previdência e assistência social: elementos para uma compreensão interdisciplinar. Florianópolis: Conceito Editorial, 2009. p. 251-280. FRASER, Nancy. From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a ‘postsocialist’ age. New Left Review, v. 1, 212, p. 68-93, jul./ago. 1995. Disponível em: <http://www.newschool.edu/tcds/krakow/KR08GEN/Session9/Nancy%20Fraser %20-%20From%20Redistribution%20to%20Recognition.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2011. ______. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova, São Paulo, n. 77, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010264452009000200001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 23 nov. 2011. FRIEDLANDER, Walter A. Dinámica del trabajo social. Trad. Luz M. Trejo Hernandez. 2. ed. México: Pax-México, Librería Carlos Cesarman, 1973. 307 GALIA, Rodrigo Wasem. A repersonalização das relações familiares. Biblioteca Digital do Supremo Tribunal de Justiça – BDJur: Brasília, 2007. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/10345/Repersonaliza%C3% A7%C3%A3o_das_Rela%C3%A7%C3%B5es.pdf?sequence=1>. Acesso em: 02 nov. 2011. GIMENES, Valéria da Silva Barbosa. Política Nacional de Assistência Social: perspectivas para o exercício profissional do assistente social. Franca, 2009. 128 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. GOMES, Ana Lígia. Histórico da Política de Assistência Social no Brasil. In: CARVALHO, Maria do Carmo A. A.; TEIXEIRA, Ana Claudia C. (Org.). Conselhos Gestores de Políticas Públicas. São Paulo: Pólis, 2000. p. 22-26. HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito Previdenciário. 7. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2008. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 15. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 3. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. LEITE, Celso Barroso. Conceito de Seguridade Social. In: BALERA, Wagner (Coord.). Curso de direito previdenciário: homenagem a Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira. 5. ed. São Paulo: LTr, 2002. LIGA DAS NAÇÕES. Part XIII of the Treaty of Peace of Versailles. Disponível em: <http://www.ilo.org/public/english/bureau/leg/download/partxiii-treaty.pdf>. Acesso em: 23 out. 2011. LIMA, Maria de Fátima Evangelista Mendonça Lima. LBA: tratamento pobre para o pobre. São Paulo, 1994. 181 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. MADEIRA, Katia Regina. As Conferências Municipais de Assistência Social de Florianópolis como instrumento de planejamento da Política de Assistência Social em âmbito local. Florianópolis, 2006. 176 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina. MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Trad. Meton Porto Gadelha. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. 308 MARTINS, Maristela Santini; MASSAROLLO, Maria Cristina Komatsu Braga. Conhecimento de idosos sobre seus direitos. Acta paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 23, n. 4, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010321002010000400006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2011. MATOS, Patrícia de Oliveira. Análise dos planos de desenvolvimento elaborados no Brasil após o II PND. Piracicaba, 2002. 184 f. Dissertação (Mestrado em Economia Aplicada) – Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Universidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/11/11132/tde-08012003-110722/>. Acesso em: 26 out. 2011. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. 9. tir. Rio de Janeiro, 2005. MESTRINER, Maria Luiza. Assistência social e seguridade social: oposições e aproximações. São Paulo, 1992. 264 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ______. O Estado entre a filantropia e a assistência social. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2011. MOTA, Ana Elizabete; MARANHÃO, Cezar Henrique; SITCOVSKY, Marcelo. As tendências da política de Assistência Social, o Suas e a formação profissional. In: MOTA, Ana Elizabete (Coord.). O Mito da assistência social: ensaios sobre Estado, política e sociedade. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2009. NASCIMENTO, Ricardo de Castro. Ato administrativo de concessão de benefício. São Paulo, 2006. 208 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ______. Breve histórico da previdência social. Revista de Direito Social, v. 7, n. 28, p. 31-46, out/dez, 2007. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais: teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social da Constituição de 1988 – Estratégias de Positivação e Exigibilidade Judicial dos Direitos Sociais. São Paulo: Verbatim, 2009. NUSDEO, Fábio. Desenvolvimento econômico – Um retrospecto e algumas perspectivas. In: SALOMÃO FILHO, Calixto (Coord.). Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. OLEA, Manuel Alonso; PLAZA, José Luís Tortuero. Instituciones de Seguridad Social. 17. ed. rev. Madri: Civitas, 2000. 309 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10 de dezembro de 1948. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 03 mar. 2012. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Informe Mundial sobre la Seguridad Social 2010/11: Brindar cobertura en tiempos de crisis, y después de las crisis. Disponível em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/@publ/docume nts/publication/wcms_146569.pdf>. Acesso em: 23 out 2011. ______. Convenção n. 102. 28 de junho de 1952. Disponível em: <http://www.ilo.org/ilolex/english/convdisp1.htm>. Acesso em: 7 maio 2011. PAPA LEÃO XIII. Encíclica Rerum Novarum. 15 de Maio de 1891. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_lxiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html>. Acesso em: 1 maio 2011. PENALVA, Janaína; DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. O Benefício de Prestação Continuada no Supremo Tribunal Federal. Revista Sociedade e Estado. Brasília, v. 25, n. 1, p. 53-70, jan./abr. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269922010000100004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 nov. 2011. PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS: sentido e novidade. Universidade e Sociedade, Brasília, v. 6, n. 10, p. 65-70, jan. 1996. ______. Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2006. ______. Porque também sou contra a focalização das políticas sociais. Mimeo. Brasília, 2003. Disponível em: <http://nrserver34.net/~unbonlin/neppos/publicacoes/contra_focal.pdf>. Acesso em: 8 nov. 2011. ______. Política Social: temas e questões. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2009. PF DEFLAGRA operação contra grupo que obtinha títulos falsos de filantropia. Folha Online, 13 mar. 2008. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u381516.shtml>. Acesso em: 06 fev. 2012. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Trad. Fanny Wrobel. 3. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1980. 310 PONTES, Alan Oliveira. O princípio da solidariedade social na interpretação do direito da seguridade social. São Paulo, 2006. 227 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. RAICHELIS, Raquel. Esfera pública e Conselhos de assistência social: caminhos da construção democrática. 6. ed. Prefácio de Francisco Oliveira. São Paulo: Cortez, 2011. REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE. Ordinance of Labourers, 1349. Disponível em: <http://www.britannia.com/history/docs/laborer1.html>. Acesso em: 24 fev. 2011. ______. Statute of Labourers, 1351. Disponível <http://avalon.law.yale.edu/medieval/statlab.asp>. Acesso em: 12 jan. 2011. em: ROCHA, Daniel Machado da; BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-Providência. Trad. Isabel Maria St. Aubyn. Lisboa: Inquérito, 1984. ______. La nueva cuestión social: repensar o Estado-Providência. Trad. Horacio Pons. Buenos Aires: Manantial, 1995. SALES, Gabriela Azevedo Campos. A Assistência Social na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Assistência Social. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos: divisão jurídica. Bauru, v. 44, n. 53, jan./jun. 2010. [no prelo] ______. A construção da assistência social no Brasil: notas sobre as Leis n. 12.435/11 e 12.470.11. Revista Eletrônica Jurídica da UNIRP – Universitas. São José do Rio Preto, v. 5, n. 9, 2011. Disponível em: <http://aplicacoes2.unirp.edu.br/Revista/Artigos.aspx>. Acesso em: 02 fev. 2012. SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 21, p. 11-37, 1986. Disponível em: <http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Introducao_a_sociologia_da _adm_justica_RCCS21.PDF>. Acesso em: 23 fev. 2012. ______. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. v. 1 – A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2009. SANTOS, Marisa Ferreira dos. Assistência social – benefícios. Revista de Direito Social, São Paulo, ano 1, n. 2, p. 11-5, 2001. ______. O princípio da seletividade das prestações de seguridade social. São Paulo: LTr, 2003. 311 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. ______. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. SILVA, Maria Ozanira da Silva e; LIMA, Valéria Ferreira Santos de Almada (Coord.). Avaliando o Bolsa-Família: unificação, focalização e impactos. São Paulo: Cortez, 2010. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. SIMILI, Ivana Guilherme. Mulher e política: a trajetória da primeira-dama Darcy Vargas (1930-1945). São Paulo: UNESP, 2008. SPOSATI, Aldaíza. Benefício de Prestação Continuada como Mínimo Social. In: SPOSATI, Aldaíza (Org.). Proteção Social de Cidadania: inclusão de idosos e pessoas com deficiência no Brasil, França e Portugal. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 125-178. ______. “Desafios do sistema de proteção social. In: PAULA, Renato Francisco dos Santos; PAZ, Rosangela Dias Oliveira da; STUCHI, Carolina Gabas (Org.). Assistência Social e Filantropia. São Paulo: Giz Editorial, 2010. p. 21-57. ______. História da pobreza assistida em São Paulo. São Paulo, 1987. 496 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Serviço Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. _______. Modelo brasileiro de proteção social não contributiva: concepções fundantes. In: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; UNESCO. Concepção e gestão da proteção social não contributiva no Brasil. Brasília, 2009. p. 13-55. STUCHI, Carolina Gabas. A concretização constitucional da assistência social e sua afirmação como direito e política pública. In: ______; PAULA, Renato Francisco dos Santos; PAZ, Rosangela Dias Oliveira da (Org.). Assistência Social e Filantropia. São Paulo: Giz Editorial, 2010. p. 147-178. SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; TEIXEIRA FILHO, João de Lima. Instituições de direito do trabalho. v. 2. 17. ed. São Paulo: LTr, 1997. TRIVELINO, Alexandra de Souza. Ação afirmativa e política social: focalização como instrumento de justiça social. Brasília, 2006. 131 f. Dissertação (Mestrado em Política Social). Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília. UGATTI, Uendel Domingues. A princípio constitucional da contrapartida na seguridade social. São Paulo: LTR, 2003. 312 VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006. WOLFF, Adriana. Operação Fariseu: União aciona duas supostas entidades beneficentes e ex-conselheiros do CNAS. 19 out. 2010. Disponível em: <http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=151099& id_site=844>. Acesso em: 06 fev. 2012. YAZBEK. Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2009. _______ et al. O Sistema Único de Assistência Social em São Paulo e Minas Gerais: desafios e perspectivas de uma realidade em movimento. In: COUTO, Berenice Rojas; YAZBEK, Maria Carmelita; SILVA, Maria Ozanira Silva e; RAICHELIS, Raquel (Org.). O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: uma realidade em movimento. São Paulo: Cortez, 2010. p. 138-204. ZACHER, Hans F. Seguridade Social e Direitos Humanos. Trad. Fabiane Verçosa. Arquivos de Direitos Humanos, Rio de Janeiro, v. 4, p. 117-36, 2002. ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da intervenção do Estado no Domínio Social. São Paulo: Malheiros, 2009. 313 LEGISLAÇÃO BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 16 fev. 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm >. Acesso em: 23 jan. 2012. ______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. 24 fev. 1891. Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm >. Acesso em: 23 jan. 2012. ______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, 24 jan. 