Conceitualismo Maatemático e intuicionistas

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3.4.6 O conceitualismo e os intuicionistas[1].
A idéia de que os objetos matemáticos, os números e os conjuntos, por exemplo,
seriam criações do espírito, entidades abstratas nascidas do pensar, pareceu, a muitos,
bastante atraente. As idéias parecem atribuir um tipo de realidade a essas entidades,
embora reconheça, um tanto a contragosto, que elas não têm existência independente.
Trata-se, além disso, de idéias que tem certo atrativo, dando, com dá, uma extraordinária
dignidade à atividade dos matemáticos Com efeito, uma forma extremada de
conceitualismo sustentaria que:
“...o espírito está dotado de poderes para criar os números e as entidades
matemáticas que desejasse, de modo inteiramente livre e onipotente”.
Os postulados matemáticos poderiam, então, comparar-se aos feitos da
Divindade: quando o matemático pensasse com seus botões, “Postulemos que existam
números de tal ou qual espécie”, ele os traria à luz, sendo seu poder soberano de criação
análogo ao da Divindade onipotente que retira do nada qualquer coisa que deseja ser.
Seria exagero, porém, supor que o matemático estaria completamente liberto de
restrições em sua atividade. Não se pode comparar o matemático à Divindade criadora,
tal como descrito pelos teólogos voluntaristas, que admitem não estar Ela, submetida a
quaisquer peias (tão poderosa que poderia transformar uma prostituta numa virgem para usar um dos clássicos exemplos). Tenha a Divindade o poder que tiver, o
matemático está sujeito ao requisito da consciência, não podendo criar autocontradições.
Suponhamos, por exemplo, que alguém tente postular a existência de uma
entidade que satisfaça à seguinte descrição:
“Um número natural que seja o número cardinal do conjunto de todos os números
naturais”.
essa descrição pode, à primeira vista, parecer inteiramente razoável; pode
parecer igualmente razoável que o matemático esteja em condições de postular, se
assim o desejar, a existência de tal entidade. Não obstante, juntar a hipótese de que
existe tal entidade aos axiomas comuns da teoria dos números naturais redunda em
inconsistência (se existisse um número natural que fosse o número cardinal do conjunto
de números naturais, ele deveria ser, simultaneamente, finito e não-finito - o que é
contraditório). Um bom criador desse gênero não traria à vida o seu “objeto”. O exemplo
deve bastar como lembrete de que nem todos o que imaginam ter criado alguma coisa
chegaram, de fato, a criá-la.
O conceitualista precisa de qualquer modo, reconhecer que há uma diferença
entre desejar e criar, nessa atividade lúdica de criação. Acresce que os principais
defensores das concepções conceitualistas admitiram que os poderes criadores do
espírito são limitados, estando sujeitos a mais imposições do que a simples consistência
lógica.
O mais ilustre representante da corrente conceitualista, relativa à matemática
dos números, é o filósofo Kant. Sustentava ele que as leis dos números, como as da
geometria euclidiana, eram, ao mesmo tempo, a priori e sintéticas. Embora Kant não
tenha deixado tão explícita as suas idéias acerca da Filosofia dos números quanto deixou
explícitas as suas impressões a propósito da Filosofia do espaço, disse o bastante para
fixar, em seus leitores, a noção de que, para ele, nosso conhecimento dos números se
assenta numa consciência do tempo, estendida como “forma pura de intuição”, e numa
consciência que o espírito possui de sua própria capacidade de repetir, seguidamente, o
ato de contar.
Eis a explicação que oferece da possibilidade de existência de tal conhecimento
sintético e a-priori: ao conhecer as leis dos números, o espírito ganha uma visão de seu
próprio funcionamento interior e não da realidade, como ela é em si mesma. A idéia é
paralela aquilo que Kant dizia a propósito de nosso conhecimento sintético e a-priori da
geometria euclidiana basear-se na consciência que o espírito manifesta em torno de sua
própria capacidade de construir, na imaginação pura, as figuras espaciais. Kant afirma,
em verdade, que é através de uma visão sintética e a-priori que chegamos, a saber, de
fatos particulares relativos aos números - tais como o fato de que 5 mais 7 é igual a 12.
