CENTRO UNIVERSITÁRIO UNA INSTITUTO DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, PESQUISA E EXTENSÃO MESTRADO EM GESTÃO SOCIAL, EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO LOCAL A gestão social no Centro de Referência da Assistência Social em Belo Horizonte: desafios da atividade de trabalho CÉLIO AUGUSTO RAYDAN ROCHA Belo Horizonte - MG 2012 CÉLIO AUGUSTO RAYDAN ROCHA A gestão social no Centro de Referência da Assistência Social em Belo Horizonte: desafios da atividade de trabalho Dissertação apresentada ao Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Inovações Sociais, Educação e Desenvolvimento Local. Linha de pesquisa: Processos PolíticoSociais - Articulações Institucionais e Desenvolvimento Local (Ênfase em Gestão Social). Orientadora: Profa. Dra. Eloísa Elena Santos Belo Horizonte – MG Centro Universitário UNA 2012 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca do Centro Universitário UNA R672g Rocha, Célio Augusto Raydan. A gestão social no Centro de Referência da Assistência Social em Belo Horizonte: desafios da atividade de trabalho / Célio Augusto Raydan Rocha. – 2012. 168f. Orientador: Profª. Drª Eloísa Elena Santos Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário UNA, 2012. Programa de Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Bibliografia f.155-162. 1. Gestão social. 2. Assistência social – Brasil. I. Santos, Eloísa Elena. II. Centro Universitário UNA. III. Título. CDU: 364.23 AGRADECIMENTOS Para que pudesse chegar ao final desta etapa contei com o apoio, compreensão e incentivo de pessoas significativas que fizeram parte deste processo. O meu agradecimento especial à professora e orientadora Eloisa Santos que com o seu cuidado e seu saber conduziu toda a dramática que envolve a elaboração de uma atividade de trabalho como esta. Personagem principal que soube direcionar a minha experiência profissional para a produção acadêmica proposta, que me apresentou novos saberes e me provocou a ir além. Aos professores que participaram da banca Maria Lúcia Afonso de Miranda e Bruno Lazarotti que contribuíram com observações pertinentes, o olhar de fora tão necessário para as correções de rumos e revisões na elaboração de conceitos. Em nome de todos os professores agradeço à Prof. Lucília Machado, coordenadora do Mestrado, que com sua firmeza e sensibilidade conduz este curso, e que, com um simples gesto me motivou superar as limitações físicas e emocionais e a retomar o propósito de fechar mais um ciclo na vida em um duplo desafio. Um agradecimento à Shirlei Jacimar e Magali Deslande gestoras da Proteção Social Básica da Secretaria Municipal Adjunta da Assistência Social da PBH, verdadeiras companheiras na trajetória da consolidação da política de assistência social. Ocuparam um lugar estratégico como incentivadoras e facilitadoras para a realização da pesquisa junto aos CRAS. Aos trabalhadores dos CRAS Independência e Coqueiral em especial às coordenadoras Magda e Adriana, protagonistas neste processo ao oferecerem informações significativas por meio de depoimentos verdadeiros que demonstram um comprometimento com o trabalho coletivo, com os propósitos da política de assistência social e com a sua consolidação como uma política de garantia de direitos. À coordenadora do curso de Serviço Social do Centro Universitário UNA Fabrícia Maciel pelo companheirismo que muito me facilitou conciliar as atividades, que com a sua suavidade consegue equilibrar as necessidades institucionais com os limites humanos. Um agradecimento especial à Mariana Lelis pela sua cumplicidade, por compartilhar a vida afetiva nos momentos de alegria e dor, desejos e incertezas, nos debates e embates de conteúdo teórico e profissional, por resgatar minha espiritualidade e me fazer mais humano. À minha filha Lis por estar sempre ao meu lado com seu afeto, sua capacidade de compreensão e por me transmitir luz e doçura nas mais diversas situações. Um agradecimento aos meus pais D. Lindaura e Sr. Célio e minha irmã Solange pelo acolhimento recebido principalmente nos momentos mais difíceis, que apesar do meu distanciamento e minhas ausências neste período, sempre estiveram ao meu lado. Chaquib e Maurício responsáveis por me desafiar, ao longo da vida, a transgredir as normas e renormalizar a vida, ir além do senso comum. Ao Dr. Paulo Albarez, um agradecimento especial pela precisão cirúrgica ao me devolver a possibilidade de projetar a vida, que me permitiu uma dupla superação e o meu restabelecimento a tempo de concluir mais este desafio. Aos trabalhadores do CRAS Mariano de Abreu Ana Paula, Mariana, Mary, Thaís, Joana, Adriana, Márcia Cristina, Joyce, Selmeli, companheiras que na convivência nas dramáticas da atividade de trabalho desafia a construção de novos saberes do coletivo por meio das trocas dos saberes na experiência. Aos moradores do território e usuários do CRAS Mariano de Abreu que nos ensina ser possível a superação nas adversidades da vida. Atores importantes que nos apontam a necessidade em renormalizar a nossa atividade de trabalho, nos desafiam a cumprir com a função pública, a qualificar os serviços oferecidos e a direcionar a intervenção profissional com um compromisso ético e político na superação das desigualdades sociais. Aos colegas de mestrado e principalmente Ana, Roberta, Cristina, Débora, Guilver, Andrea pela convivência fraterna, pelas conversas, pelos cuidados oferecidos e pela solidariedade. Aos amigos Alexia, Xande, Fernando, Waine, Adelina, Marcelinho, Vitinho, Rodrigão, Cibele, Eliete, Alcione e tantos outros que na convivência fraterna e nas reflexões sobre o mundo da vida transformamos as relações em processos de aprendizagem e crescimento político e humano. RESUMO Esta dissertação realiza um estudo investigativo sobre a gestão do Centro de Referência da Assistência Social – CRAS no município de Belo Horizonte tendo como ponto de partida a análise da atividade de trabalho realizada pelos seus trabalhadores e a caracterização como um processo de gestão social. Para tanto, optou-se por identificar a política de assistência social no contexto da formulação da política pública brasileira, a trajetória da administração pública com a formulação de modelos, concepções, uma aproximação do conceito de gestão social e uma elaboração conceitual da atividade de trabalho sistematizada pela perspectiva ergológica. A gestão social caracterizada como uma gestão de caráter relacional, participativa e democrática qualifica um modelo de gestão pública que incorpora a contribuição dos trabalhadores, agentes públicos responsáveis pela gestão do CRAS, como protagonistas do processo de gestão com a instrumentalização da sua atividade de trabalho. Para a realização da atividade de trabalho no CRAS, os trabalhadores da assistência social recorrem às normas ou prescrições legais, aos saberes acadêmicos ou científicos, aos saberes adquiridos na experiência de vida e de trabalho e na relação estabelecida com seus pares, como recursos para gerir o seu próprio trabalho. Todo este processo provoca uma renormalização individual e, com a mediação da linguagem, uma renormalização coletiva, ou seja, o coletivo de trabalho cria e recria normas, fluxos e procedimentos no intuito de preencher as lacunas existentes entre o trabalho prescrito e o real. Como forma de potencializar todo esse saber investido adquirido na experiência de trabalho, um modelo de gestão pública comprometida com a democratização interna da estrutura governamental encontra ressonância política nos princípios de gestão social. Palavras chave: Gestão social, assistência social, CRAS, ergogestão, atividade de trabalho. LISTA DE SIGLAS BPC – Benefício de Prestação Acumulada CEBs – Comunidades Eclesiais de Base CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social CRAS – Centro de Referência da Assistência Social CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social DD3P – Dispositivo Dinâmico a Três Polos DOU – Diário Oficial da União ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente FONSEAS – Fórum Nacional de Secretários de Assistência Social GET – Grupo de Encontro de Trabalho GPSO – Gerência de Proteção Social GPSOB – Gerência de Proteção Social Básica LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social NOB – Norma Operacional Básica NOB-RH/SUAS – Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome PAIF – Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família PBF – Programa Bolsa Família PBH – Prefeitura Municipal de Belo Horizonte PNAS – Política Nacional de Assistência Social RMV – Renda Mensal Vitalícia SMAAS – Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social SMPS – Secretaria Municipal de Políticas Sociais SUAS – Sistema Único de Assistência Social SUMÁRIO 1 – Introdução................................................................................................................09 2 – Metodologia..............................................................................................................22 2.1 – Metodologia da Pesquisa......................................................................................22 2.1.1 - Pesquisa bibliográfica........................................................................................23 2.1.2 - Pesquisa documental..........................................................................................24 2.1.3 - Pesquisa de campo..............................................................................................24 2.1.3.1 – Contexto da pesquisa......................................................................................24 2.1.3.2 - Sujeitos da pesquisa........................................................................................26 2.1.3.3 - Instrumentos de coleta de dados....................................................................26 2.2 – Estrutura da Dissertação.....................................................................................27 3 - A política de assistência social e a formulação da política pública brasileira....29 3.1 - A descentralização no contexto da política pública...........................................29 3.1.1 - A descentralização na formulação político-administrativa brasileira..........31 3.1.2 – Intersetorialidade: dilemas e desafios para a política pública......................32 3.2 - A organização da Assistência Social e sua normatização..................................37 3.2.1 – A matricialidade sociofamiliar.........................................................................47 3.2.2 – Territorialidade.................................................................................................50 3.3 – A Caracterização do Centro de Referência de Assistência Social – CRAS.....52 3.3.1 – O CRAS entre a Assistência Social e a Política Social em Belo Horizonte...56 4 - Gestão social e a administração pública: uma construção contra hegemônica..59 4.1 – A administração pública e a transição entre os modelos de gestão pública....60 4.1.1 – Administração Pública Burocrática.................................................................61 4.1.2 – Administração Pública Gerencial....................................................................63 4.1.3 - Administração Pública Societal........................................................................66 4.1.4 – Reflexões sobre os modelos de administração pública...................................68 4.2 – Governança pública: avanços e contradições....................................................71 4.3 – Gestão social e gestão pública: uma aproximação possível..............................77 4.3.1 – Gestão social – um conceito em construção.....................................................80 5 - A Ergologia e a atividade de trabalho: princípios e conceitos.............................89 5.1 – A atividade de trabalho e a produção de saberes..............................................89 5.2 – O trabalhador, a norma, o debate de normas e a renormalização: entre o trabalho prescrito e o real.............................................................................................94 5.3 – A gestão do trabalho...........................................................................................102 6 – Análise da atividade de trabalho no CRAS.........................................................108 6.1 – Prescrições legais e as normas antecedentes....................................................109 6.2 – O saber constituído e o saber investido em desafio na atividade...................115 6.3 – Atividades de Trabalho Realizadas..................................................................120 6.3.1 – Composição das equipes – condições de trabalho para a realização da atividade.......................................................................................................................120 6.3.2 – Funções e atribuições: ações interdisciplinares no trabalho coletivo.........121 6.4 – A linguagem: ferramenta de trabalho e a atividade sobre a atividade..........125 6.5 – Relações Interinstitucionais...............................................................................138 7 – Considerações finais..............................................................................................148 8 – Proposta de intervenção........................................................................................152 9 – Referências Bibliográficas....................................................................................155 1 – INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 traz no âmbito da Seguridade Social a Assistência Social como um dos pilares do sistema de Proteção Social Brasileiro, juntamente com a Saúde e a Previdência Social. Regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência Social1 – LOAS, em dezembro de 1993 alcança um novo marco referente no campo dos direitos, da universalização dos acessos e da responsabilidade estatal. A assistência social alcança o seu caráter de política de Proteção Social, voltada à garantia de direitos e de condições dignas de vida como política não contributiva. No sentido de consolidar a assistência social como política pública e direito social, a IV Conferência Nacional de Assistência Social, em 2003, aponta como principal deliberação a construção e a implementação do Sistema Único de Assistência Social. Ao acatar a deliberação da Conferência, o Governo Federal, por intermédio do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS, sanciona em 2004 a Política Nacional de Assistência Social – PNAS, e abre caminhos para os avanços no campo das políticas sociais. No ano seguinte, após um processo de amplo debate que envolveu a sociedade civil e gestores dos três níveis de governo, foi aprovada a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social – NOB/SUAS. Em 2006 é publicada a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS – NOBRH/SUAS, com o objetivo de traçar diretrizes para a política de gestão do trabalho no Sistema. A PNAS normatiza e organiza a sua configuração institucional, e aponta os seguintes objetivos: - prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e, ou especial para as famílias, indivíduos e grupos que deles necessitarem; - contribuir com a inclusão e a equidade dos usuários e grupos específicos, ampliando o acesso aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais em áreas urbana e rural; - assegurar que as ações no âmbito da assistência social tenham centralidade na família, e que garantam a convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2004, p. 33). Para a efetivação da proteção social, a PNAS organiza os serviços a partir de níveis de complexidade e das chamadas proteções afiançadas: Proteção Social Básica e Proteção Social Especial. O Centro de Referência de Assistência Social - CRAS, definido pela PNAS como uma unidade pública estatal da política de assistência social de base territorial 1 Lei Orgânica da Assistência Social: Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993. local, é responsável pela execução de serviços da proteção social básica e pela organização e coordenação da rede de serviços socioassistenciais locais. Atua com famílias e indivíduos em seu contexto comunitário, com vistas à orientação e ao convívio sociofamiliar e comunitário. Como um equipamento público da Proteção Social Básica da política de assistência social tem como funções a oferta do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF e a Gestão da Proteção Social Básica no Território (BRASIL, 2009). O PAIF é ofertado exclusivamente pelo CRAS, e constitui-se em uma ação de atendimento/acompanhamento às famílias moradoras no território de abrangência. Esta ação visa à garantia do direito à convivência familiar e comunitária e assegura a matricialidade sociofamiliar prevista no atendimento socioassistencial. A outra função do CRAS, gestão territorial da Proteção Social Básica, refere-se às articulações político-institucionais pertinentes ao estabelecimento de parcerias e uma ação proativa no território. A gestão territorial diz respeito à relação do serviço com a rede comunitária e institucional do território. Entre o período de promulgação da LOAS, em 1993, até o ano de 2004, a política de assistência social passou por um processo de descontinuidade organizacional e uma fragmentação orçamentária traduzidos por uma frágil institucionalidade no âmbito da política pública. Outra característica deste período se refere ao caráter residual, herdado historicamente, caracterizado como uma ação compensatória resultado do clientelismo e do assistencialismo na prática de caridade destinada aos “pobres”. Nos últimos anos, a política de assistência social tem incorporado novos procedimentos regulatórios que visam ao aperfeiçoamento de um processo de descentralização intergovernamental mais cooperativa. Fica evidente na recente formulação uma concepção quanto ao papel do Estado, uma nova delimitação de competências entre os entes federados e uma relação de complementaridade com a sociedade. O novo patamar organizacional da política de assistência social possibilita resgatar compromissos históricos voltados para a garantia dos direitos de cidadania e a credencia enquanto uma política de proteção social. Incorporam no seu conteúdo novos aportes conceituais e teóricos, preceitos metodológicos e princípios políticos, introduzindo um novo desenho organizacional que traz em si uma concepção de gestão de política pública (NERY, 2009). Resultado do novo modelo organizacional, o CRAS surge como uma unidade pública descentralizada mais próxima da população. Resoluções e normas advindas do órgão gestor federal estão definidas e servem como diretrizes gerais para os municípios, no que se refere à implantação e implementação do CRAS, bem como à delimitação das funções e atribuições. Contudo, considerando a grande diversidade do perfil dos municípios brasileiros, essas diretrizes não conseguem abarcar todas as particularidades presentes na experiência de execução do serviço. Neste sentido, fica como atribuição dos municípios a elaboração de regulamentações com um maior grau de detalhamento que contemple as particularidades locais. Ao se fazer uma observação mais detalhada das normas legais do serviço, percebe-se uma tendência na formulação de diretrizes gerais de caráter políticogerencial regulamentada pelo gestor federal. No que se refere à função de oferta do PAIF, ou seja, quanto ao acompanhamento às famílias, as orientações são estabelecidas com uma maior ênfase pelo gestor municipal. São prescrições com um maior grau de detalhamento e referem-se a procedimentos metodológicos. A função de gestão territorial e as ações que a subdividem aparecem como orientações gerais, carecendo de um maior detalhamento e uma prescrição no âmbito municipal. Portanto, não se trata de uma ausência de normas, visto que nos documentos oficiais as prescrições metodológicas e os procedimentos de gestão, ainda que generalizados, apontam para um determinado modelo de atuação. Nesta investigação será compreendido como “processo de gestão” todos os procedimentos necessários ao funcionamento do CRAS, incluindo a organização administrativa, o atendimento técnico às famílias e as articulações políticoinstitucionais. Portanto, apesar de haver níveis distintos de atribuições e funções, a gestão é realizada não somente pela coordenação da unidade, mas por todos os trabalhadores do CRAS. Neste sentido, a gestão do serviço se faz pelo conjunto das ações, dos procedimentos e a sua compreensão para o exercício das funções, seus desdobramentos e especificamente na realização da atividade de trabalho. No município de Belo Horizonte, os CRAS estão localizados em territórios de vulnerabilidade social, e têm como atribuição promover a inclusão social das famílias moradoras na área de abrangência. A categorização do território onde se localiza tornase um aspecto relevante. São territórios com elevados índices de vulnerabilidade social, atravessados pelas manifestações da questão social e pelas diversas formas de expressões da violência estrutural com todas as variáveis causais e as conseqüências desta violência. Situações como essas encontradas influenciam negativamente a qualidade das relações entre os indivíduos na família e na comunidade. Neste cenário, questões das mais diversas ordens se apresentam para a realização da atividade de trabalho dos profissionais, bem como para a condução dos processos de gestão do serviço. O CRAS referencia demandas geradas pela realidade dos territórios, relativas à totalidade das necessidades dos cidadãos. São questões que dizem respeito às situações da vida cotidiana, das relações interpessoais, familiares e comunitárias, das necessidades materiais e estruturais, da violência, dos conflitos e da qualidade dos vínculos estabelecidos. Absorver todas estas necessidades requer uma capacidade de respostas por parte dos profissionais e do serviço, que tendem a extrapolar as competências da política de assistência social. Atualmente a equipe técnica do CRAS em Belo Horizonte é composta por assistentes sociais e psicólogos, sendo que a coordenação pode ser ocupada por profissionais com graduação nas áreas das ciências sociais e humanas desde que seja do quadro efetivo da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte – PBH. A gestão do CRAS desafia os trabalhadores da assistência social2 e os gestores3 públicos a responder às demandas que este serviço apresenta. A condução dos processos de gestão de serviços que exigem uma maior flexibilidade hierárquica e relações dialógicas e participativas não mais se sustenta em modelos tradicionais da administração pública, seja ela burocrática4 ou gerencialista5. A configuração do CRAS, como unidade pública estatal descentralizada, responsável por desenvolver serviços e ações da política de assistência social, se aproxima das características que Paes de Paula 2 O termo trabalhadores ou trabalhadores da assistência social será utilizado para denominar todos os profissionais que trabalham nos diversos serviços da política de assistência social e especificamente no CRAS, independentemente da função que ocupam, seja ela administrativa, técnica ou de coordenação. 3 Serão considerados gestores, os agentes públicos localizados nos diversos níveis de governo que ocupam funções relativas à formulação e monitoramento, bem como das condições de funcionamento dos benefícios, projetos, programas e serviços da política pública de assistência social. 4 O modelo burocrático weberiano estabeleceu um padrão excepcional de expertise entre os trabalhadores das organizações. Um dos aspectos centrais é a separação entre planejamento e execução. (...) A formalidade impõe deveres e responsabilidades aos membros da organização, a configuração e legitimidade de uma hierarquia administrativa. (...) A impessoalidade prescreve que a relação entre os membros da organização e entre a organização e o ambiente externo está baseada em funções e linhas de autoridade claras (SECCHI, 2009, pp. 350-351). 5 A origem da vertente da qual deriva a administração pública gerencial brasileira está ligada ao intenso debate sobre a crise de governabilidade e credibilidade do Estado na América Latin,a durante as décadas de 1980 e 1990. Esse debate se situa no contexto do movimento internacional de reforma do aparelho do Estado, que teve início na Europa e nos Estados Unidos. Em ambos os países, o movimento gerencialista no setor público é baseado na cultura do empreendedorismo, que é um reflexo do capitalismo flexível (...) (PAES DE PAULA, 2005, pp. 37-38). (2005) define como administração pública societal6. Mais do que oferecer serviços públicos à população, o CRAS tem como princípio na sua formulação a participação desta mesma população no que se refere ao exercício do controle social 7. Neste sentido, a gestão pública e a gestão social se aproximam como modelo organizacional na execução de políticas públicas, que se caracteriza como processos gerenciais de desenvolvimento da cidadania. A concepção de gestão social, caracterizada como um processo de gerenciamento participativo e democrático de caráter dialógico e de tomada de decisões compartilhadas contrapõe-se ao modelo da gestão tecnoburocrática e hierarquizada de caráter monológico (TENÓRIO, 1998). A gestão do CRAS é permeada por uma dinâmica própria na organização das ações e da atividade de trabalho, intercruzada com as demandas oriundas da imprevisibilidade dos territórios. A cada nova situação, trabalhadores se vêem criando e recriando estratégias, com a renormalização de procedimentos para responder às exigências que se lhes apresentam. Está em curso uma experiência de gestão social realizada pelos trabalhadores dos CRAS. Paralelamente à busca de respostas por parte destes trabalhadores às atuais exigências na perspectiva de um modelo próprio de gestão social dos CRAS, novos conceitos estão em processo de elaboração. Há uma convergência entre um modelo de gestão flexível, democrático, que valorize a construção de saberes pelos trabalhadores e, simultaneamente, favoreça uma participação qualificada da população na condução do serviço. Interessa a esta investigação identificar e sistematizar os mecanismos de gestão sob a perspectiva dos trabalhadores que operacionalizam as ações do CRAS. A pesquisa realizada utilizou a Ergologia como referencial teórico e metodológico que instrumentalizou a investigação para a compreensão da atividade de trabalho e do processo de gestão do CRAS. Esta abordagem analisa o trabalho como atividade humana, sendo, portanto mais complexo do que uma simples realização 6 A origem da vertente da qual deriva a administração pública societal está ligada à tradição mobilizatória brasileira [...]. O tema da inserção da participação popular na gestão pública é o cerne dessa mobilização [...] que se manifesta na defesa da esfera pública não-estatal, que está intimamente relacionada com a criação de espaços públicos de negociação e espaços deliberativos (PAES DE PAULA, 2005, p. 39-40). 7 Efeito da ação dos indivíduos e das comunidades sobre a gestão das instituições públicas ou privadas das quais são usuários. Conforme a NOB-SUAS/2005, tem sua concepção advinda da Constituição Federal de 1988 e é instrumento de efetivação da participação popular no processo de gestão político-administrativa-financeira e técnico-operativa. O controle do Estado é exercido pela sociedade na garantia dos direitos fundamentais e dos princípios democráticos balizados nos preceitos constitucionais (Belo Horizonte, 2007, pp. 26-27). mecânica de tarefas ou uma simples aplicação de técnicas. Para a Ergologia “(...) o trabalho é um ato da natureza humana que engloba e restitui toda a complexidade humana” (TRINQUET, 2010, p. 96). É todo o processo de execução do trabalho, onde o homem mobiliza o seu corpo e sua subjetividade em um movimento de produzir algo, enquanto uma “(...) atividade interior. É o que passa na mente e no corpo (...)” (TRINQUET, 2010, p. 96). Neste processo o trabalhador estabelece um debate de normas com as normas antecedentes, um repensar consciente ou inconsciente das estratégias e formas de execução do que está prescrito, que resulta em renormalizações, transgressoras em relação às prescrições ou às normas antecedentes. Em toda atividade de trabalho há um distanciamento entre o trabalho prescrito e o real, que possibilita o surgimento de soluções criadas pelos trabalhadores para o preenchimento deste hiato com uma produção de saberes. O trabalhador se depara com uma imprevisibilidade, em que é preciso fazer escolhas, tomar decisões cuidadosas e responsáveis, que a ergologia nomeia como “dramáticas do uso de si”. O mesmo autor ainda afirma que “é nesse momento que se expressa a personalidade, a individualidade, a história sempre singular, tanto individual quanto coletiva daqueles que participam, em tempo real como um modo próprio de realização” (TRINQUET, 2010, p. 98). A atividade de trabalho é rica em produção de saber e está em constante evolução. A realização da atividade de trabalho no CRAS nos remete a esta imprevisibilidade assinalada pela perspectiva ergológica. A dramática do uso de si se torna uma constante, própria da relação do trabalhador com o trabalho e diante dos limites e impossibilidades de prescrições de todos os procedimentos técnicos, metodológicos e políticos. Apesar de estarem definidas, as normas prescritas parecem não serem suficientes para orientar toda a atividade de trabalho. Há sempre lacunas, ou seja, “soluções não previstas que devem ser buscadas sem cessar” (SANTOS, 1997, p. 21). As normas antecedentes são necessárias para organizar as atividades de trabalho, porém, insuficientes para definir todos os procedimentos exigidos no cotidiano. Segundo Vieira (2003, p. 55), “as normas antecedentes são um conjunto de dispositivos que compõem o ordenamento e antecedem a atividade do trabalho.” Podem ser definidas pelas leis, decretos, resoluções, portarias, normas, instruções normativas, manuais e orientações hierárquicas diversas. Entretanto, na atividade de trabalho nem tudo pode ser previsto. O espaço entre o trabalho prescrito e o real surge nas mais diversas situações, levando os trabalhadores sociais do CRAS a se depararem com a necessidade de renormalizações, individual e coletiva, que o trabalho real impõe. Neste movimento constante, os conhecimentos já formalizados são mobilizados, novos saberes são produzidos, o que provoca uma reflexão sobre a práxis profissional, e sobre o processo de gestão do serviço. Diante de uma prática reflexiva, “o trabalho convoca a inteligência de cada trabalhador e do coletivo de trabalho na descoberta, na aprendizagem, no desenvolvimento e na produção de saberes” (SANTOS, 1997, p. 15). Percebe-se uma insuficiência das normas antecedentes e, como em toda atividade de trabalho, lacunas entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Esta situação faz com que os trabalhadores busquem formas de superar essas insuficiências e criem estratégias para nortear sua atividade e conseqüentemente, construir novos modelos de gestão que possam contemplar toda a diversidade apresentada. A investigação procurou identificar o processo de gestão realizado pelos trabalhadores do CRAS na sua atividade de trabalho, bem como, compará-lo com o conceito de gestão social com as características apontadas acima. A expectativa é de que os resultados da investigação possam contribuir para o processo de gestão do CRAS em Belo Horizonte, ao reconhecer e valorizar a importância da atividade de trabalho dos seus trabalhadores como espaço de mobilização e produção de saber para cobrir a lacuna entre o trabalho prescrito e o trabalho real. As normalizações legais relativas à instrumentalização do processo de gestão do CRAS parecem não ser suficientes para abarcar a complexidade apresentada pelo cotidiano da atividade de trabalho, sendo este um relevante problema investigado por esta pesquisa. Regulamentado pela PNAS – 2004 e pela NOB/SUAS – 2005, o CRAS se define por um conjunto de diretrizes legais que normatiza a sua implantação e seu funcionamento. Essas diretrizes são formuladas em âmbito nacional e apresentam aspectos gerais que visam uma organização estrutural e política, vinculada a um propósito de consolidação da política pública de assistência social. No âmbito municipal, o CRAS recebe atribuições específicas conforme as características da realidade local e da configuração administrativa da gestão municipal, podendo executar ações que se diferenciam, desde que em conformidade com as diretrizes nacionais. Ao abordar aspectos específicos da gestão do CRAS no município de Belo Horizonte, há uma preocupação do órgão gestor em estabelecer diretrizes metodológicas quanto a procedimentos técnico-operativos, como também diretrizes estratégicas quanto à condução político-institucional. Há um esforço para regulamentar os processos de construção de instrumentos de monitoramento da gestão do serviço. Não se trata, portanto, de uma ausência de prescrições e normas. Apesar da existência de normas antecedentes e de prescrições dos diferentes níveis de complexidade, o trabalho no CRAS se caracteriza por situações imprevisíveis, dinâmicas e intensas, ou seja, situações que escapam a uma formalização. Esta característica que se apresenta na atividade dos profissionais que atuam no CRAS desafia os processos de gestão a buscar diferentes instrumentos que possam monitorar a atividade de trabalho e de gestão. Neste sentido, torna-se evidente a existência de um modo de gestão realizada pelos trabalhadores do CRAS na atividade cotidiana de trabalho que ultrapassa as normas e prescrições já estabelecidas. Evidente, também, é a inexistência de uma sistematização desse modo de gestão. Conhecê-lo e compará-lo a um conceito de gestão social que considere toda a complexidade do CRAS é o que se buscou nesta investigação. Considerando que há normas antecedentes e prescrições que orientam a organização e funcionamento do CRAS, mas que estas normas e prescrições são insuficientes para responder aos desafios que se apresentam na atividade cotidiana de trabalho, formulou-se como questão central da pesquisa o que configura a experiência de gestão destes trabalhadores e em que medida esta experiência confirma, amplia ou subverte os conceitos de gestão social apresentados pela literatura especializada? A investigação teve como objeto a experiência de criação de procedimentos, técnicas, estratégias, saberes variados na atividade dos trabalhadores que atuam no CRAS para responder aos desafios oriundos da insuficiência das normativas legais e das prescrições, no que diz respeito ao que fazer e como fazer no dia a dia do trabalho. A hipótese que direciona a investigação parte do pressuposto de que há uma insuficiência de normas para a organização da gestão e, conseqüentemente, da existência de um hiato entre o trabalho prescrito e o real, trabalhadores criam alternativas para responder aos desafios apresentados no cotidiano da atividade de trabalho e de gestão do CRAS. Configurou-se como objetivo geral da pesquisa: - Investigar a experiência de gestão do CRAS no município de Belo Horizonte, a partir do estudo do cotidiano da atividade de trabalho dos trabalhadores. E como objetivos específicos: - Conhecer as normativas legais para o funcionamento do CRAS, de modo a identificar as normas que prescrevem as atividades dos trabalhadores sociais. - Identificar os procedimentos, mecanismos, estratégias, saberes criados, mobilizados, realizados pelos trabalhadores do CRAS no hiato entre o âmbito do trabalho prescrito e aquele do trabalho real, no que se refere aos atendimentos individualizados, atividades coletivas grupais e nas articulações comunitárias e institucionais. - Comparar a experiência de gestão realizada pelos trabalhadores na atividade de trabalho no CRAS com as concepções de gestão social disponíveis na literatura especializada. Com a realização desta pesquisa espera-se uma melhor compreensão da atividade de trabalho realizada pelos trabalhadores dos CRAS em Belo Horizonte e de seus desdobramentos na experiência de construção de uma concepção de gestão própria ao âmbito desta unidade de serviço. A identificação e sistematização dos ingredientes que compõem novos modelos de gestão social se apresentam como possibilidade inovadora, ao contribuir para a melhoria da qualidade na execução das atividades de trabalho e na construção de mecanismos de monitoramento e acompanhamento técnico e metodológico, a partir de processos democráticos, participativos e horizontalizados no âmbito dos CRAS. A investigação proposta surge no sentido de contribuir para a qualificação do serviço prestado pelos CRAS voltados para o atendimento à população em áreas de vulnerabilidade social, com vistas ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Por ser o principal serviço da Proteção Social Básica da Política de Assistência Social, O CRAS ocupa uma função estratégica na relação do poder público com a população dos territórios. A aproximação da política de assistência social com uma gestão social de caráter democrático, participativa, com relações horizontalizada e dialógica ganha extrema importância em função do atual momento político em que atravessa o país. A assistência social passa por um processo de consolidação com a efetivação da Política Nacional de Assistência Social – PNAS e do Sistema Único de Assistência Social SUAS, ao definir ações de âmbito territorial local com a implantação dos CRAS em territórios de vulnerabilidade social nos municípios brasileiros. Estas unidades apresentam como objetivos o propósito atuar nas relações familiares e comunitárias, ao desenvolver ações individuais e coletivas de caráter educativo, com vistas a ampliar o universo relacional das famílias e o capital relacional das comunidades. A localização descentralizada em territórios mais próximos da população significa estabelecer novas relações e novos significados do exercício da política pública de assistência social. O distanciamento das estruturas centralizadas do poder pode acarretar situações de isolamento gerencial, dissociação entre a formulação e a execução e descontinuidade nos fluxos de informação, com uma conseqüente fragmentação das ações e um comprometimento na qualidade dos serviços prestados. Por outro lado, este distanciamento pode provocar situações de superação de vícios burocráticos e político-administrativos e uma maior autonomia quanto à utilização de modelos inovadores de gestão. A localização nos territórios proporciona uma vivência maior com o cotidiano da população, ao aproximar-se da realidade social repleta de contradições em que se manifesta a questão social8. Conhecer “in loco” a realidade das famílias possibilita recolher informações atualizadas e retroalimentar o processo de formulação e planejamento das políticas públicas, em especial da gestão da política de assistência social na qualificação da oferta de serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais. A investigação procurou conhecer e estudar o funcionamento do CRAS e identificar na atividade de trabalho dos operadores do serviço, os saberes produzidos nas relações institucionais e principalmente na relação com a população destes territórios. Pois é “no trabalhador é que o usuário se referencia, isto é, na possibilidade de estabelecer um espaço relacional de escuta, capaz de estabelecer vínculos e assegurar o acesso a bens materiais e subjetivos” (NERY, 2009, p. 24). Assim como na educação e na saúde, na assistência social a principal peça na operacionalização da política são os seus profissionais, “(...) o trabalhador da Assistência Social é matéria-prima dessa política pública, que não se consolida sem uma qualificada atuação profissional” (NERY, 2009, p. 24). Esta reflexão encontra ressonância nos princípios e diretrizes para a gestão do trabalho estabelecido pela NOB-RH/SUAS, na afirmação de que “a qualidade dos serviços socioassistenciais disponibilizados à sociedade depende da estruturação do trabalho, da qualificação e valorização dos trabalhadores atuantes no SUAS” (BRASIL, 2006, p. 19). 8 Questão social – [...] é expressão das manifestações das desigualdades e antagonismos ancorados nas contradições próprias da sociedade capitalista. [...] manifestações das desigualdades e antagonismos que constituem a “questão social” encontram-se embasadas nos processos estruturais do desenvolvimento capitalista (PASTORINI, 2004, p. 114). A gestão do trabalho9 e a valorização do trabalhador no SUAS tem uma dimensão estratégica para a consolidação da política, sendo inclusive tema da VIII Conferência Nacional de Assistência Social10 que se realizou em 2011. Analisar a atividade de trabalho como instrumentalização para o gerenciamento da gestão pública na perspectiva da gestão social resultará em qualificar serviços públicos no sentido de promover um desenvolvimento das capacidades humanas com objetivo à inclusão social da população atendida. Ao seguir as diretrizes da PNAS - 2004, o CRAS cumpre uma função estratégica na organização da política. Como uma unidade descentralizada é responsável pela execução das ações nos territórios, principalmente naqueles com maiores indicadores de vulnerabilidade social. A atuação nestes territórios aproxima a assistência social de um cotidiano vivido pela população ao agregar todas as questões relacionadas ao desenvolvimento social com ênfase nas potencialidades humanas. A territorialização aponta para ações articuladas em redes ao proporcionar o exercício da intersetorialidade e de processos de gestão democrático e participativo. Pesquisar o funcionamento do CRAS, no que se refere ao processo de gestão sob a perspectiva da atividade de trabalho realizada pelos trabalhadores, direciona o debate na formulação de tecnologias sociais inovadoras no campo da gestão pública. A estruturação e a formulação do CRAS aponta novos elementos que delineiam um campo de intervenção para a política de assistência social com a introdução de conceitos, entre eles a intersetorialidade, a territorialidade e o atendimento sociofamiliar. Há uma demanda crescente de gestores e profissionais em compreender e estudar a implicação destes conteúdos e seus desdobramentos na operacionalização do CRAS. A formulação teórica da gestão social ocupa uma área do conhecimento ainda pouco difundida no meio acadêmico. As produções teóricas estão ainda restritas a um universo reduzido de pesquisadores e profissionais. No entanto, esta produção científica vem sendo construída com bases teóricas fundamentadas a partir de projetos de pesquisa e extensão acadêmicas, associadas a uma aplicabilidade prática no “mundo da vida”, ou seja, a partir de experiências em projetos sociais, com grupos e comunidades em busca 9 (...) considera-se Gestão do Trabalho no SUAS a gestão do processo de trabalho necessário ao funcionamento da organização do sistema, que abarca novos desenhos organizacionais, educação permanente, desprecarização do trabalho, avaliação de desempenho, adequação dos perfis profissionais às necessidades do SUAS, processos de negociação do trabalho, sistemas de informação e planos de carreiras, cargos e salários, entre outros aspectos (NOB-RH/SUAS, 2006, p. 101) 10 VIII Conferência Nacional de Assistência Social – Consolidar o SUAS e valorizar seus trabalhadores de soluções que visam um processo de transformação social coletiva. Por ter surgido em torno das concepções da gestão administrativa, percebe-se que a produção do conhecimento deste campo vem sendo ocupada majoritariamente por pesquisadores e profissionais da área da administração. Uma aproximação da gestão social com as diversas áreas do conhecimento, como as ciências sociais, a psicologia social, e o serviço social, bem como a conseqüente produção de conhecimento, tornam-se extremamente pertinentes. Outro aspecto que deve ser salientado é a relação da gestão social com a gestão da política pública. A gestão social tem uma contribuição significativa a oferecer na consolidação de novos modelos de gestão e funcionamento da política pública e especificamente da política de assistência social ao ampliar o universo teórico e conceitual. Torna-se de extrema relevância aproximar a política pública dos princípios norteadores da gestão social como a democratização, participação, transparência, posicionamento ético, valorização das potencialidades humanas, para que a gestão pública possa superar uma prática tradicional voltada para o clientelismo, patrimonialismo e o assistencialismo. A perspectiva ergológica encontra pontos de interseção com a gestão social ao apostar que o processo de trabalho pode proporcionar trocas, relações de aprendizagens e produção de saberes resultantes das experiências dos envolvidos nas situações de trabalho. A fundamentação teórica e as experiências práticas sistematizadas por pesquisadores da área da gestão social surgem no sentido de uma maior instrumentalização dos trabalhadores destes equipamentos da política pública. Compreender a sua atividade de trabalho é condição essencial para uma práxis profissional reflexiva e transformadora da realidade social. Pesquisar o funcionamento do CRAS no município de Belo Horizonte surge como necessidade de uma maior compreensão da atividade de trabalho nestes equipamentos da política de assistência social. Há um interesse profissional na realização desta investigação, pois o pesquisador atua profissionalmente em um determinado CRAS no mesmo município e ocupa a função de coordenação. Questões de diversas ordens surgem decorrentes do exercício da atividade de trabalho. Ocorre uma grande preocupação por parte dos gestores municipais com relação aos resultados alcançados, ou seja, com relação aos impactos sociais provocados na vida da população usuária do serviço, e que precisam de fato ser avaliados. Percebe-se, no entanto, que fica no plano secundário uma preocupação quanto aos processos metodológicos relativos à implementação e desenvolvimento do serviço, sendo este um aspecto pouco explorado. Ocorre uma ênfase na avaliação de resultados e uma preocupação relativa quanto à avaliação e monitoramento de processos. A instrumentalização do trabalho, os cuidados metodológicos, a condução política adequada, a relação dos profissionais com a atividade de trabalho interferem diretamente na qualidade do serviço ofertado. A pesquisa procurou identificar, a partir da atividade de trabalho, modelos de gestão ou ingredientes de modelos de gestão, que possibilitem reconhecer e valorizar os saberes investidos adquiridos com a vivência prática da experiência, ou seja, os saberes investidos na atividade de trabalho, em uma confrontação dialética com os saberes constituídos ou saberes acadêmicos de caráter científico. Instrumentalização da gestão do serviço com o suporte da Ergologia como referencial teórico possibilita promover uma reflexão crítica da atividade de trabalho, propor alternativas e renormalizações coletivas sob a perspectiva dos trabalhadores que estão na execução direta do exercício profissional. Assim sendo, estará se consolidando um processo de gestão participativa ao reconhecer os saberes produzidos pelos trabalhadores na atividade de trabalho que se caracteriza como um processo de gestão social. É preciso compreender o trabalho para transformá-lo. Para Schwartz (2011) todo trabalhador realiza a gestão do seu próprio trabalho ao gerir as lacunas entre o trabalho prescrito e o real, portanto, todos os trabalhadores da assistência social têm a sua parcela de contribuição na realização da gestão da política da assistência social. 2 – Metodologia 2.1 – Metodologia da Pesquisa A pesquisa apresentada teve como objeto conhecer o processo de gestão do CRAS a partir da atividade de trabalho realizada pelos trabalhadores e assim, cumprir com os objetivos da política de assistência social. Para a investigação da atividade de trabalho, o referencial teórico sustentado pela Ergologia foi utilizado para a análise das categorias teóricas. O método de pesquisa qualitativo se mostrou adequado para a proposta de investigação. Trata-se de um estudo relativo às relações sociais que envolvem as relações humanas atravessadas pela subjetividade, o que inclui categorias de análises próprias das ciências sociais e das ciências políticas. Para MINAYO (2009, p. 21), “esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida (...)”. O estudo dessas relações não pode ser quantificado ou reduzido a números, mas compreendido enquanto processo histórico que envolve a interpretação de dados junto aos atores sociais envolvidos na pesquisa, sendo essas relações “objeto da pesquisa qualitativa”. OLIVEIRA (2007, p. 37) conceitua a pesquisa qualitativa “como sendo um processo de reflexão e análise da realidade através da utilização de métodos e técnicas para compreensão detalhada do objeto de estudo em seu contexto histórico e/ou segundo sua estruturação”. Pesquisar a atividade de trabalho no CRAS exigiu escutar quem está envolvido diretamente no contexto, por vivenciar uma relação dinâmica e dialética entre a objetividade e a subjetividade, entre o mundo real, do possível e o mundo ideal, do desejo. Foi preciso portanto, um estudo detalhado das relações grupais de atores sociais e de “fenômenos da realidade”, pois como afirma Oliveira (2007, p. 60) “o pesquisador deve ser alguém que tenta interpretar a realidade dentro de uma visão holística e sistêmica (...)”. No paradigma qualitativo o pesquisador buscou a compreensão e o entendimento das situações por meio da fala e da comunicação dos entrevistados como capacidade de interpretação da expressão humana. Caracterizado como método hermenêutico, a investigação interativa se caracterizou “como sendo um processo hermenêutico-dialético que facilita entender e interpretar a fala e depoimentos dos atores sociais em seu contexto e analisar definições em textos, livros e documentos, em uma visão sistêmica (...)” (MINAYO apud OLIVEIRA, 2007, p. 123). No paradigma da pesquisa qualitativa para Alves-Mazotti (1998, p. 160) “o pesquisador é o principal instrumento de investigação, (...) realiza sua investigação em instituições com as quais já tem familiaridade, e nas quais exerce um outro papel”. Como já citado na justificativa do projeto, há um envolvimento direto do proponente desta pesquisa em função da atividade de trabalho que exerce em outra unidade pública similar (CRAS). Foi preciso trabalhar um devido distanciamento das implicações e envolvimento subjetivo para evitar possíveis interferências e assim preservar o lugar do pesquisador com a devida isenção. Este distanciamento não se referiu a uma neutralidade, muito pelo contrário, houve um interesse em explorar a relação subjetiva do pesquisador e dos sujeitos da pesquisa com seu objeto de estudo para se alcançar a objetividade. Se nos momentos iniciais foi preciso coletar as informações empíricas ao proporcionar os trabalhadores a colocar em palavras a sua atividade de trabalho, a análise das informações possibilitou uma constatação da complexidade da atividade de trabalho. A pesquisa realizada compreendeu uma pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e pesquisa de campo. 