MURCHO, Desidério – A natureza da filosofia e o seu ensino

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MURCHO, Desidério – A natureza da filosofia e o
seu ensino. Lisboa: Plátano, 2002, (Coleção Aula
Prática), 102 p.
O autor. Licenciou-se em filosofia pela
Universidade de Lisboa. É um dos diretores da
Sociedade Portuguesa de Filosofia (SPF), fundador do
Centro para o ensino da filosofia dessa entidade. Ao
lado de Guilherme Valente, dirige a coleção “Filosofia
aberta”, da editora Gradiva (Lisboa), responsável pela
divulgação de muitas obras de filosofia. Traduziu
vários livros. Uma de suas importantes atividades é a
manutenção, na internet, do portal “Crítica”, o maior
portal de filosofia em língua portuguesa, riquíssimo de
informações.
O livro. Como o título deixa explícito, Desiderio
trata de caracterizar a filosofia e de indicar diretrizes
para o ensino dessa disciplina. Ao lado de curto
prefácio e de uma página com leituras recomendadas,
reúne oito ensaios, quase todos resultantes de suas
atividades na SPF. Os ensaios mais breves são
“Filosofia e subjectividade” (duas páginas) e “O
problema didáctico da definição de filosofia” (quatro);
os mais longos são “O que é filosofia?” (21); “Definição
de definição” (18); e “A tradição socrática” (17).
***
O ensaio inicial, “Filosofia e desencanto no
ensino secundário” (11 páginas) encerra contundentes
críticas dirigidas contra o sistema escolar de Portugal
– críticas aplicáveis a sistemas de muitos outros
países. Nota, explicitamente, que a formação
universitária deficiente, os professores e estudantes
desmotivados e os maus programas estariam entre os
fatores que explicariam a baixa produção filosófica de
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Portugal. Em síntese, as faculdades ensinam a
comentar, não ensinam a pensar.
Desidério aponta falhas de programas
escolares e de sistemas didáticos, assim como
condena a repetição enfadonha e inútil de textos
clássicos – sem a desejável e imprescindível criação
de um espírito crítico. Entende que aos professores de
filosofia não cabe dar aos alunos a capacidade de
repetir (bem ou mal) “as idéias dos filósofos, mas a
capacidade para defender e criticar idéias, a
capacidade criativa para reagir a problemas com
propostas bem pensadas, o talento para compreender
o objectivo de um argumento, as suas premissas e o
seu alcance” (p. 79). Assevera que “os licenciados em
filosofia pouco mais sabem do que citar e parafrasear
textos” (p. 66). Para evitar a transmissão de
preconceitos, os comentários vagos, a exegese estéril,
defende modo socrático de “fazer filosofia”, insistindo
no exercício crítico da razão. Em especial, “o ensino
da filosofia não faz sentido se for transformado em
propaganda ou em catequese” (p. 22). Mais: “A
filosofia não cultiva dogmas (...); faz o contrário:
procura destruir dogmas” (p. 57).
Os filósofos “introduzem muitos conceitos com
os quais não estamos habituados a lidar no dia-a-dia”
(p. 86); fazem-no para que se possa ”compreender
melhor outros conceitos” que nos habituamos a
encontrar na arte, na religião, na ciência. Filosofia é
estudo disciplinado e rigoroso (p. 12) de conceitos
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como os de verdade, validade, conhecimento,
realidade, bem, arte, Deus, existência, propriedade,
justiça... Daí resultam teorias que visam resolver
problemas relativos a tais conceitos (p. 21). E as
possíveis soluções, como é desejável, devem
apresentar-se apoiadas em argumentos “corretos”.
As opiniões em torno dos problemas “nunca
parecem chegar a um consenso mínimo” (p. 25). Por
isso, é oportuno, às vezes, conhecer o que certos
pensadores disseram a respeito dessas questões (p.
27). Em outras palavras, convém conhecer um pouco
da história da filosofia (p. 67), boa maneira para
entender o que determinado filósofo pretendia
asseverar. Contudo, filosofia não é história da filosofia,
lembra Desidério, com razão. A história é meio; o fim
“é perguntar-se se o filósofo tem razão”, o que requer
a atitude crítica.
***
Na p. 12, Desidério fala da “opacidade
referencial” (noção desenvolvida por W. Quine, em
1960, no livro Word and object), atribuindo ao termo
um alcance mais amplo. Existe opacidade quando nos
limitamos a dizer “P afirmou x; Q contestou,
asseverando y; R retrucou defendendo z”, sem, no
entanto, conhecer o que significam x, y, z...
[Lamentavelmente, isso é muito comum.] O
comentário em torno da “incomensurabilidade de
teorias”, (p. 75s.) é curioso.
***
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No livro de Desidério há cinco itens que
merecem comentário, mesmo que breve. Primeiro.
Desidério diz (p. 25) que “em filosofia não se sabe
praticamente nada”. Evidentemente, mera façon de
parler. Esqueçamos o exagero. Adiante (p. 49),
segundo item, assevera que “As definições explícitas
são, na verdade, raras”. Cabe notar que
numerosíssimas definições da matemática são
explícitas (algumas poucas são recursivas e
contextuais). A par disso, os dicionários oferecem ou
procuram oferecer definições explícitas da maioria dos
termos arrolados (mesmo que muitas sejam
“horríveis”). O terceiro item (p.64), refere-se à dupla
negação. Para a lógica, a dupla negação equipara-se
a uma afirmação. Em diálogos corriqueiros, porém,
portugueses e brasileiros costumam empregá-la com
“força” de negação. Creio que não vale a pena acolher
o erro. Parece preferível insistir, desde cedo, no uso
correto. Quarto item: exigir “argumentos que
sustentam nossas posições” (p. 60), isto é, a
fundamentação racional do que asseveramos, não é
exigência que possa ficar circunscrita à arena
filosófica. Argumentos dedutivamente legítimos ou, no
mínimo, indutivamente corretos são exigíveis em
quaisquer disciplinas. Melhor, em qualquer discussão
“civilizada”.
O quinto item diz respeito às definições. Deixei
registrado (cap. 2.5 do livro Saber de e saber que:
alicerces da racionalidade, Petrópolis: Vozes, 2002),
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meu modo de entender as definições. Desidério
examina o assunto por um prisma excessivamente
tradicionalista. Preso a tais esquemas, define coisas –
enquanto, no meu entender, definimos palavras, isto é,
termos de uma língua. Para mim, a ostensão não é
modo de definir, mas forma de incutir certos hábitos
lingüísticos. Essa diferença de enfoques não impede,
porém, que aceite vários de seus pontos de vista.
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