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm >. Acesso em: 23 jan. 2012. ______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 23 jan. 2012. ______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, 10 nov. 1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm >. Acesso em: 23 jan. 2012. ______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, 18 set. 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm >. Acesso em: 23 jan. 2012. ______. Constituição Politica do Imperio do Brazil, 25 mar. 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm >. Acesso em: 23 jan. 2012. ______. Decreto do Conselho de Ministros n. 1.117, 01 jun. 1962. Regulamenta a Lei n. 3.577, de 4 de julho de 1959, que isenta da taxa de contribuição da Previdência dos Institutos de Aposentadoria e Pensões às entidades filantrópicas. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decmin/19601969/decretodoconselhodeministros-1117-1-junho-1962-353120-publicacaoorigi nal-1-pe.html>. Acesso: 22 jan. 2012. ______. Decreto do Conselho de Ministros n. 1.118, 01 jun. 1962. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decmin/1960-1969/decretodoconselhode ministros-1118-1-junho-1962-353123-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso: 22 jan. 2012. 314 BRASIL. Decreto Legislativo n. 186, 09 jul. 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/congresso/DLG186-2008.htm >. Acesso em: 11 fev. 2012. ______. Decreto n. 1.366, 12 jan. 1995. Dispõe sobre o Programa Comunidade Solidária e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1995/D1366.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Decreto n. 1.744, 08 dez. 1995. Regulamenta o benefício de prestação continuada devido à pessoa portadora de deficiência e ao idoso, de que trata a Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d1744.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Decreto n. 17.943-A, 12 out. 1927. Consolida as leis de assistencia e protecção a menores. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/19101929/D17943A.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto n. 2.609, 02 jun. 1998. Regulamenta a concessão de apoio financeiro aos Municípios que instituírem programa de garantia de renda mínima, de que trata a Lei n. 9.533, de 10 de dezembro de 1997, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2609.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Decreto n. 20.351, 31 ago. 1931. Cria a Caixa de Subvenções, destinada a auxiliar estabelecimentos de caridade, de ensino técnico e os serviços de nacionalização do ensino. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=20351&tipo _norma=DEC&data=19310831&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto n. 3.117, 13.07.1999. Regulamenta a concessão de apoio financeiro aos Municípios que instituírem programa de garantia de renda mínima de que trata a Lei no 9.533, de 10 de dezembro de 1997, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3117.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Decreto n. 3.956, 08 out. 2001. Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/d3956.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Decreto n. 4.102, 24 jan. 2002. Regulamenta a Medida Provisória n. 18, de 28 de dezembro de 2001, relativamente ao “Auxílio-Gás”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4102.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. 315 BRASIL. Decreto n. 4.682, 24 jan. 1923. Crea, em cada uma das emprezas de estradas de ferro existentes no paiz, uma caixa de aposentadoria e pensões para os respectivos empregados. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=45136&tipoD ocumento=DEC&tipoTexto=PUB >. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto n. 6.214, 26 set. 2007. Regulamenta o benefício de prestação continuada da assistência social devido à pessoa com deficiência e ao idoso de que trata a Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993, e a Lei no 10.741, de 1o de outubro de 2003, acresce parágrafo ao art. 162 do Decreto no 3.048, de 6 de maio de 1999, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6214.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Decreto n. 6.949, 25 ago. 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em: 11 fev. 2012. ______. Decreto n. 65.174, 16 de set. 1969. Aprova os Estatutos da Fundação Legião Brasileira de Assistência. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=65174&tipo _norma=DEC&data=19690916&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto n. 7.617, 17 nov. 2011. Altera o Regulamento do Benefício de Prestação Continuada, aprovado pelo Decreto no 6.214, de 26 de setembro de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2011/Decreto/D7617.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Decreto n. 70.716, 14 jun. 1972. Dispõe sobre a Secretaria-Executiva do Conselho Nacional de Serviço Social do Ministério da Educação e Cultura e dá outras providências. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=200452&tipo Documento=DEC&tipoTexto=PUB>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto n. 83.148, 08 fev. 1979. Aprova o Estatuto da Fundação Legião Brasileira de Assistência – LBA. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=83148&tipo _norma=DEC&data=19790208&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei 2.416, 17 jul. 1940. Aprova a codificação das normas financeiras para os Estados e Municípios. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=2416&tipo_ norma=DEL&data=19400717&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. 316 BRASIL. Decreto-Lei n. 1.572, 01 set. 1977. Revoga a Lei n. 3.577, de 4 de julho de 1959, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-1988/Del1572.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 3.200, 19 abr. 1941. Dispõe sobre a organização e proteção da família. Disponível em: <http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/24/1941/3200.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 3.688, 03 out. 1941. Lei das Contravenções Penais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3688.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 4.657, 04 set. 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del4657.