2.1.1 – Pesquisa bibliográfica A pesquisa bibliográfica realizada embasou o referencial teórico desta investigação. As concepções dos autores trabalhados foram incorporadas e receberam as devidas reflexões na sustentação teórica das questões apresentadas. O embasamento teórico que fundamenta e conceitua a política de assistência social recebeu uma criteriosa seleção de autores que desenvolvem uma abordagem crítica na publicação de livros, artigos, teses e dissertações. Autores da área da ciência política contribuíram na discussão do papel do Estado, das relações de poder, administração pública e de temas específicos como a descentralização, intersetorialidade e territorialidade. A gestão social é um tema relativamente recente no debate acadêmico e científico, sendo reduzido o número de autores e publicações. São publicações mais recentes e que vem progressivamente sendo apropriadas no debate. Apesar do levantamento bibliográfico deste tema ter sido realizado nas etapas iniciais, novas publicações foram incorporadas no decorrer da pesquisa A ergologia é uma abordagem que trata da atividade de trabalho e que sustentou a investigação como referencial teórico para a análise dos dados. As referências bibliográficas utilizadas na pesquisa estão incorporadas à estrutura da dissertação na sequência devida. 2.1.2 - Pesquisa documental A pesquisa documental constou da consulta de documentos oficiais que delineiam o marco legal da política pública e especificamente da política de assistência social composto por leis, decretos, resoluções, diretrizes metodológicas, de âmbito federal e municipal. Os documentos consultados foram: Constituição Federal de 1988, Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004, NOB/SUAS – 2005, NOB-RH/SUAS – 2006, Orientações técnicas: CRAS – 2009, Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais – 2009, Protocolo de Gestão Integrada – 2009, Metodologia de Trabalho com Famílias e Comunidades nos NAF/CRAS – PBH. Esses documentos oficiais foram categorizados na pesquisa como as normas antecedentes ou prescrições legais, protocolos fundamentais para a organização e a institucionalização da política de assistência social e para as prescrições dos objetivos, das ações e da atividade de trabalho no CRAS. 2.1.3 - Pesquisa de campo 2.1.3.1 – Cenário da pesquisa de campo A pesquisa de campo foi realizada em instituições públicas municipais e para tanto foi necessário inicialmente uma autorização, devidamente providenciada, do órgão gestor das unidades, a Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social - SMAAS. Foram investigados dois Centros de Referência da Assistência Social do município de Belo Horizonte, tendo como critério de escolha: um com o funcionamento desde o início da implantação dos serviços em 2002, e outro mais recente, com a implantação no ano de 2009. A definição dos critérios se justificou em função da existência de 33 CRAS11 implantado no município, o que torna impossível investigação em todos eles em virtude do prazo definido para a realização desta pesquisa. As nove primeiras unidades foram inauguradas em 2002, ou seja, antes da implantação da PNAS – 2004 e da NOB/SUAS - 2005. A expansão dos CRAS foi ocorrendo progressivamente ao longo dos anos, sendo que a unidade pesquisada implantada em 2009 já iniciou suas atividades após a regulamentação do serviço pelas publicações das prescrições legais. A investigação do processo de gestão teve como foco os trabalhadores e as estratégias que utilizam para a realização da atividade de trabalho. Ao considerar o tempo de funcionamento das unidades, buscou-se conciliar a pesquisa com a escolha dos entrevistados conforme o tempo de experiência de trabalho no CRAS. Na primeira unidade visitada, implantada em 2009, os trabalhadores entrevistados iniciaram suas atividades junto com a implantação do serviço, ou seja, são trabalhadores com pouco tempo de experiência no CRAS. A exceção ficou com uma assistente social que após passar por um período de trabalho em outra unidade foi transferida para a atual, com um tempo de experiência em torno de cinco anos. Na segunda unidade duas trabalhadoras entrevistadas exercem sua atividade desde a implantação em 2002. A realidade das situações de trabalho encontrada no campo pesquisado redirecionou os critérios da coleta de dados, sendo entrevistado um número maior de trabalhadores com tempo de experiência menor. A aproximação com as unidades pesquisadas ocorreram de formas diferenciadas. Inicialmente foi realizado um contato com os coordenadores que após um agendamento prévio. Em uma das unidades a apresentação foi realizada em uma reunião com toda a equipe, o que possibilitou um debate produtivo com os trabalhadores do CRAS e a confirmação quanto à pertinência e os propósitos da pesquisa. Na sequência foi agendado com cada trabalhador as entrevistas individuais. Em outra unidade os contatos ocorreram individualmente com os trabalhadores e foi possível constatar uma defasagem de profissionais na equipe técnica, o que resultou na realização de somente duas entrevistas. Em função da natureza da pesquisa tornou-se relevante explorar o conhecimento adquirido na experiência de trabalho, e, a variação do tempo de exercício da função como um fator que foi explorado. Definir o critério da temporalidade possibilitou colher 11 Informações concedidas pela Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social, por intermédio da Gerência de Proteção Social Básica (GPSOB). informações diferenciadas em função da qualidade das relações e do perfil dos trabalhadores e das equipes, da organização e da dinâmica de trabalho, o que permitiu uma análise comparativa das experiências diversas. Conhecer o universo de trabalho nos CRAS possibilitou identificar situações singulares, condições estruturais das unidades, realidades de territórios e perfis profissionais diferenciados. Mas em geral, os trabalhadores, de maneira individual e coletiva, consolidam um saber adquirido com sua própria vivência na atividade de trabalho, na interação com equipes mais experientes de outros CRAS com um tempo maior de funcionamento. 2.1.3.2 - Sujeitos da pesquisa A investigação se deu em torno da atividade de trabalho envolvendo os trabalhadores de dois CRAS perfazendo um total de sete entrevistas. No primeiro CRAS visitado foi encontrada uma equipe composta por cinco profissionais de nível superior: um coordenador, três assistentes sociais e um psicólogo, sendo estes cinco os sujeitos da pesquisa entrevistados. No segundo CRAS a equipe estava incompleta, sendo: um coordenador, três assistentes sociais. Somente um assistente social preencheu os critérios de tempo de trabalho, sendo os outros dois recém contratados, o que somente foi possível entrevistar uma coordenadora e uma assistente social. A categoria de trabalhadores do CRAS não se distingue pela função que exercem na equipe, o que inclui os profissionais que compõem a equipe técnica e os coordenadores da unidade. A atividade de trabalho dos coordenadores está inserida nas situações de trabalho independente da diferenciação de funções e da posição hierárquica. As entrevistas foram gravadas com uma duração média de 60 minutos, sendo realizadas nos locais e nos horários de trabalho dos entrevistados. As gravações foram transcritas e se encontram juntamente com todo o material utilizado, arquivadas com o pesquisador. As entrevistas foram selecionadas, dispostas em categorias e analisadas de acordo com os referenciais teóricos trabalhados, sendo encontras no capítulo 6 desta dissertação. 2.1.3.3 - Instrumentos de coleta de dados A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semi-estruturadas. As entrevistas foram realizadas com sete trabalhadores, que inclui nesta categoria dois coordenadores. O roteiro de entrevista segue em anexo neste documento. A entrevista semi-estruturada é considerada por Minayo (2009, p. 64) como um tipo de entrevista que “combina perguntas fechadas e abertas, em que o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão” e permitiu um diálogo entre o entrevistador e o entrevistado. Com este tipo de entrevista, o sujeito entrevistado expôs a sua opinião e a sua visão o que foi possível promover uma reflexão a cerca do universo pesquisado, das questões subjetivas e objetivas, que incluiu questões relativas a realização da atividade de trabalho, das relações entre os trabalhadores, com a população usaria do serviço e das relações políticas com as instituições públicas envolvidas direta ou indiretamente com o trabalho, que possibilitou uma adequação com os propósitos da pesquisa. 2.2 – Estrutura da dissertação A dissertação se estruturou em torno dos eixos que abordaram a política de assistência social contextualizada nos parâmetros legais, os modelos de gestão pública com ênfase à gestão social e a atividade de trabalho no CRAS. A dissertação está assim disposta: O primeiro capítulo consistiu na apresentação dos propósitos da pesquisa com a contextualização e delimitação do problema a ser investigado com relação à possível insuficiência das normas antecedentes e das prescrições legais para abarcar a complexidade da atividade de trabalho no CRAS. Encontra-se na sequência a formulação da questão central, do objeto da pesquisa e o levantamento de uma hipótese ao partir de um pressuposto quanto à insuficiência das normas antecedentes e a criação de alternativas por parte dos trabalhadores para preencher esta lacuna. Neste capítulo consta ainda a definição dos objetivos da pesquisa, as justificativas e as possíveis contribuições que se espera com a análise da atividade de trabalho no processo de gestão do CRAS. O segundo capítulo se refere ao processo metodológico, os instrumentos de pesquisa a definição e a caracterização da modelagem da pesquisa e a definição da abordagem Ergológica como referencial teórico utilizado nas categorias de análises. No terceiro capitulo foi abordado a configuração da política pública brasileira, os parâmetros constitucionais, os princípios e concepções do modelo organizacional. A política pública de assistência social recebe uma abordagem detalhada com as definições legais, a legislação atualizada, e o percurso recente de conquista até a formatação do modelo atual. Constam ainda neste capítulo as prescrições legais que definem a organização, os objetivos e as funções do CRAS. No quarto capítulo os modelos de administração pública foram apresentados com as principais características e uma análise crítica comparativa. O capítulo contou também com uma análise a respeito do conceito de governança pública, sua origem e as contradições quanto a sua utilização. Por fim a gestão social foi abordada a partir de sua origem histórica na formação política e social do campo movimentalista no país, os princípios, as concepções teóricas e as diversas abordagens utilizadas e em especial na fundamentação de um modelo de gestão pública. No quinto capítulo a abordagem Ergológica foi sintetizada com a definição dos principais conceitos que a fundamenta ao considerar a complexidade do trabalho e a produção de saber investido como resultado da experiência do trabalhador na realização da atividade de trabalho. O aprofundamento da Ergologia como uma disciplina que se propõe estudar o trabalho para transformá-lo foi de extrema importância, pois serviu com referencial teórico que sustentou a análise da investigação. No sexto capítulo foi realizada a análise dos dados coletados na pesquisa e cotejados com os referenciais teóricos, com destaque para os conceitos que fundamentam a Ergologia e alguns princípios e características da gestão social. A análise das informações foi dividida em quatro categorias que demarcam a atividade de trabalho no CRAS, sendo elas: as prescrições legais e as normas antecedentes, as prescrições técnico-científicas e os saberes convocados, a organização dos trabalhadores para a realização do trabalho real com uma relevância para a presença da linguagem com as práticas linguageiras e as diversas formas de manifestação e as ações interinstitucionais e as implicações na relação com os diversos níveis hierárquicos na estrutura pública municipal. No sétimo capítulo estão apresentadas as considerações finais a respeito da pesquisa com o apontamento de questões relevantes para o debate construtivo. E finalmente a proposta de intervenção como produto final da dissertação e como contribuição das reflexões proporcionadas pela investigação e pela formação oferecida pelo mestrado profissional. 3 - A política de assistência social e a formulação da política pública brasileira 3.1 - A descentralização no contexto da política pública A década de 1980 se apresentou como um marco histórico na redemocratização do Brasil e, consequentemente, em mudanças significativas do modelo de organização do Estado. O cenário internacional, no final da década de 1970, passou por um período de crise fiscal, afetando diretamente a economia mundial. Países do chamado primeiro mundo e as instituições financeiras internacionais foram conduzidos a repensar o modelo econômico vigente. Uma reorganização da produção capitalista foi introduzida em escala mundial impulsionada pelos avanços da produção da informação e da aplicação de novos mecanismos na organização do sistema financeiro internacional. A organização burocrática dos Estados fundada nos conceitos weberiano, não mais respondeu pela exigência de um estado moderno. Influenciado pelo debate internacional de superação do modelo burocrático, a descentralização surgiu como uma possibilidade de modernização da estrutura de gestão e de redefinição do papel do Estado. Foi notória a influência do modelo neoliberal nos debates relativos à presença mínima do Estado frente à economia e na condução das políticas públicas, características que se tornaram marcantes na condução da gestão pública na década subsequente. O modelo neoliberal utilizou-a estrategicamente a descentralização do Estado como processo de redução de suas competências políticas com a transferência de atribuições para o setor privado, a redução dos gastos públicos e a diminuição do tamanho do aparato estatal (JUNQUEIRA et al, 1997). Nas políticas sociais ocorreu uma desresponsabilização frente a demandas sociais com a introdução de políticas residuais e compensatórias e a transferência de responsabilidade social para a sociedade civil. Nesta perspectiva, a descentralização é utilizada para a efetivação da proposta do Estado Mínimo, com a promoção de privatizações e a redução das ações de proteção social. Em contraponto, o modelo de descentralização na perspectiva progressista surgiu no sentido de um deslocamento do poder de decisões para outras instâncias. Visa à democratização da gestão pública, no sentido de “reestruturar o aparato estatal” para que “ganhe mais agilidade e eficiência para aumentar a eficácia das ações das políticas sociais pelo deslocamento, para esferas periféricas, de competências e de poder de decisão sobre as políticas” (JUNQUEIRA et al, 1997, p. 09). No Brasil, a transição política de um regime autoritário para um regime democrático, na década de 1980, exigiu um redirecionamento no papel do Estado frente às demandas da sociedade civil e das instituições políticas. Neste processo histórico houve um esgotamento de um “Estado Desenvolvimentista”, centralizador nas funções de planejamento, financiamento e estimulador do desenvolvimento. O modelo burocrático centralizador e de tradição autoritária do Estado brasileiro se mostrou ultrapassado quanto à condução dos processos de desenvolvimento político, social e econômico. Não mais respondeu pelas crescentes demandas do país resultantes do crescimento populacional urbano, do aprofundamento das desigualdades regionais, do crescimento dos índices de pobreza e do aumento das diversas demandas de cobertura nas políticas sociais. Por outro lado, com a consolidação do processo democrático, novos atores políticos forçam um reequilíbrio de forças (ARRETCHE, 1996), reivindicando maior descentralização política e financeira do Estado. O debate sobre a descentralização no Brasil “foi pautado sobretudo pela ótica da política, expressando a exigência de que se estabelecesse um novo contrato social entre o Estado e a sociedade civil” (JUNQUEIRA et al, 1997, p. 10). Passada a experiência de duas décadas de um Estado autoritário, a discussão da descentralização foi incorporada de forma estratégica ao debate da democratização e da participação. A sociedade civil e política vislumbraram a possibilidade da descentralização contribuir com o aprofundamento do processo democrático possibilitando uma maior participação nas decisões políticas. Ao caracterizar a descentralização, Junqueira (2005, p. 2) afirma que “descentralizar significa transferir decisão, trazer para junto dos usuários o poder de decidir”, portanto “a descentralização como um processo de transferência de poder determina a redistribuição das decisões”. A descentralização pode promover uma capilaridade do poder público de forma a aproximar as decisões do cotidiano da população. A descentralização contribui de forma significativa para o aperfeiçoamento de mecanismos democráticos do Estado. Promove uma maior aproximação da sociedade civil com o Estado, possibilita também a prestação de serviços públicos mais próximos à população, estimulando a participação social e o exercício do controle social (LOBO, 1990), sendo, portanto, “um instrumento de fortalecimento da vida cívica”, como afirma Arretche (1996, p. 47). 3.1.1 - A descentralização na formulação político-administrativa brasileira A Constituição Federal de 1988, no capítulo que trata da organização políticoadministrativa do Estado brasileiro, especificamente no artigo 18, reconhece o município como ente federativo e autônomo e afirma que “a organização políticoadministrativa da republica Federativa do Brasil compreende a União, os estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos (...)” (BRASIL, 1988). O Capítulo IV trata das competências dos municípios especificamente no artigo 30, e diz que “compete aos municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber” (BRASIL, 1988). Como se percebe após a Constituição Federal de 1988, o município passa a ter um reconhecimento com a conquista de prerrogativas e importância na composição política do Estado brasileiro. Há um fortalecimento do município que conquista autoridade político-administrativa para legislar sobre os interesses locais, reafirmando o que pode se chamar de “governo local” (STEIN, 1997). A descentralização fica explicitada no Capitulo II, que trata da Ordem Social referente à Seguridade Social. O artigo 194, inciso VII, afirma que o poder público deve se organizar conduzido por um “caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados” (BRASIL, 1988). A municipalização e a descentralização têm na Constituição Federal de 1988 um marco legal, o que abre um indicativo para a participação da população na formulação e no controle das ações governamentais. Ainda com relação à Carta Magna, a política de Assistência Social é citada, no artigo 204, quando afirma que a sua organização tem como diretrizes: I – descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como às entidades beneficentes e de assistência social; II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis (BRASIL, 1988, Art. 204). Percebe-se assim, que o modelo de descentralização intergovernamental foi incorporado na formulação constitucional no Brasil. As três esferas de governo passaram por uma redefinição das atribuições político-administrativas, exigindo novas formas de organização e de relacionamento entre os entes federados. A descentralização prevista na carta constitucional deve ser entendida como um processo de transferência de poder do nível central para os níveis periféricos. União, estados e municípios são chamados a redefinições de suas competências frente à nova ordem. A Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, regulamentada em dezembro de 1993, seguindo as diretrizes constitucionais estabelecidas, definiu a organização da política de assistência social a partir de um sistema descentralizado e participativo organizado nos três níveis de governo e estabelece as devidas competências entre os entes federados. O sistema organizacional da política de assistência social se propõe a operar com o que Sposati (2009) denomina “descentralização compartilhada”, diferente do modelo conhecido como prefeiturização, onde o município é imbuído de responsabilidades sem, no entanto receber recursos financeiros e atribuições legais para assumir as funções a ele delegadas. Ficam estabelecidos critérios iniciais de habilitação como a existência e o funcionamento de conselho, plano e fundo municipais. Outro critério de financiamento se refere à capacidade instalada em cada município para a execução das ações que será detalhado posteriormente neste mesmo capítulo. Trata-se de longo percurso de pactuação dos agentes federativos para tornar nacional a política de assistência social. A concretização desse processo se dá pela habilitação do ente gestor. A operação do sistema de federalismo cooperativo é realizada pela adesão individual de cada município, que passa a ter um grau de habilitação no SUAS a partir da infraestrutura implantada (SPOSATI, 2009, p. 44). Ao cumprir com o desafio de organização da assistência social em um sistema descentralizado e participativo, a Política Nacional de Assistência Social – PNAS – 2004, redireciona o desenho organizacional, afirma a sua efetivação “como direito de cidadania e responsabilidade do Estado”, na perspectiva da construção e implementação do Sistema Único da Assistência Social – SUAS (BRASIL, 2004). 3.1.2 – Intersetorialidade: dilemas e desafios para a política pública A estruturação da política pública de forma descentralizada não significa necessariamente a garantia de um modelo de gestão pública democrática voltada para os interesses e as demandas da população. A descentralização político-administrativa abre um debate para a incorporação de outros conceitos objetivando a sua qualificação. Neste sentido a intersetorialidade aponta para uma mudança de perspectiva da gestão pública. A descentralização e a intersetorialidade são conceitos que se complementam. Os conceitos de intersetorialidade e descentralização aproximam-se, na medida em que este último é compreendido como a transferência do poder de decisão para as instâncias mais próximas e permeáveis à influência dos cidadãos e o primeiro diz respeito ao atendimento das necessidades e expectativas desses mesmos cidadãos de forma sinérgica e integrada. Ambos devem considerar as condições territoriais, urbanas e de meio ambiente dos micro-espaços que interagem com a organização social dos grupos populacionais. (Junqueira, 1997, p. 24) As estruturas da administração pública são tradicionalmente organizadas de forma hierarquizada, vertical e setorializada, sendo os serviços oferecidos à população de forma fragmentada. Este modelo de organização compartimenta conhecimentos, ações públicas e o atendimento às necessidades humanas, tendo o poder público uma atuação segmentada e desarticulada. Há uma tendência em não considerar o cidadão na sua totalidade, retalhando as demandas apontadas pela população. Desta forma, o aparato governamental tem se mostrado insuficiente para dar respostas efetivas às reais necessidades da população, principalmente no que diz respeito ao enfrentamento a situações de pobreza e exclusão social. Segundo Inojosa (2001, p. 103), estas questões são identificadas no interior das estruturas administrativas, sendo que o “aparato governamental é todo fatiado por conhecimentos, por saberes, por corporações. Ninguém encara as pessoas e as famílias como as totalidades que são”. A autora complementa a sua análise e argumenta que “há, também, uma outra herança, que é a hierarquia verticalizada, piramidal, em que os processos percorrem vários escalões, mas as decisões são tomadas apenas no topo, não na base, próximo à população” (INOJOSA, 2001, p. 103). A intersetorialidade, como estratégia de qualificação dos processos de descentralização das políticas públicas, surge como possibilidade concreta na busca de “novos arranjos” na formulação e na implementação das políticas públicas (Cormelatto, et. al. 2007). Formular políticas intersetoriais se constitui em verdadeiro desafio para o setor público. Faz-se necessário uma mudança de paradigmas para que a intersetorialidade perpasse todo o processo desde o planejamento à execução dessas políticas. Para Inojosa (2001, p. 105), a intersetorialidade requer uma “articulação de saberes e experiências com vistas ao planejamento, para a realização e a avaliação de políticas, programas e projetos, com o objetivo de alcançar resultados sinérgicos em situações complexas”. Portanto, é preciso alterar a lógica da especialização do conhecimento. Muito mais que integrar ações e projetos, ou aproximar intervenções, as políticas devem estar em sinergia. É necessário que ocorra uma mudança na cultura organizacional e no planejamento das ações públicas, para de fato, promover um efeito sinérgico de potencialização das ações. Mais do que buscar uma ação efetiva da máquina pública, projetos políticos intersetoriais devem estar voltados para a transformação da sociedade, perseguindo objetivos visando à justiça social e à redução das desigualdades sociais. A construção de políticas intersetoriais passa por uma capacidade de permeabilidade do aparato estatal em possibilitar mudanças nos processos de trabalho. A intersetorialidade significa uma nova maneira de abordar os problemas sociais, enxergando o cidadão em sua totalidade e estabelecendo uma nova lógica para a gestão da cidade, superando a forma segmentada e desarticulada como em geral são executadas as diversas ações públicas encapsuladas nos vários nichos setoriais que se sobrepõem às subdivisões profissionais e disciplinares. Significa tanto um esforço de síntese de conhecimentos como de articulação de práticas, buscando unificar o modo de produção de conhecimento e as estratégias de ação tendo como meta a inclusão social (MENICUCCI, 2002, p. 11). A intersetorialidade e a descentralização se convergem a partir da ampliação das possibilidades outorgadas aos municípios. A descentralização das ações públicas potencializa os municípios, dando-lhes a responsabilidade pela execução das políticas sociais. “No município, como espaço definido territorial e socialmente, é que se concretizará a integração e a ação intersetorial” (JUNQUEIRA et al, 1997, p. 25). Ao município cabe a primazia pela execução das políticas, sendo responsável pela condução dos processos de gestão. O desafio em instituir a intersetorialidade na cultura organizacional das instituições públicas se torna ainda maior quando o Estado se depara com a necessidade de elaboração de políticas públicas para uma parcela significativa da população que vive em situação de vulnerabilidade social e de pobreza. As políticas sociais encontram desafios para a sua efetividade em cenários demarcados pelo enfrentamento da pobreza e da desigualdade social como manifestações da questão social. Bronzo (2010) afirma que ao se fazer uma leitura da realidade pela linha da abordagem estritamente econômica, a superação da pobreza poderia ser resolvida pela via do crescimento econômico. No entanto, constata-se por meio de estudos realizados que a concepção do crescimento econômico se mostra insuficiente para a redução da pobreza. O aumento da riqueza não implica necessariamente a redução da pobreza, que em algumas situações pode gerar como consequência uma forte concentração desta riqueza e um agravamento da situação de pobreza. Nesta equação aparece a desigualdade como outra variável determinante que dificultam alcançar os resultados pretendidos. A pobreza reduzida a uma concepção unilateral, apenas como valor monetário, aponta para uma insuficiência na compreensão e no enfrentamento do fenômeno. O debate revela que em alguns países, entre eles o Brasil, faz-se necessário enfrentar a superação da pobreza junto com a redução das desigualdades. A relação desigualdade e pobreza são fenômenos distintos, mas que em determinadas conjunturas podem estar vinculados e devem ser analisados sob um mesmo contexto. A descoberta é que a desigualdade social tem impactos profundos para o crescimento econômico e a redução da pobreza. (...) É importante enfatizar que pobreza e desigualdade são fenômenos diversos, mas no Brasil tais fenômenos se sobrepõem. Parte expressiva da pobreza no Brasil não está associada à escassez de recursos, mas à perversa estrutura de desigualdade na distribuição da renda. (BRONZO, 2010, p. 122). Enfrentar a pobreza e a desigualdade social requer ações eficazes que objetivem a busca por uma maior equidade na estrutura social. A distribuição desigual de renda é resultado do modelo capitalista, pois atinge diretamente a população e gera consequências que podem ser identificadas a sua cicatriz ao analisar os diversos fatores como raça, gênero, educação, saúde, habitação, inserção no mercado de trabalho, entre outros (BRONZO, 2010). É, portanto necessário considerar as diversas dimensões provocadas pela pobreza e sua manifestação no meio social ao considerar o indivíduo e suas aquisições. Segundo a autora, a pobreza se apresenta como um fenômeno complexo com característica multidimensional e ao mesmo tempo multideterminada, ou seja, a sua manifestação passa por dimensões diversas como a econômica, social, relacional, sendo também diversas as causas da “produção e reprodução da pobreza”. Dentre essas diversas causas da manifestação da pobreza, fica evidente a dimensão econômica como resultante do sistema capitalismo e especificamente de um modelo neoliberal-capitalista de desenvolvimento empregado no Brasil e na América Latina. Modelo este concentrador de riqueza e gerador de uma desigualdade social abissal provocando um efeito devastador nas condições de vida de uma ampla parcela da população. Como princípio estratégico de gestão, a intersetorialidade se caracteriza como uma ação prática de enfrentamento a situações reais que exigem uma intervenção efetiva. Assim como toda ação prática, limites e possibilidades se manifestam interferindo e condicionando os resultados. Mourão (2010) aborda a complexidade quanto à implementação das ações intersetoriais, ou seja, entre a concepção teórica e a sua aplicação prática ao considerar que “(...) entre o modelo teórico e sua prática há uma série de fenômenos que influenciam sobremaneira o processo propiciando, muitas vezes, que o modelo idealizado se distancie da execução prática e dos consequentes resultados alcançados” (MOURÃO, 2010, p. 32). Há uma tendência dos diversos setores na defesa e proteção das áreas de domínio de conhecimento. Percebe-se, consciente ou inconscientemente, uma resistência em flexibilizar concepções consideradas irrefutáveis, para ceder espaços a outros conceitos e outras formas de abordagens de uma mesma questão. Conflitos desta natureza surgem não somente nas relações externas entre as organizações como também nas relações internas, dentro das próprias organizações. Outro fator apontado por Mourão (2010) diz respeito à proteção de áreas de interesse por grupos políticos que atuam em torno de áreas temáticas e espaços institucionais ou territoriais. Processos intersetoriais mobilizam recursos técnicos e financeiros significativos, aglutinam atores sociais, produzem informações e conhecimentos, atuam em determinados cenários intervindo na realidade social e na vida da população. Consequentemente, as ações intersetoriais perpassam relações de poder e disputa política pela hegemonia na condução do processo ou como defesa corporativa pela priorização de questões específicas de determinadas políticas setoriais. Por sua vez como estratégia de gestão, a intersetorialidade contribui para uma maior eficácia da ação governamental frente aos desafios colocados. A cultura institucional da organização pública exige uma mudança de paradigma para que a intersetorialidade se estabeleça estrategicamente em todos os níveis de gestão. Elaborar e implementar políticas intersetoriais é, sem dúvida, um grande desafio para as políticas públicas. Este processo não acontece de forma espontânea, por esta razão é necessário que seja construída cada etapa de forma coletiva, com a pactuação de deliberações, fluxos entre as políticas e processos de trabalho. A construção da intersetorialidade deve ser conduzida como verdadeiros processos de aprendizagem. Ao lidar com situações de vulnerabilidades sociais e situações de extrema pobreza, as ações de proteção social devem ser realizadas de forma conjunta incorporada pelos diversos setores das políticas públicas. 3.2 - A organização da Assistência Social e sua normatização A trajetória da assistência social no Brasil é marcada pelo forte cunho clientelista e assistencialista. A gestão da política está marcada pelo primeiro-damismo, pelo uso do apadrinhamento político e apoiada na caridade aos necessitados. A regulamentação da LOAS demarca uma mudança no direcionamento e na concepção da assistência social na perspectiva da garantia dos direitos como política social inserida no campo da seguridade social e de responsabilidade do Estado. “Tratase de uma forte guinada de concepção, pois, como segurança social, está sendo tratada como bem público e social do estatuto de uma sociedade para alcançar todos os seus membros” (SPOSATI, 2009, p. 15). A assistência social conquista o status de uma política pública de dever do Estado e de direito do cidadão e da população que dela necessitar. A LOAS define a centralidade do Estado na condução da política, procura garantir a universalização dos direitos e se afirma como um sistema de proteção social não contributivo. Ao seguir os preceitos da Constituição Federal de 1988, a LOAS reafirma a descentralização da política e cria mecanismos para a participação popular e o controle social. Permite a elaboração e a execução da política mais próximas da população, o que facilita aos usuários opinar e avaliar os serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais, exercendo assim o seu direito à participação e à cidadania (COUTO et al, 2011). Os relativos avanços na legislação brasileira não se traduzem de forma imediata no conjunto dos operadores da política. No modelo brasileiro de proteção social existe uma divergência de concepção quanto ao papel do Estado na condução da seguridade social e especificamente na política de assistência social. Uma concepção considera o que Estado deve exercer a primazia na condução da política, ou seja, deve assumir a responsabilidade pela formulação, regulamentação das ações, pelo financiamento público de fundo a fundo e pela democratização da gestão. Outra concepção, neoliberal, diga-se de passagem, interpreta a ação do Estado pelo “princípio de subsidiariedade, isto é, o Estado deve ser o último e não o primeiro a agir. Nesse sentido, opera a assistência social sob o princípio de solidariedade como ação de entidades sociais subvencionadas pelo Estado” (SPOSATI, 2009, p. 16). No intervalo demarcado entre a promulgação da LOAS, em 1993, e o lançamento da PNAS – 2004, a política de assistência social pouco avançou. Este período foi marcado pela reforma gerencial da máquina pública de caráter privatista e a transferência para a sociedade civil e iniciativa privada das ações de proteção social (NERY, 2009). A condução das ações governamentais primava pela égide do ideário neoliberal em que prevaleceu a concepção do “estado mínimo”, com o Estado se isentando de sua responsabilidade pela condução das políticas sociais. Desta forma, a proteção social foi pautada pela prevalência de que “o Estado não deve ser mais o grande patrocinador do bem estar social, cabendo à sociedade (família, comunidades, associações voluntárias) e à iniciativa privada empresarial, ponderável parcela de participação no processo de provisão social” (PEREIRA apud YAZBEK, 2010, p. 15). A condução da política de assistência social no âmbito federal foi caracterizada pela pulverização de recursos financeiros entre as várias agências governamentais, o que causou uma fragmentação e superposição das ações e consequente enfraquecimento na sua institucionalização como política pública. Quando da posse do então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) institui-se, por medida provisória, o Programa Comunidade Solidária, que se manteve responsável por ações de enfrentamento à pobreza. O Programa ficou vinculado à primeira dama, sustentado com financiamento específico, dotado de uma estrutura própria como uma ação paralela e concorrente à estrutura ministerial condutora da política de assistência social. O Programa Comunidade Solidária teve como atuação “selecionar” municípios com elevados índices de pobreza para conveniamento e consequente repasse de verbas públicas à margem dos Conselhos de Assistência Social e sem o controle dos Fundos de Assistência Social. O referido Programa (...) reitera a tradição nesta área que é a fragmentação e a superposição de ações. Esta pulverização mantém a Assistência Social sem clara definição como política pública e é funcional ao caráter focalista que o neoliberalismo impõe às políticas sociais na contemporaneidade (YAZBEK apud COUTO et al, 2011, p. 36). No plano nacional, a política econômica adotada pelo governo FHC de ajuste fiscal, aos moldes dos organismos financeiros internacionais, gerou um elevado índice de desemprego e consequente aumento da pobreza e um aprofundamento da desigualdade social. A busca da estabilização da economia e do equilíbrio orçamentário e fiscal a partir do Plano Real leva, no período dos governos de FHC (1995-1998 e 19992002) a resultados pouco favoráveis para a Proteção Social na esfera pública estatal. O ambiente é de desacertos e tensões entre a adequação ao ambiente neoliberal e as reformas sociais exigidas constitucionalmente (YAZBEK, 2009, p. 16). Alguns autores afirmam que foi promovido neste período um verdadeiro “desmonte da nação” 12 com a política econômica em vigor utilizando-se da privatização de parte do patrimônio público, a desregulamentação de direitos trabalhistas, o enfraquecimento das políticas de saúde e assistência social, entre outras, e mudanças na Previdência Social e nos direitos dos aposentados (PEREIRA, 2006). O país assistiu ao agravamento da questão social e à incapacidade do Estado em garantir um mínimo de proteção social à população excluída. Somente em 1998 foi aprovada a primeira Política Nacional de Assistência Social. Nem mesmo com a aprovação da PNAS – 1998 foi possível alterar o quadro de sobreposição das ações e da fragmentação imposta. A PNAS – 1998 deu os primeiros passos na direção da organização da gestão, ainda que incipiente, mas não representou uma alteração substantiva quanto aos aspectos conceitual e político relativos à organização da política de assistência social. Previsto na LOAS em 1993, o Benefício de Prestação Continuada – BPC13 foi implantado no final do ano de 1995 em substituição à Renda Mensal Vitalícia – RMV, após uma intensa pressão da sociedade civil organizada. O BPC, de caráter não contributivo, representou um avanço significativo na ação do Estado quanto à proteção social aos indivíduos em condições de extrema vulnerabilidade. No ano de 2003, ocorre uma mudança no cenário político brasileiro com a eleição do presidente Lula. A condução do governo federal altera de forma significativa o enfretamento aos problemas sociais com a formulação de novas estratégias de abordagem. Com a criação do Programa Fome Zero e, posteriormente, com o Programa Bolsa Família procura reposicionar o Estado como condutor das políticas de proteção social à população excluída. Ocorre uma unificação gradual dos diversos programas de transferência de renda de reduzida amplitude social criados no governo anterior e uma ampliação da cobertura do número de famílias beneficiárias, o que veio a potencializar o impacto social do Programa Bolsa Família. “O Programa Bolsa Família criado em 2003 pelo governo federal é considerado um eixo estratégico para a integração de políticas e ações no enfrentamento à pobreza, no acesso à educação e no combate ao trabalho infantil” (YAZBEK, 2009, p. 24). 12 Lesbaupin, Y. (Org.) O Desmonte da Nação - Balanço do governo FHC RJ, Ed. Vozes: 1999. O Benefício de Prestação Continuada tem como critérios o repasse de 1 salário mínimo às pessoas com deficiência e aos idosos acima de 65 anos com renda familiar per capita menor que ¼ do salário mínimo. 13 No primeiro ano do governo Lula ainda persistia uma dispersão das ações de enfrentamento à pobreza mesmo tendo iniciado um processo de unificação destas ações. A criação em 2004 do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS, “que unificou a política de combate à Fome com as Políticas de Transferência de Renda e de Assistência Social foi um significativo passo na direção de unificar um conjunto de iniciativas na perspectiva de integrar a intervenção federal no campo social” (YAZBEK, 2009, p. 19). Mais do que uma mudança no arranjo institucional, a criação do MDS marca uma alteração na concepção da política de assistência social, vindo ao encontro dos anseios de uma parcela do movimento social e das instâncias de participação dos atores envolvidos na consolidação da assistência social como política pública. A IV Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em 2003, aprova como principal deliberação a construção do Sistema Único de Assistência Social e a consequente atualização da Política Nacional de Assistência Social, responsável pela reformulação da concepção e da estrutura organizacional para a vigência do novo modelo de gestão. A nova PNAS foi aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS em 15 de outubro de 2004, por meio da Resolução n. 145 e publicada no Diário Oficial da União – DOU em 28/10/2004. O processo de construção do texto final da PNAS passou por um amplo debate na sociedade com a contribuição de diversos setores envolvidos. Ressalta-se a riqueza desse processo, com inúmeras contribuições recebidas dos Conselhos de Assistência Social, do Fórum Nacional de Secretários de Assistência Social – FONSEAS, do Colegiado de Gestores Nacional, Estaduais e Municipais de Assistência Social, Associações de Municípios, Fóruns Estaduais, Regionais, Governamentais e Não governamentais, Secretarias Estaduais, do Distrito Federal e Municipais de Assistência Social, Universidades e Núcleos de Estudos, entidades de assistência social, estudantes de Escolas de Serviço Social, Escola de gestores da assistência social, além de pesquisadores, estudiosos da área e demais sujeitos anônimos (BRASIL, 2005, p. 11). A aprovação da PNAS – 2004 possibilita uma mudança histórica na efetivação de uma política pública de proteção social não contributiva, pois incorpora “demandas da sociedade na área da assistência social, a inovação em trabalhar com a noção de território, a centralidade da família e de sua proteção e, sobretudo, pela perspectiva de constituição do SUAS” (PEREIRA, 2006, p. 9). Altera de forma significativa a organização da política de assistência social, promove uma adequação do seu sistema de gestão e introduz uma nova cultura institucional, o que vai exigir uma maior participação e democratização na sua operacionalização. A PNAS-2004 vai explicitar e tornar claras as diretrizes para efetivação da Assistência Social como direito de cidadania e responsabilidade do Estado, apoiada em um modelo de gestão compartilhada pautada no Pacto Federativo, no qual são detalhadas as atribuições e competências dos três níveis de governo na provisão de ações socioassistenciais, em consonância com o preconizado na LOAS e nas Normas Operacionais editadas (COUTO et AL 2011, p. 38). A NOB/SUAS14, aprovada em plenária pelo CNAS em 15 de julho de 2005 através da Resolução n. 130, propõe uma nova organização institucional para a política de assistência social. Com ênfase na gestão pública, fortalece o sistema descentralizado e participativo com atribuição de competências entre as esferas de governo, propõe uma gestão compartilhada com uma divisão de responsabilidades entre união, estados, Distrito Federal e municípios, institui instâncias que compõem o processo de gestão, organiza o sistema em níveis de gestão e estabelece uma nova relação com as organizações da sociedade civil. Define o financiamento por meio de mecanismos de transferência, critérios de partilha e de transferência de recursos, que fica condicionado ao grau de habilitação do município conforme sua capacidade de organização da gestão e de operacionalização das ações (BRASIL, 2005). Para Sposati (2006, p. 111), “o SUAS é uma racionalidade política que inscreve o campo de gestão da assistência social (...)”. O financiamento da assistência social se apresenta, até então, como um dos principais entraves para a sua consolidação. A NOB/SUAS estabeleceu critérios de financiamento e convocou os municípios para a organização do sistema local. Desta forma, vinculou o co-financiamento da União à capacidade de organização da gestão e de execução das ações propostas pelas diretrizes estabelecidas pelas normativas em âmbito nacional. A política de assistência social, que se pautou no pacto federativo com o detalhamento de atribuições nas três esferas de governo, fortaleceu concomitantemente o princípio da descentralização política, administrativa e financeira conferindo estímulos à cooperação intergovernamental, o que proporciona maior autonomia aos municípios. 14 Norma Operacional Básica – instrumento jurídico do governo federal que regulamenta e organiza o Sistema Único de Assistência Social. Hoje a LOAS (após última alteração) também regulamenta e organiza o SUAS. A NOB/SUAS reafirmou a centralidade do Estado na condução da política e regula as atribuições da sociedade civil e o controle social exercido pela participação da população. Seus princípios e diretrizes apontam para a universalização do sistema; a territorialização da rede; a descentralização político-administrativa; a padronização dos serviços de assistência social; a integração de objetivos, ações, serviços, benefícios, programas e projetos; a garantia da proteção social; a substituição do paradigma assistencialista e a articulação de ações e competências com os demais sistemas de defesa de direitos humanos, políticas sociais e esferas governamentais (PEREIRA, 2006, p. 8). Ao seguir a mesma direção com vistas a estabelecer normas e diretrizes de funcionamento da política, a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS - NOB-RH/SUAS é aprovada pelo CNAS por meio da Resolução n. 269, de 13 de dezembro de 2006, e publicada em 25 de janeiro de 2007. A NOB-RH/SUAS é um instrumento de gestão que visa normatizar a gestão do trabalho15 no âmbito do SUAS. As diretrizes definidas pela resolução têm como finalidade orientar “a ação de gestores das três esferas de governo, trabalhadores e representantes das entidades de assistência social” (BRASIL, 2011, p. 13), na busca permanente de ofertar serviços públicos de qualidade aos usuários da política. A gestão do trabalho no SUAS supõe, a criação e a manutenção de estruturas de referência técnica e institucional para a orientação e o apoio permanentes; a regulamentação de aspectos relacionados ao trabalho na assistência social, a serem pactuados e submetidos ao controle democrático da sociedade civil organizada e atuante nas mesas de negociação e nos conselhos e instancias de pactuação (SILVEIRA, 2011, p. 12). A assistência social, historicamente, foi marcada pela informalidade, pela benemerência e pela caridade exercida pelo voluntariado, ou mesmo pela desregulamentação do trabalho. Assim sendo, a NOB-RH/SUAS surge com a intencionalidade de uma mudança de paradigma com o propósito de inversão desta tradição no sentido de instituir uma profissionalização do trabalho na assistência social, fundamentado em uma perspectiva crítica. É sem dúvida um marco delimitador da gestão, o que representa (...) um ganho político significativo na pactuação federativa entre gestores da política de assistência social e na luta dos seus trabalhadores por condições materiais, técnicas e éticas de trabalho nos órgãos gestores, nos CRAS e CREAS e nas entidades de assistência social vinculadas ao SUAS (...) (RAICHELIS, 2010, p. 761). 