GENSLER, Harry J.- Formal Routledge, 1996, 213 páginas. ethics. London: Ao escrever este livro, Gensler lecionava na Universidade de Scranton. Transferiu-se, logo depois, para a Universidade de Cleveland onde, para a mesma publicadora, Routledge, preparou Ethics (1998). Antes disso, havia publicado dois livros de lógica, um para efetuar análise de argumentos (1989), outro para discutir certos sistemas não-clássicos (1990). *** Lembremos que a lógica (dedutiva) jamais se propôs a demonstrar ou estabelecer tudo que afirmamos. Invariavelmente, partimos de crenças, axiomas ou pressupostos, isto é, de premissas não demonstráveis (ou não demonstradas). Muitas vezes, tais premissas são acolhidas com base em intuições, sentimentos, percepções, convicções, nem sempre (racionalmente) justificáveis. Cabe à lógica investigar a coerência desse ponto de partida. A lógica se presta, pois, para obrigar-nos a explicitar e esclarecer o significado de pressupostos admitidos, registrar a presença de afirmações conflitantes e identificar pontos frágeis em nossa maneira de colocar idéias. Genericamente, parece lícito afirmar que filósofos das mais variadas tendências acolhem praticamente os mesmos princípios lógicos. Há, sem dúvida, muitas questões delicadas de que especialistas não se podem esquivar. Entre elas, “Que é verdade?”, “Que significa validade?”, “Tem sentido falar em impossibilidade lógica?”, “A lógica inclui a teoria dos Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ 2 HEGENBERG, Leonidas: Resenhas conjuntos?”, “Existe uma lógica dos imperativos?”, “Temos como justificar os princípios da lógica?” Gensler registra (p. 4) que as questões desse tipo (por mais relevantes que sejam) não são examinadas pela própria lógica, mas pela filosofia da lógica. Salienta, ainda, que várias questões da filosofia da lógica geram, com freqüência, muitas controvérsias. Nota, porém, que tais controvérsias não afetam as noções debatidas em seu livro. *** Endossando o usual modo de ver a lógica (p. 38), o autor diz que a lógica deve impor coerência, inclusive na maneira de analisar emoções. A ética formal pode auxiliar-nos a entender o raciocínio moral, mostrando que certas premissas são coerentes e, em seguida, estabelecendo como certa conclusão será justificada a partir dessas premissas. Em suma, a ética formal apresenta pressupostos em que se assentam idéias a respeito do comportamento, analisando-os à luz da coerência (subentende-se, com o auxílio da lógica). *** Não parece impróprio caracterizar a ética formal como disciplina que, combinando lógica e ética, objetiva (1) formular os princípios éticos de modo claro; (2) reunir tais princípios em um sistema coerente, admissível e aceitável; (3) analisar racionalmente a moral, utilizando o sistema assim elaborado. Gensler sustenta que os princípios éticos se assemelham aos lógicos, no sentido de que fornecem alicerce adequado para o pensamento ético. O mais Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ HEGENBERG, Leonidas: Resenhas 3 notável desses princípios seria a “regra de ouro” (golden rule): “Tratar os outros como desejamos ser tratados”, regra aceita (com pequenas variações) em praticamente todas as culturas e religiões do mundo. Informa (p. 1) que seu livro se assenta na lógica e nas teorias éticas de Emmanuel Kant (1724-1804) e de Richard Hare (1919-2002). Para ele (p. 1), existem, na ética, princípios formais (“Siga sua consciência”) e materiais (“Não roubar”). Aqueles seriam expressos mediante variáveis e constantes. Estes podem incluir termos da lógica, termos que se refiram a atitudes psicológicas gerais (crer, desejar, agir) e certas difíceis noções abstratas (dever, meios-fins). Eis mais alguns princípios formais (p. 5): “Acreditando que v. deve fazer A, faça A” “Mantenha crenças logicamente compatíveis” “Se A e B são incompatíveis e v. acolhe A, rejeite B” “Se v. deseja fazer E e acredita que fazer M seja necessário para fazer E, então faça M” “Proceda apenas de acordo com diretrizes que v. desejaria ver transformadas em leis universais.” Princípios