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Decreto-Lei n. 4.830, 15 out. 1942. Estabelece contribuição especial para a Legião Brasileira de Assistência, e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4830-15-ou tubro-1942-414830-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 5.697, 22 jul. 1943. Dispõe sôbre as bases da organização do serviço social em todo o país a que se refere o decreto-lei n. 525, de 1 de julho de 1938. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=5697&tipo_ norma=DEL&data=19430722&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 525, de 01 jul. 1938. Institue o Conselho Nacional de Serviço Social e fixa as bases da organização do serviço social em todo o país. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=525&tipo_n orma=DEL&data=19380701&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 7.526, 07 maio 1945. Lei Orgânica dos Serviços Sociais do Brasil. Disponível em: <http://www81.dataprev.gov.br/sislex/paginas/24/1945/7526.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 7.961, de 19 de setembro de 1945. Dispõe sôbre a remuneração mínima dos que, com o caráter de emprêgo, trabalham em atividades médicas de natureza privada e dá outras providencias. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=7961&tipo_ norma=DEL&data=19450918&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. 317 BRASIL. Decreto-Lei n. 8.252, 29 nov. 1945. Suprime a contribuição de empregados para Legião Brasileira de Assistência, a que se refere o art. 2º, alínea “a”, do Decreto-Lei número 4.830, de 15 de outubro de 1942. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=8252&tipo_ norma=DEL&data=19451129&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 878, 17 set. 1969. Altera a redação do artigo 5º e seus parágrafos do Decreto-Lei n. 5.697, de 22 de julho de 1943. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-878-17-sete mbro-1969-376256-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 9.573, 12 ago. 1946. Altera o art. 22 do Decreto-Lei número 7.961, de 18 de Setembro de 1945, e, revogando o Decreto-Lei n. 8.306, de 6 de Dezembro de 1945, dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del9573.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 1.632, 04 ago. 1978. Dispõe sobre a proibição de greve nos serviços públicos e em atividades essenciais de interesse da segurança nacional. Disponível em: <http://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/24/1978/1632.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Decreto-Lei n. 593, 27 maio 1969. Autoriza o Poder Executivo a instituir uma fundação destinada a prestar assistência à maternidade, à infância e à adolescência. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=593&tipo_n orma=DEL&data=19690527&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Emenda Constitucional n. 1, 17 out. 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/ emc01-69.htm>. Acesso em: 23 jan. 2012. ______. Emenda Constitucional n. 4, Ato Adicional, 02 set. 1961. Institui o sistema parlamentar do governo. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=113505&tipo Documento=EMC&tipoTexto=PUB>. Acesso em: 23 jan. 2012. ______. Emenda Constitucional n. 6, 23 jan. 1963. Revoga a Emenda Constitucional 4 e restabelece o sistema presidencial de governo, instituído pela Constituição Federal de 1946, salvo o disposto no seu artigo 61. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=114225&tipo Documento=EMC&tipoTexto=PUB>. Acesso em: 23 jan. 2012. ______. Lei n. 1.493, 13 dez. 1951. Dispõe sôbre o pagamento de auxílios e subvenções. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=1493&tipo_ norma=LEI&data=19511213&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. 318 BRASIL. Lei n. 10.219, 11 abr. 2001. Cria o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação – “Bolsa Escola”, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10219.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Lei n. 10.259, 12 jul. 2011. Dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10259.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Lei n. 10.406, 10 jan. 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Lei n. 10.453, 13 de maio 2002. Dispõe sobre subvenções ao preço e ao transporte do álcool combustível e subsídios ao preço do gás liqüefeito de petróleo – GLP, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10453.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Lei n. 10.458, 14 maio 2002. Institui o Programa Bolsa-Renda para atendimento a agricultores familiares atingidos pelos efeitos da estiagem nos Municípios em estado de calamidade pública ou situação de emergência, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10458.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Lei n. 10.683, 28 maio 2003. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.683.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Lei n. 10.689, 13 jun. 2003. Cria o Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.689.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Lei n. 10.741, 01 out. 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741.htm>. Acesso em: 29 jan. 2012. ______. Lei n. 10.836, 09 jan. 2004. Cria o Programa Bolsa Família e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2004/lei/l10.836.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. 319 BRASIL. Lei n. 10.954, 29 set. 2004. Institui, no âmbito do Programa de Resposta aos Desastres, o Auxílio Emergencial Financeiro para atendimento à população atingida por desastres, residentes nos Municípios em estado de calamidade pública ou situação de emergência, dá nova redação ao § 2o do art. 26 da Lei no 10.522, de 19 de julho de 2002, ao art. 2o-A da Lei no 9.604, de 5 de fevereiro de 1998, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.954.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Lei n. 11.340, 07 ago. 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Lei n. 119, 25 nov. 1935. Regula a distribuição de subvenções a Instituições de Assistencia, Educação e Cultura. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=119&tipo_n orma=LEI&data=19351125&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Lei n. 12.435, 06 jul. 2011. Altera a Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12435.