15 Considera-se Gestão do Trabalho no SUAS a gestão do processo de trabalho necessário ao funcionamento da organização do sistema, que abarca novos desenhos organizacionais, educação permanente, desprecarização do trabalho, avaliação de desempenho, adequação dos perfis profissionais às necessidades do SUAS, processos de negociação do trabalho, sistemas de informação e plano de carreira, cargo e salários, entre outros (BRASIL, 2006, p. 68) Os trabalhadores da assistência social16 e o trabalho ganham um capítulo especial na consolidação da política de assistência social. A caracterização do trabalho na política pública de assistência social deve ser tratada de acordo com a sua natureza e sua especificidade própria. “O trabalho aqui tratado, portanto, não se fundamenta na lógica mecanicista do mercado, nem das práticas corporativistas que disputam espaços e poder simbólico, sem muitas vezes garantir a centralidade do próprio usuário e dos processos democráticos” (SILVEIRA, 2011, p. 28). Há uma relação imbricada entre os trabalhadores e os usuários beneficiários diretos da ação. O propósito maior nesta relação deve estar centrada no compromisso ético e político com a garantia dos direitos sociais e no empoderamento e autonomia dos usuários, ou seja, o resultado da atividade de trabalho, juntamente com a qualificação da gestão, incidem diretamente na qualidade do serviço prestado à população. O que está em questão, portanto, é a ressignificação do trabalho na assistência social, referenciada em um projeto coletivo de redefinição do trabalho, das formas de organização e gestão institucional que incorporem mecanismos permanentes de democratização, qualificação e capacitação continuada, como questão estratégica para a valorização do trabalho e dos trabalhadores no SUAS (RAICHELIS, 2010, p. 58). Segundo a NOB-RH/SUAS, a gestão do trabalho deve ainda “garantir a “desprecarização” dos vínculos dos trabalhadores do SUAS e o fim da terceirização, garantir a educação permanente17 dos trabalhadores e garantir a gestão participativa com controle social” (NOB-RH/SUAS, 2006, p. 20). A formulação atual da política de assistência social se insere em um contexto político conjuntural permeado pela compreensão do processo histórico das experiências de elaboração das políticas sociais. Potyara Pereira (2011), afirma que a elaboração de políticas sociais “não se dá num vácuo teórico, conceitual e ideológico, e nem está isenta de ingerências econômicas e correlações de forças políticas. (...) são essas ingerências e correlações que a orientam (...) num contexto movido por mudanças estruturais e históricas” (TITMUS apud PEREIRA, 2011, p. 16). Fica evidenciado como 16 Trabalhadores da assistência social são aqueles que atuam institucionalmente na política de assistência social, conforme preconizado na LOAS, na PNAS e no SUAS, inclusive quando se tratar de consórcios intermunicipais e entidades e organizações da assistência social (BRASIL, 2006, p.70) 17 Educação permanente constitui-se no processo de permanente aquisição de informações pelo trabalhador, de todo e qualquer conhecimento, por meio de escolarização formal ou não formal, de vivências, de experiências laborais e emocionais, no âmbito institucional ou fora dele. (...) Tem o objetivo de melhorar e ampliar a capacidade laboral do trabalhador, em função de suas necessidades individuais, da equipe de trabalho e da instituição em que trabalha das necessidades dos usuários e da demanda social (NOB-RH/SUAS). as políticas sociais flutuam entre avanços e retrocessos conforme a conjuntura política e econômica assim o determina. O redesenho da arquitetura institucional da política pública de assistência social no Brasil, direcionado pela PNAS – 2004, pela NOB/SUAS e pela NOB-RH/SUAS, representam um posicionamento diante do papel do Estado com primazia na condução das políticas sociais e na proteção social à população vulnerabilizada. Há uma intencionalidade político-ideológica, no que diz respeito à função do Estado, e um contraponto às estratégias neoliberais que atribuem uma desresponsabilização estatal frente às manifestações da questão social. Sem ter a pretensão de solucionar o problema da exclusão social e a garantia plena de direitos a todos os cidadãos brasileiros, a política de assistência social é apenas parte de um esforço político de iniciativas públicas para a constituição de um Estado que venha garantir a proteção social aos seus cidadãos. Sposati afirma que A PNAS-2004 concretiza o esforço de sistematizar o conteúdo da assistência social como política de proteção social. Não se pode dizer que essa política contenha todas as respostas às questões (...), mas, com certeza, seu conteúdo estabelece o fio condutor de uma política de proteção que se quer pública e de direitos (SPOSATI, 2009, p. 40-41). O SUAS organiza a política de assistência social tendo como eixos norteadores a matricialidade sociofamiliar, a descentralização político-administrativa e a territorialização. Procura estabelecer novos parâmetros na relação entre o Estado e a sociedade civil, critérios e condicionantes para o financiamento e o controle social (BRASIL, 2008). A PNAS – 2004 e o SUAS estabelecem como funções da assistência social a vigilância social, a defesa social e institucional e a proteção social. A vigilância social “consiste no desenvolvimento da capacidade e de meios de gestão assumidos pelo órgão público gestor da Assistência Social para conhecer a presença das formas de vulnerabilidade social da população e do território pelo qual é responsável” (BRASIL, 2005, p. 93). É a capacidade em identificar situações de precarização, vulnerabilidades e riscos sociais vividos pelas famílias nos territórios. Para isto “deve buscar conhecer o cotidiano da vida das famílias, a partir das condições concretas do lugar onde elas vivem (...)” (BRASIL, 2005, p. 93). A vigilância socioassistencial tem a função de “monitoramento de riscos”, adquirindo um caráter preventivo. A defesa socioinstitucional vem afirmar a proposição da assistência social como política de garantia de direitos e de condições dignas de vida. Visa romper com as idéias do assistencialismo, da tutela, da benemerência e da subalternidade “que identificam os cidadãos como carentes, necessitados, pobres, mendigos, discriminando-os e apartandoos do reconhecimento como sujeitos de direito” (BRASIL, 2005, p. 93). A universalização dos direitos sociais e o exercício da cidadania devem estar incorporados na “dinâmica dos serviços, proporcionando aos usuários condições de autonomia, resiliência e sustentabilidade, protagonismo, acesso a oportunidades, capacitações, condições de convívio e socialização, de acordo com sua capacidade, dignidade e projeto pessoal e social” (BRASIL, 2005, p. 93). A proteção social “refere-se às ações voltadas para resguardar os cidadãos contra riscos pessoais e sociais” (BRASIL, 2008, p. 44). A proteção social da política de assistência social, de acordo com Sposati (2009, p. 19), opera nas situações de “proteção às vulnerabilidades próprias do ciclo de vida; proteção às fragilidades da convivência familiar; proteção à dignidade humana e combate às suas violações”. O modelo de proteção social brasileiro é composto por um conjunto de ações ordenadas na política de assistência social que compõem o sistema de seguridade social, que articula-se às demais políticas sociais e econômicas e que mantêm uma relação de complementaridade. A efetivação da proteção social de assistência social deve ter o direcionamento voltado para o “desenvolvimento humano e social e os direitos de cidadania”, envolvendo um conjunto de garantias de seguranças articuladas, sendo: - a segurança de acolhida; - a segurança social de renda; - a segurança do convívio ou vivência familiar, comunitária e social; - a segurança do desenvolvimento da autonomia individual, familiar e social; - a segurança de sobrevivência a riscos circunstanciais (BRASIL. 2005, p. 90). A proteção social de assistência social como política afiançadora de direitos deve ser conduzida na perspectiva emancipatória, de forma a responder às necessidades sociais e coletivas decorrentes das situações de vida das famílias e indivíduos. A sua operacionalização é normatizada pela PNAS – 2004 e divide-se em proteção social básica e proteção social especial. A proteção social básica “tem como objetivos prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários” (BRASIL, 2004, p. 33). Destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social, advinda da privação de renda e de acesso aos serviços públicos e/ou fragilização de vínculos afetivos, relacionais e de pertencimento social. Prevê o desenvolvimento de serviços, programas e projetos locais de acolhimento, convivência e socialização de famílias e indivíduos, bem como a concessão de benefícios socioassistenciais. Os serviços desta proteção afiançada são estabelecidos na base territorial local, próximo à população, tendo como ênfase o caráter preventivo. Podem ainda ser executados em parceria com a sociedade civil e de forma direta pelo Estado nos CRAS – Centros de Referência de Assistência Social. A proteção social especial tem como objetivo a intervenção em situações de violação de direitos, “destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social” (BRASIL, 2004, p. 37): (...) é a modalidade de atendimento destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos, psicológicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras (BRASIL, 2004, p. 37). As ações da política de assistência social podem ser executadas de forma direta pelo poder público ou em parceira com a sociedade civil, compondo a rede socioassistencial18. As ações são classificadas em serviços, programas, projetos e benefícios. De acordo com a LOAS e com a NOB/SUAS – 2005, são entendidos por: Serviços Atividades continuadas (...) que visam a melhoria da vida da população e cujas ações estejam voltadas para as necessidades básicas da população, observando os objetivos, princípios e diretrizes estabelecidas (...). A Política Nacional de Assistência Social prevê seu ordenamento em rede, de acordo com os níveis de proteção social: básica e especial, de média e alta complexidade. Programas Compreendem ações integradas e complementares (...) com objetivos, tempo e área de abrangência, definidos para qualificar, incentivar, potencializar e melhorar os benefícios e os serviços assistenciais, não se caracterizando como ações continuadas. Projetos (...) caracterizam-se como investimentos econômico-sociais nos grupos populacionais em situação de pobreza, buscando subsidiar técnica e financeiramente iniciativas que lhes garantam meios e capacidade produtiva e de gestão para a melhoria das condições gerais de subsistência, elevação do padrão de qualidade de vida, preservação do meio ambiente e organização social, articuladamente com as demais políticas públicas. De acordo com a PNAS/2004, esses projetos integram o nível de proteção social básica, podendo, contudo, voltar-se ainda às famílias e pessoas em situação de risco, público-alvo da proteção social especial. 18 A rede socioassistencial é um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, que ofertam e operam benefícios, serviços, programas e projetos, o que supõe a articulação entre todas estas unidades de provisão de proteção social, sob a hierarquia de básica e especial e ainda por níveis de complexidade (BRASIL, 2005, p. 94). Benefícios • Benefício de Prestação Continuada: (...) é provido pelo Governo Federal, consistindo no repasse de 1 (um) salário mínimo mensal ao idoso (com 65 anos ou mais) e à pessoa com deficiência que comprovem não ter meios para suprir sua subsistência ou de tê-la suprida por sua família. • Benefícios Eventuais: (...) visam ao pagamento de auxílio por natalidade ou morte, ou para atender necessidades advindas de situações de vulnerabilidade temporária, com prioridade para a criança, a família, o idoso, a pessoa com deficiência, a gestante, a nutriz e nos casos de calamidade pública. • Transferência de Renda: (...) visam o repasse direto de recursos dos fundos de Assistência Social aos beneficiários, como forma de acesso à renda, visando o combate à fome, à pobreza e outras formas de privação de direitos, que levem à situação de vulnerabilidade social, criando possibilidades para a emancipação, o exercício da autonomia das famílias e indivíduos atendidos e o desenvolvimento local. (BRASIL, 2005, P. 94) A proteção social formulada pela política de assistência social tem como princípios a matricialidade sociofamiliar, a territorialização, a proteção pró-ativa, integração à seguridade social e a integração às políticas sociais e econômicas. Dois eixos estruturantes do SUAS recebem um destaque especial por se constituírem princípios estratégicos para a proteção social de assistência social. São eles: a matricialidade sociofamiliar e a territorialização. 3.2.1 – A matricialidade sociofamiliar A matricialidade sociofamiliar na política de assistência social representa o direcionamento da proteção social de assistência social com o foco no grupo familiar, sendo um princípio ordenador previsto no SUAS. Se por um lado, a estruturação da PNAS/2004 centrada na família potencializa ações e resultados, por outro lado, exige do Estado um maior investimento em recursos financeiros, metodológicos e na articulação com as diversas políticas públicas. Ao considerar o princípio da matricialidade sociofamiliar, a assistência social (...) parte da concepção de que a família é o núcleo protetivo intergeracional, presente no cotidiano e que opera tanto o circuito de relações afetivas como de acessos materiais e sociais. Fundamenta-se no direito à proteção social das famílias, mas respeitando seu direito à vida privada (SPOSATI, 2009, p. 43). Historicamente, o Estado e a sociedade têm exigido da família responsabilidades sem, no entanto, oferecer suporte e proteção para que possa cumprir com a proteção social a seus integrantes. O ideário neoliberal em curso no Brasil, a partir da década de 1990, procurou eximir o Estado das responsabilidades de proteção social dos indivíduos, transferindo esta função para a sociedade e principalmente para as famílias. A PNAS – 2004 reafirma a importância da unidade familiar como matriz de atenção e proteção social, mas também, merecedora de cuidados, apoio e ações de fortalecimento extensivo aos seus integrantes no enfrentamento das necessidades sociais (COUTO et al, 2011). Resgata assim a co-responsabilidade do Estado no papel de proteção social, com o propósito de respeitar sua singularidade e as expressões da identidade social, cultural e afetiva. O SUAS considera família “como núcleo afetivo, vinculado por laços consangüíneos, de aliança ou afinidade, que circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno de relações de geração e de gênero” (BRASIL, 2005, p. 90). Desta forma, amplia o leque de possibilidades de arranjos familiares, não restringindo a apenas a relação de consanguinidade. Observa-se um número crescente de novos arranjos familiares, sendo cada vez menor o número de famílias definidas como nucleares. As mudanças culturais e demográficas no perfil da população brasileira, nas últimas décadas, alteraram significativamente a configuração das famílias. (...) as transformações ocorridas na sociedade contemporânea, relacionadas à ordem econômica, à organização do trabalho, à revolução na área da reprodução humana, à mudança de valores e à liberalização dos hábitos e dos costumes, bem como ao fortalecimento da lógica individualista em termos societários, redundaram em mudanças radicais na organização das famílias (BRASIL, 2004, p. 42). Torna-se relevante a compreensão do significado de família como representação social para a sua contextualização no atual momento. Bruschini (2009, p. 57) afirma que “a família tal como conhecemos atualmente em nossa sociedade, não é uma instituição natural (...)”, sendo, portanto, “uma instituição criada pelos homens em relação, que se constitui de formas diferentes em situações e tempos diferentes, para responder as necessidades sociais, (...) e que orienta a conduta de seus membros” (REIS, 1988, p. 102). Esta concepção contrapõe-se à idéia de família como uma forma de organização social natural, ou seja, a idéia de família como um grupo natural devido sua relação de consanguinidade e filiação, restrita somente ao aspecto biológico. Nesta perspectiva, a família deve ser entendida como “uma instituição social historicamente condicionada e dialeticamente articulada com a estrutura social na qual está inserida” (MIOTO, 1997, p. 116). Portanto, a família se caracteriza pela sua mutabilidade e se constitui no decorrer da história social da humanidade como um fato cultural e histórico para satisfazer às necessidades nas relações econômicas e de poder. A partir de uma leitura crítica, a família cumpre com duas funções básicas: a função ideológica e a função econômica. A função ideológica se manifesta na tarefa de socialização de seus membros, na padronização de comportamentos, nas definições de papeis sociais, direcionados por uma reprodução da ideologia dominante. A família cumpre com sua função econômica com a reprodução da mão de obra. É a família e especificamente em determinado modelo de família permeada pela ideologia dominante, que se processa a reprodução biológica geradora de futuros trabalhadores para suprir a necessidade do capital. A divisão sexual do trabalho tem no modelo nuclear burguês um ambiente que reproduz as relações de poder que envolve as questões de gênero e idade. Se a família rural se constituía como uma unidade de produção, a família urbana hoje se apresenta como uma unidade de consumo (REIS, 1988, BRUSCHINI, 2009). Mioto (1997, p. 117) afirma que “a família não é a priori o lugar da felicidade”. A naturalização da família reproduz uma concepção da inviolabilidade, do núcleo sagrado que deve ser preservado das influências do seu meio. A dinâmica relacional de cada família é construída ou desconstruída nas relações cotidianas, que implica na capacidade de lidar com os conflitos internos e com as interferências e demandas de seu meio externo. Mudanças ocorridas nas relações homem/mulher e nas relações pais/filhos surgem como uma necessidade dos membros que compõem a família em se reposicionar diante das novas situações em conflitos e na reformulação dos novos papéis sociais. A família pode se tornar um lugar de felicidade e de vínculos afetivos fortalecidos, como também um lugar de infelicidade e de relações marcadas por graves conflitos e, com a consequente fragilização dos vínculos. Outro aspecto relevante a se considerar na contemporaneidade tem sido a grande incidência de famílias classificadas como monoparentais femininas, ou seja, famílias chefiadas por mulheres que assumem a função de provedoras materiais e afetivas. Neste contexto, importa destacar que as famílias que dependem exclusivamente do trabalho feminino são as mais vulneráveis em função da segregação da mulher, a atividade de baixa remuneração e alta incidência de trabalho informal e precário, que caracteriza a sua inserção no mercado de trabalho (BRASIL, 2008, p. 59). É cada vez mais comum o número de mulheres que assumem sozinhas a responsabilidade de provedora da família. O tempo dividido entre o trabalho, os cuidados com a casa e a educação e socialização dos filhos sobrecarrega a mulher e expõe uma situação de vulnerabilidade, fato este que denuncia um quadro social de consequências imprevisíveis. A forte presença da mulher aponta para a pertinência da inclusão da temática de gênero na formulação das ações de assistência social, bem como de outras políticas públicas. A intervenção deve evitar o caráter punitivo e normatizador, sendo direcionada para o fortalecimento de vínculos e a promoção da autonomia do grupo familiar. Ao abordar a categoria matricialidade sociofamiliar apontada pelo SUAS, Couto (2011) levanta preocupações que devem ser destacadas: é preciso romper com o pré-conceito para lidar com os diversos arranjos familiares, as famílias somente poderão oferecer cuidados básicos para o desenvolvimento de seus membros se atendida nas suas necessidades sociais, ou seja, a família em situação de vulnerabilidade precisa receber cuidados e proteção social do Estado para oferecer cuidados aos seus membros. As metodologias de atendimento às famílias precisam ser revistas para evitar intervenções de caráter moralista e disciplinador. Por fim, é preciso entender a família na sua singularidade, respeitar sua individualidade e que esta mesma família está inserida em um contexto social e conjuntural mais amplo permeado pela disputa de um projeto societário emancipador (COUTO et al, 2011). O trabalho com famílias na política de assistência social tem como objetivos o aumento da capacidade protetiva do grupo familiar, o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, a aquisição de potencialidades e a superação das situações de risco e vulnerabilidades. Tem como princípios o respeito à diversidade cultural e aos diversos arranjos familiares. A metodologia de trabalho prevê como eixos de ação: a intervenção de caráter assistencial, de apoio prestado às famílias e seus membros, de acesso aos serviços básicos; e ações de caráter socioeducativo, que prevêem a reflexão com as famílias sobre o seu cotidiano e suas diversas formas de organização, no que diz respeito aos aspectos estrutural, funcional e relacional (PNAS-2004, NOB/SUAS-2005). 3.2.2 - Territorialidade A territorialidade é a base da organização do Sistema Único de Assistência Social considerando a sua estrutura em instâncias descentralizadas. Para a política de assistência social o território é mais do que uma delimitação geográfica, (...) são espaços de vida, de relações, de trocas, de construção e desconstrução de vínculos cotidianos, de disputas, contradições e conflitos, de expectativas e de sonhos (...). É também o terreno das políticas públicas, onde se concretizam as manifestações da questão social e se criam os tensionamentos e as possibilidades para seu enfrentamento (BRASIL, 2008, p. 53). Considerar a escala local para planejar e executar ações de desenvolvimento possibilita um acompanhamento mais próximo por parte da população envolvida no processo. Possibilita considerar elementos conflitantes que se complementam e se superam. A perspectiva do lugar se sobrepõe à concepção meramente de espaço geográfico, transportando-o para o espaço dinâmico das trocas, das relações significativas da escala humana. A referência do local diz respeito às relações da vida cotidiana estabelecidas nas relações interpessoais, na construção de identidades por meio das trocas e interações. O lugar e o espaço se interagem dialeticamente: enquanto o lugar se abre para uma dimensão das “possibilidades”, “(...) o espaço é o lugar do praticado. O lugar seria o campo do permitido enquanto o espaço, o do possível” (CERTEAU19 apud MARTINS, 2002, p. 56). Nesta relação entre o lugar e o espaço, surge a dimensão do cotidiano e das relações de vizinhança. No lugar - um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições - cooperação e conflito são a base da vida em comum. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo (...) é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade (SANTOS, 2006, p. 218). A política de assistência social tem o território como base de operacionalização das ações públicas, em especial nos territórios de vulneráveis socialmente “tendo em vista à superação da fragmentação, o alcance da universalidade de cobertura, a possibilidade de planejar e monitorar a rede de serviços, realizar a vigilância social das exclusões e estigmatizações presentes nos territórios de maior incidência de vulnerabilidade” (BRASIL, 2008, p. 53). A delimitação da abrangência territorial é compreendida na escala do município e suas subdivisões geográficas e administrativas, de acordo com a diversidade do universo dos municípios brasileiros. A implementação dos serviços próximos aos cidadãos pode facilitar o acesso da população usuária, bem como antecipar situações na perspectiva da proteção social, e para tanto, (...) deverão ser organizados a partir do conhecimento do território, de seus recursos, de sua população, das relações sociais e de classes da identificação das demandas sociais, das suas carências, mas também das potencialidades locais e regionais que esses territórios contêm (BRASIL, 2008, p. 57). A proteção social pró-ativa de assistência social ocorre preferencialmente nos territórios, sendo um dos princípios norteadores da proteção social básica, “(...) é o trabalho social em sintonia com a realidade, que monitora e atua no território para 19 CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1 - artes de fazer. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. reduzir e eliminar a presença de fatores de risco, por um conjunto de ações fortalecedoras da cidadania” (CARRION e CALOU, 2008, p. 15). Os territórios caracterizados pela condição de vulnerabilidade social são permeados por uma diversidade de fatores resultantes das expressões da questão social e como consequências apresentam uma imprevisibilidade quanto às demandas para as políticas públicas. A imprevisibilidade dos territórios desafia as instituições públicas ali instaladas com vistas a buscar alternativas no enfrentamento às condições adversas, de forma a exigir constantemente um deslocamento dos protocolos burocráticos, a fim de constituir novas rotinas e percursos protocolares com a renormalizaçao de procedimentos técnicos mais criativos e flexíveis. A descentralização na política de assistência social incorpora, na sua formulação, conceitos como a territorialidade e a intersetorialidade, que se complementam e interagem, o que fundamenta todo o modelo de gestão e a arquitetura organizacional. 3.3 – A Caracterização do Centro de Referência de Assistência Social - CRAS A presença do Estado executando a política pública de assistência social nos territórios se manifesta especificamente com a existência do Centro de Referência de Assistência Social. O CRAS se constitui como uma unidade pública estatal de base territorial, localizado em áreas de vulnerabilidade social, que referencia um total de até 5.000 famílias (BRASIL, 2004) e atende até 1.000 famílias por ano. Tem como objetivo geral contribuir para a inclusão social por meio do fortalecimento dos vínculos familiares, comunitários e sociais. Tem ainda como objetivos específicos encaminhar e acompanhar famílias e indivíduos para a rede de serviços socioassistenciais; promover o grupo familiar englobando a sua reorganização e o seu protagonismo para a superação de vulnerabilidades e riscos, bem como a sua potencialização como matriz de convivência, cuidado, mediação e defesa de direitos dos seus membros; promover a socialidade no território de abrangência do equipamento (BRASIL, 2005). Segundo a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais20, a Proteção Social Básica possui três serviços, são eles: Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família, Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos e Serviço de Proteção 20 Resolução n. 109, de 11 de novembro de 2009 do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS. Social Básica no Domicílio para Pessoas com Deficiência e Idosas. O Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF é o principal serviço da Proteção Social Básica, principalmente por ser garantidor da matricialidade sociofamiliar. Deve ser ofertado exclusivamente pela esfera estatal sendo executado necessariamente no CRAS. Os demais serviços são complementares ao PAIF e podem ser executados em outros espaços socioassistenciais devendo, no entanto, ser referenciados no CRAS. Estes serviços devem manter uma articulação com o PAIF, pois “é a partir do trabalho com famílias no serviço que se organizam os serviços referenciados no CRAS” (BRASIL, 2009, p. 6). O CRAS tem como funções primordiais a oferta do PAIF e a gestão da Proteção Social Básica no território (BRASIL, 2009). As duas funções se interagem e se complementam. A oferta do PAIF se refere ao atendimento às famílias realizado diretamente pelos profissionais que atuam no CRAS. O serviço “consiste no trabalho social com famílias, de caráter continuado, com a finalidade de fortalecer a função protetiva das famílias, prevenir a ruptura de seus vínculos, promover o acesso e usufruto de direitos (...)” (BRASIL, 2009, p. 6). As ações de atendimento e acompanhamento às famílias podem ser de caráter individual ou coletivo. Ao seguir a diretriz, no que se refere à centralidade na família, a metodologia de trabalho deve pautar-se por uma abordagem psicossocial com vistas à garantia dos direitos de cidadania. “A abordagem psicossocial se ocupa do vínculo social, a socialidade, que constitui a relação entre os sujeitos, mediados pelo social, (...) as relações entre indivíduos, grupos e instituições, (...) bem como processos de transformação social” (BELO HORIZONTE, 2007, p. 26). De acordo com o documento Orientações Técnicas sobre o PAIF Volume II (2012) publicado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, constituem-se como ações metodológicas do Serviço: acolhida, oficinas com famílias, ações comunitárias, ações particularizadas e encaminhamentos. A acolhida se caracteriza como o contato inicial da família ou do indivíduo no trato das questões e das demandas junto à equipe do PAIF. É um momento estratégico de escuta e criação de vínculo entre o serviço e a família. Significa ir alem da inserção no serviço, onde deve ser exercido um processo de escuta qualificada por parte dos profissionais como estratégia para a identificação de necessidades “que permita à família falar de sua intimidade com segurança”, e, “que o saber profissional seja colocado à disposição da família, auxiliando-a na construção do conhecimento sobre sua realidade e, consequentemente, no seu fortalecimento” (BRASIL, 2012, p. 17). Os princípios da matricialidade familiar com uma abordagem crítica devem nortear toda a intervenção profissional na relação com a família. As atividades coletivas podem ser de caráter grupal por meio das oficinas com famílias e ações comunitárias. As atividades coletivas podem proporcionar uma relação dialógica de troca de informações e de experiências de vida e favorecer um processo de convivência, reflexão coletiva, práticas de mobilização social e participação das famílias na vida comunitária. As oficinas com famílias se apresentam como espaços coletivos de convivência e reflexão e podem proporcionar processos de caráter educativos. “As oficinas com famílias propiciam a problematização e reflexão crítica das situações vividas em seu território, além de questões muitas vezes cristalizadas, naturalizadas e individualizadas” (BRASIL, 2012, p. 23). Podem ainda ser utilizadas técnicas de trabalho com grupos e atividades de desenvolvimento de habilidades ocupacionais como estratégias de mobilização e reflexão. As ações comunitárias têm como objetivos: (...) promover a comunicação comunitária, a mobilização social e o protagonismo da comunidade; fortalecer os vínculos entre as diversas famílias do território, desenvolver a sociabilidade, o sentimento de coletividade e a organização comunitária – por meio, principalmente, do estímulo à participação cidadã (BRASIL, 2012, p. 35). Podem ser desenvolvidas atividades como: palestras, campanhas educativas no território, eventos e atividades de mobilização comunitária. O envolvimento do CRAS em questões que dizem respeito à organização comunitária nos territórios é de extrema importância, por se tratar do envolvimento mais efetivo no cotidiano da vida da população local usuária do serviço e da realidade social destes territórios. Desta forma o CRAS pode contribuir com as ações e a organização comunitária, como também contribuir e incentivar uma participação social dos usuários do serviço na vida comunitária. As ações particularizadas dizem respeito ao atendimento técnico à família ou indivíduos diante situações específicas em casos de: (...) suspeita de situações de violação de direitos, entendimento e enfrentamento das causas de descumprimentos reiterados de condicionalidades do Programa Bolsa Família, beneficiários do BPC de 0 a 18 anos fora da escola e demais situações que pressupõem sigilo de informações e que podem gerar encaminhamento para a Proteção Social Especial ou para o Sistema de Garantia de Direitos (BRASIL, 2012, p. 39). São ações que exigem uma abordagem cuidadosa por se tratar de situações localizadas no limiar entre a Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial. O PAIF como uma ação localizada no âmbito da política de Proteção Social Básica, deve seguir essa diretriz e priorizar o atendimento com ênfase nas atividades coletivas, cumprindo desta forma uma ação de caráter preventivo. A gestão territorial da Proteção Social Básica refere-se à capacidade de articulação com vistas a qualificar e aumentar a efetividade do atendimento, além de possibilitar à população o acesso aos serviços das demais políticas públicas na perspectiva da inclusão social. Trata-se de estabelecer uma relação interativa entre os serviços da política de assistência social, entre estes e os serviços das demais políticas sociais e as organizações comunitárias atuantes nestes territórios. A gestão territorial da proteção básica responde pelo princípio de descentralização do SUAS e tem como objetivo promover a atuação preventiva, disponibilizar serviços próximo do local de moradia das famílias, racionalizar as ofertas e traduzir o referenciamento dos serviços ao CRAS em ação concreta (...) (BRASIL, 2009, p. 20). A gestão territorial se divide em ações de articulação da rede socioassistencial de proteção social básica referenciada ao CRAS, de promoção da articulação intersetorial e de busca ativa. A articulação da rede socioassistencial de Proteção Social Básica consiste no estabelecimento de contatos, alianças, fluxos de informações e encaminhamentos entre o CRAS e as demais unidades de Proteção Social Básica do território. A promoção da articulação intersetorial propicia o diálogo da política de assistência social com as demais políticas, e requer a articulação entre os múltiplos saberes. “Possibilita a superação da fragmentação dos conhecimentos e das estruturas sociais, para produzir efeitos significativos na vida da população, respondendo com efetividade a problemas sociais complexos” (BRASIL, 2009, p. 26). A articulação intersetorial possibilita uma maior efetividade dos serviços com a integração das ações institucionais, além de facilitar o acesso da população a serviços, especialmente aquela que se encontra em situação de maior vulnerabilidade social. A busca ativa no território do CRAS é uma importante ferramenta que propicia o contato direto com a população e possibilita uma ação de caráter preventivo. A busca ativa é uma atividade realizada no âmbito dos serviços socioassistenciais com o propósito de identificar e buscar o usuário ou a família para inserção ou reinserção no serviço. A gestão territorial ao tratar da busca ativa, amplia este conceito e a caracteriza também como um instrumento de reconhecimento do território, de sua dinâmica, da identificação das vulnerabilidades e potencialidades, do seu cotidiano e da sua realidade social. “A busca ativa tem por foco os potenciais usuários do SUAS cuja demanda não é espontânea (...), tem por princípio a dimensão ética de incluir os ‘invisíveis’” (BRASIL, 2009, p. 30). 3.3.1 – O CRAS entre a Assistência Social e a Política Social em Belo Horizonte De acordo com os preceitos constitucionais, os municípios brasileiros ganham importância e autonomia na composição do aparato estatal, no que se refere à formulação e gestão da política pública. Na política de assistência social, a formulação da estrutura organizacional prevê que as diretrizes e normativas de âmbito nacional recebam adequações locais, conforme a realidade e as características dos municípios brasileiros. No município de Belo Horizonte, a arquitetura institucional da política municipal de assistência social se apresenta de forma singular e acompanha desenho organizacional da estrutura da administração municipal. De acordo com a reforma administrativa instaurada na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, por meio da Lei nº 9.011 de 1º de janeiro de 2005, o órgão gestor da política municipal de assistência social – Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social – SMAAS, se localiza hierarquicamente subordinada à Secretaria Municipal de Políticas Sociais – SMPS. Art. 41 – A Secretaria Municipal de Políticas Sociais tem por finalidade articular a definição e a implementação das políticas sociais do Município de forma integrada e intersetorial. Art. 42 – Compete à Secretaria Municipal de Políticas Sociais: I – elaborar planos, programas e projetos de desenvolvimento social; II – coordenar a estratégia de implementação de planos, programas e projetos de desenvolvimento social; III – coordenar a execução das atividades de proteção e defesa do consumidor; IV – coordenar as atividades relativas a direitos humanos e cidadania; V – coordenar as atividades de cultura, política de abastecimento, assistência social e esportes; VI – planejar, coordenar e executar programas e atividades de apoio à pessoa portadora de necessidades especiais e à pessoa que apresenta dependência química, visando à reintegração e readaptação funcional na sociedade; VII – gerir os fundos municipais de Assistência Social, da Criança e do Adolescente, da Merenda Escolar, de Abastecimento Alimentar, do Idoso e de Proteção e Defesa do Consumidor; VIII – coordenar as ações do Município em relação à Associação Municipal de Assistência Social – AMAS; IX – coordenar as atividades relativas às políticas de gênero; X – coordenar as atividades relativas às políticas para a população idosa; XI – coordenar outras atividades destinadas à consecução de seus objetivos. (PBH, Lei nº 9.011, de 1º de janeiro de 2005). A reforma administrativa implementada em 2005 manteve muito da estruturação organizacional e dos princípios estratégicos da gestão pública, como a descentralização e a intersetorialidade, preconizados na reforma administrativa anterior de 2000. Se por um lado, o desenho proposto representou apenas um “ajuste” ou uma adequação do arranjo organizacional, por outro lado, criou certo “constrangimento administrativo e político” às políticas setoriais que perderam poder com o rebaixamento no nível hierárquico (MOURÃO, 2011). Afetada diretamente por esta formatação, a SMAAS – órgão gestor da política de assistência social, perdeu autonomia política nas instâncias de negociação interna da administração municipal, ao mesmo tempo em que ocorrem avanços, em âmbito nacional, com o processo de implementação do SUAS. A SMPS é a agência municipal responsável pela coordenação das ações das políticas sociais, exceto pelas políticas de saúde e educação, que se mantêm com uma estrutura própria. Entre as atribuições prescritas no artigo 41 da Lei 9.011, consta que as ações devem ser realizadas de “forma integrada e articulada”. A SMPS assume a condução das ações e fortalece a descentralização e a intersetorialidade como princípios estratégicos do modelo da gestão administrativa. Responsável por desenvolver iniciativas das secretarias temáticas nos territórios de maior vulnerabilidade social, o Programa BH Cidadania é criado ainda na estrutura da reforma administrativa do ano de 2000. São objetivos do Programa: Objetivo Geral - promover a inclusão social das famílias residentes em áreas socialmente críticas definidas para intervenção. - consolidar modelos integrados de atuação na área social, com base nos princípios da descentralização, intersetorialidade, territorialidade e participação do cidadão. Objetivos Específicos - garantir a acessibilidade aos bens e serviços de Saúde, Educação, Cultura, Esportes, Abastecimento, Assistência Social, Direitos da Cidadania. - Reduzir os fatores de risco e vulnerabilidade social das famílias. - Promover relações de solidariedade entre os membros da comunidade. - Disponibilizar um sistema único de informações cadastrais e de fluxo (de entrada/permanência/saída) das famílias beneficiadas pelo Programa (PBH, 2003, p.6). Conforme a afirmação de Mourão (2011, p. 82) os objetivos do Programa visam “a articulação das ações e serviços das políticas setoriais, diminuindo a fragmentação e concentrando esforços para solucionar as deficiências das políticas em regiões determinadas da cidade”. Ao seguir estes preceitos, o Programa BH Cidadania assume a condução da implantação de núcleos ou equipamentos públicos em territórios de vulnerabilidade social conforme indicadores sociais identificados e mapeados pelo Índice de Qualidade de Vida Urbano – IQVU. O Programa se coloca como uma estratégia com vistas a garantir a acessibilidade aos bens e serviços públicos, aproximar esses serviços da população usuária e inverter a lógica setorializada e fragmentada das ações das políticas sociais. A sua operacionalização se dará a partir de cinco eixos estratégicos: socialidade, transferência de renda, inclusão produtiva, direitos à educação e à saúde (BELO HORIZONTE, 2002, p. 19). Os equipamentos públicos estão instalados em territórios caracterizados pela situação de vulnerabilidade social, com uma população de até 5.000 famílias. O Programa assim incorpora alguns critérios da política de assistência social como a caracterização do público, a delimitação dos territórios, e ações da Proteção Social Básica, entre outros. A SMAAS é convocada a participar do Programa e assume um protagonismo com as ações da Proteção Social Básica, e principalmente com a incorporação do CRAS. Assim sendo, no município de Belo Horizonte os CRAS estão instalados nestes equipamentos públicos e incorporados ao Programa BH Cidadania. Para finalizar este capítulo, ressalta-se que pesquisar o trabalho realizado pelo CRAS significa conhecer a dinâmica de funcionamento e a atividade de trabalho realizada pelos trabalhadores da assistência sociais a partir do referencial dos dois eixos – gestão do PAIF e gestão territorial – que regulamentam as funções do serviço. E que a compreensão do processo de gestão do CRAS tem como pressuposto a compreensão do lugar que esta Unidade ocupa no conjunto da política de assistência social. Objeto de estudo nesta pesquisa, as atividades de trabalho realizadas pelos seus profissionais compõem um conjunto de ações planejadas, prescritas e normatizadas a partir da regulamentação federal e do desenho organizacional, conforme a realidade do município de Belo Horizonte. 4 – Gestão social e a administração pública: uma construção contra-hegemônica Quanto mais técnica torna-se a política, mais regride a competência democrática. (EDGAR MORIN) A administração floresce no período inicial da Revolução Industrial com o aprimoramento do capitalismo. Surge como suporte organizacional para melhor definir de forma racional os processos de trabalho e de produção. Mais do que “meio” tem como objetivo o cumprimento de uma finalidade que se traduz pela acumulação do capital. O contexto histórico é marcado pelo desenvolvimento produtivo e influenciado pelo caráter político a serviço dos interesses econômicos. Identifica-se na origem das ciências administrativas um forte vínculo ideológico com a política econômica hegemônica, fato este que vai caracterizar a abordagem nos diversos campos de atuação. Estudos que envolvem as ciências administrativas apontam para reflexões que afirmam não ser a organização a definição do objeto exclusivo de conhecimento da área. Assim sendo, a ciência da administração define o estudo da gestão como seu objeto do conhecimento, pois (...) cabe à administração estruturar formas de gestão que viabilizem os objetivos da organização. Por essa razão, a gestão é apenas um dos conteúdos que dão forma institucional e essência às organizações. Então, podemos concluir que é a gestão e não a organização que caracteriza o objeto e que dá autonomia à administração enquanto um campo próprio do conhecimento (SANTOS et al, 2009, p. 930). A administração tradicional tem na sua literatura como definição clássica da gestão o processo gerencial, o que posiciona a gestão numa função “meio” (FRANÇA FILHO, 2008). Ao considerar que todo conceito científico ou que toda intervenção na realidade social envolve relações sociais, a condução processual da gestão está direcionada para uma determinada finalidade. Por ser a gestão o objeto da administração, tem como propósito organizar as relações sociais de produção e distribuição para um melhor bem-estar da humanidade. Resta-nos saber, agora, qual o método ou quais os métodos que melhor servem àquele propósito. Ao tomar o método como o caminho pelo qual se atinge um determinado objetivo, (...) pensamos a clareza do método que possa melhor servir aos interesses do processo civilizatório da humanidade (SANTOS, et al, 2009, p. 931). Não sendo possível considerar uma suposta neutralidade no processo gestionário, o método utilizado é escolhido de acordo com a finalidade que se pretende alcançar. A finalidade da gestão está tradicionalmente direcionada por uma concepção ideológica a serviço do capital, “a gestão é entendida como um processo que visa o uso racional dos recursos para a realização de fins econômicos” (CARRION e CALOU, 2008, p. 15). Essa concepção focalizada no desenvolvimento meramente econômico refere-se à administração de empresas como sustentáculo organizacional do capitalismo, direcionada para a economia de mercado. Atende aos propósitos da acumulação capitalista e assegura a reprodução das riquezas materiais sobre as dimensões humanas relacionadas aos aspectos sociais, culturais, ambientais (CARRION e CALOU, 2008; TENORIO, 2008). Em oposição a esse direcionamento do conceito de gestão empregado no campo das ciências administrativas clássica, a gestão social se insurge “contra esta visão reducionista do sujeito histórico, (...) que se centra no processo de desenvolvimento na proteção da vida, na preservação do meio ambiente, no atendimento das necessidades e no desenvolvimento das potencialidades humanas” (CARRION e CALOU, 2008, p. 15). A inversão de uma lógica organizacional voltada para as instituições exige uma mudança nos mecanismos de tomada de decisões com maior participação dos envolvidos, transparência e democracia, características que se contrapõem a um posicionamento historicamente hegemônico centrado na rigidez dos processos organizacionais e na “racionalidade administrativa”. Nesse sentido, a gestão social se estabelece como um processo contra-hegemônico no âmbito das ciências administrativas. 4.1 – A administração pública e a transição entre os modelos de gestão pública No campo da administração pública, os modelos de gerenciamento da máquina estatal têm, ao longo dos anos, modificado os processos organizacionais. Ideologicamente inserido na lógica da produção e acumulação capitalista, a gestão pública recebe influências da gestão privada e introduz no seu interior modelos organizacionais transpostos da iniciativa privada. A gestão pública “diz respeito àquele modo de gestão praticado no seio das instituições públicas de Estado nas suas mais variadas instâncias” (FRANÇA FILHO, 2008, p. 32). A administração pública tem a prerrogativa de instrumentalizar e organizar o funcionamento da estrutura de Estado. Se na gestão privada a finalidade é o lucro e a “satisfação pessoal”, a finalidade da gestão pública é o “bem público”. Em tese seria uma melhor organização das instituições públicas para a oferta de serviços públicos para os cidadãos. 4.1.1 – Administração Pública Burocrática A administração pública se estruturou por um longo período referenciado pelo modelo burocrático sistematizado por Max Weber no período compreendido entre os séculos XIX e XX. No entanto, conforme afirma Secchi (2009), (...) desde o século XVI o modelo burocrático já era bastante difundido nas administrações públicas, nas organizações religiosas e militares, especialmente na Europa. Desde lá o modelo burocrático foi experimentado com intensidades heterogêneas e em diversos níveis organizacionais, culminando com sua adoção no século XX em organizações públicas, privadas e do terceiro setor (SECCHI, 2009, p. 350). Os estudos realizados por Weber consolidaram as bases teóricas e científicas da burocracia alicerçadas no princípio da racionalidade e da legalidade. Segundo Weber, a organização burocrática é marcada por uma rígida hierarquia administrativa, pela formalidade, por relações de impessoalidade no ambiente organizacional, por definição de normas e por ter a meritocracia como valor atribuído ao profissionalismo. Na sua descrição sobre os modelos ideais típicos de dominação, Weber identificou o exercício da autoridade racional-legal como fonte de poder dentro das organizações burocráticas. Nesse modelo, o poder emana das normas, das instituições formais, e não do perfil carismático ou da tradição (SECCHI, 2009, p. 351). Idealizado sob a perspectiva positivista, o modelo burocrático reafirma o princípio taylorista da divisão técnica do trabalho com a dissociação entre a concepção e a execução, além de condicionar a eficiência racional a um controle no cumprimento das prescrições e normas. O resultado do excesso de rigidez das normas na regulação dos procedimentos no trabalho incide diretamente sobre a motivação e a criatividade dos trabalhadores. Para Secchi (2009) O modelo burocrático weberiano estabeleceu um padrão excepcional de expertise entre os trabalhadores das organizações. Um dos aspectos centrais é a separação entre planejamento e execução. Com base no princípio do profissionalismo e da divisão racional do trabalho, a separação entre planejamento e execução dá contornos práticos à distinção wilsoniana entre a política e a administração pública, na qual a política é responsável pela elaboração de objetivos e a administração pública responsável por transformar as decisões em ações concretas (SECCHI, 2009, p. 352). Há controvérsias quanto aos estudos que Max Weber realizou a respeito da burocracia. Se para alguns o autor foi um defensor desse modelo, outros afirmam que Weber apenas o identificou e revelou suas características não sendo um ideólogo e sim um crítico do sistema burocrático. Paes de Paula (2008) afirma que “para Tragtenberg, Weber não estuda a burocracia para salientar suas virtudes organizacionais; pelo contrário, o faz para refletir como podemos nos defender de seu avanço implacável e de sua quase impossibilidade de destruição” (TRAGTENBERG apud PAES DE PAULA, 2008, p. 957). Não se trata de uma defesa da concepção weberiana, mas de uma concordância quanto ao diagnóstico e a análise minuciosa da burocracia, no entanto, limitada apenas como um fenômeno técnico e organizacional. Nesse ponto, a análise de Weber é restrita e incompleta, pois a burocracia “é acima de tudo um fenômeno de dominação e um sistema de condutas significativas. (...) Ela própria monopoliza os poderes econômico e político, tendendo a se tornar autônoma como um poder acima da sociedade” (TRAGTENBERG apud PAES DE PAULA, 2008, pp. 957-958). Consolidado como um modelo organizacional, a burocracia não se restringiu apenas à administração pública e se estendeu, com os seus princípios, para todos os setores da sociedade. O modelo burocrático serviu como base organizacional para o crescimento do capitalismo e ditou regras de funcionamento para as instituições com as mais diversas características. A iniciativa privada incorporou o modelo burocrático com sua prática gerencial ao sistema de produção industrial associado ao modelo tayloristafordista e ditou o ritmo do crescimento econômico e da produtividade por um longo período. Vale destacar que o referido modelo não se restringiu apenas aos países capitalistas. Serviu também como base da organização do socialismo real no bloco soviético, fato este que vem demonstrar a sua abrangente influência. Após presenciar ao longo do século XX uma série de crises econômicas do capitalismo internacional, o modelo organizacional burocrático apresentou sinais de esgotamento. O modo capitalista de produção apoiado no binômio taylorismo-fordismo entrou em processo de decadência. Esse modelo até então responsável pela organização do capital e do trabalho teve como características a produção em massa, ganhos de produtividade, acúmulo de capital, consequente aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores (especialmente nos países desenvolvidos) e a regulação social com a pactuação por garantias e proteções sociais (welfare state) (LUSTOSA DA COSTA, 2010). O autor elenca questões para análise que contribuem para a compreensão do momento: Esse sistema entrou em crise, com a redução dos ganhos de produtividade das economias industriais sem diminuição nas altas salariais, reduzindo as taxas de lucro. A necessidade de aumento da produtividade, com a adoção de novos sistemas de produção e práticas gerenciais, gerou desemprego e redução da capacidade de pressão dos sindicatos, minando o poder dos trabalhadores e as bases de financiamento do welfare state. (LUSTOSA DA COSTA, 2010, p. 249) Outras avaliações citadas parecem complementar as análises para a compreensão da situação com a afirmação de “que a crise de racionalidade do Estado capitalista decorre da contradição entre a necessidade de proteger a propriedade privada (e a acumulação do capital) e, ao mesmo tempo, cumprir funções sociais (de caráter redistributivo)” (HABERMANS apud LUSTOSA DA COSTA, 2010, p. 248). A crise no sistema produtivo e financeiro internacional atinge diretamente a capacidade gerencial do Estado e ganha contornos de uma crise de dimensões políticas nos países. Assim Lustosa da Costa (2010) sintetiza: (...) a crise do Estado é, ao mesmo tempo, uma crise de regulação, uma crise de governabilidade e uma crise de democracia, que se manifesta: - na perda de sua capacidade de regular as relações entre economia e sociedade, as transferências de renda dentro da sociedade e os conflitos distributivos a elas inerentes; - na redução dos seus graus de liberdade para formular políticas públicas e coordenar decisões econômicas; e - na reconfiguração da cidadania, pela perda de centralidade do trabalho como fundamento das identidades individuais e coletivas (LUSTOSA DA COSTA, 2010, p. 249). Sem conseguir dar respostas efetivas à crise internacional que debilitava a economia, “o modelo burocrático weberiano foi considerado inadequado para o contexto institucional contemporâneo por sua presumida ineficiência, morosidade, estilo autorreferencial, e descolamento das necessidades dos cidadãos” (SECCHI, 2009, p. 349). 