materiais não podem ser expressos mediante uso de constantes e variáveis, porque contêm “termos concretos” (p. ex., roubar). Gensler observa que os princípios formais são acolhidos, em geral, sem muita controvérsia. Às vezes, certa cautela se impõe e algumas restrições a tais princípios precisam ser consideradas. Tal como acontece no caso dos princípios da lógica, são muito controvertidas as questões relativas a significado e justificação dos Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ 4 HEGENBERG, Leonidas: Resenhas princípios formais da ética – o campo da chamada metaética (p. 6). *** Do segundo ao sexto capítulos, o autor apresenta os princípios fundamentais da ética formal – logicidade, consciência, imparcialidade, a regra de ouro e a fórmula da lei universal. Em frase sugestiva, diz que os capítulos caminham “do osso” (referencial teórico) para a “carne” (os princípios que fundamentam o raciocínio ético, muito especialmente a regra de ouro). Quanto à logicidade (cap. 2), notar os pontos básicos: (1) não aceitar crenças incompatíveis e (2) não aceitar uma crença sem aceitar suas conseqüências lógicas. O autor afirma (p. 16 e em vários outros locais) que os princípios podem assumir (1) a “forma “nãocombine” e (2) a forma “se-então”. A diferença é sutil, mas de interesse. Tomemos um exemplo. (1) Se A e B são incompatíveis, você não deve combinar a aceitação de A e a aceitação de B (2) Se A e B são incompatíveis, então, ao aceitar A, você não deve aceitar B. A forma (1) é preferível, pois afasta incompatibilidades e não nos diz em que acreditar ou o que aceitar. A forma (2) conduz a certos conflitos indesejáveis. Aqui (e em muitos pontos do livro), a seção se encerra com várias questões e as correspondentes respostas, presumivelmente reunidas e apresentadas em aulas, para afastar dúvidas de alunos. Registre-se Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ HEGENBERG, Leonidas: Resenhas 5 esta curiosa observação que responde à questão n. 2 (p. 27): incompatibilidades são afastadas usando razão, sentimento e escolha. *** No cap. 3, temos o axioma da racionalidade (p. 44): Devemos pensar e viver em consonância com a lógica e os axiomas da ética formal. Ele é desdobrado em duas partes complementares e se abre no exame dos imperativos. Recorde-se que os imperativos não são verdadeiros ou falsos. Assim, ao formular argumentos que envolvam imperativos, a legitimidade precisa ser entendida de maneira diferente da usual. Gensler sugere (p. 183): Argumento legítimo é o argumento que torna incompatíveis as premissas (em tela) e a contraditória da conclusão. Há dificuldades para caracterizar a contraditória de um imperativo. Dado o comando “Faça A!”, pode-se pensar em uma contraditória modal, “Você pode deixar de fazer A”, assim como em uma contraditória antimodal, “Não faça A!”. As duas formas são aceitáveis, assevera o autor (p. 185), pois imperativos podem corresponder a comandos (exigências) ou preferências. Temos “Você não pode deixar de fazer A” (em contextos legais e modais); e “Como primeira escolha, faça A” (contextos de aconselhamento). Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ 6 HEGENBERG, Leonidas: Resenhas Gensler formula, em seguida (p. 46), o axioma dos fins e meios: “Fazer E” acarreta: “Se fazer M é causalmente necessário para fazer E, então faça M”. Eis um exemplo concreto: “Defenda seu cliente; investigações são necessárias para boa defesa; investigue!” Não fazendo M, a pessoa se mostra incoerente. A fim de evitar incoerências, pode ser preciso (i) escolher objetivos diversos de E; (ii) alterar as crenças; (iii) deixar de agir. Qualquer das opções pode mostrar-se inadequada. Ainda no cap. 3, há uma seção intitulada “Follow your conscience”, em que se apresenta o axioma da prescrição. [Note-se que ‘prescrever’ significa, nesse contexto, “determinar com antecedência e de modo explicito”.] Eis o axioma: Se você deve fazer A, então faça A Alternativamente, Se é correto fazer A, então é permitido fazer A. O axioma expressa um compromisso prático de ordem