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Lei n. 12.470, 31 ago. 2011. Altera os arts. 21 e 24 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre o Plano de Custeio da Previdência Social, para estabelecer alíquota diferenciada de contribuição para o microempreendedor individual e do segurado facultativo sem renda própria que se dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que pertencente a família de baixa renda; altera os arts. 16, 72 e 77 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre o Plano de Benefícios da Previdência Social, para incluir o filho ou o irmão que tenha deficiência intelectual ou mental como dependente e determinar o pagamento do salário-maternidade devido à empregada do microempreendedor individual diretamente pela Previdência Social; altera os arts. 20 e 21 e acrescenta o art. 21-A à Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993 – Lei Orgânica de Assistência Social, para alterar regras do benefício de prestação continuada da pessoa com deficiência; e acrescenta os § § 4o e 5o ao art. 968 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, para estabelecer trâmite especial e simplificado para o processo de abertura, registro, alteração e baixa do microempreendedor individual. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12470.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. 320 BRASIL. Lei n. 4.506, 30 nov. 1964. Dispõe sôbre o impôsto que recai sôbre as rendas e proventos de qualquer natureza. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4506.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Lei n. 4.762, 30 ago. 1965. Modifica o art. 11 e seus parágrafos da Lei n. 1.493, de 13 de dezembro de 1951, alterados pela Lei n. 2.266, de 12 de julho de 1954, e dá outras providências. Disponível em: <http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1965/4762.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Lei n. 4.917, de 17 de dezembro de 1965. Isenta dos impostos de importação e de consumo, e de outras contribuições fiscais, os alimentos de qualquer natureza, e outras utilidades, adquiridos no exterior, mediante doação, pelas instituições em funcionamento no País, que se dediquem à assistência social. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=4917&tipo_ norma=LEI&data=19651217&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Lei n. 5.107, 13 set. 1966. Cria o fundo de garantia do tempo de serviço, e dá outras providências. Disponível em: <http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1966/5107.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Lei n. 5.944, 29 nov. 1973. Altera o § 1º, do artigo 5º, do Decreto-Lei n. 5.697, de 22 de julho de 1943, alterado pelo Decreto-Lei número 878, de 17 de setembro de 1969. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=5944&tipo_ norma=LEI&data=19731129&link=s>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Lei n. 6.151, 04 dez. 1974. Dispõe sobre o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), para o período de 1975 a 1979. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6151.htm>. Acesso em: 04 mar. 2012. ______. Lei n. 6.179, 11 dez. 1974. Institui amparo previdenciário para maiores de setenta anos de idade e para inválidos, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6179.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Lei n. 6.439, 01 set. 1977. Institui o sistema Nacional de Previdência e Assistência Social e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6439.htm>. Acesso em: 22 jan. 2012. ______. Lei n. 8.069, 13 jul. 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 26 jan. 2012. ______. Lei n. 8.080, 19 set. 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 24 jan. 2012. 321 BRASIL. Lei n. 8.212, 24 jul. 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8212cons.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Lei n. 8.213, 24 jul. 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Lei n. 8.742, 07 dez. 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8742.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Lei n. 9.099/95, 26 set. 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Lei n. 9.533, 10 dez. 1997. Autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro aos Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9533.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Lei n. 9.720, 30 nov. 1998. Dá nova redação a dispositivos da Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9720.htm#art1>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______. Medida Provisória n. 108, 27 fev. 2003. Cria o Programa Nacional de Acesso à Alimentação – “Cartão Alimentação”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas_2003/108.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Medida Provisória n. 18, de 28 dez. 2001. Dispõe sobre subvenções ao preço e ao transporte do álcool combustível e subsídios ao preço do gás liqüefeito de petróleo – GLP, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas_2001/18.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Medida Provisória n. 2.140, 13 fev. 2001. Cria o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação – “Bolsa Escola”, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2140.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. 322 BRASIL. Medida Provisória n. 2.140-1, 14 mar. 2001. Cria o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação – “Bolsa Escola”, e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Antigas_2001/2140-1.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Medida Provisória n. 132, 20 out. 2003. Cria o Programa Bolsa Família e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas_2003/132.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Medida Provisória n. 2.206-1 de 06 set. 2001. Cria o Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à saúde: “Bolsa-Alimentação” e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Antigas_2001/2206-1.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. ______. Medida Provisória n. 813, 01 jan. 1995. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Antigas/813.htm>. Acesso em: 06 fev. 2012. CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Resolução n. 130, 15 jul. 2005. Aprova a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB SUAS. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/legislacao/resolucoes/2005>. Acesso em: 24 fev. 2012. ______. Resolução n. 145, de 15 out. 2004. Aprova a Política Nacional de Assistência Social. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/legislacao/legislacao/resolucoes/legislacao/resoluco es/2004>. Acesso em: 24 fev. 2012. ______. Resolução n. 207, 16 dez. 1998. Aprova por unanimidade a Política Nacional de Assistência Social – PNAS e a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB2. Publicada no Diário Oficial em 18 de dezembro de1998 e, em razão de omissões, republicada no Diário Oficial de 16 de abril de 1999, suplemento ao n. 72, Seção 1, p. 1-15. 323 SITES ACESSADOS ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO. Disponível em: <http://www.agu.gov.br>. BRITANNIA. America’s Gateway to the British Isles since 1996. Disponível em: <http://www.britannia.com>. CÁMARA DE DIPUTADOS. H. Congreso de la Unión. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx>. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>. DATAPREV. Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social. Disponível em: <http://www.dataprev.gov.br>. FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS. Universidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br>. INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. Promotion Jobs, protecting people. Disponível em: <http://www.ilo.org>. JUSTIÇA. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://www.mj.gov.br>. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Disponível em: <http://www.mds.gov.br>. NEPPOS – NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM POLÍTICA SOCIAL DO CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS MULTIDISCIPLINARES (CEAM/UnB). Disponível em: <http://nrserver34.net/~unbonlin/neppos/>. PLANALTO.GOV.BR. Presidência da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO. Disponível em: <http://www.pucsp.br>. PORTAL DA JUSTIÇA FEDERAL. Administrado pelo Conselho da Justiça Federal. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br>. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Disponível em: <http://www.pnud.org.br>. SANTA CASA DE MISERICÓRIDA <http://www.santacasarecife.org.br>. DO RECIFE. SENADO FEDERAL. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Disponível em: 324 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. THE AVALON PROJECT. Documents in Law, History and Diplomacy. Disponível em: <http://avalon.law.yale.edu/medieval/statlab.asp>. TRABALHO. Ministério do <http://www.mte.gov.br>. Trabalho e Emprego. Disponível UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Disponível em: <http://www.unb.br>. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Disponível em: <http://www.usp.br>. VATICAN.VA. Disponível em: <http://www.vatican.va>. em: 325 DECISÕES JUDICIAIS BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.2321/DF. Relator: Min. Ilmar Galvão. Relator para o Acórdão: Min. Nelson Jobim. Tribunal Pleno. Data da decisão: 27 ago. 1998. Diário da Justiça, 01 jun. 2001, p. 75. ______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277/DF. Relator: Min. Ayres Britto. Tribunal Pleno. Data da decisão: 05 maio 2011. Diário da Justiça Eletrônico 198, 13 out. 2011. Publicação em: 14 out. 2011. ______. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Medida Cautelar na Reclamação n. 4.427-1/RS. Relator: Min. Cezar Peluso. Tribunal Pleno. Data da decisão: 06 jun. 2007. Diário da Justiça Eletrônico 047, 28 jun. 2007. Publicação em: 29 jun. 2007. ______. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Reclamação n. 2.303-6/RS, Relatora: Min. Ellen Gracie. Tribunal Pleno. Data da decisão: 13 maio 2004. Diário da Justiça, 01 abr. 2005, p. 05. ______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132/RJ. Relator: Min. Ayres Britto. Tribunal Pleno. Data da decisão: 05 maio 2011. Diário da Justiça Eletrônico 198, 13 out. 2011. Publicação em: 14 out. 2011. ______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção n. 448-0/RS. Relator: Min. Marco Aurélio. Relator para o Acórdão: Min. Moreira Alves. Tribunal Pleno. Data da decisão: 05 set. 1994. Diário da Justiça, 06 jun. 1997, p. 24871. ______. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.232-1/DF. Relator: Min. Maurício Corrêa. Tribunal Pleno. Data da decisão: 22 mar. 1995. Diário da Justiça, 26 maio 1995, p. 15154. ______. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Reclamação n. 4.374/PE. Relator: Min. Gilmar Mendes. Data da decisão: 01 fev. 2007. Diário da Justiça, 06 fev. 2007, p. 111. ______. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 2.323-1/PR, Relator: Min. Eros Grau Tribunal Pleno. Data da decisão: 07 abr. 2005. Diário da Justiça, 20 maio 2005, p. 08. ______. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n. 587.970-4/SP. Relator: Min. Marco Aurélio. Tribunal Pleno. Data da decisão: 25 jun. 2009. Diário da Justiça Eletrônico 186, 01 out. 2009. Publicação em: 02 out. 2009. ______. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n. 580.963/PR. Relator: Min. Gilmar Mendes. Data da decisão: 16 set. 2010. Diário da Justiça Eletrônico 190, 07 out. 2010. Publicação em: 08 out. 2010. 326 BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Embargos de Declaração no Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200270040071041. Relator: Juiz Federal Edilson Pereira Nobre Júnior. Diário da Justiça, 26 fev. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770510074026. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da Justiça, 13 maio 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770510079127. Relatora: Juíza Federal Rosana Noya Alves Weibel Kaufmann. Diário da Justiça, 05 abr. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770590036096. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da Justiça, 13 maio 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200772520024887. Relatora: Juíza Federal Rosana Noya Alves Weibel Kaufmann. Diário Oficial da União, 13 maio 2011, Seção 1 ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200772640007923. Relatora: Juíza Federal Rosana Noya Alves Weibel Kaufmann. Diário da Justiça, 09 dez. 2009 ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950035910. Relatora: Juíza Federal Rosana Noya Alves Weibel Kaufmann. Diário da Justiça, 09 dez. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200461841542217. Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky. Relatora Suplente: Juíza Federal Cristiane Conde Chmatalik. Diário Oficial da União, 17 jun. 2011, Seção 1. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200580135061286. Relator: Juiz Federal Ronivon de Aragão. Diário Oficial da União, 08 jul. 2011, Seção 1. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200743009012182. Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky. Diário Oficial da União, 17 jun. 2011, Seção 1. 327 BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770500026709. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira. Diário da Justiça, 03 abr. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770500182008. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira. Diário da Justiça, 05 mar. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770530007330. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira. Diário da Justiça, 05 mar. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770530025203. Relatora: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. Diário da Justiça, 09 ago. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770600015825. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira. Diário da Justiça, 23 mar. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770630008975. Relator: Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz. Diário da Justiça, 07 jul. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200772950064726. Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha. Diário da Justiça, 12 fev. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200783005374840. Relator: Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho. Diário da Justiça, 05 mar. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200783035014125. Relator: Juiz Federal Manoel Rolim Campbell Penna. Diário Oficial da União, 11 mar. 2011. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200832007038700. Relator: Juiz Federal Cláudio Roberto Canata. Diário da Justiça, 01 mar. 2010. 328 BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870510028148. Relator: Juiz Federal Ronivon de Aragão. Diário da Justiça, 25 maio 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870510046916. Relator: Juiz Federal Cláudio Roberto Canata. Diário da Justiça, 09 ago. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870650015977. Relator: Juiz Federal Vladimir Santos Vitovsky. Relatora Suplente: Juíza Federal Cristiane Conde Chmatalik. Diário Oficial da União, 08 jul. 2011, Seção 1. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950009582. Relatora: Juíza Federal Joana Carolina Lins Pereira. Diário da Justiça, 25 mar. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950011540. Relator: Juiz Federal Eduardo André Brandão de Brito Fernandes. Diário da Justiça, 11 jun. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950024923. Relatora: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. Diário da Justiça, 11 jun. 2010. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200932007033423. Relator: Juiz Federal Paulo Ricardo Arena Filho. Diário Oficial da União, 30 ago. 2011. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200682025020500. Relator: Juiz Federal José Antonio Savaris. Diário Oficial da União, 17 jun. 2011, Seção 1. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200251510229469. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória. Diário da Justiça, 28 maio 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200261840001603. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos. Diário da Justiça, 14 maio 2007. 329 BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200270090033412. Relator: Juiz Federal Marcelo Mesquita Saraiva. Diário da Justiça, 21 out. 2004. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200272000583847. Relator: Juiz Federal Ricardo César Mandarino Barreto. Diário da Justiça, 02 mar. 2005. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200351510059076. Relatora: Juíza Federal Sônia Diniz Viana. Diário da Justiça, 02 maio 2006. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200361840011029. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Diário da Justiça, 31 jan. 2008. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200361840608526. Relator: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo Dos Santos. Diário da Justiça, 11 jun. 2007 ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200430007021290. Relator: Juiz Federal Wilson Zauhy Filho. Diário da Justiça, 13 jun. 2005. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200439007106977. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Diário da Justiça, 22 jan. 2008. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200443009000410. Relator: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo Dos Santos. Diário da Justiça, 26 set. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200443009018000. Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha. Diário da Justiça, 27 set. 2006. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200463060057293. Relatora: Juíza Federal Renata Andrade Lotufo. Diário da Justiça, 26 fev. 2007. 330 BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200470950028054. Relator: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo Dos Santos. Diário da Justiça, 19 dez. 2006. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200470950095456. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos. Diário da Justiça, 30 maio 2006. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200534007548367. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Diário da Justiça, 22 jan. 2008. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200536007023553. Relator: Juiz Federal Renato Toniasso. Diário da Justiça, 11 set. 2006. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009015150. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória. Diário da Justiça, 04 out. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009018871. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Diário da Justiça, 27 nov. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009020535. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória. Diário da Justiça, 26 set. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009020864. Relator: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo Dos Santos. Diário da Justiça, 31 jan. 2008. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009021417. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Diário da Justiça, 22 jan. 2008. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009028900. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos. Diário da Justiça, 02 out. 2007. 331 BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009039683. Relatora: Juíza Federal Mônica Autran Machado Nobre. Diário da Justiça, 24 mar. 2008. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009040184. Relator: Juiz Federal Alexandre Miguel. Diário da Justiça, 02 out. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009040777. Relatora: Juíza Federal Mônica Autran Machado Nobre. Diário da Justiça, 20 set. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200543009043180. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos. Diário da Justiça, 02 out. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200563060083879. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Diário da Justiça, 26 fev. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200563060141557. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Diário da Justiça, 26 fev. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200563060143270. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Relator para o Acórdão: Juiz Federal Marcos Roberto Araújo dos Santos. Diário da Justiça, 11 jun. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200570530021523. Relator: Juiz Federal Cláudio Roberto Canata. Diário da Justiça, 20 out. 2008, p. 24. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200570950059353. Relator: Juiz Federal Hermes Siedler Da Conceição Júnior. Diário da Justiça, 14 maio 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200570950110656. Relator: Juiz Federal Edilson Pereira Nobre Júnior. Diário da Justiça, 18 dez. 2006. 332 BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200583200096872. Relatora: Juíza Federal Renata Andrade Lotufo. Diário da Justiça, 18 dez. 2006. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200584015002615. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória. Diário da Justiça, 21 dez. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200584130012658. Relator: Juiz Federal Guilherme Bollorini Pereira. Diário da Justiça, 02 maio 2006. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200643009017410. Relatora: Juíza Federal Daniele Maranhão Costa. Diário da Justiça, 22 jan. 2008. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200643009021811. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Diário da Justiça, 27 nov. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200643009023178. Relator: Juiz Federal Leonardo Safi de Melo. Diário da Justiça, 07 nov. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200663060020461. Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos. Diário da Justiça, 26 fev. 2007. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200663060074275. Relator: Juiz Federal Renato César Pessanha de Souza. Relator para o Acórdão: Juiz Federal Edilson Pereira Nobre Júnior. Diário da Justiça, 03 set. 2008. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200670950034798. Relator: Juiz Federal João Carlos Mayer Soares. Diário da Justiça, 25 mar. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200672950022673. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da Justiça, 29 maio 2009. 333 BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200683005103371. Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha. Diário da Justiça, 09 mar. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200683005169254. Relator: Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz. Diário da Justiça, 28 jan. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200683035011995. Relator: Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho. Diário da Justiça, 09 mar. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770950023355. Relator: Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha. Diário da Justiça, 20 out. 2008. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770950064928. Relatora: Juíza Federal Maria Divina Vitória. Diário da Justiça, 19 ago. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770950106637. Relatora: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. Diário da Justiça, 16 jan. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200770950147159. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da Justiça, 13 out. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200772510007868. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da Justiça, 29 maio 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200772950002393. Relator: Juiz Federal Leonardo Safi de Melo. Diário da Justiça, 31 jan. 2008. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200783005010828. Relator: Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz. Diário da Justiça, 28 jan. 2009. 334 BRASIL. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200783005023811. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Relatora para o Acórdão: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. Diário da Justiça, 19 ago. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200835007004024. Relator: Juiz Federal Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho. Diário da Justiça, 22 abr. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950021545. Relator: Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz. Diário da Justiça, 15 set. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950034000. Relatora: Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva. Diário da Justiça, 04 set. 2009. ______. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200870950034436. Relator: Juiz Federal Otávio Henrique Martins Port. Diário da Justiça, 13 nov. 2009, p. 07.