4.1.2 – Administração Pública Gerencial Durante a década de 1980, sob forte efeito da crise fiscal, organismos financeiros internacionais juntamente com países capitalistas centrais estabeleceram novas regras para o funcionamento do sistema financeiro global e um repertório de medidas direcionadas à reformulação das atividades governamentais de caráter liberalizante. O chamado “Consenso de Washington” passou a ditar o novo contrato internacional quanto à circulação e a globalização do capital financeiro ao inaugurar o modelo neoliberal na economia. O receituário de medidas destinadas ao funcionamento da máquina pública dos países incluía (e ainda inclui) iniciativas de reformulação do modelo gerencial e da gestão administrativa, já em processo de implementação pelos governos dos EUA e Inglaterra. Surge, assim, o gerencialismo como modelo de gestão pública em substituição ao modelo burocrático weberiano. Tem como origem características do “ufanismo americano” e da “tradição vitoriana”, “em ambos os países, o movimento gerencialista no setor público é baseado na cultura do empreendedorismo, que é um reflexo do capitalismo flexível (...) (PAES DE PAULA, 2005, pp. 37-38)21. O modelo de gestão que estrutura a administração pública gerencial importa princípios e ferramentas de gestão da iniciativa privada para sua transposição no setor público, como a reengenharia organizacional e programas de qualidade, com ênfase nos resultados (PAES DE PAULA, 2005; SECCHI, 2009). Secchi (2009) afirma que: A administração pública gerencial ou nova gestão pública (new publicmanagement) é um modelo normativo pós-burocrático para a estruturação e a gestão da administração pública baseado em valores de eficiência, eficácia e competitividade (SECCHI, 2009, p. 354). Influenciado pelo projeto neoliberal implementado pelo sistema financeiro internacional, a reforma do Estado brasileiro segue princípios e ferramentas da administração privada, adotando um “estilo pragmático de gestão pública” (SECCHI, 2009). O Brasil passava por um período instável nos primeiros anos da década de 1990 com sua economia desgastada pela crise fiscal internacional, diante de uma baixa capacidade de governabilidade e de baixa credibilidade interna. A reforma do aparelho do Estado e a sua instrumentalização por meio do modelo da administração pública gerencial introduzida na segunda metade da década 1990 fortalecem o projeto hegemônico de desenvolvimento. Com o objetivo de implementar a reforma nesses moldes nas estruturas do Estado brasileiro, ganha força eleitoral um bloco de partidos políticos com as seguintes proposições: “a estratégia de desenvolvimento dependente e associado; as estratégias neoliberais de estabilização econômica; e as estratégias administrativas dominantes no cenário das reformas orientadas para o mercado” (PAES DE PAULA, 2005, p. 38). A onda neoliberal aporta no Brasil de forma definitiva com o receituário determinado pelo Consenso de Washington “que nos obrigaram a repensar o conceito de gestão pública. (...) Significava entender a Administração Pública não mais como um meio à contribuição ao desenvolvimento do país, mas apenas como um instrumento de regulação do mercado” (TENÓRIO, 2008, p. 39). 21 No campo da organização da produção, o modelo taylorista-fordista, em crise, também foi substituído por modelos de organização e gestão flexíveis, caracterizados pelo modo de produção sustentado no modelo toyotista com maior fluidez na produção e no capital. A implantação da reforma da estrutura pública é definida pelo Plano Diretor da Reforma do Estado elaborado pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado – MARE e divide as atribuições estatais em dois blocos: - (...) as “atividades exclusivas” do Estado: a legislação, a regulação, a fiscalização, o fomento e a formulação de políticas públicas, que são atividades que pertencem ao domínio do núcleo estratégico do Estado, - (...) as “atividades não-exclusivas” do Estado: os serviços de caráter competitivo e as atividades auxiliares ou de apoio. No âmbito das atividades de caráter competitivo estão os serviços sociais (e.g. saúde, educação, assistência social) e científicos, que seriam prestados tanto pela iniciativa privada como pelas organizações sociais que integrariam o setor público não-estatal (PAES DE PAULA, 2005, p, 38). Configuram-se como marcas desse modelo as privatizações, a condução do Estado-mínimo, a transferência das responsabilidades para a sociedade civil no enfrentamento às questões sociais, e o Estado como instrumento de regulação do mercado ocupando-se da política macroeconômica (MAIA, 2005; PAES DE PAULA, 2005; TENÓRIO, 2008). A administração pública gerencial caracteriza-se pelo centralismo com o foco na estrutura e na eficiência da gestão, características estas com ênfase na dimensão técnica em detrimento dos processos políticos (PAES DE PAULA, 2005). Ao analisar a reforma neoliberal, Maia (2005b, p.5) afirma: “Fica plenamente comprovada a força do capital à medida que sua reestruturação produtiva determina a direção da reestruturação da vida da sociedade e de suas instituições (...)”. Nesse período o país assistiu ao desmonte da máquina pública com a diminuição contínua da estrutura do aparato estatal, que se exime de prerrogativas constitucionais consideradas estratégicas no campo social como nas políticas de saúde e assistência social, que compõem a seguridade social. Ocorre um processo de desresponsabilização do Estado e de transferência de atribuições para a sociedade civil e o terceiro setor na condução das políticas sociais e no enfrentamento às expressões da questão social, “com isso, o terceiro setor acaba constituindo-se em uma importante mediação funcional e instrumental do capital, em torno da qual se explicita a tensão público-privada, cuja hegemonia se coloca nos processos de privatização” (MONTAÑO apud MAIA, 2005b, p. 4). As privatizações de empresas públicas tornam-se marca registrada na implantação desse modelo e o país assiste à liquidação do patrimônio público sem um controle social nas operações. Trabalhadores passaram por um tenebroso inverno com o achatamento salarial e conviveram ainda com altas taxas de desemprego no país. As medidas na área econômica geraram, como consequência, um agravamento das condições sociais com um aumento da pobreza e da desigualdade social. Sob o manto de uma reforma administrativa na estrutura do Estado, a reforma neoliberal ditou mudanças profundas e de graves consequências para a população, o que revela como a finalidade política é decisiva na formulação de um modelo de gerenciamento público. A reforma do Estado é, acima de tudo, uma questão política e, como tal, deve ser tratada (Nogueira, 1998 e 2004). Há uma tendência entre os reformadores gerencialistas a tratá-la como uma questão “técnica”, que deve ser objeto de políticas pragmáticas. Segundo esse ponto de vista, os limites da intervenção do Estado no domínio econômico são ditados por critérios de eficiência; o equilíbrio fiscal de curto e longo prazos é um objetivo em si mesmo imposto pela racionalidade econômica; a política monetária e as atividades de regulação devem ser imunes à interferência nefasta dos interesses políticos; a gestão por resultados é a culminação do processo de racionalização da administração pública (NOGUEIRA apud LUSTOSA DA COSTA, 2010, p. 243). 4.1.3 - Administração Pública Societal22 Em contraposição ao modelo gerencialista do Estado, “experiências alternativas de gestão pública” são implantadas em governos municipais por partidos políticos de esquerda e centro-esquerda, com a participação dos movimentos populares, instaurando espaços democráticos participativos de caráter consultivo e deliberativo. A participação popular na gestão pública é a característica principal da administração pública societal (PAES DE PAULA, 2005). Os movimentos sociais no Brasil apresentam um histórico de organização e resistência no enfrentamento à ditadura militar após o golpe de 1964 que desemboca na mobilização pela redemocratização do país e na efetiva participação com a inclusão de conquistas sociais na elaboração da Constituição Federal de 1988. Os temas protagonizados pelo campo movimentalista apresentava uma heterogeneidade de questões em torno da democratização do Estado, conquistas sociais, reivindicações de melhoria dos serviços públicos e uma maior participação da sociedade civil nas decisões da vida pública (PAES DE PAULA, 2005). Nesse contexto, multiplicaram-se pelo país governos com propostas inovadoras de gestão pública, que abrigavam diferentes experiências de participação social. Essas experiências foram construídas principalmente nos governos das Frentes Populares, que começavam a ganhar maior importância no cenário político. Ampliava-se assim a inserção do campo movimentalista, que passou a atuar nos governos municipais e estaduais por meio dos conselhos de gestão 22 Administração Pública Societal é uma nomenclatura utilizada por Paes de Paula (2005) como resultado de uma sistematização de experiências de gestão pública no Brasil. tripartite, comissões de planejamento e outras formas específicas de representação (JACOBI apud PAES DE PAULA, 2005, p. 39). Para a autora, esse modelo de gestão pública está voltado para um direcionamento político em defesa dos interesses nacionais, “enfatiza a participação social e procura estruturar um projeto político que repense o modelo de desenvolvimento brasileiro, a estrutura do aparelho de Estado e o paradigma de gestão” (PAES DE PAULA, 2005, p. 41). A característica dessa nova configuração da gestão pública reposiciona o papel do Estado que “sem perder a centralidade, deixa de ter o monopólio de poder para – juntamente com a Sociedade Civil – planejar, traçar diretrizes e tomar decisões (...)” (CARRION e CALOU, 2008, p. 15). Desloca o foco nos processos de tomada de decisões, subverte a lógica no exercício do poder e resgata a utopia na afirmação de que “outro mundo é possível”. Processos democráticos e construções coletivas são categorias que proporcionam relações de confiança, aprendizagem, cooperação, produção de saber e tecnologia social. Paes de Paula (2005) nomeia essa nova concepção de gestão pública como administração pública societal. Trata-se de um modelo de administração não acabado, ainda em processo de construção, surgido na experiência brasileira como resultado do processo histórico político. A administração pública societal configura um processo de gestão social que “enfatiza a elaboração de experiências de gestão focalizadas nas demandas do públicoalvo, incluindo questões culturais e participativas” (PAES DE PAULA, 2005, p. 41). Experiências de gestão participativa ampliam-se em governos municipais em que o Estado assume uma nova organização política e exerce uma função de articulador e coordenador do espaço público junto à sociedade civil. Uma gestão compartilhada se estabelece permeada por conflitos e interesses contraditórios. A necessidade de um reposicionamento do Estado no exercício de suas funções é tema de reflexões também de Boaventura S. Santos (1999) ao sistematizar esse movimento e afirmar que “as tarefas de coordenação são antes de tudo de coordenação de interesses divergentes e até contraditórios, (...) o Estado, mais que uma materialidade institucional e burocrática, é um campo de luta política convencional.”, em que interesses privados e “despóticos” podem estar representados, mas que “as forças democráticas terão de centrar suas lutas por uma democracia redistributiva, transformando o Estado em componente do espaço público não estatal” (SANTOS, 1999, pp. 67-68). É preciso, portanto, uma combinação de democracia representativa e democracia participativa que, na visão do autor, inaugura uma mudança de paradigma quanto ao papel do Estado, o que o qualifica de “Estado como novíssimo movimento social”, pois nesse contexto “a democratização do Estado está na democratização societal e, vice-versa, a democratização societal está na democratização do Estado” (SANTOS, 1999, p. 73). Há uma convergência de propósitos nas reflexões de Paes de Paula (2005), que encontra fundamentação teórica nas análises de Santos (1999). A administração pública societal, no entanto, tem se restringido ao âmbito local em governos municipais, com experiências fragmentadas com ênfase na dimensão sociopolítica. Apresenta-se como uma mudança política histórica na relação entre o Estado e a sociedade, no entanto, pouco aborda princípios e métodos de funcionamento da estrutura administrativa e da gestão do aparato estatal. O modelo societal aponta para intencionalidade política direcionada para uma finalidade democrática, humanizante e de transformação social, que o diferencia dos modelos de administrações públicas anteriores fundamentadas em princípios do pensamento liberal. No entanto, como modelo de gestão pública apresenta ainda lacunas com relação à função “meio”, ou seja, “a administração pública societal vem elaborando alternativas para a gestão pública, mas não apresenta ainda uma proposta para a organização administrativa do aparelho do Estado (...)” (PAES DE PAULA, 2005b, p. 52), podendo ocorrer situações que levem a uma convivência híbrida do modelo societal com características de outros modelos. Para que o Estado possa realmente ser conduzido por uma gestão participativa e absorver de fato os interesses da sociedade civil é preciso readequar internamente a organização administrativa do aparato estatal com métodos e técnicas gerenciais que venham alterar a estrutura hierárquica, relações de poder, fluxos internos, canais de decisões, relação com os trabalhadores do setor público, ou seja, introduzir uma nova cultura de gerência pública e de perfil de gestores públicos. 4.1.4 – Reflexões sobre os modelos de administração pública É possível que “entre organizações e dentro de uma mesma organização, o pesquisador pode encontrar ainda diferentes graus de penetração dos diversos modelos organizacionais. (...) Eles não são, portanto, modelos de ruptura”. (SECCHI, 2009, pp. 362-365). Mesmo após a substituição de um determinado modelo por outro, aspectos anteriores continuam presentes na cultura organizacional. É comum encontrar modelos híbridos mesclados por elementos técnicos e políticos dos diversos tipos de gestão pública. Percebe-se a permanência de características da administração burocrática e até mesmo pré-burocrática como o patrimonialismo, o nepotismo, rotinas administrativas, hierarquização acentuada, incrustadas na rotina da máquina pública. Uma característica presente nos modelos burocrático e gerencialista diz respeito à dissociação “taylorista” entre ação política e a técnica administrativa, como creditar uma suposta neutralidade aos procedimentos técnicos (SECCHI, 2009). A racionalidade técnica fica evidente na formulação da administração pública gerencial com a afirmação de que “trata-se de uma nova forma de organizar e administrar o Estado, (...). Não se trata de uma forma de governar, (...) mas de saber como gerir o aparelho do Estado” (PEREIRA, 2005, p. 50). A forma de gerir é uma instrumentalização que melhor convêm à organização da máquina estatal e serve de sustentáculo para a forma de governar direcionada para cumprimento de determinada finalidade político-ideológica. O argumento acima atribui uma neutralidade política à técnica administrativa, como se fosse possível separar instrumentalização técnica de uma intencionalidade na condução política. Ainda caracterizado pela divisão social do trabalho e a hierarquização das tarefas encontra-se nos dois primeiros modelos, a dissociação entre, de um lado, o planejamento e a formulação, e de outro, a tarefa de execução, pois “ao manterem a divisão entre planejadores e executantes do trabalho, perpetuam a opressão do trabalhador e impedem sua autonomia” (TRAGTENBERG apud PAES DE PAULA, 2008, p. 950). Há uma intencionalidade em romper com essa dicotomia no modelo societal, em que um planejamento “participativo” procura envolver diversos atores e a ação técnica ganha contornos sociopolíticos (PAES DE PAULA, 2005). A participação da sociedade é outro aspecto que deve ser observado. O modelo burocrático não institui mecanismos de gestão que preveem a participação da população na estrutura do aparato estatal. Na administração pública gerencial a ênfase está na eficiência técnica e nos resultados alcançados, sendo a participação restrita e limitada às estruturas institucionais de colegiados, conselhos e câmaras setoriais. Esse modelo reafirma a prerrogativa do controle do poder executivo na formulação e nas decisões das políticas públicas, portanto “não aponta os canais que permitiriam a infiltração das demandas populares” (PAES DE PAULA, 2005, p. 43). A participação popular encontra na administração pública societal canais de fortalecimento da ação pública. Algumas experiências, ainda que majoritariamente de âmbito local, têm constituído canais de formulação e deliberação junto aos atores da sociedade civil. Essa característica reafirma o caráter de coordenação do Estado na ação pública e a democratização do espaço público tornando-o mais permeável aos interesses da população. É preciso ainda criar novos arranjos e rotinas institucionais para que venha permitir que a máquina estatal absorva as demandas da população e contribua “para a construção de uma cultura política democrática nas relações entre o Estado e a sociedade combinando ação e estrutura, política e técnica” (PAES DE PAULA, 2005, p. 44). No modelo da administração pública societal a participação social possibilita que o controle da ação pública seja exercido pela própria população por meio do “controle social da sociedade civil sobre o Estado na perspectiva de sua democratização” (RAICHELIS e EVANGELISTA, 2009, p. 204). Ao participar do processo de formulação e de tomadas de decisões, a população adquire um conhecimento do aparelho estatal, de seu funcionamento, o que a instrumentaliza para monitorar a ação pública. No modelo burocrático o controle é caracterizado pelas relações de “formalidade e de impessoalidade” que regem a conduta dos agentes públicos nas relações “intraorganizacionais e da organização com o ambiente” (SECCHI, 2009, p. 362). A função controle na administração pública gerencial é exercida pelo mecanismo de controle das metas e resultados das políticas públicas. O modelo de administração pública tem uma vinculação estreita com o direcionamento ideológico associado a um projeto político de um determinado grupo hegemônico no poder. Fica evidente a impossível dissociação da ideologia política na instrumentalização do modelo de administração pública. Portanto, o estudo a respeito dos diversos tipos de gestão pública vem revelar que a forma como o Estado se organiza tem uma vinculação direta com o projeto e a condução política do grupo majoritário à frete dos governo; isto é, há uma relação indissociável entre a administração e a política. Como afirma Santos (et al, 2009): A administração política, então, tem como ocupação principal a organização e gestão do trabalho humano em sua relação com a natureza e consigo mesmo, com o intuito de libertá-lo num maior grau relativo possível. (...) cabe à administração política em criar as melhores formas de gestão a partir dos demais conhecimentos especializados — físico, matemático, sociológico, político, epistemológico etc. — para criar as condições menos onerosas possíveis do desiderato de bem-estar que a humanidade está determinada. (SANTOS, et al, 2009, p. 941). Os modelos de administração pública aqui apresentados de forma sintética têm o propósito de explicitar as características dos instrumentos de gestão pública e identificar uma demarcação contraditória entre as concepções. Conhecer os diferentes modelos de administração pública é de fundamental importância para propor avanços nos instrumentos de gestão e na condução dos processos de trabalho no âmbito do setor público. Certamente na literatura especializada encontra-se registro de outras nomenclaturas23 e variações que mesclam características e técnicas que resultam em novas roupagens administrativas e políticas. 4.2 – Governança pública: avanços e contradições Ao abordar o tema relativo à administração pública é presença constante na literatura o termo “governança”. Diante desse fato procuraremos fazer uma aproximação quanto a sua polissemia conceitual e identificar o seu emprego na gestão pública. O termo governança, tradução para o português de governance, foi introduzido no debate da política pública internacional pelo Banco Mundial, como representação da capacidade do Estado em conduzir de forma eficiente a política pública, sendo que a “capacidade governativa não seria mais avaliada em função apenas dos resultados das políticas governamentais, passando a significar a forma pela qual o governo exerce seu poder” (DINIZ, 1997, p. 37). Segundo Leila L. Frischtack (1994), consultora do Banco Mundial, havia a necessidade de fazer uma diferenciação conceitual e de conteúdo com o termo governabilidade. Assim, governabilidade poderia ser caracterizada pelas condições institucionais mais gerais do Estado o que inclui a configuração quanto ao exercício de poder, a sua organização política, “a forma de governo, as características dos sistemas partidário e eleitoral, entre outras” (DINIZ, 1997, p. 38). Portanto, para a autora, essa categorização não seria suficiente para analisar questões relativas à capacidade do Estado em implementar políticas públicas, em mensurar metas e resultados e em dimensionar o envolvimento e a participação da sociedade civil nas decisões da vida pública, características mais apropriadas à definição do termo governança. Este seria mais apropriado por se referir à capacidade do Estado em conduzir a política pública no “exercício dinâmico do ato de governar”, que envolve as seguintes dimensões: “capacidade de coordenação, capacidade de liderança, capacidade de implementação e credibilidade” (FRISCHTACK, 1994, p. 196). A introdução do 23 Ver SECCHI, Leonardo. Modelos organizacionais e reformas da administração pública. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 43, n. 2, abr. 2009. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script >. acessos em 10 abr. 2011. doi: 10.1590/S0034-76122009000200004. termo governança no debate político desafia o perfil tradicional de governantes e gestores na condução da administração pública brasileira. Para Gohn (2001, p. 38) “o conceito de governança alterou o padrão e o modo de pensar a gestão de bens públicos, antes restrita aos atores presentes na esfera pública estatal”. Fischer (1996, p.19) define a governança “como um conceito plural, que compreende não apenas a substância da gestão, mas a relação entre os agentes envolvidos, a construção de espaços de negociação e os vários papéis desempenhados pelos agentes no processo”. Portanto, a governança, além de envolver processos administrativos ou gerenciais, envolve principalmente dimensões de caráter relacional e político, e assume uma estratégia de ação no desenvolvimento da política pública. Na iniciativa privada o termo governança tem sido empregado com a nomenclatura de governança corporativa por envolver as relações entre as organizações de mercado e novas práticas na gestão privada, também denominados como stakeholders. Encontram-se também na literatura outras configurações e denominações do termo como a governança pública conforme a condução de processos e arranjos organizacionais com o envolvimento dos diversos setores (Estado, sociedade civil e iniciativa privada), ou seja, por meio de redes ou das “parcerias tri-setoriais24”. A polissemia que o termo governança recebe é alvo de constantes debates como os realizados por Carrion e Bauer (2011). O termo governança é empregado em situações distintas e pode receber um direcionamento em duas vertentes: uma delas diz respeito à “eficácia nos processos administrativo-gerenciais, e propõe a transposição de métodos, técnicas, processos e critérios de avaliação e de gestão próprios do setor privado, para o setor público (...)” (CORONADO apud CARRION e BAUER, 2011, p. 4/19). Esta utilização recebe forte influência da concepção gerencialista. Retornar à origem do conceito de governança possibilita uma reflexão crítica quanto à intencionalidade e ao propósito político de sua utilização. Introduzida no debate pelas agências internacionais e (...) sob pressão do Banco Mundial que aponta a “boa governança”, ou governança “democrática” como condição de base para a promoção do “desenvolvimento” e “luta contra a pobreza”, o termo se tornou sinônimo de incorporação dos princípios de flexibilidade, eficácia, integração, focalização e externalização, que nortearam a reengenharia do setor privado nas décadas de 1970, e 1980, e nos anos seguintes à reengenharia do próprio Setor Público (...) sob cuja influência serão implantados os processos de descentralização e de 24 Ver em TEODÓSIO, A. S. Parcerias Tri-Setoriais: em busca de seus desdobramentos sobre a cidadania na América Latina. In: IX CONGRESSO ANUAL DE INVESTIGACIÓN SOBRE EL TERCER SECTOR EN MÉXICO. 2009. gestão por metas e resultados, que irão nortear o novo desenho institucional do Estado brasileiro (CARRION e BAUER, 2011, p. 5/19). Outra vertente direciona a compreensão do termo para um conteúdo permeado por princípios democráticos, com um chamado para a participação cidadã da sociedade civil na tomada de decisões na esfera pública não estatal em temas de interesse da maioria da população. Nessa vertente, governança (...) finca sua hipótese sobre o papel democrático ou democratizador que exerce o governo nos assuntos públicos, entendido como mediação de relações entre o Estado e a sociedade, através de instituições, mas também mediante a articulação do poder em rede ou fluxos sociais (...). Por isso, a ênfase metodológica se situa na participação cívica, na construção da cidadania a partir de diversos âmbitos que transitam da escala global à local (...) (CORONADO apud CARRION e BAUER, 2011, p.4/19). Nesses termos o conceito de governança, apesar de recheado por procedimentos administrativos da gestão privada e sustentáculo para o desenvolvimento econômico, pode ser utilizado com outro propósito e se referir ao fortalecimento do processo democrático, de participação, inclusão, de desenvolvimento social e das potencialidades humanas. Governança recebe denominações diversas e transita por escalas territoriais adicionadas à sua estratégia de ação. O âmbito local se estabelece como um espaço privilegiado para o exercício de alteração dos modelos verticais tradicionais da ação política. Carrion e Bauer (2011) exploram o conceito de governança territorial elaborado por Gohn: (...) governança local é um conceito híbrido que busca articular elementos do governo local com os de poder local. Ele se refere a um sistema de governo em que a inclusão de novos atores sociais é fundamental, por meio do envolvimento de um conjunto de organizações públicas (estatais e não-estatais) e organizações privadas. (...) A governança local diz respeito ao universo das parcerias, a gestão compartilhada entre diferentes agentes e atores, tanto da sociedade civil como da sociedade política (GOHN apud CARRION e BAUER, 2011, p. 4-19). Os autores citados no debate em torno do tema apontam para o seu uso ideológico e levantam um questionamento quanto à intencionalidade política da proposta, diante de situações passíveis de uma “confluência perversa (...), ou seja, de situações em que uso de palavras comuns acoberta projetos políticos distintos - no sentido gramsciniano do temo” (DAGNINO apud CARRION e BAUER, 2011, p. 5-19). Há um confronto entre dois campos políticos de concepções distintas, sendo eles o “projeto democratizante” que procura estabelecer uma nova relação entre a sociedade civil e o Estado no fortalecimento da esfera pública com a participação social, e o “projeto neoliberal”, que em nome de uma suposta modernização do Estado promoveu uma avalanche de privatizações no setor público e transferiu para a sociedade civil a responsabilidade pela proteção social. A confluência perversa reside no fato de que ambos os projetos, cada um deles articulando campos heterogêneos, utilizam um discurso comum, embora em direções políticas opostas em muitos casos antagônicas, de defesa de uma sociedade civil ativa e propositiva, de incorporação do discurso de cidadania, da participação e do fortalecimento da sociedade civil (RAICHELIS e EVANGELISTA, 2009, p. 210). A mesma nomenclatura pode ser utilizada em situações e configurações diversas e ainda com finalidade voltada para objetivos diferenciados e antagônicos. O uso político em torno de um propósito simbólico pode promover uma adesão de setores, sem a devida transparência quanto às reais intenções e com isso acobertar o uso ideológico de uma proposta. Situações como essa pode gerar uma “tal confusão semântica que impossibilita à maioria das pessoas identificarem a ideologia subjacente ao projeto ao qual estão aderindo” (CARRION e BAUER, 2011, p. 5-19). Os argumentos empregados para qualificar a governança pública consideram a capacidade do Estado em conduzir sua prática política por meio do consenso. Tem se tornado comum o uso ideológico de termos que causam certa confusão conceitual na sociedade e servem a interesses políticos e partidários. O processo de abertura na condução do Estado para a participação controlada da sociedade civil é frequentemente usado para justificar os “consensos” forjados. Segundo Gohn (2001, p. 15), ocorre uma participação caracterizada por uma concepção do tipo liberal (corporativa ou comunitária), “que busca sempre a constituição de uma ordem social que assegure a liberdade individual”. A participação pode adquirir uma conotação política “associada a processos de democratização (...), mas também pode ser utilizado como discurso mistificador em busca da mera integração social de indivíduos, isolados em processos que objetivam reiterar os mecanismos de regulação e normatização da sociedade (...)” (GOHN, 2001, p. 14-15). A abordagem do termo “consenso” como uma conquista de posições no jogo político, traz consigo o seu uso ideológico. Simionatto (2011) e Coutinho (2007) alertam de como as forças hegemônicas na sociedade utilizam ideologicamente os “aparelhos privados de hegemonia” para o “controle do consenso”. Em determinadas situações pode-se deparar com consensos forjados de forma sutil, sem o emprego da força, com a utilização de ideias e argumentos, pela dominação cultural conforme definição de Gramsci. Na luta pela manutenção do poder de Estado pela classe social dominante, busca-se o controle da direção política pela conquista do consenso e assim ampliar a base social de sustentação. Nesse processo “a classe dominante repassa a sua ideologia e realiza o controle do consenso através de uma rede articulada de instituições culturais, que Gramsci denomina ‘aparelhos privados de hegemonia’, incluindo: a escola, a Igreja e os meios de comunicação” (SIMIONATTO, 2011, p. 49; grifo meu). Consensos podem ser usados como resultantes do princípio das harmonias administrativas e políticas fundadas na abordagem positivista das relações sociais que considera o conflito como fator desintegrador da sociedade e se caracterizam pela “negação ou manipulação dos conflitos, pela utilização de mecanismos diretos ou indiretos de controle social” (TRAGTEMBERG apud PAES DE PAULA, 2008, p. 959). O controle social nesse caso específico é entendido como o controle do Estado ou do capital sobre a sociedade e os cidadãos. Ao dissimular a tensão entre os diferentes interesses, perpetuam-se as relações de dominação e reduzem-se as possibilidades de alcançar maior autonomia e emancipação política dos cidadãos (TRAGTEMBERG apud PAES DE PAULA, 2008). O projeto neoliberal de Estado apresenta uma tendência em negar o conflito e utiliza-se do consenso pelo viés da adesão. A sua atuação é regida por uma contratualização de cunho liberal individualista regida não pela concepção do contrato social entre categorias de interesses divergentes que “não reconhece o conflito e a luta como elementos estruturais do combate. Pelo contrário, os substitui pelo assentimento passivo a condições supostamente universais consideradas incontornáveis” (SANTOS, 1999, p. 44). Há um nítido movimento que incorpora a lógica do setor privado na vida pública e especificamente no setor público. A capacidade do exercício da governança democrática e participativa retoma o debate relativo às novas formas de organização do Estado e sua função de regulação social. Boaventura Santos (1999) afirma que: Compete ao Estado coordenar as diferentes organizações, interesses e fluxos que emergiram da desestatização da regulação social. A luta democrática é assim, antes de mais, uma luta pela democratização das tarefas de coordenação. Enquanto antes se tratou de lutar para democratizar o monopólio regulador do Estado, hoje é preciso, sobretudo lutar pela democratização da perda desse monopólio. (...) As tarefas de coordenação são antes de tudo coordenação de interesses divergentes e até contraditórios (SANTOS, 1999, p. 68). Diferentemente da concepção de Estado como governo, seu aparelho coercitivo e suas instâncias administrativas, “a sociedade civil, sociedade política e sociedade econômica são esferas constitutivas da realidade social” (SIMIONATTO, 2011, p. 73). As mudanças no âmbito do Estado devido às novas exigências de reorganização e regulação social têm na participação da sociedade civil um instrumento de fortalecimento da vida pública. No espaço público da sociedade civil se manifestam interesses convergentes como também interesses em confronto, permeada por conflitos e contradições, o que a torna uma arena dinâmica e privilegiada da disputa política. “A sociedade civil compreende o conjunto de relações sociais que engloba o devir concreto da vida cotidiana, da vida em sociedade” e se constitui no “espaço de disputa pela hegemonia” (SIMIONATTO, 2011, p. 71). No interior da sociedade civil pode tanto servir à manutenção da ordem social hegemônica como se constituir em um espaço de criação alternativa e formulação de uma nova ordem cultural, política e social. Para Gramsci, a sociedade civil é um espaço da luta política, da luta de classes, é um momento do que ele chama de “Estado ampliado”. O Estado não necessariamente é o mal. Se o Estado for conquistado pelas forças progressistas, ele se torna progressista. E, mesmo que ainda sob controle da classe dominante, é possível introduzir mudanças importantes no Estado, que não é instrumento direto de uma classe, mas resultado da correlação de forças, ainda que com predomínio de uma classe (COUTINHO, 2002, p. 16). A sociedade civil é um campo em que diversas forças se manifestam e se colocam em disputa no intuito de fazer prevalecer seus interesses. É nesse espaço público que as forças hegemônicas atuam na cooptação de grupos e classes sociais disseminando sua ideologia. Por outro lado, é também o espaço em que lideranças autênticas identificadas com as classes subalternas e os movimentos sociais de base emergem e promovem uma disputa contra-hegemônica de resistência à ordem estabelecida. A hegemonia necessita da contra-hegemonia – a hegemonia e a contrahegemonia devem ser vistas como “movimentos duplos simultâneos” formados em reciprocidade – a hegemonia dá forma à contra-hegemonia, e os esforços contra-hegemônicos levam as forças hegemônicas a realinharem-se e a reorganizarem-se. (...) A sociedade civil é o espaço criativo, de onde grupos subalternos, motivados por intelectuais, se podem unir, formar um bloco histórico, e travar uma guerra de posição contra hegemônica para alterar a sociedade (KATZ, 2007, p. 4). A transformação do modo de regulação social tem exigido uma mudança na forma de organização política do Estado que passa a assumir a função de articulador desse processo e que, para ser viabilizado, vê-se desafiado a criar novas instâncias de gestão e fluxos organizacionais. A democracia representativa como mecanismo tradicional da estrutura do Estado não mais responde sozinha pela representação dos interesses sociais, sendo, portanto, imprescindível instituir canais que viabilizem o exercício da democracia participativa. A suposta “despolitização” do Estado pelo fato de não ser mais o único condutor do processo abre uma perspectiva para a sua “repolitização” conforme o novo marco. Ao exercer a coordenação do processo de gestão pública e, assim, exposto a interesses antagônicos, instaura-se “um campo de luta política muito menos codificada e regulada que a luta política convencional” (SANTOS, 1999, p. 67). 4.3 – Gestão social e gestão pública: uma aproximação possível A origem da gestão social está ligada ao processo histórico de organização e mobilização social e política no Brasil a partir da década de 1960. A tradição mobilizatória brasileira alcança um marco na luta pela implantação das reformas de base protagonizadas pelos movimentos sociais, organizações estudantis, setores culturais e intelectuais, movimento sindical durante o governo do então Presidente da República João Goulart. Segundo Semeraro (2007) (...) as mobilizações que “sacudiram” o Brasil antes de 1964 apresentavam condições mais favoráveis para mudar os rumos do país. Suas intensas atividades não apenas desvendavam as contradições estruturais e faziam compreender as raízes profundas da dominação, mas com sua força organizativa e suas articulações políticas esboçavam um projeto alternativo de sociedade (SEMERARO, 2007, p. 96). A reação conservadora das elites nacionais a esses movimentos desembocou no golpe militar de 1964, que causou um retrocesso político no país com a interrupção do processo democrático e a implantação de uma ditadura militar. Os movimentos sociais de resistência entraram para a clandestinidade e se refugiaram no campo e nas periferias das cidades com o apoio das igrejas progressistas, principalmente da Igreja Católica pelas pastorais e nas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. O retrocesso nas conquistas sociais torna-se uma realidade e o movimento de resistência retoma o caminho das discussões dos problemas coletivos originários do cotidiano da vida nas comunidades, “inspirada pelos ideais da teologia da libertação e da educação popular” (PAES DE PAULA, 2005, p. 39). Nesses ambientes alternativos era retomada a prática da mobilização social e da participação política ativa com o trabalho educativo e de formação de novas lideranças populares. A educação política torna-se uma ação de caráter transformador e a concepção da “libertação” como reação não somente à ditadura como também à ideologia dominante de âmbito político e cultural na perpetuação da subalternidade de classes. Intelectuais e educadores posicionam-se alinhados às lutas populares e direcionam sua prática para uma atuação política nas comunidades de base, de forma que “em plena ditadura, assistimos a um florescimento espantoso de práticas políticopedagógicas inovadoras e de criações teóricas em diversos campos que tiveram na ‘libertação’ sua temática aglutinadora” (SEMERARO, 2007, p. 96). Representada pelo pensamento de Paulo Freire a educação popular consolida-se como prática políticopedagógica de formação. Paulo Freire afirma ser impossível uma educação neutra, desprovida da natureza política. A educação é tomada como uma ação política e “do ponto de vista crítico é tão impossível negar a natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político” (FREIRE, 1986, p. 26). O processo educativo assim como todo ato político, exige um direcionamento, sendo preciso ter clareza se “a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê (...). Entendemos então, facilmente, não ser possível pensar, sequer, a educação, sem que esteja atento à questão do poder” (FREIRE, 1986, p. 27). A educação popular é caracterizada como sendo “aquela que é produzida pelas classes populares ou para as classes populares, em função de seus interesses de classe (...)”, entendidas como classes populares “aquelas que vivem numa condição de exploração e dominação no capitalismo, sob suas múltiplas formas (...)” (WANDERLEY apud FLORES, 1986, p. 35). A educação popular fundamentada no ideário marxista encontra como aliados setores da Igreja Católica inspirados na Teologia da Libertação e faz dessa junção um impulso contra-hegemônico no enfrentamento da ditadura militar, das desigualdades e pobreza resultante da exploração do capitalismo periférico (PAES DE PAULA, 2005, SEMERARO, 2007). A educação assume um caráter de formação política de perspectiva libertadora e se multiplica pelo país sob diferentes formas de organização com atuação de cunho reivindicatório em torno das mais variadas manifestações sociais. Essas organizações se caracterizavam pela luta por melhores condições de trabalho e de vida, mas também “por um outro projeto de civilização. (...) Era necessário aprender a construir o próprio projeto de vida, a narrar a própria história e a afirmar a própria ‘alteridade’” (SEMERARO, 2007, p. 98). O movimento popular no Brasil fortalecia o papel da sociedade civil que centrava força em reivindicações pela garantia e ampliação dos direitos sociais e promovia um questionamento quanto ao papel do Estado no direcionamento e na condução das políticas públicas (PAES DE PAULA, 2005). Na corrente dessa efervescência dos movimentos sociais surgem experiências associativistas de autogestão como alternativa de trabalho e geração de renda, organizada em torno de grupos de produção ou em associações comunitárias no meio urbano e rural. Muitas dessas experiências são conduzidas pelos princípios metodológicos da educação popular e geridas pelos próprios trabalhadores. O saber popular é valorizado em uma relação de troca com o saber acadêmico ou científico. De acordo com Brandão (1982) o compromisso de profissionais com uma ação política libertadora das classes populares é expressa nas diversas experiências. De toda parte e a partir das mais diferentes experiências e dos mais diversos contextos de compromisso entre classes populares e profissionais militantes, surgem e crescem iniciativas de não apenas criar um novo tipo de conhecimento que oriente a prática política de operários e camponeses, mas também de produzir seus próprios instrumentos de produção (BRANDÃO, 1982, p. 14). O acúmulo de forças do movimento social, do movimento sindical e da sociedade civil de forma mais ampliada protagoniza ações que interferem na agenda política brasileira, utilizando-se do instrumento da pressão e da participação popular, o que vai provocar o fim do regime militar e o início do processo de redemocratização do país. Movimentos de caráter reivindicatório se fortalecem, sendo um período marcado pelas grandes mobilizações como nas “Diretas já”, no processo de participação popular na elaboração da Constituição de 1988. O envolvimento da sociedade civil nas decisões políticas do país vai exigir uma mudança na relação entre o Estado brasileiro e a sociedade. Ao retratar esse cenário, Semeraro (2007) analisa que: Era preciso avançar em direção à elaboração de propostas alternativas, desenvolver a capacidade de constituir novas organizações políticas na sociedade civil, conquistar espaços suficientes para preparar a formação de um Estado democrático-popular. (...) Além de se “libertar” era necessário, portanto, conquistar a “hegemonia”. Para chegar a isso (...) era preciso conquistar espaços na complexa rede da sociedade civil e se organizar como sociedade política. Era urgente ganhar o consenso ativo da população no imenso campo da cultura, na elaboração da ideologia, nas organizações sociais, na formação de partidos, na orientação da produção, na condução da economia e da administração pública (SEMERARO, 2007, p. 99 - grifo meu). Se antes a participação social expressava-se pelo caráter reivindicatório, após esse período a participação adquiriu caráter propositivo ao ocupar espaços políticos institucionais e fazer a disputa na esfera pública de um projeto de desenvolvimento para o país. A gestão das organizações públicas (estatais e não estatais) ganha relevância e experiências inovadoras são colocadas em prática com desenhos organizacionais que refletem relações mais democráticas, que possibilitam a participação popular e o controle social. O acúmulo do trabalho político de base do campo movimentalista apresenta resultados com a eleição de governos “democráticos-populares” em municípios e estados. Nesse contexto, multiplicaram-se pelo país governos com propostas inovadoras de gestão pública, que abrigavam diferentes experiências de participação social. Essas experiências foram construídas principalmente nos governos das Frentes Populares, que começavam a ganhar maior importância no cenário político. (...) Essa visão alternativa tenta ir além dos problemas administrativos e gerenciais, pois considera a reforma um projeto político e de desenvolvimento nacional (PAES DE PAULA, 2005, p. 39). Em meio a um cenário de consolidação do processo democrático, novas formas de gestão são desenvolvidas no intuito de aprofundar cada vez mais a democratização das funções do Estado. 