moral. É fácil criar situações em que tais compromissos se mostrem discutíveis. Para contornar dificuldades, o melhor será colocar uma cláusula de contemporização: os termos ‘deve’ e ‘correto’ são utilizados desde que as condições gerais (em sentido avaliativo) se mantenham. Mais uma vez, temos a forma não-combine Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ HEGENBERG, Leonidas: Resenhas 7 Não-combine (1) crer que você deve fazer A e (2) não fazer A que é um teorema, ao passo que a forma se-então, Se você acredita que deve fazer A, então você deve fazer A leva a conseqüências indesejáveis. *** O cap. 4 trata da imparcialidade. Aqui está o axioma da universalização (U). Em síntese, destina-se a dizer que a moralidade de uma ação independe de quem a pratica e depende do tipo de ação. Usando os termos deônticos ‘deve’ (é requerido) e ‘correto’ (é permitido), o axioma U toma a forma Se um ato A deve ser praticado (é correto), então existe alguma conjunção F de propriedades tal que (1) o ato A é F; (2) em qualquer situação (real ou hipotética), (3) cada ato F deve ser praticado (é correto). O capítulo se encerra com 25 questões, discutidas de modo minucioso (p. 88-92). Por exemplo, a questão 6 consiste em estudar a aceitabilidade da seguinte afirmação: “Se é certo X fazer A, é certo que todas as pessoas (everyone) que estejam em situações similares façam A”. Gensler mostra que a afirmação não pode ser aceita. O legítimo seria afirmar que “uma pessoa qualquer (any one) fizesse A”. Está em foco uma Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ HEGENBERG, Leonidas: Resenhas 8 diferença entre ‘everyone’ e ‘anyone’ -- que, em português, nem sempre se põe clara. [Pensar, p. ex., em concurso com 20 concorrentes, e notar a diferença entre “É possível que um concorrente qualquer vença” e “É possível que todos vençam”.] *** No cap. 5, está a regra de ouro, “o mais importante princípio da ética formal” (p. 93): (1) (2) Não combinar agir no sentido de fazer A para X; e não admitir, em circunstâncias similares, que A seja feito a você. De modo mais simples, Trate os outros da maneira pela qual,em circunstâncias similares, você gostaria de ser tratado. Esse princípio se apresenta como teorema (passível de ser demonstrado a partir dos axiomas propostos). De novo (p. 99), o autor compara as formas “se-então” e “não-combine” dessa regra, para mostrar as falhas que podem advir da primeira dessas formas. A importância que Gensler atribui à regra está evidenciada no final do capítulo, onde há quase 20 páginas de perguntas e respostas em que o tópico se vê esmiuçado. [Gensler nota que a “golden rule” recebeu suas primeiras formulações com Zoroastro, Buda e Confúcio (p. 105).] Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ HEGENBERG, Leonidas: Resenhas 9 *** A lei da universalização (regra de ouro em perspectiva ampla) é tema do cap. 6. O autor assevera que desrespeitamos a coerência se deixamos de observar a seguinte lei: Não pratique o ato A sem admitir que, em situações similares, X também pratique A. Na p. 129, Gensler lembra que muitos outros autores (Habermas, Sartre, os profetas cristãos) formularam regras similares. Na p. 134, nota que a “golden rule” seria tão óbvia que dispensaria justiticativas – pois qualquer justificação apelaria para premissas menos pluasíveis do que a própria regra. *** O assunto chega ao fim (cap. 7) com teoria mais rica de racionalidade, mediante adição de princípios semi-formais. Entre esses, regras do tipo “Aumentar o número de informes factuais” e “Usar a imaginação”. Sem dúvida, é oportuno conhecer fatos nãomorais – circunstâncias, alternativas, conseqüências, prós e contras. “Adquirimos” tais fatos via experiência pessoal e opinião de peritos (p. 149). Desconhecer fatos desse tipo (ignorância ou má informação) leva a erros sérios. Embora passível de debate, parece conveniente admitir que precisamos, às vezes, conceber o que é “estar na situação do outro” (ou “estarmos, nós mesmos, num momento futuro, em dada situação”). Para tanto, a imaginação é requerida. Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ 10 HEGENBERG, Leonidas: Resenhas O capítulo contêm (p. 171-80) onze questões e as devidas respostas. Eis duas delas. Q1 “Você (Gensler) teria afastado todos os aspectos não-racionais do pensamento ético?” Resposta (aqui resumida): “Obviamente, há elementos culturais e emocionais em nosso pensamento ético”. Q11 “Como relacionar sua teoria e a de Kant?” Gensler aponta meia dúzia de “mandamentos” que resumiriam as idéias de Kant. Entre eles, “Juízos-deve” (ought), ou seja, imperativos categóricos, são verdades que acarretam comandos. Isso quer dizer que os juízos-deve têm autoridade racional. “Se você aceita que deve agora fazer A, você age no sentido de fazer A – do contrário, você é incoerente.” *** No cap. 8, as três primeira seções contêm noções de lógica dos imperativos, lógica deôntica, lógica da crença. A seção final trata da simbolização da ética formal. Os recursos de que se vale o autor podem ter sido tipograficamente satisfatórios, mas dificultam muito a leitura das fórmulas. Assim (p. 182), da afirmação: S = Você está sorrindo Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ HEGENBERG, Leonidas: Resenhas 11 se passa para a forma imperativa sublinhando a letra S: S = Sorria. Temos, ainda, p. ex., ~ S = Você não está sorrindo. ~S = Não sorria! (S v C) = Você sorri, mas chore! (S ⊃ C) = Se você sorrir, então chore! O autor nota que há uma diferença grande entre o que denomina “forma se-então” e “forma nãocombine” das várias leis (p. 184). Essas considerações se mostram claras em alguns locais. Aqui, porém, quando Gensler escreve: (A ⊃ ~B) = Se você faz A, então não faça B) ~ (A . B) = Não combine fazer A com fazer B suas idéias ficam obscuras – especialmente quando (nota 2, no pé da página 184) compara a diferença a uma diferença entre o pensamento humano e a atividade do computador. Na lógica deôntica, surgem operadores “O” (para ‘ought’) e “R” (para ‘all right’). O autor observa que esses operadores atuam como os operadores modais, necessidade ( ) e possibilidade (◊). Resultam fórmulas do tipo AO = Ato A deve ser feito RA = Ato A é permitido (permissível) (A ⊃ O ~ B) = Se você faz A, então não deve fazer B Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ HEGENBERG, Leonidas: Resenhas 12 O ~ (A . B) = Você deve não combinar fazer A com fazer B *** O simbolismo se complica ainda mais quando em tela as crenças. Gensler sugere usar “:” (dois pontos) para construir fórmulas relativas à crença. Assim, u:A = Você acredita em A (crê que A; aceita A) u: ~ A = Você acredita em ~A ~ u:A = Você não acredita em A Lógicos de renome (Quine, entre outros, Philosophy of logic, 1986) se recusam a comparar termos “coloridos” (‘acreditar’) a termos “austeros” da lógica (‘não’, ‘e’, ‘ou’, ‘todos’, etc.), rejeitando, pois, uma “lógica das crenças”. Contudo, certos autores (Hintikka, Knowledge and belief, 1962) deram certo realce ao tema. Na seção final de seu livro, Gensler introduz novos símbolos. Entre eles – ao lado de variáveis temporais e variáveis indicativas de ações -- os símbolos modais com a letra ‘c’ no interior, para representar necessidade causal e possibilidade causal; letra M (do inglês ‘may’) e o quadrado achurado para indicar “em quaisquer circunstâncias”. Para chegar a tais filigranas, muita leitura, muita paciência, muitos exercícios, muito tempo serão necessários... *** Encerrando, penso que, desconhecendo lógica, o leitor faria bem se deixasse de lado este livro e Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ HEGENBERG, Leonidas: Resenhas 13 usasse Ethics (1998). Para conhecedores de lógica e de matemática – desde que familiarizados com sistemas axiomáticos e efetivamente interessados na formalização da ética – é possível que o livro desperte interesse. A rigor, a o se presta para apoiar as aulas que o autor ministra. Ainda assim, não dispensa a exposição, o debate vivo, a bem da clareza, para que o assunto se torne mais “digerível”. Res Mar 04 Leonidas Hegenberg Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