4.3.1 – Gestão social – um conceito em construção A gestão, em organizações públicas ou em organizações não governamentais, é objeto de questionamentos, estudos e experimentos que traduzem a demanda por relações democráticas, menos hierarquizadas e mais flexíveis. As ações de caráter público procuram refletir as necessidades dos cidadãos em um país com um elevado índice de pobreza e desigualdade social. A preocupação com a inclusão social e com a garantia dos direitos de cidadania ganha importância e a racionalidade instrumental administrativa perde a centralidade. Assim, a “gestão” ganha o adjetivo “social” que a qualifica e a diferencia (TENÓRIO, 2008) como objeto de estudo, imbuído de concepções teóricas e práticas, que a insere no universo objetivo das relações sociais. Gestão social é um conceito ainda em construção, que carrega uma diversidade de tendências, segundo a orientação teórica dos autores que o apresentam. Para Fischer (2006, p.17) a gestão social pode ser entendida como “ato relacional que se estabelece entre pessoas, em espaços e tempos relativamente delimitados, objetivando realizações e expressando interesses de indivíduos, grupos e coletividades”. Nesse sentido, França Filho (apud SCHOMMER et al, 2009, p. 98) afirma que “a noção de gestão social pressupõe ação política entre pessoas, organizações e interorganizações – agentes públicos e privados que se articulam e se complementam num espaço compartilhado, em torno de objetivos coletivos”. Segundo Schommer (et. al., 2010), a gestão social pode ser pensada quanto à sua “finalidade” e quanto ao “modo de gerir”, ou seja, como objetivo ou propósito político da ação voltada para intervenção no âmbito do “social” e como formas de construção e condução dos processos organizacionais regidos por princípios éticos. A gestão social se diferencia dos modelos tradicionais de gestão pela sua finalidade e pelo processo. Finalidade e processo se complementam como faces da mesma moeda. O modo de gerir é reinventado para alcançar determinada finalidade, a finalidade proposta reformula e transgride o modo de gerir em um movimento dialético. A partir de uma orientação habermasiana, Tenório (2008, p. 40) considera que é preciso entender a gestão social “(...) como um processo gerencial dialógico onde a autoridade decisória é compartilhada entre os participantes da ação, (...) entendido como o espaço privilegiado de relações sociais onde todos têm direito à fala, sem nenhum tipo de coação”. O mesmo autor acrescenta: (...) entende-se como gestão social os processos em que a ação gerencial se desenvolve por meio da interação negociada entre os atores sociais, perdendo o caráter tecnoburocrático em função da relação direta entre gestão e participação, o que possibilita fazer uso de esquemas organizacionais diferenciados e múltiplos (TENÓRIO, 2007, p.11). O modo de gerir por meio da capacidade dialógica é característica marcante para o aperfeiçoamento desse modelo de gestão. Para Tenório (2002), (...) a gestão social busca o atendimento das atuais necessidades e desafios da administração quanto à democracia e à cidadania participativa, aplicando-se técnicas de gestão que considerem o intercâmbio dos vários atores envolvidos nos processos administrativos, estimulando o convívio e o respeito às diferenças (TENÓRIO, 2002, p. 7). Em todo processo que favorece o diálogo, os conflitos são inevitáveis. A capacidade relacional e a mediação de posições antagônicas tornam-se um exercício constante na caracterização da gestão. A linguagem expressa uma intencionalidade como resultante de uma formação ideológica inserida em um contexto histórico e social. Carrion e Bauer (2011) afirmam que: A estratégia de forçar consensos, é anti-democrática. O conflito, é implícito à práxis democrática, sinaliza a presença da diversidade e, portanto, a necessidade de chegar-se não a consensos, mas às concertações. Isto é, à definições que minimamente contemplem os diferentes interesses representados no campo (CARRION E BAUER, 2011, p. 15-19). Pensar a gestão como processo ou quanto ao modo de gerir, não significa necessariamente seguir um modelo de instrumentalização dos processos sustentado na racionalidade técnica administrativa tradicional. A gestão social caracteriza-se pela construção coletiva de regras, normas e instrumentos de gestão; pela inovação de metodologias que privilegiam o diálogo, a participação, decisões compartilhadas, horizontalidade hierárquica, com a valorização de diferentes saberes na ação. O modo de gerir da gestão social constitui-se como verdadeiros processos coletivos de aprendizagens (SCHOMMER e FRANÇA FILHO, 2010). Tenório (2008, p. 65) afirma que a gestão social “está mais afinada com a abordagem social da aprendizagem, que enfatiza as interações sociais que ocorrem entre as pessoas como bases da aprendizagem, tanto coletiva quanto individual”. O processo educativo na condução da gestão social é feito “a partir de múltiplas origens e interesses, mediados por relações de poder, de conflito e de aprendizagem” (FISCHER apud MAIA, 2005, p. 10). A gestão social resgata o processo da gestão coletiva e democrática deixada como herança pela educação popular idealizada por educadores da geração dos anos de 1960 e 1970. Portanto a gestão social deve ser entendida como um processo educativo, e, como afirma Paulo Freire (1986), todo processo educativo é um ato político. Nesse sentido a gestão social é um ato político, e, portanto, deve ter um posicionamento político quanto à sua finalidade, “a favor de quem e do quê”. A dimensão relacional na gestão social é fator determinante na sua caracterização. A capacidade de comunicação é o fio condutor que perpassa todo o processo em que as diferentes formas de linguagem ganham importância. A comunicação verbal favorece a interação e o diálogo como condição essencial das relações humanas, pois “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN, 2006, p. 32). A comunicação e as diversas formas de linguagem são veículos ou métodos para a construção dos instrumentos de gestão para dar concretude à forma de gerir, mas ao mesmo tempo é também uma atividade inserida nas atividades de gestão. A ação e a reflexão em uma ação contínua é condição indispensável para a construção da práxis, com uma afirmação da unidade entre a teoria e a prática. É preciso, portanto, posicionar a capacidade de comunicação e diálogo a serviço do trabalho. A gestão social, por mais inovadora e democrática que seja, está inserida em um contexto histórico e social como resultado da relação entre capital e trabalho. A finalidade ou os objetivos da gestão voltados para o campo social ou “da esfera social da vida” se diferencia da visão tradicional das ciências administrativas, que por sua vez teve sua formulação voltada para a finalidade econômica e a produção de mercado. Ocorre uma inversão de prioridades entre os objetivos econômicos da gestão tradicional para os objetivos sociais, foco prioritário da gestão social (SCHOMMER, et. al. 2010). Ao definir como finalidade o direcionamento do foco de intervenção para as demandas da sociedade, a gestão social provoca uma reflexão acerca das dimensões da realidade social. A proposição de intervir nessa realidade concreta, nas demandas e necessidades apresentadas pela sociedade, posiciona o debate para a compreensão da configuração e das características formadoras do universo social. É preciso compreender a realidade social como totalidade, inserida em um contexto históricosocial, tendo o homem como sujeito e resultado desse processo. A realidade social nos é imposta por uma cultura de fragmentação da constituição dos elementos que a compõem. Conforme formulações de Marx, o conhecimento do homem é resultado da sua interação com a realidade concreta, que por meio do trabalho transforma a natureza, a realidade e a si próprio, portanto aquilo que “é a raiz do mundo dos homens, o ato que funda o ser social, ou seja, o ato do trabalho” (TONET, 2006, p. 3). Ainda segundo o autor, Tomando, então, como fundamento ontológico do ser social o trabalho – entendido como síntese de teleologia e realidade objetiva e como atividade de transformação da natureza para a produção de valores de uso – Marx constata que este – o ser social – se caracteriza por ser uma totalidade, isto é, um conjunto de partes que se vão constituindo em determinação recíproca, mas cuja matriz fundante é o trabalho. (...) o mundo social tem uma lógica própria, que ele não é um amontoado caótico de fragmentos, mas um conjunto de partes articuladas (TONET, 2006, pp. 3-4). A gestão direcionada para intervenção no “mundo social” depara-se com as diversas manifestações da questão social geradas pelas contradições impostas pelo capital com o seu projeto hegemônico de desenvolvimento. Incitados por esse desafio, compreendemos que a gestão social é construção social e histórica constitutiva da tensão entre os projetos societários de desenvolvimento em disputa no contexto atual. Assim, a gestão social é concebida e viabilizada na totalidade do movimento contraditório dos projetos societários – por nós concebidos como desenvolvimento do capital e desenvolvimento da cidadania (MAIA, 2005, p. 64). A presença do projeto hegemônico de desenvolvimento do capital sob a inspiração do gerencialismo tem se utilizado de um discurso comum, o que provoca uma “confluência perversa” (RAICHELIS e EVANGELISTA, 2009) entre projetos societários antagônicos. A sociedade civil e o terceiro setor têm sido chamados para promover ações públicas no campo social de caráter compensatório e em substituição às prerrogativas do Estado na condução das políticas públicas e em especial às políticas sociais. Finalidade e processo invertem-se e o “social” passa a ser usado como “meio” tendo o capital como “fim”. Sob a roupagem de novas formas de reedição da filantropia e da caridade, ações de responsabilidade social das empresas, do voluntariado são instituídas como instrumentos de fortalecimento do projeto neoliberal hegemônico em detrimento ao fortalecimento da sociedade e das condições estruturais para a superação da desigualdade e da exclusão social (MAIA, 2005). A gestão social recebe um novo atributo como “gestão do social”, sendo tratada pela perspectiva gerencial e de caráter meramente instrumental, o que pode ser identificada como uma “gestão contra o social” por ser “mais uma estratégia do capital na direção de cada vez mais aperfeiçoar seus métodos de controle e exploração da classe trabalhadora” (CARVALHO apud MAIA, 2005, p. 65). Ao realizar pesquisa a respeito das concepções teóricas de gestão social, Marilene Maia apresenta a seguinte síntese: GESTÃO SOCIAL Categorias Valores Propósitos Focos Locos Agentes Metodologia Características Democracia e cidadania. Projeto societário de desenvolvimento da cidadania. Processo social de desenvolvimento ou conjunto de processos sociais viabilizador do desenvolvimento societário. Gestão social como um processo de afirmação ou transformação do desenvolvimento. Estado, mercado e sociedade civil. Políticas públicas, econômicas e sociais. Redes, interorganizações e o espaço local. Organizações populares, lideranças comunitárias, população, indivíduos, grupos e as coletividades. Processo social como estratégia metodológica. Fonte: MAIA, Marilene. Práxis da gestão social nas organizações sociais – uma mediação para a cidadania. Tese de doutorado. PUCRS. 2005 A construção do conceito de gestão social aponta para o campo interdisciplinar que agrega diversas áreas do conhecimento. Ao procurar ressaltar valores sociais e políticos, Marilene Maia (2005) redimensiona o conceito de gestão social com ênfase na sua finalidade política. A autora avança no debate e amplia os objetivos quanto à “finalidade” da gestão social, considerando-a não apenas como uma atuação direcionada para o social. Deixa mais evidente a orientação quanto a um projeto político societário transformador, voltado para a garantia de direitos, a inclusão e a justiça social. Sendo assim, a autora compreende a gestão social como: (...) um conjunto de processos sociais com potencial viabilizador do desenvolvimento societário emancipatório e transformador. É fundada nos valores, práticas e formação da democracia e da cidadania, em vista do enfrentamento às expressões da questão social, da garantia dos direitos humanos universais e da afirmação dos interesses e espaços públicos como padrões de uma nova civilidade. Construção realizada em pactuação democrática, nos âmbitos local, nacional e mundial; entre os agentes das esferas da sociedade civil, sociedade política e da economia, com efetiva participação dos cidadãos historicamente excluídos dos processos de distribuição das riquezas e do poder (MAIA, 2005b, p. 15-16). A gestão social procura direcionar modelos organizacionais que objetivam a consolidação de um projeto político societário em que a democracia e a participação cidadã ativa sejam exercidas por todos os atores envolvidos, numa relação dialética entre os sujeitos, com a aproximação do conhecimento técnico dos profissionais e o poder político da população. Prática de gestão compartilhada de construção e execução de políticas públicas constitui-se em um modelo organizacional caracterizado como processos gerenciais e societários de desenvolvimento da cidadania. A construção política de um sistema de proteção social e garantia de direitos deve passar por processos de uma gestão democrática e participativa da sociedade e das instituições. É preciso estabelecer uma diferenciação entre a gestão social e a administração pública societal, assim como o gerencialismo com a administração pública gerencial como alerta Paes de Paula (2005b). A gestão social e o gerencialismo são tipos ou modalidades de gestão do campo das ciências administrativas que referenciam modelos gerenciais e organizacionais em todos os setores, sejam eles públicos, privados ou do terceiro setor. A administração pública societal e a administração pública gerencial são modelos de organização e administração da máquina do Estado, implementados de acordo com a concepção e o direcionamento político governamental. Assim como a gestão social orienta a administração pública societal, o gerencialismo fundamenta os princípios da administração pública gerencial. Contudo “o gerencialismo e a gestão social não são formas de organizar do Estado, mas também não podem ser considerados tipos de regime político e governo, sob pena de contrariar a base desses conceitos da ciência política” (PAES DE PAULA, 2005b, p. 52). A tarefa de operacionalização da administração pública societal depara-se com uma dupla responsabilidade de caráter fundante para a concepção da gestão social. O primeiro desafio diz respeito à consolidação de canais e instâncias de participação popular com a competência na formulação e deliberação de políticas públicas. Tão importante quanto à primeira tarefa é o desafio da democratização interna da organização pública (PAES DE PAULA, 2005). Uma cultura burocrática extremamente hierarquizada está presente na estrutura da máquina pública e reflete internamente relações perversas de disputa de poder, isolamento das áreas temáticas, fragmentação das políticas e ainda a dicotomização entre as funções de planejamento e execução por parte dos gestores públicos. É preciso instituir instâncias participativas internas de diálogo e valorização do saber dos servidores públicos responsáveis pela operacionalização das políticas públicas. A administração pública, quando incorpora o princípio da gestão social, possibilita uma mudança na concepção do exercício do poder priorizando a “dimensão sociopolítica da gestão”, de forma a exigir novas habilidades no “desenvolvimento de técnicas de gestão adequadas” capazes de romper com o “hiato entre a técnica e a política” (PAES DE PAULA, 2005, p. 46). A gestão social demanda uma mudança no perfil do gestor público ao exigir dele visão estratégica participativa e solidária, com habilidades de atuar na conjunção entre a técnica e a política (PAES DE PAULA, 2005). Requer do gestor social a capacidade de mediação entre o conhecimento e a prática, a capacidade de “movimentar-se entre opostos, conciliando conhecimentos, ética e efetividade. É um mediador entre pessoas (dimensão individual), coletivos (dimensão relacional) e interorganizacional e redes de redes (dimensão transacional)” (FISCHER, 2006, p. 22). A gestão social provoca um deslocamento de poder nas relações hierárquicas e não constitui somente uma ação administrativa ou estratégia administrativa. É antes de tudo uma ação política contra-hegemônica frente às formas tradicionais de gestão. A formulação da política de assistência social aponta desafios para a gestão pública quanto a um reposicionamento do Estado brasileiro no que se refere à sua condução e a sua organização, bem como ao modelo de desenvolvimento para o país e a sua finalidade política. Cabe um apontamento com relação a questões abordadas neste capítulo. Uma delas diz respeito à reflexão quanto à diferenciação entre a concepção de gestão social e a “gestão do social”. Esse debate deve ser realizado pelos agentes públicos, por pesquisadores e pela sociedade civil organizada, balizados por um referencial crítico, pois assim poderá permitir melhor formatação quanto ao modo de gerir e principalmente quanto à intencionalidade política. Outro aspecto diz respeito ao debate quanto à democratização do Estado no que se refere à transparência pública permeável pela via da participação popular com o efetivo exercício do controle social e pela via da democratização interna da estrutura governamental. A dimensão da intervenção no âmbito local com a estruturação do CRAS permite uma aproximação com a realidade social e com a vida dos cidadãos, o que oportuniza a construção de mecanismos de participação e controle social mais efetivos. Com relação à democratização interna, os mecanismos de organização da política legislam sobre a gestão de recursos humanos por meio da NOB-RH/SUAS com o objetivo de valorização dos trabalhadores da assistência social e o reconhecimento da sua importância como protagonista na construção e na condução da gestão. Os trabalhadores da assistência social como protagonistas são também responsáveis pela gestão da política. Percebe-se uma estreita aproximação do conceito de gestão social e do modelo da administração pública societal com a arquitetura organizacional da política de assistência social. A ampliação desse diálogo possibilitará o enriquecimento do debate. Há uma aproximação conceitual entre a concepção da gestão social e a abordagem ergológica. A Ergologia propõe a Ergogestão como uma possibilidade de gerir o trabalho. A gestão da atividade de trabalho nessa perspectiva incorpora toda a problematização resultante da distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real. É imprescindível escutar os trabalhadores responsáveis pela execução, pois são portadores de saberes produzidos na atividade de trabalho. Propõe assim uma gestão democrática e mais horizontalizada da atividade de trabalho em uma tentativa de atuar no princípio da divisão técnica e social do trabalho com a diminuição da dissociação entre o planejamento e a execução. Para sustentar a organização do trabalho é preciso normalizar, no entanto, é impossível normalizar todos os procedimentos, impor regras rígidas para os seres humanos. Por isso os trabalhadores renormalizam as normas antecedentes. A Ergogestão considera a importância das normalizações das atividades coletivas, mas elas devem ocorrer até certo grau, evitando excesso de rigidez. Cabe ao gestor, (...) levar em conta os imperativos de toda a atividade humana e essa contradição entre o que ele quer fazer e o que lhe é pedido para fazer e o que ele, in fine, pode fazer, considerando as situações sempre singulares. É preciso adaptar-se a cada situação. (...) a gestão coloca-se mais como uma arte do que como uma técnica (TRINQUET, 2010, p. 110). Os conceitos da Gestão Social e da Ergologia apresentam pontos de interseção entre si. Escutar os trabalhadores dos CRAS para conhecer a atividade de trabalho e identificar as insuficiências e as lacunas das prescrições é um princípio da Ergogestão e condição essencial do conceito de gestão social. A consolidação da política de assistência social exige participação efetiva dos trabalhadores sociais. A atividade de trabalho é permeada pela complexidade, imprevisibilidade, por normas antecedentes que são constantemente desafiadas e renormalizadas para cumprir com a função de proteção social de uma população excluída, na perspectiva da garantia de direitos sociais. 5 – A Ergologia e a atividade de trabalho: princípios e conceitos A realização de uma pesquisa tendo como tema a análise da gestão do CRAS condiciona a inúmeras possibilidades de abordagem. A definição da gestão pela ótica do trabalhador como objeto de pesquisa, de quem operacionaliza as ações por meio da sua atividade de trabalho, revela a riqueza do trabalho real no seu cotidiano e a experiência e os saberes adquiridos na realização da atividade. O estudo sobre o trabalho encontra na perspectiva ergológica um referencial de análise com definições conceituais que colabora com a compreensão de toda trama que caracteriza a atuação profissional dos trabalhadores do CRAS no exercício da sua atividade. 5.1 – A atividade de trabalho e a produção de saberes A ergologia propõe-se a estudar o trabalho para melhor conhecê-lo e, assim, intervir nas diversas situações com o objetivo de transformá-lo, o que implica considerá-lo como atividade humana. Estudar o trabalho como atividade humana amplia a compreensão da atividade de trabalho e a considera em toda a sua complexidade, incorpora novas categorias de análise que permitem modificar seu caráter, retirando-o de sua dimensão de atividade meramente técnica. Trinquet (2010, p. 94) considera que a ergologia “permite abordar a realidade da atividade humana, em geral, e a atividade de trabalho, em particular, (...) é um método de investigação pluridisciplinar em função de a atividade humana ser muito complexa para se compreender e analisar”. Para a ergologia, trabalho se diferencia da atividade: “o trabalho é apenas uma forma de atividade humana” (SCHWARTZ, 2011, p. 154). A atividade de trabalho é reconhecida na execução do processo de trabalho, no ato do trabalho real, imbuída de uma singularidade em que o homem mobiliza o seu corpo e sua subjetividade em um movimento de produzir algo, enquanto uma “(...) atividade interior. É o que passa na mente e no corpo da pessoa, em diálogo com ela mesma, com seu meio e com os outros” (TRINQUET, 2010, p. 96). A atividade de trabalho convoca o homem a se reposicionar por inteiro diante das situações, de fazer escolhas e de tomar decisões, o que conduz a uma “obrigação feita de pensar” e de produção de saber. O agir humano manifesta-se como capacidade de escolher e de pensar, conduz o trabalhador a uma ressingularização e à construção da sua identidade. A atividade convida à transgressão de normas, pois o trabalho não é mera repetição: tudo pode ser reinventado e ajustado. Portanto, o trabalho é algo mais complexo do que aparenta ser, porque, nele, o trabalhador renova indefinidamente a sua atividade e se transforma nesse processo. Não se pode reduzir o trabalho a uma simples execução de tarefas, a uma reprodução repetitiva de movimentos. A tentativa de simplificação do trabalho de que se tem registro histórico na configuração da produção industrial, atribui à divisão técnica do trabalho um processo que induz à alienação do trabalhador, que anula a sua inteligência e a sua criatividade. Por meio do trabalho o homem transforma a natureza, o seu meio e se transforma interiormente como agente realizador da atividade. Schwartz (2011) aponta como um dos impasses do trabalho a sua “impossível simplificação”. A simplificação do trabalho contradiz a condição humana, opondo-se à singularidade do homem, à sua capacidade criativa de transformação. Significa desconhecer a relação ontológica25 do homem com o trabalho e um “parcial desconhecimento do que é a atividade industriosa humana”, pois na atividade humana haverá sempre algo que escapará a uma codificação (SCHWARTZ, 2011, p. 27). A atividade industriosa convoca o trabalhador com a sua habilidade e a sua capacidade de fazer e realizar a refletir e pensar, a uma produção de saber produto de um debate de normas. A atividade de trabalho é uma realização da natureza do homem que incorpora e resgata toda sua complexidade. Sendo assim, a ergologia afirma que o trabalho é algo mais complexo do que se imagina. Identificar o trabalho pela ótica da simplificação reduz a sua compreensão, o que aumenta a dificuldade em lidar com as relações que aí se estabelecem, com a sua organização e com o gerenciamento das “atividades laboriosas” (TRINQUET, 2010). O trabalho é tomado pela ergologia não somente como um objeto de estudo, mas como “matéria estrangeira” que provoca um incômodo, um estranhamento a quem lhe interroga. Schwartz resgata essa expressão de Georges Canguilhem, filósofo e médico francês, e a utiliza como recurso de sempre interrogar o trabalho pelo viés da sua concretude. O estudo do trabalho como objeto limita a sua compreensão, porque o pesquisador precisa se colocar em posição de escuta, de humildade e desconforto em face do desconhecido, em um lugar de aprendizagem na dialética entre a sua singularidade e sua complexidade presente na atividade de trabalho (SCHWARTZ, 25 Schwartz considera que a evolução do homem está vinculada à sua relação com o trabalho na dimensão ontológica ao transformar a natureza e se transformar e na dimensão antropológica ao favorecer a sua evolução cultural e social. 2008). Tomar o trabalho como matéria estrangeira exige compreendê-lo pela ótica de quem o executa. Para analisar e compreender o trabalho é preciso se colocar em um permanente “desconforto intelectual”, em que a comodidade da racionalidade intelectual fundamentada no conceito seja desafiada pela complexidade da atividade de trabalho. Somente os conceitos não serão suficientes para traduzir o que acontece nas situações de trabalho: é preciso colocar em diálogo os conceitos já dominados com os saberes investidos na experiência dos trabalhadores, ou seja, deve-se conhecer o trabalho por intermédio de quem o realiza. Significa ser desestabilizado pelo desconforto ao se colocar no plano do retrabalhar permanentemente o campo dos valores e das concepções preestabelecidas. A atividade não pode nunca deixar-nos confortavelmente instalados em interpretações estabilizadas dos processos e dos valores em jogo numa situação de atividade (...). Trata-se, pelo contrário, de se deixar incomodar metodicamente ao mesmo tempo nos nossos saberes constituídos e nas nossas experiências de trabalho, a fim de progredir incessantemente nos dois planos (DURRIVE e SCHWARTZ, 2008, p. 4 - 5). Com o propósito de conhecer o trabalho, a ergologia propõe um método de investigação pluridisciplinar das diversas áreas do conhecimento. A atividade de trabalho como uma das modalidades da atividade humana carrega uma complexidade que requer mais que uma única disciplina para compreendê-lo e analisá-lo. A ergologia propõe uma interação dialética permanente entre as disciplinas que ao mesmo tempo interroga os saberes complementados na análise da atividade de trabalho. É preciso, portanto, colocar em diálogo todas as áreas do conhecimento científico, dos saberes acadêmicos entre si. Mas isso não é suficiente. A ergologia ressalta a necessidade de fazer dialogar esses saberes com os saberes da experiência, nem sempre formalizados, ou seja, com os saberes dos trabalhadores que vivenciam o trabalho. Aos primeiros – saberes científicos, acadêmicos – a ergologia denomina saberes constituídos, e àqueles da experiência, saberes investidos, que estabelecem uma relação complementar. O saber constituído é o saber acadêmico, disciplinar, produto do conhecimento científico. Trata-se do que, em geral, chama-se, simplesmente, de saber, ou dito de outro modo: saber acadêmico. Em outros termos, tudo o que é conhecido, formalizado nos ensinos, nos livros, nos softwares, nas normas técnicas, organizacionais, econômicas, nos programas de ensino, etc. (TRINQUET, 2010, p. 100). O saber constituído é fundamental para a formação de trabalhadores, para o aprofundamento teórico e científico nas variadas áreas de atuação. Ele é imprescindível, pois “entender o conceito é fundamental para compreender a vida e suas múltiplas manifestações”, o que proporciona “reflexões e abertura de novos caminhos, revendo conceitos e revisitando-os” (FURTADO e FISCHER, 2011, p. 190). O saber constituído possibilita ao trabalhador refletir sobre o seu fazer, sistematizar o conhecimento adquirido na experiência produzida com o trabalho. Esse tipo de saber é importante e não pode ser desconsiderado, porém, sozinho, ele é insuficiente para a compreensão do que acontece na atividade de trabalho. Durrive (2011, p. 54) afirma que “a atividade humana no trabalho não é a simples aplicação de saberes já constituídos: no curso da atividade, outros saberes se produzem”. A ergologia considera o saber investido resultado da capacidade de cada indivíduo gerir as lacunas entre o trabalho prescrito e o real que se manifesta em toda atividade de trabalho. Esse saber é fruto da experiência do fazer adicionado a um saber pessoal adquirido ao longo da vida e das relações do trabalhador com seu meio, (...) é o resultado da história individual de cada um, sempre singular, ou seja, adquirida da própria experiência profissional e de outras experiências (social, familiar, cultural, esportiva, etc.) e que remete a valores, à educação, em resumo, à própria personalidade de cada um (TRINQUET, 2010, p. 100). Ao saber investido estariam adicionados os saberes da experiência profissional, com o que poderiam ser nomeadas outras formas de saberes como o conhecimento tácito, conhecimento popular, o conhecimento não formal ou não acadêmico. Schwartz (2006) argumenta que a experiência não é resultante de um processo acabado, está sempre em movimento, não tem inicio nem fim, é produto do acúmulo de informações codificadas nas situações concretas, em que cada sujeito singularizado registra e processa essas informações. Isso reenvia à especificidade da competência adquirida na experiência, que deve ser investida em situações históricas. São saberes que ocorrem em aderência, em capilaridade com a gestão de todas as situações de trabalho, elas mesmas adquiridas nas trajetórias individuais e coletivas singulares, contrariamente aos saberes acadêmicos, formais que, são desinvestidos, ou seja, que podem ser definidos e relacionados com outros conceitos independentemente das situações particulares (SCHWARTZ, 2006, p. 44). O saber investido, que advém da experiência do trabalhador, muitas vezes não chega a ser explicitado, (re)normalizado ou até mesmo colocado em linguagem. É incorporado no inconsciente individual ou no coletivo de trabalho e utilizado com frequência na resolução das situações, não sendo necessariamente formalizado (SANTOS, 1997, SCHWARTZ, 2006, DURRIVE, 2011). O conceito de saber investido, proposto pela ergologia como saber produzido na atividade de trabalho, contrapõe-se ao ideário taylorista-fordista da divisão intelectual e técnica do trabalho, da dissociação entre a concepção e a execução. A possibilidade de gerir as lacunas entre o trabalho prescrito e o real torna o trabalhador protagonista de um saber até então desconsiderado e leva ao reconhecimento de que do “chão de fábrica” brota um saber que deve ser colocado em evidência, pois pode em muito contribuir para se conhecer melhor o trabalho. O saber investido pode ser produzido individualmente em decorrência da singularidade que cada indivíduo carrega na mobilização do “corpo si”, bem como na interação grupal nas relações do coletivo de trabalho. Em pesquisa realizada por Santos (2006) junto a uma categoria de trabalhadores, os “ferramenteiros” revelaram como prática comum instituída, o diálogo entre eles e a troca de informações para a realização do trabalho. Além dos protocolos de normas e prescrições, os ferramenteiros recorriam aos “saberes do coletivo de trabalho” no desenvolvimento da sua atividade produtiva. Tornou-se uma prática comum trabalhadores menos experientes consultar outros trabalhadores com mais experiência quanto às possibilidades em realizar determinadas tarefas, “a socialização de saberes entre os trabalhadores ocorre, normalmente, de maneira informal, ou seja, não oficial. Neste sentido, encontramos diversas situações em que os ferramenteiros se valem dos saberes do seu coletivo de trabalho para realizar determinada atividade, cujo conteúdo não é totalmente conhecido pela gerência” (Santos, 2006, p. 105). Prática comum nesse ambiente de trabalho pode ser encontrada muito frequentemente em outros espaços ocupacionais. A inexistência ou a insuficiência de normas antecedentes abre inúmeras possibilidades de criação e recriação de saber pelos trabalhadores proporcionado uma interação do coletivo de trabalho. A atividade é um campo propício à produção de saberes. Os saberes disciplinares e os saberes dos protagonistas26 do trabalho confrontam-se e dialeticamente complementam-se no exercício da atividade. No entanto, há uma 26 Os protagonistas das situações de trabalho designam todos os atores implicados numa atividade. Não são somente os trabalhadores ou empregados, mas também os quadros, os dirigentes de empresa e mais amplamente ainda os representantes destes atores na vida social à escala macro. Cada um é convidado a uma démarche ergológica para participar na elaboração de saberes e para tirar partido das reservas de alternativas escondidas nas atividades humanas (DURRIVE e SCHWARTZ, 2008, p. 26-27). incompletude desses saberes na relação com o mundo do trabalho, o que Schwartz (2000) denomina “zonas de cultura e de incultura”, Os saberes constituídos, assim como os saberes formulados na experiência como resultados das renormalizações, ou seja, na produção de novos saberes, quando acionados se constituem em “força de convocação e reconvocação”. A situação de trabalho requer o acionamento da força de convocação dos saberes disciplinares para que o reducionismo e os entraves em consequência das limitações das normas antecedentes possam ser superados. Por outro lado, entra em ação a “força de reconvocação testando e avaliando estes conhecimentos, colocando-os em confronto com os universos de saberes e experiência” (SCHWARTZ, 2000, p. 43). 5.2 – O trabalhador, a norma, o debate de normas e a renormalização: entre o trabalho prescrito e o real Um princípio empregado de forma marcante pela perspectiva ergológica diz respeito à categorização do trabalho prescrito e do trabalho real. Identificada pela ergonomia de língua francesa, na década de 1970, a distinção entre trabalho prescrito e trabalho real surgiu de pesquisa sobre postos de trabalho taylorizados e saúde dos trabalhadores realizada por um grupo de pesquisadores, sob a coordenação de Alain Wisner. A pesquisa apontou que os procedimentos prescritos na linha de montagem não eram efetivamente aqueles realizados pelos trabalhadores. Constatou-se que, mesmo em locais onde a incidência da divisão do trabalho acontece com maior intensidade, ainda assim existiam lacunas entre a prescrição e o trabalho de fato realizado. A ergologia incorpora essa descoberta da ergonomia e ressalta que a atividade de trabalho implica gerir a lacuna existente entre o trabalho prescrito e o real. O trabalho prescrito é a definição prévia da maneira como o trabalhador deve executar o trabalho: o modo de utilizar os equipamentos e as ferramentas, o tempo concedido para cada operação, o como fazer e as regras que devem ser respeitadas. O trabalho prescrito tem ainda, a característica de ser definido por outra pessoa que não o trabalhador que vai realizá-lo (SANTOS, 2000-b, p. 344). O trabalho prescrito é concebido e planejado, previamente, muitas vezes dissociado da realidade, pensado a partir do trabalho ideal e no trabalhador ideal. O trabalho real é aquele que de fato é executado e manifestado de maneira própria por cada trabalhador ou pelos coletivos de trabalho no exercício da atividade. O que foi prescrito dificilmente será realizado exatamente como foi concebido, caso contrário, os seres humanos estariam sendo considerados como máquinas ou robôs, seres autômatos. As prescrições são necessárias, porém nem tudo pode ser previsto. A distância “entre trabalho prescrito e o trabalho real é um laboratório por excelência onde o ‘informalizável’ ou o que resiste à formalização se apresenta” (SANTOS, 1997, p. 20). Nesse sentido, sempre existirá uma distância, ou seja, lacunas entre o trabalho prescrito e o real. Gerir essa distância transforma o trabalho e a natureza humana e desafia o trabalhador: “é neste momento que se expressa a personalidade, a individualidade, a história sempre singular, tanto individual quanto coletiva daqueles que participam, em tempo real” (TRINQUET, 2010, p. 98). O trabalhador posiciona-se de forma consciente ou inconsciente na realização do trabalho e depara-se com a necessidade de produção de um saber refundando novos procedimentos para aquela determinada atividade. Para Santos (1997, p. 15), “o trabalho convoca a inteligência de cada trabalhador e do coletivo de trabalho na descoberta, na aprendizagem, no desenvolvimento e na produção de saberes”. Pode-se afirmar que não há uma única maneira de realizar uma atividade, é sempre possível encontrar soluções que ainda não foram previstas. O modelo de organização e gestão taylorista-fordista do trabalho tem na divisão do trabalho uma concepção produtiva da acumulação capitalista. Assim como na diferença entre o trabalho prescrito e o real, a demarcação desse ideário está também alicerçada na distinção entre a concepção e a execução do trabalho. A concepção e o planejamento são concebidos geralmente em um ambiente à parte, distante do campo de operações, cercado de um rigor teórico. Por outro lado, a execução acontece em outro ambiente encarregado da função operacional, cercado de outra lógica, segundo a qual quem tem a responsabilidade em executar os procedimentos não participa da concepção, “tudo teria sido pensado pelos outros, antes que os executantes agissem: aliás, a eles não é permitido agir, eles executam” (SCHWARTZ, 2006, p. 42). Essa distinção transportase para o campo do saber no qual quem planeja e prescreve é possuidor de um conhecimento técnico e científico especializado, enquanto quem executa não precisa ter conhecimentos ou é desprovido de conhecimentos, basta executar. Fica explicitamente embutido nesse propósito uma relação de poder hierarquizando saberes e posições no trabalho. Ocorre uma dissociação acentuada entre a concepção e a execução, ou seja, entre a teoria e a prática, o que reduz a uma aplicação mecânica do conhecimento teórico. O referido modelo de organização do trabalho estendeu-se para outros campos configurando uma “lógica racional” replicada nos mais diversos ambientes de organização social27. Preencher a lacuna existente entre o trabalho prescrito e o real convoca o trabalhador a fazer escolhas, inovar, criar e tomar decisões. Instala-se um momento de transgressão das normas, em que o homem refaz a sua própria história e a história da humanidade. A história do trabalho movimenta e acompanha a evolução da humanidade, “(...) a evolução do trabalho, desde muito tempo, explica, por um lado, a evolução do Homem e que a evolução do Homem explica, por outro lado, a evolução de sua atividade laboriosa. Que há uma íntima dialética entre essas duas evoluções” (TRINQUET 2010, p. 97). Na sociedade contemporânea a humanidade encontra-se cada vez mais cercada por normas que regulamentam a organização da sociedade, das instituições e das relações sociais. Durrive (2011) resgata a origem em latim do termo norma como “aquilo que se pretende corrigir, ou retificar”: a norma, assim definida, viria depois do fato, após a transgressão no sentido de corrigir ou retificar a ação em um segundo momento. No entanto, a norma vem sendo aplicada na antecipação dos fatos, antes do agir, na intenção de prever a ação humana. O propósito de uma determinada norma é antecipar o fazer, de definir regras e enquadrar a ação humana. Percebe-se um paradoxo, pois não se trata de uma lei natural e sim de regras inscritas de caráter contratual em um contexto social e cultural na história da civilização. Para o autor, as normas são colocadas antecipadamente para serem apreendidas como iniciais e permanentes e assim ganharem consistência. O homem contemporâneo tem buscado posicionar-se no mundo com mais liberdade e autonomia, elaborando suas próprias regras nas relações que estabelece e nos seus modos de agir, como forma da manifestação de sua singularidade. No entanto, “o que caracteriza o homem é, na verdade, a capacidade de se mover dentro de um mundo de normas” (DURRIVE, 2011, p. 49). Uma norma é consequentemente a expressão daquilo que uma instância avalia como devendo ser. Esta instância pode ser exterior ao indivíduo: são as normas exógenas, aquilo que exigimos de cada um, aquilo que procuramos lhe impor. Mas esta instância pode ser também o próprio indivíduo, porque cada um tende a definir suas próprias normas para agir, cada um tenta estar na origem das exigências que o governam (normas endógenas). Ninguém se conforma com a 27 Ainda que o modelo taylorista-fordista de organização e gestão do trabalho tenha perdido sua hegemonia no contexto das transformações ocorridas nas últimas décadas, os novos modelos flexibilizados e integrados não chegaram a eliminar a ideologia que o sustentou. imposição do meio como se fosse um conteúdo ajustado (...). O homem não se deixa totalmente comandar de fora, ele está, ao contrário, numa relação polêmica com o mundo das normas nas quais se encontra (DURRIVE, 2011, p. 49). A perspectiva ergológica utiliza-se do pensamento de Canguilhem para refletir sobre o homem e as normas. Para Durrive (2011, p. 50), “o ser humano responde às solicitações do seu meio – o que os outros em geral lhe pedem para fazer (...)”. O homem age em função de uma provocação, uma solicitação de alguém ou do meio, mas ao mesmo tempo busca organizar o meio em função de si, de forma a se colocar no centro das decisões com relação ao seu próprio agir. Ocorre uma constante tentativa de padronização das diversas formas de representação do agir humano por modelos de “arquiteturas mentais que precedem a atividade em todos os níveis. O espírito humano (...) manifesta uma potência de antecipação que o autoriza a querer programar, organizar, enquadrar” (SHWARTZ, 2010, p. 136). As normas estão presentes e acompanham a evolução do processo civilizatório com conquistas e avanços científicos nas diversas áreas como nas tecnologias, em processos industriais, na construção, na biologia humana, no direito por meio de leis, constituições e regulamentações na esfera da vida social. Todas essas normas antecedentes utilizam-se das diversas formas de codificação e prescrição e vêm no sentido de antecipar a atividade humana. Por outro lado, as normas podem tornar-se instrumentos de manipulação da vida social no cumprimento de uma função ideológica obscura nas relações de poder, no enquadramento dos procedimentos e condutas em modelos que induzem a uma divisão social e a uma fragmentação do conhecimento. Schwartz (2010) observa ainda que “há um significativo uso socialmente manipulador dessas normas antecedentes (...) elas podem se tornar uma ferramenta na construção de relações de força para garantirem poderes, dominações, vantagens adquiridas”. Servem ainda como “instrumentos de exploração no sentido industrial, ou jurídico do termo; mas também no sentido econômico que tomou a história” (SCHWARTZ, 2010, p. 136). Enfim, as normas antecedentes representam uma dualidade na vida social entre conquistas e avanços, como em contraposição, em riscos e opressões. É preciso estar atendo quanto ao uso seu ideológico, pois “nenhuma norma é puramente técnica e, por isso mesmo, neutra” (SCHWARTZ, 2010, p. 136). O tratamento da norma é de extrema importância e inclui-se no rol de conquistas da humanidade, mas também pode se transformar em um risco considerá-la como um fim em si mesmo e ignorar que a vida ressurge e refaz-se a todo o momento. As normas inserem-se de uma maneira mais ampla nas relações da vida cotidiana dos homens, ou seja, nas relações estabelecidas na atividade humana. As normas antecedentes evidenciam-se na relação entre o trabalho prescrito e o real, inseridas no universo da atividade de trabalho, e são permeadas por relações de poder. Apresentam como característica posicionar-se antes de iniciar o trabalho e serem anônimas, ou seja, “elas não levam em conta a singularidade de quem se prepara para agir, (...) elas se apresentam como neutras”. (DURRIVE, 2011, P. 51). Não se pretende aqui defender a eliminação das normas antecedentes ou torná-las improcedentes. Elas são necessárias para o ordenamento da sociedade e em diversas áreas, responsáveis pelos avanços e conquistas científicas, técnicas, jurídicas e sociais. Schwartz (2006) afirma: É claro que precisamos de normas antecedentes, porque elas também são patrimônio universal. (...), temos que propor normas antecedentes e compartilhar esse conceito de atividade. É preciso normatizar, claro, mas temos que conseguir formas de organização ou de normatização que deixem sempre um espaço para retrabalhar as normas, em função das renormatizações sempre presentes (SCHWARTZ, 2006, p. 462). A organização do trabalho exige uma regulação que organiza e prescreve os procedimentos a serem observados. Para Vieira (2003, p. 55), “as normas antecedentes são um conjunto de dispositivos que compõem o ordenamento e antecedem a atividade do trabalho”. A insuficiência das normas gera uma adaptação, ou seja, uma renormalização “pois o trabalho não é lugar da repetição, já que os indivíduos renormalizam sua atividade” (VIEIRA, 2003, p. 56). A renormalização é promovida pelo indivíduo ou pelo coletivo de trabalho no exercício da atividade, como forma de transformação das normas no intuito de buscar estratégias e construir alternativas quanto à incompletude das normas antecedentes. Schwartz (2010, p. 138) afirma que “nenhuma norma antecedente, nenhuma prescrição poderá abstrair os vazios de normas. A antecipação exaustiva é impossível”. O trabalhador, ao deparar-se com a insuficiência ou com a inadequação das normas, promove um silencioso debate de normas e, renormaliza, individual ou coletivamente, as regras estabelecidas para a execução da atividade. Há certamente um espaço de tensão, mas, sobretudo, um movimento dialético entre as normas antecedentes e a renormalização que faz com que uma preceda a outra em um movimento contínuo. O trabalhador renormaliza a sua atividade para se manter vivo, como garantia da sua saúde e da sua lucidez no trabalho, da sua percepção subjetiva para resgatar o sentido ontológico do trabalho e se transformar por meio do seu agir. O preenchimento das lacunas geradas pela incompletude das normas é o que proporciona os encontros de encontros no trabalho. A atividade de trabalho convoca o trabalhador a um permanente debate de normas já que ele se vê sempre em conflito com as normas antecedentes à realização da atividade. O deslocamento de uma posição confortável diante das normas preexistentes convoca o trabalhador a uma renormalização da sua atividade. Para a ergologia, o trabalho representa a convocação do indivíduo com toda a sua herança cultural, sua história de vida e um lugar ocupado socialmente, na busca constante de encontrar a vida na realização da atividade, na realização em ato do trabalho vivo. O trabalhador é convocado na realização da sua atividade não somente com a sua “força de trabalho”. O agir predispõe o ato físico, mas também uma mobilização subjetiva do indivíduo, por sua vez portador de uma singularidade construída ao longo da história de sua existência, nas relações estabelecidas e na construção da sua identidade. O sujeito ao gerir sua atividade de trabalho traz consigo uma história de vida de sofrimentos, sucessos, fracassos, valores de uma cultura adquirida nas relações familiares, nas relações com a sua comunidade ou grupo social, nas relações com o seu entorno mais amplo e na visão que elabora dos acontecimentos localizados e datados em um momento histórico e conjuntural. O trabalho como experiência torna-se fonte produtora de saber não somente pela realização das tarefas predeterminadas e prescritas, mas, sobretudo pela perspectiva de encontros de encontros em que o “corpo si” mobiliza-se com todo seu “patrimônio histórico” no debate de normas, exigindo do trabalhador uma mobilização interna para tornar-se capaz de fazer escolhas e gerir a sua atividade. Schwartz (2007, p. 198-199) argumenta que a concepção de “corpo si” “não é inteiramente biológica, nem inteiramente consciente ou cultural, (...) trata-se do histórico, mas do histórico funcionando em alquimias que vão além de nós”, é a representação do indivíduo na sua totalidade envolvendo as dimensões físicas, psíquicas, culturais, cognitivas e inconscientes na construção da sua singularidade numa situação de trabalho. Trinquet (2011) considera que o “corpo si” é “matéria e espírito em dialética”. É por meio do ”corpo si” que o trabalhador deixa de ser objeto consumido pelo trabalho e torna-se o centro dessa arbitragem para conduzir a sua atividade. Quando se adota a perspectiva da atividade, entende-se que trabalhar é fazer escolhas, o que provoca no trabalhador um conflito, um incômodo, definido pela ergologia como uma “dramática do uso de si”. Para Schwartz (2007), não existe execução e sim uso, e o indivíduo na sua totalidade do ser é convocado na atividade. Todo trabalho é sempre uso, uso de si por si, como também uso de si pelos outros. Essa dualidade gera um problema a ser resolvido, ou seja, provoca um drama com o trabalhador posicionado no centro das decisões. Também quando se diz que o trabalho é uso de si, isso quer então dizer que ele é lugar de um problema, de uma tensão problemática, de um espaço de possíveis sempre a se negociar: há não execução mas uso, e isto supõe um espectro contínuo de modalidades. É o indivíduo em seu ser que é convocado; (...). Há uma demanda específica e incontornável feita a uma entidade que se supõe de algum modo uma livre disposição de um capital pessoal. Tal é a justificação para a palavra “uso” e tal é aqui a forma indiscutível de manifestação de um “sujeito” (SCHWARTZ, 2000, p. 41). O trabalhador coloca-se inteiramente a trabalho fazendo uso de todo o seu ser, corpo e alma em conflito na realização da atividade. É a manifestação do uso de si por si, pelo próprio trabalhador, do seu corpo, da sua inteligência, da sua individualidade, da sua formação histórica, com seu saber adquirido na experiência. Schwartz (2000, p. 42) afirma que “no estudo dos atos de trabalho, o “uso” não é somente o que fazem de você, mas também aquilo que cada um faz de si mesmo”. A dramática do uso de si por si convoca o trabalhador a pensar a sua atividade e buscar alternativas diante das insuficiências das normas antecedentes. O “uso de si pelo outro” é o uso que o trabalhador faz de si para atender ao gestor, ao capital, como também às prescrições estabelecidas pelas normas e regulamentos. Na atividade de trabalho, principalmente no trabalho mercantil, reina um universo de definições de normas, procedimentos, regras, técnicas, hierarquias, condutas que submetem os trabalhadores a uma relação de subordinação e de poder. O trabalho mercantil, gerenciado pelas organizações sustentadas no capital, nega os aspectos subjetivos e culturais do trabalhador e nesse sentido “usa” ou faz “mal-uso” do trabalhador pela expropriação da força de trabalho, da impessoalidade, da racionalidade mecânica. Se há uma identificação de um “mal-uso” é porque há possibilidades de existência de outras formas de gestão do trabalho. Esta “dramática”, em alguns momentos torna-se mais forte e em outros momentos se arrefece e distenciona o conflito, o que pode propiciar o surgimento de “encontros de encontros” no trabalho resgatando a sua dimensão ontológica. Cabe, portanto uma constante negociação entre a difícil articulação na relação dialética entre o uso de si por si e o uso de si pelo outro. No hiato entre o trabalho prescrito e o real, a ergologia encontra um infinito universo de reflexões para a compreensão do sujeito na relação com a atividade de trabalho. Esse hiato é que possibilita um espaço de criação e o resgate do trabalhador como protagonista do seu próprio trabalho, já que ele resiste a um aprisionamento pelas normas prescritas e procedimentos operatórios. Diante dessa situação, o ”corpo si” expressa-se fazendo o “uso de si por si”, momento em que o trabalhador manifesta a sua singularidade, renormaliza o seu trabalho, encontra soluções não previstas, produz saber e se identifica como sujeito do trabalho real. Devido às variabilidades do trabalho humano, as normas prescritas não conseguem antecipar todos os desafios que se apresentam na atividade em que cada trabalhador é convocado e ao mesmo tempo convoca-se a lidar com o vazio de normas. Como na perspectiva ergológica trabalhar é gerir, pode-se afirmar que todo trabalhador é gestor do seu próprio trabalho. O conflito entre o desejo interior, o que ele exige de si e as regras externas, o que é exigido dele, expressa a disputa que se apresenta toda vez que o trabalhador é convocado a agir. Esse conflito leva o sujeito a um silencioso impasse, o que resulta num debate de normas. A atividade aponta para o constante debate de normas e que, em um dado momento, é exigido que o trabalhador faça escolhas, tome decisões no sentido de solucionar o impasse empregando o seu modo próprio de agir. Ele faz o “uso de si”, resgata a sua identidade e toda a sua singularidade, promove uma “renormalização” para melhor adaptar-se ao ato de gerir o trabalho. O exercício da atividade de trabalho gera um processo de aprendizagem e a elaboração de um saber provocado por um permanente debate de normas. Schwartz (2006) utiliza o conceito de “atividade industriosa”, que insere no debate de normas, amplia a compreensão e o distanciamento entre o trabalho prescrito e o real e relaciona a noção de trabalho real com a conceituação das normas antecedentes. A atividade industriosa permite uma conceituação que transita entre o trabalho real com o seu “fazer” e convoca o trabalhador a uma elaboração do seu “saber” provocado pelo debate de normas. “A partir do trabalho como atividade industriosa, reencontramos todas as diferentes dimensões do trabalho” (SCHWARTZ, 2006, p. 459). O movimento constante de renormalização gera um processo de aprendizagem e uma produção de saberes por parte dos trabalhadores, recriando formas e estratégias de realização da atividade. Para Schwartz (2000, p. 43) “a renormalizaçao que se produz nas atividades gera uma situação de desconforto intelectual”, e esse desconforto “consiste em admitir que generalidades e modelizações devem ser sempre reapreciadas” (2000, p. 44). Instaura-se um processo de transgressão das normas antecedentes, desafiam-se os saberes técnicos e disciplinares, o que provoca um incômodo dado pela confrontação dos saberes. Schwartz argumenta que tanto os sabres disciplinares ou acadêmicos quanto os saberes da experiência apresentam “zonas de cultura e de incultura”, ou seja, deve-se reconhecer e valorizar esses saberes, porém eles não são suficientes, isoladamente, para a compreensão da atividade de trabalho. Colocar em debate esses saberes possibilita um processo constante de aprendizagem e a produção de novos sabres que promove uma renormalização permanentemente da atividade. No campo da política pública, as normas antecedentes surgem como de extrema relevância com o intuito de codificar as ações do poder público nas diversas instâncias. Elas podem ser definidas pelas leis, decretos, resoluções, portarias, normas, instruções normativas, manuais e orientações técnicas diversas. Identificam-se entre essas normas instrumentos jurídicos de valor legal, que definem de maneira generalizada procedimentos administrativos e organizacionais sem, no entanto, tecer detalhes quanto à execução operacional. Esse conjunto de normas legais é acompanhado de mecanismos de fiscalização e acompanhamento de seu cumprimento, bem como de regras que definem a sua possível revisão. Há também outros instrumentos legais como as instruções normativas, manuais e orientações técnicas que tecem detalhes operacionais e normatizam quanto a procedimentos que regulam as atividades de trabalho. Nesse conjunto de procedimentos, as possibilidades de revisões estão ao alcance das instâncias responsáveis pela sua execução. 5.3 – A gestão do trabalho A gestão do trabalho impõe como condição lidar com a singularidade dos sujeitos responsáveis pela sua execução, ou seja, os trabalhadores. Cada um destes sujeitos possui uma avaliação própria da situação de trabalho e um modo próprio de gerir o seu fazer. E os trabalhadores estarão sempre inseridos em um coletivo de trabalho, cercados pelos seus pares e subordinados a uma hierarquia organizacional. Ao lidar com as lacunas existentes entre o trabalho prescrito e o real e as possibilidades de renormalização, surge outro conceito empregado pelo pensamento ergológico definido como “reservas de alternativas”. “Há sempre a possibilidade de fazer de outro modo. Não pode haver uma única maneira melhor de fazer as coisas, de responder às obrigações, de governar os seres humanos" (TRINQUET, 2010, p. 109). Schwartz (2007) argumenta que a compreensão do trabalho como atividade permite considerar a dimensão da transformação, pois há sempre possibilidade de “trabalhar de outra forma”. A realização da atividade de trabalho possibilita fazer escolhas e consequentemente assumir riscos, pois as escolhas nem sempre resultam na melhor solução para as situações em que o trabalhador se vê envolvido. Fazer escolhas é correr riscos e um exercício constante de erros e acertos. O processo de gestão depara-se, a todo momento, com a imprevisibilidade e a complexidade do trabalho, com as possibilidades e com as impossibilidades. Portanto, levar em consideração as reservas de alternativas é abrir-se às novas idéias “a fim de integrar os novos saberes sobre o trabalho e se adaptar às evoluções das situações (...)” (TRINQUET, 2010, p. 109). O movimento constante de renormalização da atividade de trabalho pode produzir um efeito de determinada ordem, sendo inevitável a obrigação de renormatizar ou rever as normas antecedentes por parte do gestor do trabalho. Portanto “renormatizar quando é preciso ajustar ou não respeitar determinada esfera de normas antecedentes supõe que os protagonistas das escolhas dialoguem, explicita ou implicitamente, com um universo de valores já estabelecidos” (SCHWARTZ, 2010, p. 141). A renormatização por parte do gestor pode tornar-se um processo participativo com os coletivos de trabalho. Schwartz (2010, p. 139) ainda afirma que “o tratamento do vazio de normas sempre comporta mais ou menos uma gestão coletiva”. É preciso constituir espaços de debates e negociações da gestão do trabalho para que o processo de renormatizações não seja um movimento individualista, mas resultado de um processo coletivo “na sinergia da construção de um patrimônio histórico coletivo” (FRANÇA e MUNIZ, 2011, p. 211). O fato de as renormatizações advirem das renormalizações compartilhadas do agir coletivo implica que elas também, provavelmente, tornar-se-ão insuficientes para tudo prever. O gestor ou a organização normalizam, quando há um vazio de normas, e renormatizam a partir das renormalizações que os trabalhadores fazem, individual ou coletivamente, diante das insuficiências das normas antecedentes. O método ergológico de investigação do trabalho resgata na história grega um processo dialético de alimentação da produção de saber na atividade de trabalho, o chamado “processo socrático de duplo sentido”. Esse processo indica que não somente quem é possuidor do conhecimento erudito aponta questões aos trabalhadores, que devem dar as respostas, mas que os trabalhadores também podem e devem apontar questões aos supostos detentores do conhecimento erudito ou técnico. A interação dialética entre os saberes é imprescindível para uma análise ergológica das situações de trabalho. No intuito de promover um diálogo entre os saberes e experiências e permitir a realização do processo socrático de duplo sentido, a ergologia propõe o Dispositivo Dinâmico a Três Polos – DD3P, que representa um processo metodológico de investigação da atividade de trabalho que tem como objetivo incitar aqueles que vivem e trabalham a pôr em palavras um ponto de vista sobre sua atividade, a fim de torná-la comunicável e de submetê-la à confrontação de saberes. Ele solicita que os saberes constituídos e socialmente reconhecidos se deixem interrogar pela atividade humana, tal como ela aparece nos pontos de vista argumentados (SCHWARTZ, 2010, p. 162). Somente o coletivo dos trabalhadores é capaz de responder aos problemas relativos à organização e ao funcionamento do trabalho. Esse é o lugar de incitar as variadas áreas do conhecimento, as múltiplas disciplinas a uma interação dialética entre elas, em um diálogo com os saberes da experiência ou os saberes investidos. Esse diálogo deve acontecer sem uma hierarquização de poder entre os diversos saberes, de forma a valorizar e reconhecer a importância de cada um. Constitui-se em um processo de revisitar os conceitos e saberes, possibilitar um encontro entre eles e facilitar a sua circularidade. O DD3P aplica-se não somente a toda atividade de trabalho, mas também a qualquer situação no campo da atividade humana. Schwartz (2000) considera que “este dispositivo a três polos gera, ao mesmo tempo, efeitos sobre a produção de conhecimento e sobre a gestão social das situações de trabalho, pois há efeitos recíprocos entre o campo científico e o campo da gestão do trabalho” (SCHWARTZ, 2000, p. 45). O DD3P compõe-se de três polos. O primeiro polo consiste nos saberes constituídos, “refere-se a todos os conceitos, competências e conhecimentos disciplinares acadêmicos e/ou profissionais” (TRINQUET, 2010, p. 104). Incluem-se aqui as normas antecedentes, prescrições e diretrizes estabelecidas para a organização do trabalho. Esse polo comporta ainda leis, decretos, portarias, orientações metodológicas. É um polo extremamente relevante, porém ele sozinho não é suficiente para elucidar as situaçoes de trabalho. É o polo da validação dos conceitos que está em desaderência com a atividade e deve ser olhado com reservas para que não imponha à distância protocolos que dificilmente poderão ser aplicados. O segundo polo refere-se aos saberes investidos, aqueles gerados pelos trabalhadores no exercício da atividade de trabalho. É o polo das forças de convocação e de reconvocação, em que o trabalhador mobiliza o seu “corpo si”, aciona sua força recriadora por meio do debate de normas, transgride as normas antecedentes e renormaliza as prescrições. É o lugar da valorização do saber da experiência que permite gerir o encontro de encontros, em que o trabalhador com sua singularidade ou o coletivo de trabalhadores, em um contexto real, produz um saber em aderência e que encontra soluções exigidas pela atividade de trabalho . O terceiro polo consiste em promover o diálogo entre os dois primeiros polos, ou seja, colocar em diálogo os saberes constituídos e os saberes investidos. Esse polo convoca os valores éticos e humanos, na produção conjunta de novos saberes. O terceiro polo é sintese demarcada por princípios ou proposições maiores de convívio social. Tem como objetivo colocar em diálogo conceitos e experiências, “incitar aqueles que vivem e trabalham a por em palavras um ponto de vista sobre a atividade, a fim de torná-la comunicável e submetê-la à confrontação de saberes” (SCHWARTZ, 2010, p. 162). É o polo provocador do encontro, do momento de confrontação entre os saberes, da complementaridade entre os saberes e, consequentemente. produtor de novos saberes. O terceiro polo é resultante do “processo socrático de duplo sentido”, da interação dialética entre os saberes no trabalho. O propósito desse polo depende da consistente fundamentação dos dois primeiros polos, dos saberes constituídos e dos saberes investidos. O resultado do dialogo e da confrontaçao entre os dois polos deve estar referenciado por uma postura ética diante das diferenças entre saberes e dos propósitos condizentes com valores civilizatórios da humanidade. O DD3P pode provocar um efeito sobre a atividade de trabalho já que facilita o debate entre os trabalhadores resultando na produção de conhecimento sobre o trabalho e na busca de solução para os problemas encontrados. Para que resultados possam ser alcançados é preciso que os envolvidos tenham formação mínima em ergologia ou que estejam sintonizados com a sua base conceitual e com os fundamentos do esquema teórico-metodológico da proposição. É imprescindível que haja envolvimento dos participantes e que todos tenham clareza dos objetivos que se pretende com o debate. Para a aplicação do dispositivo, a perspectiva ergológica aponta a necessidade de se criarem espaços ou momentos entre os envolvidos diretamente com a situação para lidar com os inevitáveis impasses surgidos no trabalho. Para operacionalizar o DD3P, são propostos os Grupos de Encontro de Trabalho que se constituem em uma estratégia ou um recurso para conhecer a atividade de trabalho na perspectiva de transformá-lo. Os GETs concretizam-se por meio da reunião de um grupo de trabalhadores com o intuito de conhecer e debater questões relativas ao trabalho, mas principalmente de buscar soluções conjuntas para os problemas enfrentados. Partem do pressuposto de que conhecer o trabalho requer escutar o trabalhador, que é quem sabe dizer sobre o trabalho e sobre a melhor maneira de executá-lo. Os GETs são orientados pelo esquema teórico-metodológico do DD3P. Nesse espaço o trabalho é traduzido em palavras, os saberes constituídos confrontam-se e complementam-se com os saberes investidos, o que resulta, no vetor do terceiro polo, numa elaboração de novos saberes. Os saberes da experiência formulados individualmente são explicitados, debatidos e apropriados pelo coletivo. Os GETs permitem que as renormalizações individuais e coletivas possam ser renormatizadas. São estratégias de: Apropriação: uma familiarização conceitual com a atividade como tratamento enigmático da confrontação entre formas protocolizadas da experiência industriosa e a necessidade de aí sempre gerir, nessas formas, os encontros de encontros. Instrução: um colocar em visibilidade e em palavras essa experiência, desdobrando habilidades, sinergias eficazes e inaparentes, as lacunas ou inadequações das normas antecedentes, as reservas de alternativas em sofrimento nesses lugares de utilização da atividade humana. (SCHWARTZ, 2010, p. 164) Portanto, é no processo de renormalização que o trabalho transforma-se e ganha novas proporções, deixa de ser mera repetição mecânica, como consequência de uma prática reflexiva e pró-ativa dos trabalhadores. “A atividade é obrigação feita de pensar” (SCHWARTZ, 2010, p. 162). Esses conceitos orientarão a análise que se fará dos dados empíricos, pois a compreensão do processo de gestão do CRAS e da atividade de trabalho nesse espaço sócio-ocupacional está intimamente relacionada à insuficiência de normas antecedentes e à impossibilidade de “tudo prever”, devido à natureza do serviço permeada pela imprevisibilidade. Os trabalhadores sociais são levados a uma constante renormalização de sua atividade, que resulta, ao mesmo tempo, numa atitude reflexiva e numa produção e mobilização de saberes. 6 – Análise da atividade de trabalho no CRAS O homem deve adquirir sua própria liberdade através de sua própria atuação. Mas ele só pode fazê-lo porque toda sua atividade já contém, enquanto parte constitutiva necessária, também um momento de liberdade (GEORG LUKÁCS). Nesta seção temática a análise da atividade de trabalho no CRAS procurou seguir um roteiro que indicasse uma sequência lógica das etapas e a tradução da origem e da manifestação do trabalho real. As categorias teóricas aparecem ao longo da análise dos dados empíricos. Ter como foco a gestão do trabalho exige identificar inicialmente as normas antecedentes e as prescrições legais previstas na política pública de assistência social, pois toda a organização do processo de trabalho está ancorada na legislação federal e na sua adequação à legislação municipal. Durante a pesquisa ficaram evidentes a forte influência das prescrições e os avanços obtidos neste campo a se considerar o pouco tempo de implantação do atual modelo de organização da política de assistência social. Para os trabalhadores do CRAS essas prescrições legais tendem a ser cada vez mais incorporadas ao processo de trabalho e como pauta para estudos, o que não impede que nas situações de trabalho as normas antecedentes sejam ressingularizadas em renormalizações frequentes. As prescrições técnico-científicas, o saber constituído e o saber investido compõem outro item analisado que, juntamente com as prescrições legais, fundamentam a atuação dos trabalhadores do CRAS. A composição da equipe de referência com definições das funções e atribuições proporciona uma variedade de questões quando analisadas diante das situações reais na realização da atividade de trabalho. O trabalho real é revelado neste item, incorpora os saberes interdisciplinares que se fundem na realização da atividade. Ao mesmo tempo em que preserva a subjetividade e a singularidade de cada trabalhador, consolida um saber coletivo e um modo próprio de gerir o trabalho. No decorrer da pesquisa foi revelada a forte influência da linguagem no desencadeamento da atividade de trabalho, o que motivou a inclusão da linguagem como uma categoria de análise. A linguagem perpassa o processo de trabalho como uma ferramenta e ao mesmo tempo como um fenômeno inserido na atividade de trabalho a serviço dos trabalhadores ao orientar a ação, na mediação das relações interna na equipe e no contato com a população usuária do CRAS. A caracterização da gestão social como um processo dialógico e democrático, ganha relevância com a compreensão da manifestação das diversas dimensões da linguagem no processo gestionário do CRAS. As relações interinstitucionais se enquadram como uma das funções do CRAS, que se revela como uma ação que vai exigir dos trabalhadores habilidades e saberes. Essas ações foram analisadas pela ótica dos trabalhadores na relação com as demais políticas públicas e os diversos níveis hierárquicos do governo local. 6.1 – Prescrições legais e as normas antecedentes A política pública de assistência social historicamente careceu de uma legislação própria capaz de organizar e normatizar o seu funcionamento em todo o território nacional. A legislação federal cumpre uma importância na prescrição das normas legais que definem a estrutura e a organização da política de assistência social. Os documentos são recentes e resultantes de um esforço em dimensionar as ações, na tentativa de estabelecer uma coerência com seu propósito constitucional e com um posicionamento do Estado com relação à proteção social à população. O conjunto das prescrições legais são as normas antecedentes que definem a organização da política de assistência social e que, ao serem elaboradas, podem representar conquistas e avanços, como também riscos de engessar procedimentos e concepções no processo técnico e político de gestão. A prescrição legal da política de assistência social é composta pelo conjunto de leis, resoluções, decretos, normas operacionais, instruções normativas e documentos de orientação técnica e metodológica (VIEIRA, 2003). Todo esse conjunto de normas antecedentes deve ser capaz de traduzir em aplicação prática as ações públicas nos três níveis de governo – federal, estadual e municipal – a fim de proporcionar certa unicidade e padronização, além de possibilitar a construção de uma identidade como política pública. A legislação cumpre um importante papel ao delimitar a compreensão da política pública, apontar diretrizes, ordenar o seu funcionamento e definir serviços e os princípios metodológicos que irão garantir o funcionamento traduzido no nível da atividade de trabalho. A pesquisa junto aos trabalhadores da assistência social com atuação nos CRAS identificou que há um reconhecimento quanto à importância das prescrições legais com o intuito de nortear a atividade de trabalho. Esses documentos são de amplo conhecimento do conjunto de trabalhadores investigados. E5. O CRAS começou a funcionar em 2009, então foi muito bom porque ele começou junto com a Tipificação, então eu comecei a estudar a Tipificação da assistência, e eu lia e relia a Tipificação e o Protocolo de Gestão, é mais baseado nesses documentos que agente trabalha. Percebeu-se que alguns dos entrevistados encontraram dificuldades em citá-los, enquanto outros descrevem os documentos com maior desenvoltura. Os documentos mais consultados foram aqueles relacionados às prescrições que garantem o funcionamento do CRAS, devido à sua utilização freqüente pelos trabalhadores, como: a PNAS-2004, NOB/SUAS-2005, Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, o caderno de Orientações Técnicas – CRAS, o Protocolo de Gestão Integrada. Fica evidente que os trabalhadores não só conhecem como utilizam com frequência variada, de acordo com a necessidade, os documentos oficiais que normatizam o serviço. E3. (...) vejo que a gente usa a Tipificação, principalmente, e o Protocolo de Gestão no plano de ação que vai dar para desencadear as atividades que a gente vai fazer durante um ano. E6. (...) a Tipificação virou o be-a-bá nosso aqui, a Política Nacional também, acho que ela é o grande guarda-chuva, e dele você tem outras coisas. E5. Eu recorro a esses documentos não com muita frequência, na verdade, fica em cima da minha mesa, quando eu tenho alguma dúvida eu leio. Entretanto outros documentos legais são de amplo conhecimento dos trabalhadores entrevistados e foram citados, como a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e o Estatuto do Idoso, etc. Os objetivos propostos pela legislação para a atuação do CRAS são compreendidos e incorporados pelos trabalhadores. Percebe-se uma plena assimilação e uma defesa dos objetivos institucionais propostos. Segundo os entrevistados, os objetivos citados se referem à questão do acesso e da garantia dos direitos de cidadania e ao fortalecimento de vínculos. A tradução dos objetivos em ações de fato efetivadas é uma preocupação dos trabalhadores no exercício da sua atividade: E6. No objetivo dos documentos e do trabalho que a agente faz aqui, está muito ligado na garantia dos direitos do cidadão que mora aqui no território. Então, do acesso às políticas, do acesso à rede sócioassistencial, do acesso às informações, do acesso a locais que ele possa refletir sobre a sua vida, se fortalecer, do acesso às atividades que possam dar o empoderamento a esse sujeito no território. E7. (...) a gente trabalha com a questão do direito, fortalecimento de vínculos familiar e comunitário, então, atendimento à família com objetivo de dar acesso aos direitos, de informar a respeito dos direitos. A formatação da política de assistência social apresenta o CRAS como uma unidade pública localizada em territórios caracterizados pela situação de vulnerabilidade social. O CRAS como um serviço descentralizado de base local surge neste cenário imbuído de significativa importância e vem preencher uma lacuna na estrutura institucional pública com aproximação da realidade vivida pelos usuários. A realidade dos territórios é geradora de demandas diversas, tanto por parte da sua população quanto das demais políticas públicas. As demandas oriundas da população são acolhidas, tratadas pelo serviço e trabalhadas conforme a capacidade de resolutividade. As demandas originárias das demais políticas setoriais, ou seja, das demais instâncias públicas, são tratadas como relações institucionais hierarquizadas e que em algumas situações escapam da governabilidade do serviço. Essa relação será tratada posteriormente de forma mais detalhada. Ao investigar a existência de outros objetivos além dos já prescritos para o CRAS, identifica-se uma situação conflitante. Ficou revelada uma percepção de que as ações realizadas no CRAS estão todas prescritas pelas normativas legais, ou seja, ao comparar as normas antecedentes com as atividades realizadas, constata-se que o que foi prescrito está sendo realizado. Entretanto, ao se inverter a análise, tendo como referência as atividades realizadas pelos trabalhadores, constata-se que outros objetivos não prescritos estão sendo endereçados para o CRAS. O trabalho de fato realizado extrapola as prescrições das normas antecedentes, outras ações não previstas nos documentos oficiais estão sendo executado pelo CRAS, o que fica constatado no relato abaixo: E6. Claro, faz muitas coisas, na visão das outras políticas que atuam aqui, o CRAS faz tudo, é o que tem que resolver tudo. E ao mesmo tempo é o que coloca o bedelho em tudo, para população é a mini-prefeitura de Belo Horizonte. Aqui tem demandas de todas as naturezas, aí a gente acaba fazendo uma porção de coisas. E5. Tem algumas coisas que a gente vai além. Eu entendo que o objetivo é sempre a diminuição das vulnerabilidades e a inclusão social. (...) O CRAS tem cumprido com os objetivos definidos, mas tem também realizado ações que nem sempre estão prescritas na legislação por uma imposição do contexto territorial em que está inserido, ou até mesmo pela falta de compreensão por parte das demais políticas sociais e dos gestores de outras instâncias hierárquicas de seus objetivos. A novidade que o CRAS representa no conjunto da política pública, faz com que os seus objetivos e as ações correspondentes sejam constantemente testados e desafiados a ampliar o seu alcance. Percebe-se isto na abordagem de um entrevistado: E6. Eu acho que pelo fato da política nacional ser tão nova, a prescrição está sendo feita aos poucos (...). Há um grande número de ações previstas nos documentos oficiais que são realizadas, mas há também uma quantidade de procedimentos que não foram sequer previstos e que começam a ser revelados com a implementação do serviço. Essa situação faz com que uma série de procedimentos que já são realizados, mas que ainda não foram prescritos mereça que sejam normatizados. Há entre os entrevistados um consenso em afirmar que os objetivos e as diretrizes do CRAS estão coerentes com a legislação federal que normaliza o serviço, mas que as atividades realizadas pelos trabalhadores são intensas e extrapolam em muito os objetivos do serviço. E3. Acho que a gente faz coisa demais e que nem sempre a gente consegue atender tudo que está colocado nesses documentos, (...) a demanda do CRAS é grande demais da conta. A realidade do território é apontada como uma variável com capacidade de alterar procedimentos e apresentar demandas até então não previstas. As múltiplas manifestações da questão social são reveladas nos territórios onde as situações de vulnerabilidade social desafiam o poder público e se tornam matéria-prima da intervenção social. E6 (...) na área urbana você vê algumas diferenças de território, aí ela (as normas) não dá conta delas. E3. Acho que a dinâmica do CRAS é muito mais ampla (do que as prescrições). Apesar da constatação quanto à insuficiência das prescrições no ordenamento do CRAS, há um reconhecimento quanto à importância dessas prescrições nas situações de trabalho. As normas são necessárias para o direcionamento da política de assistência social e para posicionar a atuação do CRAS neste sistema, como na afirmação a seguir: E7. Elas não são suficientes, mas elas nos dão um direcionamento. É comum os trabalhadores identificarem a existência de situações que não foram previstas nas diretrizes de funcionamento do CRAS, ou seja, a constatação da existência de insuficiência e de vazios de normas. As normativas legais não são suficientes para prever todo o trabalho no CRAS. Como afirma Schwartz (2011, p. 138) “(...) nenhuma norma antecedente, nenhuma prescrição poderá abstrair os vazios de normas. A antecipação exaustiva é impossível”. Os trabalhadores do CRAS reconhecem que todo este conjunto de normas antecedentes que definem a atuação do CRAS não é capaz de tudo prever. Ocorrem situações que escapam às prescrições, mas que precisam ser geridas. É preciso agir nestas situações, criar e recriar soluções coletivas, ou seja, é preciso renormalizar, e posteriormente renormatizar reconstruindo rotinas, protocolos e procedimentos junto com o coletivo de trabalho. Diante das insuficiências das normas o trabalhador promove individualmente e junto com o coletivo uma renormalização capaz de gerir a atividade, o que se constitui em processos de aprendizagem e produção de saberes. A dinâmica e a variabilidade da atividade de trabalho no CRAS fazem com que os trabalhadores recorram a seus pares na equipe em busca de soluções coletivas. A experiência, a intuição e a criatividade são recursos mobilizados diante de situações imprevistas. E5. (...) a gente vai pela intuição, pela experiência, pelo que você escuta das necessidades do território, acho que assim a gente consegue. (...) na verdade a gente cria muito na nossa prática. A partir da normativa usa a criatividade da equipe e o que está vendo de demanda no território. Quando existe alguma novidade, se pergunta: “será que a gente pode?”, aí recorremos ao técnico de acompanhamento da GPSOB, no que diz respeito às atividades do CRAS mesmo. E7. Olha, quando não tem a questão da legislação a gente recorre a outro CRAS, a outras pessoas que já têm experiência nesse trabalho. Aí seriam outros profissionais da área que acompanham, que trabalham no CRAS, da equipe mesmo. Ou mesmo buscando assessoria na Secretaria, da equipe de acompanhamento. Diante do vazio de normas o coletivo de trabalho produz renormalizações na sua atividade e renormatiza ao instituir regras de funcionamento interno. É comum cada coletivo de trabalhadores dos CRAS renormatizar procedimentos até então não prescritos e regular os processos de gestão para melhor se adaptar às situações. E6. A gente começa a institucionalizar isso, mesmo não estando prescrito, eu penso assim. O que vai ser prescrito é aquilo que não está prescrito (ainda e) que precisa ser. Então, eu como gestora desse equipamento, eu faço legitimar, institucionalizar algumas práticas que a gente tem aqui, principalmente da questão de intersetorialidade, está não prescrita em todos os ângulos, digamos assim. E então algumas coisas passam a ser uma rotina, eu acho importante, pois é isso que vai ajudar na prescrição de novos procedimentos. É preciso ter clareza quanto aos objetivos e à finalidade dos serviços que compõem, em conjunto, determinadas funções na estruturação da política pública. A definição dos objetivos do CRAS, como a de qualquer outro serviço da estrutura pública, deve ser bem explicitada e bem compreendida, tanto para as instituições com as quais se relaciona, como para a população atendida. O CRAS está inserido no modelo organizacional do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, em que cumpre uma função com competências delimitadas e que responde por determinadas ações a ele atribuídas. Na realização do trabalho identifica-se um distanciamento entre o trabalho prescrito e o trabalho real, ou o trabalho de fato realizado, que a ergologia denomina atividade. Por mais que se tente antecipar o agir por meio das prescrições, haverá sempre lacunas e o trabalho realizado apresentará situações não prescritas que precisam ser realizadas. Ao investigar a atividade de trabalho no CRAS, constata-se a existência desse conflito próprio das situações de trabalho. O lugar que o CRAS ocupa na política pública, especificamente na política de assistência social, e a sua localização em territórios de vulnerabilidade social faz com que a realidade social seja mais desafiadora ao apresentar demandas de toda ordem e que não se enquadram nas funções setorizadas dos serviços e agências públicas. Os trabalhadores do CRAS deparam-se com situações inusitadas, com tramas sociais particulares em um contexto permeado por problemas sociais, que precisam ser tratados no âmbito profissional e institucional, mas que por outro lado não encontram prescrições e protocolos previstos nos saberes acadêmicos e nas normas legais. O desafio para os trabalhadores é intenso. Ao lidar com o “informalizável”, eles recorrem aos diversos saberes e à sua singularidade como sujeito para gerir a sua própria atividade. A realização da atividade de trabalho no CRAS não se traduz pela simples aplicação de protocolos e normas antecedentes. Schwartz (2010, p. 43) afirma que “toda atividade é sempre de um lado a aplicação de um protocolo e, de outro, um encontro de encontros a gerir, podemos dizer que toda atividade é um debate (...)”. As normas antecedentes traduzidas nos protocolos legais são instrumentos imprescindíveis na consolidação da política de assistência social. Em um país com uma diversidade regional e com municípios dispersos em realidades singulares como o Brasil, torna-se impossível traçar diretrizes gerais que contemplem todo esse universo de particularidades. O preceito constitucional outorga aos municípios brasileiros relativa autonomia na instituição de políticas públicas, o que garante uma adequação das diretrizes nacionais à realidade e às particularidades locais. Nesse sentido, outras atribuições além das previstas nos protocolos federais podem ser incorporadas na formatação local dos serviços. No entanto, é imprescindível uma constante vigilância para que não haja o desvirtuamento e a descaracterização dos serviços e o consequente descumprimento da finalidade e dos objetivos até então formulados. No município de Belo Horizonte, parece haver um relativo reconhecimento e valorização do lugar ocupado pelos CRAS na efetivação das políticas públicas locais. Ocorre também uma supervalorização e uma expectativa que ultrapassam aos objetivos do serviço. Esse contexto acarreta um excesso de atribuições para os CRAS nos territórios sem que haja um dimensionamento adequado das condições para a realização do trabalho, o que vem sobrecarregar cada vez mais as equipes, como ficou constatado nas entrevistas. A intensidade de trabalho nos CRAS é um fator gerador de uma precarização das condições de trabalho já identificada na literatura (NERY, 2009; RAICHELIS, 2010). A promoção de debates democráticos com a participação efetiva dos trabalhadores da assistência social, bem como o reconhecimento dos profissionais como produtores de saberes, sem dúvida levará a uma compreensão maior a respeito dos objetivos principais e das funções primordiais do serviço. Consequentemente, o CRAS poderá cumprir seu objetivo de contribuir com a inclusão social e com a garantia dos direitos sociais. 6.2 – O saber constituído e o saber investido em desafio na atividade O conhecimento científico fundamenta a intervenção profissional nos espaços sócio-ocupacionais dos trabalhadores da assistência social. O saber constituído, definido pela ergologia como o saber adquirido ou não na formação acadêmica, fundamentado em bases teóricas e científicas, é desafiado pela atividade de trabalho dos trabalhadores no CRAS. A atuação profissional é referenciada no saber constituído, na busca constante de adequação às abordagens teórico-metodológicas e técnicooperativas. O conhecimento já formalizado é uma ferramenta imprescindível para a realização da atividade de trabalho neste campo. O domínio dos conceitos é condição fundamental para a práxis ao transpor o senso comum para um posicionamento crítico28 diante da realidade social. Para Simionatto (2011, p. 81) “o senso comum é explorado e utilizado pelas classes dominantes para cristalizar a passividade popular, bloquear a autonomia histórica que poderia resultar, para as massas, no seu acesso a uma filosofia superior”. O senso comum promove a incorporação de uma ideologia dominante que impõe uma concepção de mundo como uma suposta verdade e impede que sejam desveladas outras possibilidades de reflexões sobre as diversas formas do viver. Um coletivo de trabalhadores da assistência social qualificado passa necessariamente pela capacidade de realização de uma análise crítica, além do senso comum sem grandes aprofundamentos, e de uma elaboração do lugar que ocupa diante da realidade social. 28 Simionatto sustenta-se na concepção gramsciana ao afirmar que a capacidade crítica está relacionada à cultura, entendendo-a não como uma aquisição de conhecimentos, mas à cultura relacionada a “um posicionamento frente à história. A cultura está relacionada, pois, com a transformação da realidade, uma vez que através da ‘conquista de uma consciência superior (...) cada qual consegue compreender seu valor histórico, sua própria função na vida, seus próprios direitos e deveres’” (GRAMSCI apud SIMIONATTO, 2001, p. 8). A realização da atividade de trabalho no CRAS desafia os trabalhadores e a formação acadêmica nas diversas áreas do conhecimento. Interrogados em relação à formação acadêmica, todos os trabalhadores do CRAS consideraram-na insuficiente para o exercício da atividade de trabalho. De forma geral, há uma concepção de que a formação acadêmica é muito teórica e distante da realidade social, isto é, ocorre um distanciamento entre a teoria e a prática. E7. A formação acadêmica é muito teórica, foge um pouco da realidade. E5. Eu tive duas ou três cadeiras de psicologia social, muito mal dadas e foi há muito tempo atrás. Eu formei em 1991! Era uma matéria que não te atraia, eu não tinha a menor idéia que eu iria trabalhar nessa área, e me encantei por ela. (...) com certeza ele (o trabalhador do CRAS) vai aprender mesmo é na prática. Os profissionais com graduação em Serviço Social que concluíram o curso antes de 2004 afirmaram que não estudaram os fundamentos da política de assistência social, pois a legislação é muito recente. Somente foram conhecer esse conteúdo no exercício profissional ao trabalhar com a política pública. E1. Formei em 2001 e não havia uma elaboração da política de assistência social como hoje. Em 2001 as coisas estavam começando ainda. Na verdade, não existia essa ênfase, não existia isso ainda, a gente trabalhava só com a LOAS. (...) E quando cai no mercado (de trabalho) aí são outras coisas que estão, desenvolveu muito rápido, a política de assistência social é nova (...). E7. Formei em 94. Naquela época era muita teoria. Formei em 94, em 93 surgiu a LOAS, ninguém sabia dizer da LOAS, era uma coisa nova, é muito nova a política. Eu lembro quando o CRES foi lá falar da LOAS, mas ninguém sabia dizer mais. E aí é uma Lei Orgânica, a política ainda não existia. E3. Pra te falar a verdade não! Assim, eu acho que fica uma lacuna sabe, entre o que a gente aprendeu. (...) a questão da assistência acho que mudou muito (...). Há, no entanto, um reconhecimento quanto à importância da graduação em cursos da área social como contribuição na formação e na preparação para lidar com as situações com as quais se deparam na atividade de trabalho no CRAS. Ainda que a graduação em Psicologia venha incorporando, recentemente, as políticas sociais públicas em sua matriz curricular, essa não era a realidade de alguns anos atrás, em especial no que se refere aos fundamentos da política pública de assistência social. Esse fato acarreta certa dificuldade desses profissionais em responder às exigências da sua prática profissional nesse espaço sócio-ocupacional. Mesmo assim, a formação acadêmica pode até não fundamentar tecnicamente os profissionais em ações específicas, mas oferece uma preparação de base teórica e cientifica para maior compreensão diante do ato de gerir as situações com as quais se deparam na atividade de trabalho, como na afirmação abaixo: E2. (...) mas, contribui mesmo pra eu conseguir conduzir essa conversa com a família, tentar ter sensibilidade em entender. Às vezes, a dona fulana queria vir aqui só porque ela queria chorar, né, isso não me incomoda, isso não me frustra, isso não me fala que eu tinha que encaminhar (realizar encaminhamentos) Isso me mostra que ela está em um outro momento, é diferente. Às vezes a pessoa precisa só de um espaço para se fortalecer, né. A pesquisa identificou também trabalhadores graduados em cursos da área de Educação que atuam no CRAS. Houve um posicionamento que considera a formação em Serviço Social mais inserida na política de assistência social e mais adequada à prática profissional no CRAS do que as demais formações acadêmicas. No entanto, os processos socioeducativos no CRAS são relacionados à práxis no campo da Educação, tanto no que diz respeito à relação com os usuários como à relação no interior do coletivo de trabalho. O debate conceitual entre os vários trabalhadores do CRAS surge como uma prática interdisciplinar em dialética com a confrontação de saberes, o que lhes permite uma reflexão construtiva e uma elaboração coletiva de novos saberes. E6. Há um saber que é construído na universidade, no curso de serviço social, que eu acho um saber muito importante que agrega valores na condução do trabalho. É um saber técnico que é importante um gestor ter, eu acredito nisso. Mas, eu corro muito atrás de fazer um estudo meu, entende? Eu tenho uma literatura ampla relacionada ao serviço social, que ajuda até a brigar com o serviço social, discutir concepções. Acho que, de modo geral, para ser um coordenador de CRAS, é necessária essa formação, porque as atividades que a gente desenvolve aqui são muito socioeducativas. É isso que agente faz na escola, pelo menos eu como professora fazia, e como gerente, quando a gente planejava a política. E a política de educação está centrada nisso também. É comum os trabalhadores recorrerem a estudos em outras áreas de conhecimento para o trabalho no CRAS. A formação acadêmica é considerada insuficiente para que os profissionais possam responder às exigências do trabalho. São estudos relativos à política de assistência social, por se tratar de uma formulação recente no campo da política pública. Essa procura se dá com vistas à melhor capacitação para responder às demandas impostas pela atividade de trabalho em torno de temas de pouco domínio teórico. Há, sim, uma procura por estudos em outros campos do conhecimento científico que possam complementar a formação acadêmica. E5. (...) eu tenho estudado muito, neste sentido, para exercer essa atividade (...). E6. Na literatura da assistência social, no serviço social, na psicologia. E7. Mais à área do serviço social. Às vezes da psicologia e sociologia também. De acordo com os entrevistados, trata-se de iniciativas individuais e solitárias. Foi identificado que cerca de 70% dos entrevistados já fizeram cursos de pós-graduação ou de especialização nessa área, o que vem constatar o reconhecimento dos trabalhadores do CRAS quanto à importância do saber acadêmico como suporte para o exercício da atividade de trabalho. A dinâmica de trabalho no CRAS é intensa, o que pouco permite incluir no espaço de trabalho momentos de estudos teóricos junto com a equipe técnica. E3. Para minha especialização do cuidador de idoso sim, eu gostei muito. Dentro do que me é permitido, eu tentei me especializar, tanto no projeto cuidador, quanto no grupo de convivência de idosos. (...) nesse momento, não estou recorrendo a nada, eu não tenho tempo, eu gosto de estudar, mas o que me falta hoje é tempo para ler. O trabalho como atividade humana é muito mais complexo para ser analisado e decifrado a partir apenas de uma única disciplina acadêmica. Como afirma Trinquet (2010, p. 94) “todas são necessárias, embora nenhuma seja suficiente. Trata-se, portanto, de colocá-las em dialética – e não somente sobrepô-las umas sobre as outras – o conjunto de saberes elaborados pelas outras disciplinas”. A formação acadêmica disciplinar apresenta-se incompleta para qualificar os trabalhadores em todas as habilidades exigidas pelas situações de trabalho no CRAS. A política de assistência social tem nas diversas manifestações da questão social o seu objeto de intervenção. Esse fenômeno social se caracteriza pela sua multidimensionalidade. Daí decorre que, para a atuação profissional neste campo, é exigida a formulação de um saber pluridisciplinar para melhor compreensão e ampliação das possibilidades de intervenção na realidade social. No que diz respeito à relação do conhecimento acadêmico já formalizado com a atividade de trabalho, é preciso resgatar a fundamentação teórica como base do pensamento crítico e não somente como suporte para a operacionalização de procedimentos técnico-operativos. A atividade de trabalho no campo da política de assistência social requer uma prática profissional reflexiva e sustentada em teorias e conceitos que possibilitem ao trabalhador um empoderamento de suas competências que lhe permita “acionar estratégias e técnicas; a capacidade de leitura da realidade conjuntural, a habilidade no trato das relações humanas, a convivência numa relação interprofissional” (IAMAMOTO, 2007, p. 94). Além do conhecimento científico, outros saberes são requisitados, pois esses trabalhadores se deparam com situações inusitadas em que prescrições técnicas ou científicas não são suficientes para apontar caminhos com vistas a uma resolutividade satisfatória. A cada situação encontrada no atendimento às famílias, os trabalhadores do CRAS têm que usar a criatividade e a inventividade ao construir e reconstruir procedimentos e estratégias para responder às demandas e à dinâmica da realidade social. Trabalhadores recorrem a “forças de convocação” dos saberes disciplinares e a “forças de reconvocação” com o ato de testar e avaliar esses saberes acadêmicos “colocando-os em confronto com os universos de saberes e de experiências” (SCHWARTZ, 2000, p. 43). Os saberes adquiridos na experiência prática, os saberes investidos na atividade são constantemente acionados. Esse saber investido está situado em tempo real e a sua elaboração está em aderência com a situação de trabalho (TRINQUET, 2010; SCHWARTZ, 2010). A experiência produz um conhecimento sobre algo, mas a experiência associada à elaboração de conceitos permite a produção de saber. O saber investido é sempre individual e singular. Repensar a experiência permite inseri-la ao processo individual vivenciado no trabalho, somado ao acúmulo da experiência ao longo da vida, portanto, a experiência é sempre singular. A realização da atividade de trabalho no CRAS desafia os trabalhadores ao aprofundamento dos saberes disciplinares, a colocá-los em dialética em uma construção pluridisciplinar, de forma a associá-los aos saberes investidos adquiridos na experiência de trabalho. Os saberes acadêmicos, segundo Schwartz (2010, p. 44), “são desinvestidos, ou seja, que podem ser definidos e relacionados com outros conceitos independentemente das situações particulares”, sendo comum a percepção do distanciamento entre a formação acadêmica de base teórica com a prática encontrada na atividade de trabalho. Na formação de uma equipe de trabalho de CRAS, a junção dos diversos sujeitos ao fazer interagir os saberes em dialética produz um “saber do coletivo de trabalho”, ou seja, cada equipe produz um saber coletivo próprio. É uma situação rotineira quando trabalhadores do CRAS recorrem aos colegas para uma troca de saberes para o atendimento aos usuários. Percebe-se o encontro de saberes no coletivo de trabalho na troca de experiências para a realização da atividade de trabalho, como nos depoimentos abaixo: E3. (...) aos colegas mesmo, eu acho que vem com outras experiências né, a gente recorre muito à equipe mesmo. Ás vezes, até no atendimento surge uma dúvida aqui, a gente vai lá dentro e pergunta, a gente pesquisa. Às vezes, você está aqui e não sabe a informação que o usuário te pediu, a gente pesquisa na internet alguma coisa assim, (...) a gente recorre muito à equipe técnica assim, eu acho isso muito bacana e a gente recorre uns aos outros (...). E7. Eu tenho contato com professores, outros profissionais também da área, eu recorro a eles, uma supervisão. Peço ajuda aqui mesmo, na equipe, na gerência na secretaria. E6. (...) e muito de intuições também, e experiência de vida. O trabalho exercido como uma prática coletiva é uma condição essencial nos espaços socioassistenciais da política de assistência social, e, como afirma Silveira (2011): As práxis se complementam (...). Sobressai a produção coletiva de saberes críticos e competentes, que materializem o compromisso político com os usuários. Os saberes requisitados possuem complexidades próprias orientadas pelos projetos profissionais coletivos, e se inscrevem no projeto social do direito à assistência social, o que requer a compreensão da trajetória desta política e de sua natureza, a produção de respostas técnicas e éticas vinculadas às demandas e processos essenciais que possibilitam a mediação entre o direito e as necessidades dos usuários (...) (SILVEIRA, 2011, p. 28). O saber constituído em bases científicas é imprescindível para a realização da atividade de trabalho no CRAS, pois o domínio dos saberes disciplinares e dos conceitos é condição para o debate e a confrontação com a experiência. Os conceitos se atualizam na experiência e a atividade se renova nas reflexões instigadas pelos conceitos. O domínio dos conceitos é fundamental para que seja colocada em debate a atividade de trabalho na intenção de melhor conhecê-la, “mesmo que se perceba depois que esses conceitos precisam ser reformulados, retrabalhados, passando pela atividade. (...) os conceitos não antecipam tudo, é sempre necessário esse olhar sobre a atividade” (SCHWARTZ, 2010, p. 137). Para a execução das ações no CRAS, os trabalhadores precisam dos saberes disciplinares que lhes ofereçam um olhar crítico e reflexivo que possibilite a formulação de conceitos, pois “o conceito é um instrumento a serviço do conhecimento” (DURRIVE, 2011, p. 57). Como afirma ainda Schwartz (2010, p. 137) “precisa-se de conceitos para melhor compreender sua própria experiência de trabalho, caso contrário ela não se liberta de certas limitações”. 6.3 – Atividades de Trabalho Realizadas 6.3.1 – Composição das equipes – condições de trabalho para a realização da atividade A legislação federal estabelece em forma de prescrições legais a organização do CRAS, assim como a composição e as funções do coletivo de trabalho. A equipe do CRAS, definida como “equipe de referência29”, de acordo com a NOB-RH/SUAS de 2006, é composta de um recepcionista, um auxiliar administrativo, um coordenador e uma equipe técnica formada por assistentes sociais e psicólogos. O número desses profissionais tem variado conforme o número de habitantes do município e a capacidade 29 Equipes de referências são aquelas constituídas por servidores efetivos responsáveis pela organização e oferta de serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e especial, levando-se em consideração o número de famílias e indivíduos referenciados, o tipo de atendimento e as aquisições que devem ser garantidas aos usuários (BRASIL, 2006, p.19). do órgão gestor municipal em dimensionar a relação entre demandas de trabalho com recursos humanos. Há uma diferenciação das atividades de trabalho entre as funções administrativas, técnicas e de coordenação. No quadro administrativo dos CRAS, no município de Belo Horizonte, os trabalhadores ocupam funções de recepção e da organização administrativa. A coordenação cumpre uma função diferenciada, ocupandose com mais intensidade das relações organizacionais e políticas, o que inclui a organização da rotina de trabalho, da qualificação do atendimento técnico e das relações interinstitucionais. À equipe técnica cabe a realização do trabalho com as famílias, o que inclui o atendimento, o acompanhamento, as ações coletivas e os desdobramentos necessários para a sua execução. 6.3.2 – Funções e atribuições: ações interdisciplinares no trabalho coletivo É possível perceber uma distribuição de funções e atribuições no interior das equipes, entre os trabalhadores, de forma a responder às demandas que chegam até ao serviço. Para cada ação ou frente de trabalho é definido um técnico como referência, responsável pela sua condução. Cada trabalhador se responsabiliza por determinadas ações, mas todos precisam ter informações de todas as ações realizadas no CRAS para que possam informar ou ofertá-las aos usuários durante o atendimento. E6. A organização da equipe é feita por frente de trabalho e nessa frente tem um técnico de referência. Isso não significa que só ele tem que fazer. A equipe tem que saber de tudo aquilo que está acontecendo também. E3. (...) na verdade, a gente atende todos os usuários, a gente tem conhecimento do que está acontecendo (...), por exemplo, o pro jovem é um grupo que eu não desenvolvo, assim eu fico até atenta, né. Quando vou atender usuário, vi que o usuário tem até perfil para inclusão no pro jovem, vou orientá-lo, preencher a ficha de cadastro, mas a realização dessa atividade não fica comigo (...) eu tenho conhecimento de como ela acontece, mas eu não participo dela (...). E5. A informação tem que circular, inclusive de técnico para técnico, porque tem o técnico do pro jovem, por exemplo, que é a referência do pro jovem. Os outros técnicos têm que entender o que ele faz e como que vai atender aquela família que tem um menino que foi encaminhado para o pro jovem. Por isso que a informação tem que circular. Para que essa organização do trabalho aconteça, é preciso que cada trabalhador saia da condição individual de realização da atividade de trabalho para uma prática coletiva, interativa, e assim, consequentemente, desdobrar numa produção coletiva de ações e de saberes. Um modelo de gestão que poderia favorecer uma organização taylorista do trabalho com a divisão fragmentada de tarefas, é sem dúvida, uma armadilha enfrentada pelas equipes. A busca constante de uma prática que venha privilegiar a produção coletiva de saberes se estabelece como estratégia de superação dessa forma de organização. A equipe técnica é formada por assistentes sociais e psicólogos, sendo que ambos realizam os mesmos procedimentos técnicos e metodológicos. Com formação acadêmica estes profissionais adquirem habilidades específicas, mas também habilidades em comum e as intervenções no espaço sócio-ocupacional do CRAS desafiam as interseções entre as disciplinas e a construção de novos saberes (BEATO et. al., 2011). Não há divisão de funções e atribuições específicas para cada área de formação acadêmica, todos realizam as mesmas ações e possuem responsabilidades técnicas idênticas. E7. Lá não tem essa diferenciação entre assistente social e psicólogo. Todos são técnicos e todos fazem todas as atividades. E3. (...) o trabalho básico é o mesmo pra todo mundo, assim o que vai ter que fazer, o numero de encontros, isso eu acho que é bem comum, mas com suas especificidades em função dos territórios. A configuração da equipe técnica como um coletivo de trabalho consolida-se na categoria de “trabalhadores do SUAS” que compartilham princípios, objetivos, responsabilidades, resultados e os compromissos com os propósitos da política pública de assistência social. Para Muniz (2011): É importante ressaltar que as particularidades de cada profissão não se diferenciam pelo uso de determinados instrumentais. No trabalho social, muitos instrumentos são comuns, como a entrevista, a reunião, a visita domiciliar, o relatório, o prontuário, entre outros, e muitas vezes são utilizados em conjunto. O que caracteriza cada uma, com efeito, é o conjunto de saberes específicos que somados e multiplicados aos saberes dos outros profissionais enriquecem a leitura da realidade, do contexto, do território, e o planejamento das intervenções (MUNIZ, 2011, p. 96). É significativo identificar que apesar de utilizar os mesmos instrumentais, procedimentos e rotinas, cada trabalhador desenvolve sua atividade de trabalho de forma singular, diferenciada e própria, independentemente da formação acadêmica. Assim, cada trabalhador desenvolve habilidades diferenciadas, emprega a sua própria marca e revela a sua singularidade na realização da atividade de trabalho. E1. (...) cada um tem uma abordagem. Cada um tem uma abordagem de grupo, cada um tem uma abordagem de atendimento. (...) eu dou encaminhamento é no mesmo formulário, encaminhar para cesta básica é o mesmo formulário, se der vale transporte tem que assinar de uma forma. Agora o atendimento é singular (...). As ações realizadas apresentam uma variabilidade na rotina entre os dias trabalhados. Os dias de trabalho no CRAS são diferentes, não há um dia igual ao outro, já que o ritmo de trabalho é muito dinâmico. E5. Existe diferença em cada dia de trabalho, depende da demanda, do dia do mês, depende até do mês (...) Para os trabalhadores que compõem a equipe técnica, a rotina de atendimento às famílias traz as particularidades das demandas de cada grupo familiar, que se diferenciam conforme o grau de vulnerabilidades e de capacidade de autonomia na superação das questões apresentadas. Esses atendimentos encerram-se apenas por meio de uma escuta técnica, ou se desdobram em diversos encaminhamentos, e até mesmo em contatos institucionais que possam absorver as demandas apresentadas para os profissionais do CRAS. A realidade dos territórios impõe uma imprevisibilidade e interfere de forma significativa na rotina e na dinâmica do trabalho. Intervir na realidade concreta das relações sociais revela uma diversidade de demandas que as manifestações da questão social impõem na vida dos cidadãos. As necessidades e carências surgem carregadas de particularidades que cada cidadão e seu núcleo familiar reportam para a política de assistência social. As condições institucionais disponibilizadas para a oferta das atividades coletivas grupais e comunitárias realizadas com os usuários contribuem para a intensificação do trabalho no CRAS. Os trabalhadores responsáveis pela sua condução ocupam-se de todo o planejamento, desde a organização da infraestrutura até a formulação do conteúdo, a condução do processo e a dinâmica grupal empregada. Particularmente, ela revela uma precarização das condições de trabalho, já que há escassez de recursos humanos, materiais e didáticos. Nos dias em que acontecem as atividades coletivas, o público usuário envolvido utiliza-se do deslocamento até o CRAS para resolver questões, buscar informações, receber orientações, ou até mesmo passar pelo atendimento individual. Nestes dias todo o conjunto de trabalhadores se mobiliza devido ao aumento do movimento e do fluxo de usuários. A afirmativa se confirma no depoimento abaixo: E6. Muda o dia que tem atividade coletiva aqui, as demandas da recepção aumentam. Terça-feira aqui é um inferno astral, porque é o dia da terceira idade. Nesse dia, no final, a gente fica sem uma gota de energia. Nesse dia eu não me programo, é um dia que eu não posso sentar pra fazer nada que exija minha atenção. É um dia que eu fico por conta do grupo e de atender as pessoas. Os trabalhadores que ocupam a função de coordenação apontam um leque infindável de ações que podem caracterizar sua atividade de trabalho. Boa parte do tempo é dedicada às ações de organização dos processos de trabalho internos, à orientação e suporte aos trabalhadores no atendimento técnico e a uma constante preocupação com a qualidade das relações na equipe. Outras questões apontadas quanto à variabilidade e a imprevisibilidade do trabalho dizem respeito às demandas das instâncias organizacionais do poder público, com relação à sustentabilidade estrutural e política para o efetivo exercício da função pública definida para um equipamento como o CRAS, como nos depoimentos abaixo: E6. A demanda da estrutura organizacional da prefeitura, da Secretaria da Assistência Social e também do que é trazido da comunidade. (provoca a variabilidade e a imprevisibilidade). Às vezes, tem dia em que eu não tenho que pensar em nada dos atendimentos, e têm vezes que eu tenho que mudar o meu dia. Às vezes, eu passo o dia inteiro no telefone para arrumar uma vaga para uma pessoa no Benvinda (serviço de acolhimento a mulheres vítimas de violência). E5. Acho que a própria dinâmica do trabalho, a natureza do trabalho (provoca a variabilidade e a imprevisibilidade) (...). É um leque muito grande de ações que envolvem o CRAS, que você não tem como sentar e executar. Você tem que verificar, tem que monitorar. (...) É tão variado. (...) Tanto na GPSOB, quanto na regional, eles passam na verdade as diretrizes. Então tem muita articulação por telefone, tem que ligar para o centro de saúde, tem que ligar para a escola, ligar para a regional e conversar com os técnicos. Para o devido cumprimento dos objetivos do CRAS, ou seja, do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, por meio do atendimento e acompanhamento às famílias, as ações se desdobram em inúmeras outras, em procedimentos técnicos e metodológicos previstos ou não nas normas antecedentes. A intervenção de cada trabalhador é personalizada. Ele realiza consigo um silencioso debate de normas, consciente ou inconscientemente. O permanente conflito que acompanha o ato de gerir o seu próprio trabalho faz com que o trabalhador promova uma reinterpretação das normas, mobilize os saberes constituídos na formação acadêmica e os saberes investidos, resultados da sua experiência de vida e de trabalho. Situações como estas fazem com que os trabalhadores reinventem sua práxis, criem procedimentos e estratégias individuais na gestão do seu trabalho. Como consequência, ele promove uma renormalização individual, o que lhe permite gerir a atividade de trabalho e empregar, no ato, a sua própria identidade. A norma surge como uma tentativa de antecipação do agir humano. O trabalhador resiste à norma e com o ato de renormalização, procura se reposicionar no centro das decisões, em busca da sua autonomia profissional. Norma e renormalização se alternam, simultaneamente, em dialética, pois sempre há reservas de alternativas: em toda situação de trabalho há sempre possibilidade de fazer de outras formas, não existe uma única maneira de realizar uma atividade (TRINQUET, 2010). As reservas de alternativas significam inúmeras possibilidades de governar o agir humano. 6.4 – A linguagem: a ferramenta de trabalho e a atividade sobre a atividade A atividade de trabalho no CRAS revela como característica fundante a capacidade relacional e de comunicabilidade entre os trabalhadores e destes com a população atendida. A linguagem constitui-se como um dos aspectos que qualificam o processo de socialização do homem e se manifesta em todas as atividades humanas, o que a configura como instrumento essencial para a realização da atividade de trabalho. Trabalho e linguagem formam uma conjunção indissociável, ou seja, “a linguagem é uma atividade e que não existe atividade sem linguagem” (FAÏTA, 2010, p. 181). A linguagem no processo de trabalho do CRAS se apresenta tanto como uma ferramenta ou “instrumento básico” (IAMAMOTO, 1998), quanto como um tipo de atividade inserida na atividade de trabalho. Assim como o trabalho se caracteriza como atividade humana, Daniel Faïta (2010, p. 182) afirma que “a linguagem pode-se tornar um instrumento de retorno à atividade: uma atividade sobre a atividade. Exercício exigente, mas frutífero para o desenvolvimento pessoal e profissional”. Todo agir, seja ele no aspecto subjetivo da formulação do conceito, ou em uma ação prática e objetiva, é permeado pela capacidade de formalizar, por meio da linguagem, a experiência vivida no passado e a projeção da realização da ação para o futuro. A linguagem, portanto, (...) nos permite agir sobre o outro e sobre nós mesmos. (...) O sujeito, ao agir, graças ao suporte da linguagem, torna-se sujeito da sua própria ação, de sua própria experiência. (...) É uma atividade na qual o desenvolvimento mental, intelectual e cultural de uma pessoa se sustenta. É por meio da linguagem que cada um de nós vai, por exemplo, mobilizar ou remobilizar, segundo as circunstancias, os saberes que detém, quer se trate de saberes teóricos ou empíricos (FAÏTA, 2010, p. 180-181). Na relação entre os trabalhadores do CRAS permeada pela linguagem, a palavra e a interação comunicativa se efetivam como uma ferramenta básica, mas também como uma atividade primordial que ocupa um espaço vital ao ser incorporada na rotina de trabalho da equipe, e torna-se, de fato, uma “atividade sobre a atividade”. Essa relação se evidencia no depoimento de um coordenador entrevistado ao identificar a importância da prática de conversação na equipe: E5. Eu acho que o principal trabalho no CRAS é a conversa com os técnicos, a reunião, passar as informações para os técnicos (...). (grifos nossos) A relação de trabalho no campo social potencializa-se por meio da linguagem, ferramenta esta capaz de promover transformações tanto de caráter individual como coletivo. Como observa Faïta (2010, p. 164) “dizer é intervir nas relações reais entre as pessoas”. A conversação, o diálogo explicitado por meio da palavra registra a intencionalidade, o direcionamento político e ideológico que se pretende. As relações sociais entrelaçam sujeitos que interagem tendo como veículo a utilização da palavra que, por sua vez, expressa a singularidade desses sujeitos e toda sua codificação adquirida e influenciada pelas relações estabelecidas ao longo da sua história de vida. Tanto é verdade que a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais (BAKHTIN, 2006, p. 32). A linguagem permeia todo o processo de trabalho no CRAS. A prática de conversação entre os trabalhadores alimenta a atividade, e nela as diversas dimensões da linguagem desencadeiam processos de formação de uma equipe de trabalho. Essas práticas se manifestam nas conversas rotineiras que surgem na necessidade dos trabalhadores em lidar com a organização e a realização da atividade. Surge também nos momentos de reflexão crítica e avaliação do conteúdo conceitual produzido pela práxis, entrelaçada pelo conhecimento adquirido na formação acadêmica (IAMAMOTO, 1998) voltada para a produção de conceitos. Na relação entre linguagem e trabalho, Schwartz (2010) aponta para uma convergência em duas dimensões: - a dimensão da linguagem cotidiana, no ardor do trabalho, no encadeamento da atividade, que não se caracteriza como uma linguagem empobrecida. - mas também a dimensão voltada para o conceito, a linguagem como meio no qual se fabricam conceitos (...). Mas experimentar esses conceitos é um elemento de melhor reflexão sobre sua própria atividade (SCHWARTZ, 2010, p. 139). A relação entre os trabalhadores se estabelece no dia a dia do desenvolvimento da rotina de trabalho. As equipes planejam regularmente espaços de reuniões internas com o objetivo de resolver as questões relativas à organização do trabalho, ao tratamento das relações internas entre os trabalhadores e à avaliação e planejamento das ações realizadas ou a serem realizadas. Há momentos em que não é possível aguardar as reuniões regulares para repassar informações ou tomar decisões. Nessas situações, as conversas tornam-se necessárias e de extrema importância. Os trabalhadores estabelecem uma dinâmica relacional em que constantemente utilizam-se do diálogo, sendo que a todo o momento reportam-se a seus pares para discutir questões relativas à realização da atividade de trabalho. E7. Nós temos uma agenda de reunião. Além dessa agenda, o dia a dia mesmo, não dá para esperar. A reunião é semanal, mas no dia a dia mesmo a gente recorre à ajuda. Olha, eu não estou dando conta, olha estou com uma dúvida com relação a isso, o tempo todo a gente está tendo essa troca. Mesmo porque o espaço propicia isso também. Se estiver ali junto, se falando, se questionando, com certeza, é diária, podemos dizer que é diária. Mesmo porque as coisas são muito dinâmicas, (...). E5. É conversando, parando um pouco para conversar, chama um ou outro. Muitas vezes agente está com algum problema e fala: “vamos conversar com quem está aqui.” Aí a gente conversa com quem está aí mesmo. Na relação linguagem e trabalho, observam-se a importância das denominadas práticas linguageiras: (...) são um elemento permanente, ao mesmo tempo subjetivo e coletivo, de regulação, re-regulação da experiência do trabalho e se encontram, portanto, numa relação de ajustamento criador frente a tudo que é ressingularização na atividade de trabalho. E, ao mesmo tempo, a linguagem é muito importante porque ela é lugar e elemento de fabricação de conceitos que enquadram (e esse é toda a potência do conceito) as atividades de trabalho em todas as suas dimensões: técnicas, científicas, organizacionais, gerenciais, hierárquicas, de poder, de propriedades jurídicas e outras, ou políticas (SCHWARTZ, 2010, p. 139). A identificação das diversas práticas linguageiras na atividade de trabalho do CRAS pode ser cotejada com as sistematizações elaboradas por Nouroudine (2002) a partir das formulações de Lacoste (1995). Segundo os autores, são identificadas como práticas linguageiras: a linguagem no trabalho, a linguagem como trabalho e a linguagem sobre o trabalho. A linguagem no trabalho refere-se às relações entre sujeitos singulares portadores de uma história de vida, de um saber diante dos desafios e da complexidade das situações de trabalho, o que possibilita a realização de encontros. O trabalho coletivo desloca os sujeitos da mera execução prescrita e individualista da atividade para uma relação grupal, estimuladora de trocas e de cooperação, com o objetivo de realizar um trabalho mais eficaz em um ambiente mais acolhedor. Esta prática linguageira se caracteriza como uma comunicação não necessariamente útil à realização da atividade de trabalho. Pode referir-se a uma prática de conversação, de trocas em um “contexto sempre pessoal”, no sentido de conhecer e aproximar-se do outro, de aprender a lidar com as características e diferenças individuais no âmbito das relações interpessoais no coletivo de trabalho. A localização territorial em regiões de periferia da cidade faz com que a permanência no local de trabalho se estenda por um período mais prolongado. Devido à permanência de um tempo maior no local de trabalho, a convivência se estabelece com a valorização da linguagem no trabalho. Essa prática linguageira pode alcançar resultados com vistas à maior cooperação, a relações de confiança no trabalho e à promoção de um ambiente de pertencimento e apropriação coletiva. O depoimento abaixo exemplifica como essa prática linguageira se manifesta e contribui para a superação das dificuldades no relacionamento interno na equipe. E2. É difícil lidar com as pessoas. (...) na hora que você está indo embora, a pessoa está ali, escova dente, almoça junto, porque a gente nem sai para almoçar. Então almoçamos juntos, então tem o espaço, assim, que a gente está lidando com o diferente o tempo todo, e lidar com a diferença é muito difícil (...). A equipe é uma equipe muito boa, então eu acho que há profissionais que conseguem equilibrar, dentro da equipe mesmo, conseguem equilibrar isso (...) que a gente precisa para extravasar, falar bobagem, pra relaxar, porque precisa disso (...). Nossa relação também tem esse espaço, tem esse momento, então isso dá uma aliviada na gente, porque senão tudo muito rígido eu acho que piora. A linguagem como trabalho manifesta-se nas formas de comunicação em dois níveis: na “fala para si”, que ocorre por meio de conversas que o trabalhador dirige e si mesmo no sentido de “orientar e acompanhar” a sua própria atividade, e na “fala ao outro”, pela escrita, gestos e conversas dirigidas a outros trabalhadores do coletivo. Nouroudine (2002) apresenta ainda um terceiro nível sistematizado por Bakhtin, que diz respeito às manifestações em forma de pensamentos e reflexões silenciosas que o trabalhador recorre na tentativa de melhor se adaptar à realização da atividade e que proporcione encontros significativos ao agir. A linguagem no cotidiano da atividade de trabalho, por mais que pareça pobre e superficial (SCHWARTZ, 2010), apresenta uma importância ao fazer com que saberes individuais sejam transmitidos e, como consequência, sejam formuladores de novos saberes no coletivo de trabalho. Essa prática linguageira é direcionada para acompanhar a execução da atividade, solucionar situações imediatas, unificar procedimentos, transmitir informações, e assim possibilitar maior compreensão, por parte dos trabalhadores, da situação de trabalho em que estão envolvidos. No CRAS, a linguagem como trabalho faz parte da rotina dos trabalhadores e se manifesta em todos os momentos, como na troca de informações, na resolução de dúvidas, na troca de experiências e até mesmo na alteração de fluxos e procedimentos, como no depoimento a seguir: E3. (...) aos colegas mesmo, eu acho que vem com outras experiências. A gente recorre muito à equipe mesmo. Às vezes, até no atendimento surge uma dúvida aqui, a gente vai lá dentro e pergunta (...). (...) a gente recorre muito à equipe técnica assim, eu acho isso muito bacana e a gente recorre uns aos outros (...). A linguagem sobre o trabalho pode ser motivada por objetivos externos ao trabalho, como na realização de pesquisas para melhor compreender o trabalho, ou interesses ligados diretamente à atividade de trabalho, sendo que “a fala sobre o trabalho é às vezes motivada de seu próprio interior, por exigência da equipe ou da empresa: entre colegas, evoca-se o trabalho para comentá-lo ou avaliá-lo (...)” (LACOSTE apud NOUROUDINE, 2002, p. 25). A motivação da linguagem sobre o trabalho no CRAS manifesta-se de forma a contribuir com a qualidade do trabalho e da oferta do serviço à população usuária. A fala sobre o trabalho é exaustivamente utilizada pelas equipes, como nas situações de avaliações e planejamento das ações, definições de atribuições e competências, revisões de fluxos, rotinas e procedimentos, enfim, em diversas situações relacionadas à gestão e à organização do equipamento. A linguagem sobre o trabalho evidencia-se também em situações complexas como instrumento de análise e reflexão sobre a práxis, nos questionamentos sobre a relação teórico-prática, nas implicações políticas e nos possíveis resultados esperados com determinadas intervenções, na dimensão voltada para o conceito. Esses momentos são geralmente realizados nos espaços regulares de reuniões de equipe, como já relatado anteriormente. E2. (...) geralmente, na reunião de equipe (...), verificar também o que está sendo feito, o quê que ainda não foi feito, né? O quê que ainda falta pra gente fazer (...). A gente tenta fazer no coletivo, (...). Até mesmo decisões em relação a um encaminhamento mais delicado, um caso que a gente tem mais dúvida, a gente tenta fazer isso em conjunto, pra ta auxiliando, pra tentar fazer um trabalho melhor (...). Essa divisão das práticas linguageiras nas situações de trabalho tem um caráter didático e é descritas no sentido de buscar uma compreensão quanto à contribuição do trabalho no processo de trocas sociais, por meio das diversas dimensões da linguagem. As práticas linguageiras manifestam-se como uma necessidade dos trabalhadores em interagir com seus pares e surgem aleatoriamente sem seguir necessariamente uma sequência lógica. Reconhecer a importância das funções da linguagem desperta para atentar e estimular essa prática nos coletivos de trabalho nos CRAS. A capacidade de estabelecer estratégias para a manifestação das práticas linguageiras no trabalho é um exercício constante nos coletivos de trabalho. Em determinadas situações a linguagem está presente como uma atividade que se complementa e interage com a atividade de trabalho no processo interno dos CRAS. No modelo de gestão social de caráter dialógico mais democrático e participativo depara-se com situações que desafiam a organização institucional em momentos específicos em que se faz necessário tomar decisões. A busca pelo consenso é exercitada com frequência pelo coletivo do CRAS. As decisões geralmente são tomadas em conjunto com os trabalhadores, nos espaços possíveis já estabelecidos, ou durante as reuniões de equipe. Os consensos são geralmente acompanhados por conflitos, opiniões divergentes, capacidade de análise e argumentação. Assim como em toda organização, há situações em que cabe ao coordenador do CRAS decidir sobre posicionamentos e respostas às demandas externas, como também em questões internas relativas à organização e/ou execução do trabalho. Essa contradição tem sido enfrentada pelas equipes e se manifesta nos depoimentos abaixo: E5. A maioria delas (decisões) é tomada em equipe, é muito raro eu tomar decisão sozinha. E6. São nesses espaços que já existem mesmo. Por exemplo: tem coisa que é previsto e é mais fácil de ser controlado, agora chega uma coisa que é uma força tarefa e para tudo, e a decisão é minha. E aí tem conflitos, então eu trago para a coordenação as consequências disso, mas alguém tem que tomar uma decisão e esse alguém sou eu. E7. A gente tem a liberdade de falar, tem essa abertura. (...) A coordenação reúne com a gente, ela coloca, ela faz com que a gente participa. Tem coisa que ela determina, mas a maioria das vezes ela sempre coloca para gente essa discussão. Não quer dizer que vai ser aceita, mas existe. (...) Sim, a gente discute. Tem a liberdade entre a gente e com a coordenadora. A gente discute questões de funcionamento, a gente não concorda, e no final, a coordenação define. (...) Tem a questão da hierarquia mesmo, por mais democrática que seja, por mais que a gente converse. A participação dos trabalhadores no processo de gestão do trabalho do CRAS e em todo o processo organizacional parece ser a prerrogativa mais adequada definida pelos coletivos em função das características impostas pela natureza e a dinâmica do serviço. Para cumprir os objetivos e as funções previstas nas prescrições legais, dar respostas às demandas da população usuária é preciso que o serviço recorra a estratégias de gestão que possibilitam o envolvimento e a participação de todos no processo de trabalho, sendo as práticas linguageiras um veículo fundamental. A circulação das informações entre os trabalhadores contribui com a organização da gestão do serviço, como no depoimento a seguir: E5. É em momentos de sentar a equipe junta, porque se você não consegue fazer isso, vira um caos mesmo (estratégias para a organização da gestão). Você tem uma dinâmica de informação muito grande que você precisa passar para a equipe, que você precisa receber, para fazer o monitoramento das ações. (...) eu sempre assento com a equipe e todo mundo discute, porque eles estão mais no atendimento, melhor do que eu para definir (...). Eu acho que é importante essa informação, (...). Mas não são todos os dias que eu venho no CRAS, tem essa dificuldade. Então acho que a organização passa pela conversa dentro da equipe o tempo inteiro. Uma das principais atividades de gestão apontadas é o instrumento de planejamento anual das ações. O planejamento do trabalho no CRAS aposta em um exercício constante de tradução das demandas da população, com a capacidade institucional de respostas por meio da oferta de serviços, conforme as particularidades de cada equipe e de cada CRAS. É o momento em que o coletivo dos trabalhadores responsáveis pela execução avalia e planeja as próprias ações em um exercício de antecipação das ações e das normas não prescritas. No âmbito do planejamento das ações, busca-se contrapor a dicotomia taylorista entre o planejamento e a execução. O trabalhador responsável pela execução das ações recorre ao seu saber investido na atividade e planeja o seu próprio trabalho. E1. (...) uma atividade muito importante que eu acho de organização no CRAS é o planejamento das ações durante o ano (...). E6. Eu acho que o planejamento pode ser feito democraticamente, mas nós estamos aqui planejando e executando. Ao partir do não prescrito e torná-lo prescrito institucionalmente, você está planejando, executando e fazendo tudo. Só que você não tem o mais importante, você não tem o controle financeiro. (grifo meu) Durante a realização da atividade de trabalho, lacunas já identificadas individualmente entre o trabalho prescrito e o real, ficam evidenciadas e fazem com que cada coletivo de trabalho crie e institua novos procedimentos. Ao proporcionar momentos de conversações na equipe, as renormalizações individuais ganham amplitude com a legitimação de novos procedimentos, sendo então renormalizados e instituído pelo coletivo de trabalho como novos procedimentos a serem aplicados. A prática da renormalização encontra um ambiente favorável quando são questionados os princípios da divisão taylorista do trabalho, que dissocia o planejamento da execução, e por meio das práticas linguageiras os saberes produzidos na atividade permitem a formulação de novos conceitos. Devido à complexidade de toda atividade de trabalho e à constante imprevisibilidade do trabalho do CRAS, as normas redefinidas tornar-se-ão insuficientes para enfrentar novos desafios em um ciclo virtuoso de atualização das normas antecedentes por intermédio do trabalho real. A institucionalização das renormalizações coletiva é um exercício permanente no CRAS em busca de uma adequação melhor da organização da gestão, que inclui a gestão organizacional do equipamento público, dos processos de trabalho e da metodologia de atendimento às famílias. Para Schwartz (2010, p.140) “é muito importante por em palavras essas competências, e mesmo registrá-las por escrito, porque isso muda a experiência das pessoas sobre a própria atividade, sobre suas relações com os outros”. A renormatização fica evidenciada no ato de criar e recriar procedimentos como um recurso utilizado com frequência pelas equipes, como aparece na afirmação abaixo: E3. Até a gente se surpreende com o que a gente faz. Tive casos assim, que são muito inusitados, e isso não está previsto em documento nenhum, (...). Às vezes a gente fica um pouco perdido (diante da insuficiência das normas antecedentes o trabalhador se vê obrigado a renormatizar a sua atividade). E6. (...) algumas coisas estão prescritas nas atribuições do papel do coordenador. As responsabilidades dele fazem com que ele crie procedimentos para dar conta daquelas funções. E5. (...) a gente vai pela intuição, pela experiência, pelo que você escuta das necessidades do território, acho que assim a gente consegue. (...) na verdade, a gente cria muito na nossa prática. A partir da normativa a gente usa a criatividade da equipe e o que a gente está vendo de demanda no território. Quando existe alguma novidade, a gente se pergunta: “será que a gente pode?” A gestão do CRAS compreende diversos procedimentos além do planejamento, da organização do funcionamento interno. A distribuição das atribuições segue critérios variados de acordo com cada coletivo de trabalho. Essa definição parece não ser imposta, mas realizada pela equipe de forma participativa. Por meio da linguagem, os trabalhadores se expressam e se manifestam ao colocar em palavras suas avaliações, desejos, competências, saberes. Assim, reconhecem-se no processo de operacionalização da atividade de trabalho no CRAS. O diálogo na equipe é um instrumento fundamental na organização da gestão do trabalho, visto que, inevitavelmente, surgem conflitos que devem ser enfrentados coletivamente. E5. Isso é mais de perfil mesmo, todo final de ano e início do outro, que agente está montando o plano de ação, as atividades são divididas por perfil. (...) escolhem, opinam, é sempre assim, escolhem no coletivo. E7. (...) a gente faz as avaliações. Além do perfil, a coordenação deixa a critério, quem gostaria de assumir. São discutidas na equipe as habilidades de cada um, o que cada um gostaria de estar assumindo. Tem essa total liberdade, a coordenação dá essa liberdade. E6. Esse ano eu já sugeri que a gente tem que mudar, para terminar um ciclo. Na avaliação, cada um fala sobre o trabalho que desenvolveu (...). Depois eu peço que cada um faça sua defesa, o que quer fazer no ano de 2012. Então a equipe, entre eles tem uma coisa muito bacana, eles dividem as tarefas entre eles. Eles se organizam, (...). A definição das atribuições dos trabalhadores está prevista nas normas antecedentes, ou seja, nos documentos oficiais de forma genérica, sem muito detalhamento e são pré-estabelecidas como uma orientação básica. Isso permite que cada equipe estabeleça uma forma de organização própria e decidida coletivamente, sendo passível de mudanças quando se fizer necessário. Pode ocorrer até mesmo rotatividade de técnicos como referência das ações ou “frentes de trabalho”, como descrito nos depoimentos acima. É importante ressaltar o caráter dialógico e a importância da linguagem no processo de gestão do CRAS. Há, certamente, uma diferenciação das ações institucionalmente definidas e distribuídas entre as administrativas, técnicas e de coordenação, como no depoimento a seguir: E5. Tem muita diferença, o trabalho do técnico está na execução mesmo, eles fazem atendimento técnico, eu (coordenadora) raramente faço atendimento técnico. O atendimento às famílias mobiliza todo o conjunto dos trabalhadores e todo o aparato institucional, pois mesmo sendo um procedimento técnico, é exigida uma convergência de esforços em torno dele. Pode-se afirmar que o atendimento às famílias é a principal ação do CRAS, primordial para o cumprimento da sua função. Para a realização do atendimento às famílias, a linguagem, em suas diversas dimensões e práticas linguageiras, é exaustivamente utilizada, seja entre os trabalhadores e no interior da equipe, seja na ação propriamente dita, na relação com os usuários do serviço e a população do território. A organização da rotina dos atendimentos é discutida e definida na equipe com a participação de todos. Ela passa por constante avaliação e pode ser modificada a qualquer tempo, de acordo com a necessidade da dinâmica do trabalho. Não há um modelo ideal, cada CRAS a define de forma diferenciada com características próprias. A definição das competências nunca será suficiente para uma antecipação das situações de trabalho, entretanto, “no que concerne às competências, querer colocá-las em palavras, de forma exaustiva, é uma ilusão, mas não tentar fazê-lo seria impedir que estas sejam reconhecidas” (SCHWARTZ, 2010, p. 141). O serviço da recepção, realizado por um trabalhador de nível médio, é a porta de entrada do CRAS para o atendimento às famílias. A organização dos atendimentos começa pela recepção, que após o acolhimento da demanda encaminha o usuário para o técnico realizar o atendimento. O trabalhador da recepção é peça chave nesta organização. É ele quem recebe primeiramente os usuários e distribui os casos para os técnicos de forma equilibrada. É exigido que esse trabalhador desenvolva, com a sua experiência, habilidades para identificar a caracterização da demanda junto aos usuários, obter informações gerais sobre o grupo familiar, e ao mesmo tempo informar a esses mesmos usuários quanto aos objetivos e os serviços oferecidos pelo CRAS. Essa rotina é um exercício constante de experimentações, desafio permanente das equipes e evidência da complexidade da função. A organização do serviço da recepção é um ponto de confluência do trabalho coletivo, pois interfere diretamente na atividade de todos os trabalhadores. É alvo de constantes renormatizações que exige a participação de toda a equipe. As práticas linguageiras são instrumentos de mediação na realização da atividade de trabalho em específico. E1. O primeiro contato é feito na recepção. O cadastro fica na recepção (...). E7. A recepção faz a triagem da demanda, se é de orientação, ou não, se for o caso de atendimento, o técnico faz o atendimento. Aí a recepcionista passa para o técnico e o técnico faz o atendimento. A gente até tentou fazer uma escala, mas algumas famílias já têm o técnico como referência. (...) A gente já fez por dia, a gente está sempre mudando, não é uma coisa fixa não. (...) Às vezes funciona, às vezes a gente fala: vamos fazer desta forma. E5. A primeira coisa é a recepção, que vai identificar se a família tem cadastro, qual é a demanda dela, e aí a recepcionista identificando a família, vai passar para o técnico. Nós tivemos que reorganizar isso, porque a gente estava percebendo que tinha técnico que estava atendendo mais do que o outro. A recepcionista está fazendo uma organização na recepção de maneira que ela consiga distribuir esse atendimento melhor, para que fique equilibrado. Porque, às vezes, um atendeu cinco e o outro não atendeu nenhum. (...), isso foi definido em uma reunião de equipe, junto com a recepcionista, porque também dependia dela, (...). É interessante, porque ela vem com o cadastro e diz para o técnico atender, e ele sabe porque ela está entregando aquele cadastro pra ele, porque ela está conferindo lá, e o técnico confia no trabalho dela. E2. Foi uma solução para tentar facilitar e evitar esse desgaste. Ontem, inclusive, a gente retomou isso, pra ver se estava funcionando, ou se não, porque a gente começou, acho que foi no início do ano. O trabalhador responsável pela recepção precisa desenvolver uma capacidade de comunicação e diálogo com o emprego das variadas formas de linguagem (palavras, gestos, olhares, expressões, etc.). O trabalho da recepção, assim como toda atividade de trabalho, “mobiliza o corpo e a alma, a mente, o conjunto da pessoa humana (...)” (SCHWARTZ, 2010, p. 35), e precisa estar atento a uma série de situações. O corpo está presente com todos os sentidos aguçados, pois não existe nenhuma regra que diz, detalhadamente, o quê e como ele deve ser realizado. Para o exercício desta função, o saber adquirido da experiência é de fundamental importância. O diálogo com os profissionais que realizam o atendimento qualifica a percepção e a abordagem do trabalhador da assistência social que ocupa a função na recepção. Ao adquirir e processar essas informações, esse trabalhador desenvolve as habilidades que o tornam capaz de gerir a sua própria atividade de trabalho. Evidencia-se um debate de normas que promove uma renormalização individual da sua atividade de trabalho. Os trabalhadores da recepção participam efetivamente das ações de gestão do CRAS ao desenvolver sua atividade de trabalho e contribuem estrategicamente com a sua organização e funcionamento. O diálogo entre os trabalhadores permite contribuir com relações mais cooperativas e solidárias na equipe ao promover trocas de saberes que incidirão na qualidade e na efetividade do atendimento, bem como na qualidade das relações e dos vínculos estabelecidos com os usuários. Em um coletivo de trabalho em que as práticas linguageiras sobressaem positivamente, as relações pessoais e profissionais ganham em qualidade e incidem de forma significativa na potencialização da efetividade do trabalho. Possibilita uma maior circulação de saberes e de informação e a construção de um tipo de saber fruto da experiência, das trocas, das práxis e sobre os novos conceitos formulados que se revelam como saberes do coletivo de trabalho. Nos depoimentos abaixo fica evidenciada a valorização desta prática pelos trabalhadores do CRAS: E3. (...) a gente recorre muito à equipe mesmo, às vezes até no atendimento surge uma dúvida aqui, a gente vai lá dentro e pergunta. (...), eu acho isso muito bacana e a gente recorre uns aos outros (...). E7. Peço ajuda aqui mesmo na equipe (...). E5. Eu acho que é através da experiência que eles têm, (...) e de conversa mesmo entre os técnicos. Um consulta muito o outro, é muito comum o técnico sair da sala de atendimento e falar sobre o caso. Então é através dessa troca de experiências mesmo do dia a dia. A relação dos trabalhadores do CRAS com os usuários efetiva-se por meio dos atendimentos e acompanhamentos. A qualidade da linguagem promove uma escuta qualificada, permite estabelecer relações de confiança e possibilita uma transferência positiva de vínculos, pois, como afirma Iamamoto (1998, p. 97), “suas atividades dependem da competência na leitura e acompanhamento dos processos sociais, assim como no estabelecimento de relações e vínculos sociais com os sujeitos junto aos quais atua”. O usuário, “sujeito social (...), precisa ser visto como alguém potencialmente capaz de agir, reivindicar, refletir, construir, participar com base em suas crenças, valores, vínculos, alianças e projetos” (AFONSO apud BEATO, 2011, p. 24). O compromisso ético-político dos trabalhadores da assistência social com a população usuária dos serviços reposiciona o exercício da “prática profissional” para uma prática social inserida na realidade, de caráter crítico e transformador dessa mesma realidade social (IAMAMOTO, 1998). O caráter político do trabalho se evidencia ao intervir nas situações concretas originárias das manifestações da questão social. A dimensão educativa na relação entre os trabalhadores e os usuários deve estar presente na práxis profissional, de forma a provocar no sujeito o que pode ser traduzido como a transposição de uma percepção particularista, coorporativa e individual das situações enfrentadas no dia a dia, por uma compreensão mais ampla dos problemas sociais, da construção de um projeto coletivo e um reposicionamento diante da vida e das relações sociais. Portanto, “a partir da superação desse modo de ser e de pensar, a vontade coletiva avança e vai delineando uma nova consciência, que se manifesta e se concretiza na prática política” (SIMIONATTO, 2001, p.9). Tanto nos atendimentos individuais como nos atendimentos grupais, a linguagem empregada por meio de falas, gestos e outras diversas formas de expressão, é um recurso infindável a ser explorado, associada aos recursos e às estratégias teóricometodológicas. Nessa perspectiva, as intervenções dos trabalhadores com a população usuária transformam-se em verdadeiros processos educativos ao provocar um deslocamento da passagem do senso comum para uma visão mais crítica e questionadora da realidade social, de forma a conquistar um processo crescente de autonomia dos usuários e um protagonismo na condução dos destinos de suas vidas, que se atualiza como produto da sua práxis social. Este talvez seja o maior desafio da política de assistência social e, por conseguinte, dos trabalhadores do CRAS. Pode-se afirmar que são resultados de difícil percepção, mas que ao trabalhar com as ações coletivas de convivência e reflexão, com a ampliação do universo relacional e informacional, identificam-se mudanças significativas na vida dos usuários, percebidas pelo entrevistado quando afirma: E2. E é legal que quando as pessoas começam a ter uma periodicidade, elas mudam, elas se transformam, elas questionam, se tornam criticas mesmo. Então acho que isso enriquece as pessoas e influencia de várias formas. Como foi afirmado anteriormente, existe uma indissociabilidade entre a linguagem e o trabalho que ocorre em meio a uma série de dificuldades. Schwartz (2010) aponta que essa relação está permeada por quatro dimensões que se deve atentar. Na primeira dimensão entra em questão o que é definido pela perspectiva ergológica como o “corpo si”. Em toda situação de trabalho o sujeito se apresenta não somente com o seu corpo físico, mas com sua inteligência, com seu sistema nervoso, com toda a sua história de vida, com o seu processo de socialização, com as regulações oriundas de um contexto social e familiar, com sua formação acadêmica e sua abordagem técnica, ou seja, um sujeito singular. Esses diversos sujeitos singulares se encontram nas situações de trabalho no CRAS e se deparam com inúmeras questões que irão interferir na qualidade do estabelecimento das relações e das limitações para a efetivação da prática da linguagem. Ao estar presente o “corpo si” nas situações de trabalho, “a passagem para a linguagem é limitada, o que quer dizer que não podemos pôr tudo em linguagem: sempre nos escaparão elementos do que acontece em nossos circuitos, em nossas formas de adestramento (adestramento de nós mesmos sobre nós mesmos)” (SCHWARTZ, 2010, p. 143). A segunda dimensão refere-se às limitações da linguagem em expressar toda a complexidade que envolve toda a atividade de trabalho, por esta representar sempre uma renormalização, mesmo que parcial, uma ressingularização da atividade. Sempre haverá diversas maneiras de realização do trabalho, e assim cada coletivo busca a melhor maneira de realização da atividade, cria e recria o seu método de abordagem e de intervenção, de forma singular tanto em relação a cada trabalhador, quanto em relação aos vários coletivos. Utiliza-se, portanto, a linguagem na tentativa de promover uma renormatização coletiva. A linguagem encontrará dificuldades na antecipação ou na tradução das atividades realizadas pelos trabalhadores. A terceira questão apontada diz respeito à dimensão do inconsciente como fortes resistências à verbalização, pois “em nossas condutas no trabalho, há coisas que esquecemos, coisas que não fazemos, atos falhos, coisas que fazemos bem, hostilidades, amizades (...)” (SCHWARTZ, 2010, p. 144). Outra dimensão do inconsciente refere-se à “dimensão da transgressão” relativa à incompletude que as normas antecedentes provocam no trabalhador, pois sempre haverá outras maneiras de realizar o trabalho. A realização da atividade de trabalho, portanto, é permeada pelas microtransgressões. Para Schwartz (2010, p. 145), “pôr em palavras o que se faz na atividade de trabalho é assumir o risco de dizer que não se faz como foi prescrito, de explicitar que a linguagem oficial foi contestada na prática”. No universo da política pública, as relações de trabalho hierarquizadas podem inibir iniciativas de aperfeiçoamento e avanços na construção da política de assistência social, o que por outro lado pode ser potencializado em um modelo de gestão social mais democrático que promova uma escuta dos trabalhadores responsáveis pela execução dos serviços. A quarta dimensão apontada pelo autor diz respeito à utilização que pode ser feita com as informações e as traduções que a linguagem revela sobre o trabalho. (...) em que circunstancias e para quem se verbaliza seu trabalho, sua atividade? Quem vai tirar proveito disso? (...) Por que razão as pessoas haveriam de revelar seu segredo de fábrica, de fabricação lato sensu, sem saber qual será o efeito positivo na dramática de seu trabalho. (...) é muito importante poder verbalizar seu trabalho, para reconhecê-lo. Sim, mas é preciso também controlar as condições em que se dá tal verbalização (SCHWARTZ, 2010, p. 145). Não basta, portanto, simplesmente pôr o trabalho em linguagem, reafirmar as habilidades, formular conceitos, estabelecer relações de trocas. A utilização que se vai fazer com as informações e com os saberes produzidos na atividade de trabalho deve ser de conhecimento de todos. A criação de espaços institucionais que promovam uma situação favorável, com propósitos acordados previamente, e estabeleçam relações políticas transparentes, democráticas e compromissadas com a função do CRAS como um equipamento público é fundamental para a consolidação da política de assistência social. A gestão social no CRAS, definida como uma gestão de caráter relacional encontra na análise ergológica e pluridisciplinar do trabalho, a linguagem como um fator primordial de convergência de propósitos. A realização de uma gestão democrática e participativa passa pela vontade política de ser conduzida por relações de troca e solidariedade, por verdadeiros processos educativos, de forma a transformar as situações de trabalho em uma relação de permanente aprendizagem. A linguagem presente nesse processo revela-se extremamente significativa ao ser definida como instrumento básico e também como outra atividade inserida na atividade de trabalho, ou seja, “uma atividade sobre a atividade”. 6.5 – Relações Interinstitucionais A promoção da articulação interinstitucional é uma das ações de gestão territorial que compete ao CRAS. Essa ação merece um destaque no conjunto daquelas desenvolvidas pelos trabalhadores e ocupa um lugar estratégico com relação à gestão política do serviço. As ações intersetoriais cumprem uma importante função ao fazer com que o CRAS saia do isolamento e busque outras instituições públicas e privadas para estabelecer parcerias, de forma a promover uma sinergia de ações no território. As ações interinstitucionais apresentam-se de forma tridimensional e estabelecem uma relação de interdependência hierárquica entre as instâncias local, regional e municipal. Trata-se de afirmar que é necessária uma tomada de decisão política da gestão municipal com repercussão nas instâncias descentralizadas. Essa ação não é exclusivamente do CRAS, mas de uma estratégia de gestão cuja decisão política compete ao gestor municipal. Como consta prescrito nas normas antecedentes: A articulação intersetorial não está sob a governabilidade da política de assistência social. Para que aconteça, é necessário um papel ativo do poder executivo municipal, como articulador político entre as diversas secretarias que atuam nos territórios dos CRAS, de modo a priorizar, estimular e criar condições para a articulação intersetorial local (BRASIL, 2009, p. 26). Para os trabalhadores do CRAS entrevistados, a intersetorialidade é uma necessidade da política de assistência social para que os usuários, cidadãos atendidos, possam acessar os demais serviços públicos e assim alcançar direitos mínimos de cidadania. Como afirma um trabalhador entrevistado, as articulações intersetoriais “são coisas que não estão prescritas” (E6), ou seja, estão prescritas para o CRAS de forma genérica, mas não possuem o alcance normativo junto às demais políticas públicas. Há uma diretriz quanto à iniciativa do CRAS em provocar deliberadamente ações sinérgicas junto às demais políticas. Para que essas ações se efetivem, fica evidente que o esforço na construção das relações interinstitucionais se faz constante no dia a dia. Essa relação é construída por meio de visitas institucionais, com a discussão de casos, em reuniões intersetoriais, em uma ação política deliberada de convencimento junto aos serviços localizados no território. Os trabalhadores afirmam que a assistência social precisa ser mais conhecida e isso os leva a um esforço constante de divulgação e informação dos serviços oferecidos no CRAS. Para o entrevistado é preciso “vender” a idéia do CRAS e da intersetorialidade, mostrar as “vantagens” em trabalhar com as políticas públicas ao utilizar a intersetorialidade como uma estratégia eficaz. As políticas sociais de saúde e educação estão mais presentes nos territórios e os resultados desse esforço de aproximação são percebidos. Os entrevistados relatam que a relação do CRAS com os centros de saúde é significativa, o esforço é recompensado, em parte, com um trabalho conjunto. A relação com as escolas não acontece de forma satisfatória. Há uma dificuldade em estabelecer uma relação mais próxima. Os depoimentos abaixo exemplificam a situação analisada: E5. Através de visita institucional. Fazer uma apresentação do CRAS, do que é o BH Cidadania, (...). Então é visita mesmo e muito telefonema. (...) é aquela coisa de ser um pouco vendedor, você tem que vender aquela idéia, é o que estou te falando, da deficiência do sistema como um todo da intersetorialidade, então uma das coisas que eu aprendi foi isso. (grifos nossos) E6. Voltando ao que eu falei no início, são coisas que não estão prescritas. A gente teve que ir construindo isso aqui a duras penas, (...). Então a gente vai chegando se apresentando, mostrando um pouco do CRAS, (...). Fazemos uma propaganda pra que as pessoas aderissem. É como se você estivesse vendendo um produto, eu vejo assim. Eu vendo um produto que se chama política de assistência social. Porque essa política, ela não pode existir se não tiver a intersetorialidade, então você vende isso. (grifos nossos) E1 – (...) a gente não tem uma relação muito boa com a educação. Geralmente com a educação a gente só os procura, eles vão e dão retorno. E o Centro de Saúde não, o Centro de Saúde é uma mão dupla, a gente procura, eles nos procuram, são feitas reuniões, reuniões (de discussão de casos) então os casos que eles sabem a gente sabe também, (...). As unidades públicas municipais de base territorial local das diversas políticas são vinculadas hierarquicamente às respectivas gerências da instância regional. Ocorrem iniciativas institucionais no nível regional na tentativa de efetivar as ações intersetoriais em que os CRAS são chamados a participar. É uma constância a afirmativa quanto às dificuldades de relacionamento interinstitucional com os setores governamentais do nível regional. Há uma percepção de que as gerências do nível regional têm conhecimento limitado sobre o CRAS, seus objetivos e suas ações. O CRAS é chamado a participar de ações de naturezas diversas indo além do seu objeto de intervenção, o que por um lado demonstra o pouco conhecimento a respeito do serviço, por outro lado, o reconhecimento da importância do CRAS devido à sua capacidade de mobilização e sua inserção nos territórios. Em decorrência da divisão das funções internas na equipe, o coordenador é o responsável pelas articulações de caráter político e quem mais ocupa a função de participar e de articular os serviços e as políticas setoriais no nível regional. No entanto, o coordenador do CRAS não é o único a realizar essa ação. Os demais trabalhadores realizam constantes contatos e articulações em busca de informações a serem utilizados nos atendimentos à população do território. A relação que se estabelece com maior frequência diz respeito aos serviços da assistência social como o Plantão Social, e os serviços da proteção especial localizados na instância regional. Outro serviço que os trabalhadores do CRAS acionam constantemente é com relação ao Programa Bolsa Família. E1. A relação com a regional é uma relação mais do coordenador. Dos técnicos a gente tem pouca, (...) a não ser com o Plantão Social, e com o (Programa) Bolsa Família. O contato com a regional é com o coordenador. E2. (...) a gerência da assistência na regional é a que mais interage, assistência (social) e Bolsa Família. Quando tem a gente dificilmente consegue alguma coisa de Habitação, acho que deve ser difícil para todos os espaços, a de Saúde a gente não tem esse contato, geralmente quando a gente precisa, faz contato com a da Assistência para a Assistência fazer contato com a Saúde. E5. Uma relação tranquila, em relação à Assistência Social tem muita troca de gerência. Nós ficamos uns tempos bem afastados da GERASC, nosso contato maior é com a gerência das políticas sociais, inclusive tem uma reunião mensal com eles. O secretário Adjunto faz um fórum social todo mês. Ele reúne a área social e conversa mais para saber o que está acontecendo. Em relação à educação, a nossa relação é quando a gente precisa de vagas. Com o Bolsa Família nós temos uma articulação boa, uma relação bacana de troca mesmo, e só. Depois de tanto tempo de CRAS, as pessoas que estão lá entendem o que é o CRAS, mais ou menos. E7. Da regional a gente tem o Plantão Social, a Proteção Especial quando é caso deles acompanharem famílias do território, mesmo assim uma demanda maior é a gente que procura saber. O Bolsa Família a gente também demanda muito, não que eles nos aciona. Olha precisamos saber desta família que necessita deste beneficio, que está em descumprimento. A gente tem uma interlocução assim, mas com os técnicos, não no nível de gerente. A nossa relação é mais com os técnicos e não com o gerente. E6. (...) eu acho que eles demandam muito e não conhecem o nosso trabalho. Por outro lado, há um reconhecimento enorme do equipamento e do papel do CRAS. O aparato institucional da Secretaria de Administração Regional é responsável pela manutenção da estrutura física do imóvel onde o CRAS está localizado, e ainda pelo fornecimento de materiais de consumo e pela logística de funcionamento. Esse suporte nem sempre é realizado de forma satisfatória, sendo constante a morosidade e a pouca eficiência na prestação dos serviços. Esse problema acarreta uma série de transtornos no ambiente de trabalho e causa um efeito ao desviar o foco e a atenção da equipe para a precariedade das condições materiais e estruturais. A situação ficou constatada nos depoimentos abaixo: E5. É esse realmente é um problema, porque além de todas as articulações que o coordenador tem que fazer, ele também faz o papel de síndico. O mato está gigante, você fica três meses pedindo para capinar, é uma fechadura que estraga, a manutenção realmente é complicada, demora, mas você é atendido. E7. A gente busca muito a regional no meu modo de entender, eu acho que deixa a desejar. A questão da gerência não dar suporte, talvez a falta de entendimento o que é o trabalho do CRAS, então a gente fica recorrendo e solicitando a coisa básica, por exemplo, a materialidade, a questão de carro, suporte talvez, nos apoiar. E6. Nós não temos retaguarda, (...). A Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social - SMAAS, órgão gestor da respectiva política, é responsável pela implantação e pela implementação do CRAS, o que inclui desde a estruturação da unidade pública até o acompanhamento técnico e metodológico dos serviços ofertados30. O acompanhamento e monitoramento dos CRAS cabem às Gerências de Proteção Social e Proteção Social Básica – GPSO/GPSOB. Uma atribuição significativa que esta instância realiza e que incide diretamente na atividade de trabalho no CRAS é o monitoramento das ações e o acompanhamento técnico e metodológico. A função fica a cargo de uma equipe de profissionais distribuídas para o exercício da função. Os trabalhadores entrevistados afirmam que fica centrado na figura 30 Ver BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome. Orientações técnicas: Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). 1 ed. Brasília, 2009. desses profissionais o contato maior com o órgão gestor, ou seja, esse profissional de referência é peça chave na relação, especificamente em oferecer suporte técnico e metodológico a todo o trabalho realizado no CRAS. Há uma crítica na afirmação de que o monitoramento parece dar maior ênfase aos resultados quantitativos por meio das planilhas administrativas e da solicitação de informações a serem enviadas ao governo federal. O acompanhamento administrativo com ênfase no controle de metas e resultados tem sido a tônica do monitoramento. O suporte em torno das questões metodológicas, carência maior das equipes dos CRAS, perdeu espaço na gestão do trabalho. Surge assim um conflito entre o acompanhamento de metas e resultados para as instâncias hierárquicas da política e o monitoramento da qualidade dos processos de trabalho. O acompanhamento parece seguir a lógica das necessidades do órgão gestor, e não das demandas de acompanhamento do processo de trabalho apontadas pelos CRAS. Essa tem sido uma preocupação constante levantada pelos trabalhadores: a crescente busca pela melhoria da qualidade do atendimento às famílias e à população dos territórios atendidos. Há uma avaliação quanto à ausência ou uma incipiente discussão de conteúdo da política de assistência social no interior do órgão gestor, que reflete em uma baixa institucionalidade na gestão do CRAS, como, por exemplo, no exercício da função de vigilância socioasssitencial nos territórios. Nos depoimentos abaixo se revelam as situações: E2. (...) eu acho que tem um furo, talvez da gestão, não sei, eu acho que tem uma coisa que fica faltando e fica parecendo que os profissionais são incompetentes, mas eu não acho que é bem por ai. Com relação ao acompanhamento, a quantidade de visitas aqui é pequena, isso a gente percebe, até sente falta de ter alguém mais do lado, e tal, pra trazer algumas informações. (...) sempre parece que tem um porta-voz, eu tenho um pouco dessa impressão, e ai quando a gente fica sabendo aqui, o pessoal lá já está sabendo a séculos, ai eu falo, nó a gente está no interior mesmo porque custa ficar sabendo dos negócios. E5. (...) a nossa relação é mais com o técnico de acompanhamento, eu acho que ele faz um papel de intermediário mesmo. Mesmo porque você liga pra lá e é muito difícil você conseguir falar com a gerência, então ele faz essa intermediação. E6. – (...) na verdade, se tem um “elo de ligação” é com a equipe de acompanhamento técnico e metodológico (...). Infelizmente agente não tem um “elo de ligação” com a gerência, nem da proteção social e nem da proteção social básica. Acho que tem muito a ver com a forma de como a secretaria está organizada hoje. (...) se tivesse cada gerência cumprindo com sua função. Você tem uma gerência de informação e monitoramento que não faz isso. Tinha que ser aquela que estaria à frente da vigilância sócio-assistencial, ela não faz isso. Qual a vigilância que a secretaria de assistência social faz? Nenhuma. E quais as condições que ela dá pra que a gente faça isso no território? Nenhuma. Tudo gira em torno de informações que tem que ir para o MDS, informações que tem que ir para as Políticas Sociais e ela (a SMAAS) não estão dando conta de enxergar o trabalho que tem que ser realizado, que processo é esse que vai garantir os objetivos do CRAS? (grifo meu) E7. Sem suporte, nós não temos o suporte e às vezes quando recorre não tem respostas, aí fica a dúvida. Então a gente fica assim, estão vamos fazer porque tem que fazer alguma coisa, mas... Os trabalhadores dos CRAS apontaram questões que poderiam melhorar essa relação com sugestões de mudanças no foco do acompanhamento técnico e metodológico por parte da SMAAS. Os depoimentos apontam para a necessidade de que eles sejam mais escutados, pois são eles que realizam a atividade de trabalho, potencializam os saberes da experiência no trabalho real, promovem as renormalizações e os saberes do coletivo de trabalho. A forma de condução da gestão não tem possibilitado lidar com os motivos que têm causado “sofrimento, angústia e desgaste” como consequências da intensividade do trabalho do CRAS. Colocar o trabalho em palavras, utilizar dos recursos da linguagem poderia ser uma tentativa de estabelecer novas relações com a gestão do trabalho. A equipe de acompanhamento técnico e metodológico da instância de gestão tem a possibilidade de recolher as diversas experimentações das ações realizadas nos coletivos, o que a torna uma instância privilegiada de fomento e renormalizações da metodologia, uma “usina” de processamento e irradiação da práxis coletiva. Nas entrevistas realizadas foi citada também como sugestão a criação e a institucionalização de espaços coletivos de trocas de experiências, repasses de informações estratégicas, discussões de conteúdo metodológico, ou seja, conversas sobre o trabalho. E2. (...) tem como retomar aquelas reuniões que todo mundo participava, que todo mundo tinha, isso de novo, não sei se essa seria idéia, mas acho que os técnicos tinham que ter um contato maior com essas informações, ficarem mais por dentro das mudanças, do que vai acontecer, (...). E6. Seria bom se tivessem, por exemplo, espaços institucionais criados onde essa pessoa, essa secretária soubesse o que está acontecendo na execução da política e que esses gerentes que aqui estão pudessem também saber o que está acontecendo, (...). Considerando que a gestão desses equipamentos, a capacitação dessa equipe, a retaguarda dessa equipe. De você ter uma equipe de supervisão capaz de chegar ao CRAS e ouvir os problemas que essa equipe traz e que não dão conta de trabalhar, em discussão de casos, em encaminhamentos, etc. Você ter um acompanhamento no CRAS e dos problemas que ele atravessa no dia a dia, sejam administrativos e tal e que você desse condições pra que esse equipamento desse conta de fazer seu trabalho com menos sofrimento, com menos angústia ,com menos desgaste. (grifos nosso) De acordo com a organização da gestão da política pública no município, o órgão gestor da assistência social está subordinado à Secretaria Municipal de Políticas Sociais – SMPS. Os CRAS estão inseridos nos territórios como um dos serviços que compõem o programa BH Cidadania. O referido programa é a agência governamental responsável por estimular e promover a intersetorialidade entre as políticas sociais no governo municipal com a realização de ações intersetoriais no nível local. Certamente resultados dessa estratégia têm ocorrido e devem ser reconhecidos e valorizados. No entanto, ainda há muito que avançar para que a intersetorialidade seja assumida como uma estratégia de gestão. Há uma expectativa de que o Programa BH Cidadania seja mais efetivo em tratar das articulações intersetoriais entre as secretarias de nível central do governo municipal. Como as diretrizes parecem não chegar ao nível local de forma satisfatória para as unidades públicas (centros de saúde, escolas, etc.), fica a interpretação que as articulações e as diretrizes não são deliberadas entre as secretarias municipais, ou seja, que a intersetorialidade está sob a responsabilidade somente dos serviços do nível local. Esta concepção parece não estar devidamente apropriada nos níveis elevados de governo, enquanto que para as unidades localizadas nos territórios, ações articuladas e mais integradas são necessárias para a maior eficácia no enfrentamento às situações de exclusão social. A construção de articulações e de ações intersetoriais efetivas depende de esforços quase que pessoais, que por vezes parecem depender da boa vontade e da capacidade de argumentação e convencimento do CRAS, que pode ser observado nos depoimentos abaixo: E2. A articulação tem que acontecer no território. A gente até tenta, mas acho que tem que ser algo que vem de cima. (grifos nossos) E5. - Eu acho que o que falta são articulações mesmo no nível central, aqui nós temos um problema muito grande em relação à saúde, porque o programa de governo que é a articulação entre a assistência e a saúde, a saúde não sabe, eu que tenho que bater na porta e dizer o que tem que fazer o que não é o meu papel. Então eu acabo ficando queimada no território, não existe, quer dizer, existe uma articulação a nível central com relação ao BH Cidadania, saúde e educação que por um motivo ou outro, que eu acho que está o problema, não chega ao território, não chega ao centro de saúde. Existe alguma coisa aí que barra, por exemplo, o projeto sustentador, cuidador de idosos que é um projeto Intersetorial, eu que tive que fazer o papel, muitas vezes, de ir lá e cobrar questionário que a saúde teria que fazer, isso pra nós é muito ruim, porque eu fiquei como aquela que cobra, aquela que tem que prestar serviço e não é. Teria que ser uma relação horizontal e que a ordem viesse de cima, da gerência da saúde e não existe isso. (As articulações intersetoriais) São precárias mesmo, porque é uma coisa que agente faz aqui no território na ponta, suando, pedindo, por favor, e dependendo da boa vontade das pessoas. Eu acho que o BH Cidadania teria que trabalhar um pouco mais nas articulações mesmo com os setores. A relação do CRAS com o Programa BH Cidadania mostra-se com um grau a mais de dificuldade, pois há uma afirmação recorrente quanto ao seu distanciamento em relação às ações das unidades e dos serviços públicos nos territórios. O Programa BH Cidadania tem assumido um papel de formulação e execução de ações que o torna concorrente com outras políticas públicas. O CRAS e o Programa se misturam em vários aspectos o que causa ambiguidades. O gestor local do Programa é também gestor do CRAS, ou seja, ocorre uma duplicidade de funções. A equipe técnica do CRAS realiza ações formuladas pelo Programa, o que aumenta ainda mais as atribuições com ações concorrentes e sobrepostas. Os entrevistados sentem a necessidade de uma avaliação, pois “há necessidade de se definir se o BH Cidadania é um Programa ou uma estratégia de gestão. (...) ele assume o papel de executor de ações e serviços, distanciando de sua vocação de coordenação política” (PIRES, 2011, pp. 63-64). As ambiguidades e contradições apontadas acima aparecem nos depoimentos a seguir: E5. Eu acho uma relação super distante, muito distante mesmo, (...). Então é uma relação distante, na verdade a política social não sabe o que acontece no território, quais são as articulações que eu faço como está minha comissão local, não existe isso. E6. Se você pegasse tudo bonitinho, e pensando nessa confusão que eles arrumam com o BH Cidadania, porque pra mim isso é uma confusão até agora, eu acho que ninguém sabe dizer o que é isso. A gestão da política pública e as relações interinstitucionais entre os níveis hierárquicos no interior do aparato governamental são permeados por reproduções nas relações de poder, que por sua vez são carregadas de ideologias e se perpetuam como resultantes do processo histórico da formação social e cultural da humanidade. Ao investigar a atividade dos trabalhadores do CRAS, colocá-la em palavras e provocar uma aproximação com trabalho real, revelou uma contradição fundamentada na divisão taylorista do trabalho. A descentralização intragovernamental no âmbito municipal tem provocado uma hierarquização nas relações de saber e de poder entre os níveis de governo ao definir funções e competências. As secretarias temáticas do nível municipal ficam com a responsabilidade de formular as políticas, enquanto que as agências de níveis regionais e locais se encarregam da execução. De acordo com as características dos tipos de descentralização relatados anteriormente por Junqueira et al (1997) na pag. 29 do capítulo 3 deste trabalho, vem demonstrar que até mesmo a descentralização do tipo progressista está permeada por armadilhas que se revelam no processo de sua implementação. É preciso estar atento quanto a condução mais democrática nos processos internos de gestão da máquina pública para que de fato ocorra uma descentralização não somente na execução como também com o “deslocamento para esferas periféricas, de competências e de poder de decisão sobre as políticas” (JUNQUEIRA et al, 1997, p. 09). O distanciamento entre as instâncias temáticas de formulação de âmbito municipal das instâncias de execução pode resultar em uma provável inadequação das políticas públicas com a realidade. O depoimento do trabalhador do CRAS entrevistado revela com clareza a importância de se conhecer o trabalho real e a crítica aos formuladores das políticas públicas com quem está atuando na execução: E2. Pois é eu já falei que o meu sonho de consumo era que o pessoal, lá da central passasse um período de experiência na ponta, porque tem pessoas que não passaram por essa experiência, que eu acho que ia retornar com outro ponto de vista, com entendimento diferente da execução, de como que poderia ser. (...) mas as pessoas esquecem que quem está na ponta tem um conhecimento muito rico, (...). Nós começamos a mudar todos os instrumentais que eram utilizados, muitas vezes eles não eram práticos, eles não condiziam com o que a gente necessitava (...). Enfrentar a reprodução ideológica da divisão social do trabalho se torna possível à medida que a contribuição dos trabalhadores com os saberes investidos na experiência seja apropriada e incorporada pelas instituições públicas na formulação e no planejamento das políticas. O desconhecimento do trabalho real pode ser superado com a operacionalização de um modelo de gestão que possibilite a manifestação dos trabalhadores dos níveis responsáveis pela execução das ações públicas. Uma gestão social comprometida com a democratização interna do aparelho estatal, com relações mais horizontalizadas e com condução dialógica que possibilite a manifestação das diversas dimensões da linguagem pelos trabalhadores, constitui-se em um modelo de gestão pública que de fato esteja conectado com a realidade social. 7 – Considerações Finais A pesquisa realizada teve como propósito investigar a experiência de gestão do CRAS no município de Belo Horizonte a partir do estudo do cotidiano da atividade de trabalho dos trabalhadores. Para isso foi preciso conhecer as normativas legais que prevêem o funcionamento desta unidade pública e que antecipam as ações e a atividade de trabalho. Fez-se necessário identificar os procedimentos, mecanismos, estratégias, saberes criados, mobilizados, realizados pelos trabalhadores no hiato entre o âmbito do trabalho prescrito e aquele do trabalho real. Um problema levantado referiu-se ao fato de que as normativas legais relativas à instrumentalização do processo de gestão do CRAS não são suficientes para abarcar a complexidade apresentada pelo cotidiano da atividade de trabalho. Diante deste problema constatou-se que os trabalhadores renormalizam a atividade, criam e recriam procedimentos, técnicas, estratégias, saberes variados para responder aos desafios oriundos da insuficiência das normas antecedentes e das prescrições legais. A legislação pertinente à estruturação e à organização da política de assistência social e do CRAS é amplamente debatida, e faz com que seja de conhecimento dos trabalhadores. Este fato pode ser considerado positivo, pois a atual arquitetura organizacional representa um avanço no processo de consolidação da assistência social como uma política pública de proteção social. As normativas legais relativas ao funcionamento do CRAS são fundamentais porque o instituem como lócus principal na execução da proteção social básica e na definição das funções que objetivam o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários da população usuária. No entanto, os trabalhadores são unânimes em afirmar que as prescrições não são suficientes para responder a demandas de natureza diversa e que o CRAS realiza ações que não estão previstas nas normas antecedentes. Duas questões distintas foram reveladas para esta situação. A primeira delas refere-se à expectativa e a organização da gestão municipal que apresenta uma diversidade de demandas para o CRAS. Parece haver um desconhecimento da política de assistência social e das funções do CRAS e faz com que as demandas públicas que não encontram cobertura pelas demais políticas sociais são direcionadas para o CRAS. Outro aspecto pode ser um indicador do reconhecimento quanto à inserção e capilaridade nos territórios junto com a capacidade de enfrentamento e de resolutividade de situações apresentadas. Ocorre, portanto uma transferência de responsabilidade institucional para o CRAS que extrapola sua atribuição instituída. Este fato aponta para a necessidade de uma urgente reflexão quanto as atribuições delegadas para o CRAS em Belo Horizonte. A segunda questão refere-se à insuficiência das normas antecedentes em antecipar o trabalho, a “impossibilidade de tudo prever”. Lacunas entre o trabalho prescrito e o real são identificadas no cotidiano da atividade dos trabalhadores do CRAS. A objetividade da realidade social, as carências afetivas e materiais da população, a vida dos usuários moradores nas áreas de vulnerabilidade social faz com que a imprevisibilidade do trabalho receba um aditivo a mais. Nenhuma norma antecedente tem a capacidade de antecipação de toda a atividade humana e em especial da atividade de trabalho. A atividade dos trabalhadores do CRAS é repleta de renormalizações promovida pelo debate de normas, um espaço de produção de saber, de resgate da história de vida e da subjetividade diante das relações sociais, de reflexões pessoais e profissionais, da realização de uma experiência que se revela como formadora. O sujeito singular na situação de trabalho se expressa na relação com o coletivo e se torna um protagonista na gestão da atividade de trabalho. Identificar a insuficiência das normas antecedentes permitiu o aprofundamento da investigação e a revelação da produção de saber na gestão do trabalho. A realização da atividade de trabalho no CRAS é um desafio para os trabalhadores e para os gestores da política de assistência social. Ficou constatada a impossibilidade das prescrições legais e das prescrições de caráter técnico-científicas oriundas da formação acadêmica disciplinar, em prever as situações de trabalho e os procedimentos da intervenção profissional. O saber constituído é reconhecido como fundamental para uma atuação crítica dos trabalhadores, na formulação e no aprofundamento dos conceitos, como base de fundamentação para intervenções que possam provocar nos usuários e nas famílias atendidas mudanças significativas e uma visão crítica diante da realidade social. Os trabalhadores apropriam-se dos conceitos e a seguir os retrabalham e reformulam na confrontação dialética com a experiência na atividade. O saber constituído não é o único saber utilizado pelos trabalhadores do CRAS, na realização do trabalho como manifestação da atividade humana, outros saberes são convocados. No curso da experiência adquirida ao longo da vida e no exercício profissional, saberes investidos são produzidos em aderência com a realidade social e com o trabalho, na relação com as famílias atendidas e no contato com a realidade vivida pela população dos territórios. A experiência adquirida na realização da atividade de trabalho constitui-se um eixo formador, sendo que a cada situação encontrada nos atendimentos é assimilada e investida de saber. A mobilização dos saberes atua a serviço da qualificação da intervenção profissional no domínio técnico e metodológico, como também, a serviço de um compromisso ético-político dos trabalhadores do SUAS na perspectiva da inclusão social, na garantia e na ampliação de direitos para população. Os dados coletados nas entrevistas revelaram o uso intensivo da linguagem como um recurso dos trabalhadores do CRAS na realização da atividade de trabalho. É constante a utilização das práticas linguageiras entre os trabalhadores e se transformam em uma ferramenta imprescindível. A linguagem acompanha a realização das ações e da atividade com interferências significativas na relação com as famílias e com a comunidade do território, nos atendimentos individuais e nas atividades coletivas, nas relações interinstitucionais e na relação entre os trabalhadores ao promover trocas de experiências e produção de saberes do coletivo de trabalho. Foi possível constatar que em todo processo de gestão do trabalho, a linguagem é acionada a colocar o trabalho em palavras, o que possibilita lidar com os impasses na atividade e com a produção de saberes. As trocas linguageiras permitem aos trabalhadores do CRAS expressar sobre questões objetivas nas situações de trabalho, nas reflexões silenciosas e coletivas que acontecem no cotidiano. Permite que as renormalizações individuais sejam reveladas no coletivo de trabalhadores e possibilita um processo de cooperação e a efetivação da troca de saberes e experiências. A constante variabilidade nas situações de trabalho no CRAS nos atendimentos às famílias, nas relações com o território, nas relações político-institucionais, impulsionam estratégias de criação de mecanismos e procedimentos que são socializadas por meio das práticas linguageiras. O uso intensivo dessa prática permite constatar que a linguagem, mais que um instrumento fundamental, é também uma atividade a mais inserida na rotina e na atuação dos trabalhadores do CRAS, ou seja, uma atividade sobre a atividade. A condução da pesquisa permitiu identificar a linguagem também como um recurso imprescindível na instrumentalização da gestão do trabalho. A atividade de trabalho realizada no CRAS é um processo de aprendizagem constante. A sua gestão é conduzida de forma participativa, com relações horizontalizadas, como uma prática dialógica, o que caracteriza a gestão social que é praticada nessa organização. As normas antecedentes traduzidas nos instrumentos de gestão e nas prescrições das rotinas são constantemente testadas e avaliadas sendo então renormatizadas. Instituídas coletivamente por meio das renormatizações, passam a orientar novos procedimentos até se tornarem novamente insuficientes em um exercício constante. Os trabalhadores renormalizam constantemente a sua atividade e reformulam a sua práxis, como também buscam ininterruptamente novas normas e regras institucionais renormatizadas para estabelecer uma unidade de ação no CRAS. A diferença entre o tempo de experiência no trabalho indica que esses trabalhadores, ou essas equipes, testaram um número maior de possibilidades e estratégias na organização do trabalho e na realização da sua atividade. No entanto, as trocas entre as diversas equipes ou coletivos de trabalhadores acontecem com freqüência, o que permite consequentemente a circulação das experimentações. As relações interinstitucionais apontam dois grandes desafios para o debate. O primeiro diz respeito à sinergia das ações por meio da intersetorialidade, pois se percebe um esforço dos trabalhadores do CRAS no convencimento dos atores políticos no nível local e uma cobrança dos gestores municipais na efetivação desta estratégia, que tem levado os trabalhadores a uma exaustão. A desarticulação entre as políticas setoriais ainda persiste. Sua difícil superação começará a ser enfrentada quando a intersetorialidade for instituída de fato como uma estratégia de gestão e forem incluídas no planejamento governamental articulações entre as políticas com ações conjuntas, sinérgicas e com a previsão orçamentária e alocação de recursos financeiros. A segunda questão refere-se à hierarquização entre os níveis de governo determinada pela descentralização intra-governamental no município. Esta formatação da estrutura administrativa, principalmente nas grandes metrópoles, onde o nível central formula e planeja as ações governamentais e o nível local somente tem a função de executar, corre-se o risco de promover uma reprodução da divisão taylorista no trabalho. O distanciamento da concepção em relação à execução é uma armadilha que pode ser superada. Os coletivos de trabalhadores das unidades dos CRAS são produtores de saberes, detém informações do trabalho, dos territórios e da realidade social, planejam a sua própria ação e renormalizam sua atividade de trabalho. O órgão gestor da política municipal de assistência social é possuidor de instrumentos suficientes para uma mudança no foco do monitoramento e acompanhamento técnico e metodológico. Se por um lado é necessário o levantamento de dados quantitativos para a gestão municipal, por outro lado é preciso assimilar a demanda pelo acompanhamento metodológico das ações e da atividade de trabalho no CRAS. A experiência dos trabalhadores indica que a renormatização nas unidades é uma necessidade na gestão interna de cada CRAS, o que permite apostar em um processo de renormatizações dos procedimentos metodológicos e organizacionais da gestão municipal dos CRAS. A gestão social e a ergogestão sistematizada pela perspectiva ergológica apontam para a superação deste impasse ao propor um modelo de gestão que reconheça a execução como produtora de saberes a serem disponibilizados como contribuição significativa na formulação das políticas públicas. Aproximar a concepção da execução é sem dúvida um desafio para as políticas públicas, como, de resto, para todas as organizações de trabalho. O caráter relacional deve ser direcionado objetivamente para uma construção coletiva de mecanismos e instrumentos de gestão com base em princípios firmados na consolidação da política de assistência social. Responder a questão central da investigação formulada inicialmente – em que medida a experiência de gestão dos trabalhadores do CRAS amplia ou subverte os conceitos de gestão social – revelou que a experiência de gestão dos trabalhadores tipifica e qualifica a gestão social caracterizada no referencial teórico. A investigação sobre os instrumentos de gestão e a atividade de trabalho no CRAS não se esgota nos resultados alcançados nesta pesquisa. Outras questões que não foram abordadas, que escapam do escopo, pode se transformar em temas para estudos posteriores, como por exemplo, o tratamento dado pelo CRAS e pelos trabalhadores às demandas oriundas da realidade do território. A ergologia como referencial teórico de análise da pesquisa, se mostrou pertinente para o estudo da gestão e da atividade de trabalho no CRAS. O propósito de conhecer o trabalho para transformá-lo instiga a elaboração de uma proposta de intervenção como requisito deste Mestrado, que será detalhada a seguir. 8 – Proposta de Intervenção A proposta de intervenção configurada nos Grupos de Encontro de Trabalho – GETs será apresentada aos gestores municipais da política de assistência social como uma prática de construção coletiva da gestão da atividade de trabalho nos CRAS. As ações de monitoramento e acompanhamento técnico e metodológico é realizado por uma equipe composta por profissionais com diversas formações acadêmicas. A proposta de intervenção consiste em introduzir a metodologia dos GETs como um recurso na qualificação da intervenção dessa equipe. Os Grupos de Encontro de Trabalho propostos pela Ergologia se constituem em uma estratégia metodológica para conhecer a atividade de trabalho na perspectiva de transformá-lo, contando com o protagonismo dos trabalhadores. Conhecer o trabalho nesta perspectiva pressupõe escutar o trabalhador, que é quem sabe sobre ele e sobre a melhor maneira de executá-lo. Os GET são orientados pelo esquema teóricometodológico denominado Dispositivo Dinâmico a Três Polos31 e se concretizam por meio da reunião de um grupo de trabalhadores com o intuito de debater e traduzir o trabalho e de buscar soluções conjuntas para os problemas enfrentados. Os GETs se adequam às situações em que se deparam os trabalhadores do CRAS no desempenho da sua atividade e no processo de gestão, conforme expresso anteriormente. Para Schwartz (2000, p. 45), o DD3P “gera, ao mesmo tempo, efeitos sobre a produção de conhecimento e sobre a gestão social das situações de trabalho, pois há efeitos recíprocos entre o campo científico e o campo da gestão do trabalho”. O DD3P orienta e conduz a metodologia do processo pela confrontação entre os saberes constituídos no primeiro pólo e os saberes investidos na experiência de trabalho no segundo pólo, que direciona a um terceiro pólo vetor referenciado nos princípios e objetivos balizados pela política de assistência social e no propósito de um projeto ético e político para a sociedade. A elaboração da proposta de intervenção deve contemplar a realidade do órgão gestor, as necessidades dos trabalhadores e da efetivação das funções e prerrogativas do CRAS como unidade pública. Tem como propósito reunir os trabalhadores do CRAS no debate e na reflexão quanto à condução dos processos de gestão e quanto às estratégias 31 Dispositivo Dinâmico a Três Polos – DD3P. Ver definição p.104-105. encontradas na superação das lacunas entre o trabalho prescrito e o trabalho real, a partir das situações concretas de trabalho. A metodologia consiste em colocar o trabalho em diálogo ao instituir espaços regulares e sistemáticos de debate com a participação dos atores envolvidos, onde possam ser apontadas questões significativas de caráter organizacional e metodológico que surgem nas situações de trabalho. Essas questões podem ser identificadas pelos trabalhadores do CRAS e pelos gestores ou equipes de acompanhamento técnicometodológico. As prescrições legais e as prescrições técnico-científicas compõem o conjunto das normas antecedentes. Os saberes constituídos precisam ser resgatados e elucidados a fim de identificar a base da fundamentação que originou as prescrições. Este momento se torna relevante para a formulação de conceitos, ao (re) visitar o saber acadêmico e científico, ao definir a abordagem e a concepção teórica a ser seguida. De acordo com o DD3P este primeiro pólo possibilita a construção de uma base conceitual fundamentada em princípios sólidos que irão nortear a práxis dos trabalhadores. O segundo pólo referente ao saber investido possibilita identificar as situações problemas no ato do trabalho real. Os entraves identificados pelas normas antecedentes prescritas deverão ser confrontados com o trabalho real, ou seja, como os trabalhadores se organizam e quais as alternativas encontradas para superar estes entraves no ato da realização da atividade de trabalho. As soluções encontradas pelos trabalhadores ou pelos coletivos de trabalho ganham relevância e a experiência de trabalho associada à experiência de vida é mobilizada para a superação dos entraves, e como consequência a produção de novos saberes. Dizer o que faz e como faz é o principal objetivo deste momento. O trabalho real deverá ser traduzido por meio da linguagem, da verbalização, o que pode haver resistências ao não ser revelado toda a sua dimensão, pois a realização do trabalho está repleta de microtransgressões. Este exercício deve ser conduzido de forma transparente e com a utilização de técnicas que permita estabelecer com os participantes um processo de confiabilidade. O terceiro pólo do dispositivo funciona como um balizador de todo processo. Tem a função de resgatar e definir os princípios éticos e políticos que devem nortear a organização e a atividade de trabalho. Trata-se da adequar e definir a instrumentalização dos mecanismos de gestão e do processo de trabalho com a finalidade política diante da intervenção na realidade social. Este momento permite evitar que a atividade de trabalho seja conduzida por um academicismo dissociado da realidade social, como também, de uma prática profissional desprovida de uma fundamentação teórica, despolitizada, sem uma reflexão crítica e permeada pelo senso comum. O saber constituído no conhecimento científico associado ao saber investido na experiência deve estar a serviço de uma finalidade que considere o processo civilizatório ético da humanidade. Neste sentido, o terceiro pólo do dispositivo cumpre a função de resgatar o debate e explicitar junto aos GETs a finalidade da política de assistência social voltada para a defesa e garantia de direitos e à proteção social, no enfrentamento às desigualdades sociais e no fortalecimento de vínculos significativos. O diálogo proposto pela metodologia do Grupo de Encontro de Trabalho tem como propósito a revisão dos processos de trabalho e das normas antecedentes de forma a possibilitar a sua renormatização, os seja, uma melhor adequação das normas diante das situações de trabalho. A proposta consiste em instituir os GETs como metodologia de trabalho da equipe de acompanhamento técnico e metodológico no suporte aos CRAS. O profissional de referência deverá conduzir a sua intervenção junto ao coletivo de cada CRAS. De acordo com os apontamentos relativos às características da atividade de trabalho e dos desafios na gestão do CRAS, os GETs podem se constituir como um instrumento de gestão apropriado, pois carrega no seu escopo uma metodologia de monitoramento e acompanhamento técnico-metodológico participativo com a contribuição de trabalhadores e gestores. 9 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Júlio C. A. O simulacro do progresso - reflexões sobre democracia, tecnologia e desenvolvimento local. 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O CEP deseja aos pesquisadores sucesso em sua trajetória de pesquisa! Atenciosamente, Profª. Elaine Linhares de Assis Guerra Coordenadora do CEP Centro Universitário UNA ANEXO II TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Título da Pesquisa: A gestão social no Centro de Referência da Assistência Social em Belo Horizonte: desafios da atividade dos trabalhadores sociais Nome da Orientadora: Eloisa Helena Santos Nome do Pesquisador: Célio Augusto Raydan Rocha 1. Natureza da pesquisa: o sra (sr.) está sendo convidada (o) a participar desta pesquisa que tem como finalidade investigar a experiência de gestão do CRAS no município de Belo Horizonte, a partir do estudo da atividade de trabalho dos trabalhadores sociais. 2. Participantes da pesquisa: Profissionais de nível superior trabalhadores e coordenadores, totalizando 10 profissionais. 3. Envolvimento na pesquisa: ao participar deste estudo a sra (sr) permitirá que o pesquisador Célio Augusto Raydan Rocha tenha acesso a informações sobre sua atividade de trabalho e possa analisá-la de forma a contribuir para conhecer o processo de gestão no CRAS. A sra (sr.) tem liberdade de se recusar a participar e ainda se recusar a continuar participando em qualquer fase da pesquisa, sem qualquer prejuízo para a sra (sr.). Sempre que quiser poderá pedir mais informações sobre a pesquisa através do telefone do pesquisador do projeto e, se necessário através do telefone do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário UNA. 4. Sobre as entrevistas: Será necessário um encontro para a realização da entrevista e um encontro para a realização de um grupo focal. 5. Riscos e desconforto: a participação nesta pesquisa não traz complicações legais. Os procedimentos adotados nesta pesquisa obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução no. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à sua dignidade. 6. Confidencialidade: todas as informações coletadas neste estudo são estritamente confidenciais. Somente o pesquisador e a orientadora terão conhecimento dos dados, e seus dados pessoais, bem como características que possam identificá-lo não serão utilizados. 7. Benefícios: ao participar desta pesquisa a sra (sr.) não terá nenhum benefício direto. Entretanto, esperamos que este estudo traga informações importantes sobre a atividade de trabalho nos CRAS, de forma que o conhecimento que será construído a partir desta pesquisa possa contribuir para qualificar a gestão no CRAS e valorizar o saber dos trabalhadores sociais, onde pesquisador se compromete a divulgar os resultados obtidos. 8. Pagamento: a sra (sr.) não terá nenhum tipo de despesa para participar desta pesquisa, bem como nada será pago por sua participação. Após estes esclarecimentos, solicitamos o seu consentimento de forma livre para participar desta pesquisa. Portanto preencha, por favor, os itens que se seguem. Obs: Não assine esse termo se ainda tiver dúvida a respeito. Consentimento Livre e Esclarecido Tendo em vista os itens acima apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, manifesto meu consentimento em participar da pesquisa. Declaro que recebi cópia deste termo de consentimento, e autorizo a realização da pesquisa e a divulgação dos dados obtidos neste estudo. ___________________________ Nome do Participante da Pesquisa ______________________________ Assinatura do Participante da Pesquisa __________________________________ Assinatura do Pesquisador ___________________________________ Assinatura do Orientador Pesquisador Principal: Célio Augusto Raydan Rocha Comitê de Ética em Pesquisa: Rua Guajajaras, 175, 4º andar – Belo Horizonte/MG Contato: email: [email protected] ANEXO III ROTEIRO DE ENTREVISTA Data da entrevista: Horário de Início: Horário de Término: CRAS: Sexo: Idade: Formação: Tempo de experiência profissional: Tempo de trabalho no CRAS: Qual tipo de vinculo institucional? Contratado ou servidor efetivo? Experiência Profissional anterior ao trabalho no CRAS: Atividade de trabalho paralela à atividade de trabalho no CRAS: Possui outro curso de graduação? Cursos de Pós-Graduação: Quais: Cursos de Aperfeiçoamento profissional: Quais: Perguntas: 1 - Quais os documentos legais para o funcionamento do CRAS que você conhece? 2 - De acordo com esses documentos, quais são os objetivos do trabalho a ser desenvolvido pelos trabalhadores (equipe técnica) no CRAS? 3 - Para execução da sua atividade de trabalho você recorre a algum destes documentos legais? Quais? 4 - Você percebe outros objetivos do trabalho no CRAS que não estão descritos nos documentos de referência? 5 - Você acredita que há um maior número de procedimentos prescritos ou nãoprescritos? 6 - As atividades desenvolvidas no CRAS estão coerentes com os objetivos do serviço previstos na PNAS? Por quê? 7 – As normativas legais são suficientes para prever todas as atividades de trabalho no CRAS? 8- A que você recorre para realizar as atividades de trabalho quando identifica a existência de procedimentos não-prescritos? 9- Você considera que a sua formação acadêmica prepara para exercer a atividade de trabalho no CRAS? 10 – Considerando os desafios e a complexidade do trabalho, você recorre a alguma área de conhecimento científico? Qual? 11 - Além da sua área específica de formação você recorre a alguma outra área de conhecimento científico? Quais? 12 - Além das áreas de conhecimento reconhecidas pelo âmbito da ciência, existem outras fontes de saber que lhe auxiliam em sua atividade de trabalho no CRAS? Quais? 13 – Você realiza todas as atividades de trabalho desenvolvidas no CRAS? 14 - Descreva as suas atividades de trabalho em um dia? Existem diferenças entre os dias da semana? O que pode interferir nessa variabilidade? 15 - Essas atividades estão previstas nos documentos oficiais da política de assistência social ou em outros? 16 - Você percebe que sua atividade de trabalho é semelhante à atividade de trabalho de outros profissionais da equipe e de trabalhadores sociais em outros CRAS? 17 - Descreva as atividades realizadas no CRAS com relação à organização da gestão do serviço. 18 – Qual destas atividades descritas acima que você realiza? 19 – A quais conhecimentos você recorre para realizar estas atividades de trabalho relativas à gestão do serviço? 20 - Descrevam as atividades realizadas no CRAS no que diz respeito às articulações interinstitucionais (com a rede). 21 - Como são percebidas as relações entre as instâncias de governo dos níveis regional e municipal com o CRAS 22 - Como ocorre a relação da GPSOB (gerência responsável pelo acompanhamento / supervisão) com o CRAS? 23 - Como você acha que esta relação deveria ser? 24 - Descreva as atividades realizadas no CRAS no que se refere à relação com a comunidade. 25- Como é organizado o atendimento às famílias? 26 - Para a realização do atendimento às famílias você recorre a algum documento ou normativa oficial? 27 – Você considera que a sua formação acadêmica prepara para o trabalho com famílias no CRAS? 28 – Você recorre a alguma área de conhecimento para realizar a atividade de trabalho com famílias? 29 - Descreva as atividades realizadas no CRAS que possibilitam estabelecer relações entre os trabalhadores na equipe. 30 - Você é chamado (a) para discutir questões relativas ao funcionamento do CRAS onde atua? 31 - Existe algum critério de distribuição das atribuições na equipe? 32 - A equipe discute questões relativas à dinâmica de funcionamento interno? 33 - Você percebe se há espaço para críticas ou posicionamentos divergentes? 34 - Como são tomadas as decisões no CRAS? 35- Existem conhecimentos que você aprendeu a dominar em sua prática profissional? 36- Considerando as relações estabelecidas no contexto de trabalho do CRAS, o que você aprendeu com elas? 37- Como percebe a relação de sua história de vida com o desenvolvimento de sua atividade de trabalho no CRAS? 38 - Em relação a sua percepção, você precisaria receber mais orientações teóricas e técnicas para desenvolver sua atividade de trabalho no CRAS?