Isso não é muito plausível porquanto fatos particulares como esses, especialmente
quando se referem a os números grandes, podem, por certo - e às vezes precisam – ser
demonstrados. Seria preferível adorar o ponto de vista de que a compreensão e a
justificação dos axiomas básicos da teoria dos números concordariam com a Filosofia
Kantiana.
A concepção Kantiana da aritmética baseada na intuição da contagem parece
pretender dizer que os números existem se, e somente se, puderem ser obtidos por meio
do ato de contar; presume-se, também, que Kant apreciaria ter dito que os conjuntos
existem se, e somente se, os seus elementos puderem ser contados. Em conseqüência,
não haverá maior número, pois é sempre possível seguir a contagem para além de
qualquer número a que se haja atingido ao contar. Mas não haverá nenhum infinito
(número transfinito) porque seria impossível contar até o infinitamente elevado (isso
requereria um período infinito de tempo, segundo Kant, e não dispomos desse tempo
infinito).
De maneira análoga, uma reta não atinge o comprimento máximo, segundo a
geometria Kantiana, porquanto é sempre possível estender, na imaginação, qualquer
segmento já traçado; sem embargo, não pode haver uma reta infinita, porquanto não se
pode, na imaginação traçar uma reta de comprimento infinito (isso também exigiria um
tempo infinito). Segue-se que Kant, tanto com os números como com as linhas, está
preso a doutrina; do infinito atual. Kant, em outro ponto de sua exposição, utiliza a
doutrina que endossa argumentando que certas contradições insolúveis (por ele
denominadas antinomias) aparecem quando se admite que o universo espaço-temporal
pode conter qualquer totalidade infinita atual. Aristóteles ao tratar de alguns problemas
filosóficos – o famoso paradoxo do movimento, de Zenão de Eléia, por exemplo - também
se valeu de noções análogas acerca do infinito potencial.
Em períodos mais recentes, uma Filosofia da matemática de sabor kantiano foi
revivida por um grupo de matemáticos liderados por Brouwer. Este matemáticos
holandês sustentava, como Kant, que a “pura intuição” da contagem temporal seria o
ponto de partida para a matemática do número; a filosofia desse grupo recebeu, por isso,
o nome de “intuicionismo” . Para esses matemáticos modernos, no entanto, o
intuicionismo não era apenas uma teoria filosófica, tal como a de Kant; era uma
concepção de impregnava o próprio trabalho matemático executado pelo grupo - e a tal
ponto que os juízos acerca da validade de argumentos matemáticos diferiam dos juízos
formulados por matemáticos alheios ao intuicionismo.
Para ilustrar de modo concreto, um argumento como o de Cantor - de que há
mais números reais dos números naturais - não é aceito pelos intuicionistas, embora seja
dado como legítimo por muitos outros matemáticos. Ao construir s sua demonstração,
Cantor definia um determinado número real (nós chamamos r0) asseverando que em
sua representação decimal infinita o n-ésimo algarismo deveria ser “5” no caso do nésimo de rn não ser “5”; ou deveria ser “6”, no caso do n-ésimo algarismo de rn ser,
precisamente, “6”.
Um intuicionista não pode aceitar como legítima essa definição porque ela não
nos mostra de que modo “construir” o número real com auxílio da atividade puramente
intuitiva de contar e calcular. A definição oferece-nos uma regra; para aplicar a regra,
porém, e “criar” esse número real, precisaríamos completar um número infinito de
passagens, percorrendo cada um dos algarismos do número real - e não há tempo para
tanto, dizem os intuicionistas. O intuicionista não aceita, pois, o argumento de Cantor,
destinado a revelar que há mais números reais do que naturais e rejeita, assim, toda a
teoria cantoriana dos números transfinitos.
A demonstração de Cantor é “não-construtiva”; requer, em outras palavras, que
consideremos o levar a cabo uma tarefa que requer um número infinito de fases. Poderse-ia dizer que a forma comum de raciocínio por indução matemática também parece,
em certo sentido, requerer a execução de um número infinito de fases. No raciocínio
comum por indução matemática, inferimos que algo vale para todos os números naturais
a partir de premissas que asseveram que esse algo vale para o zero e que vale para o
sucessor de cada número natural para o qual esse algo também vale. Estaríamos
autorizados, aqui, a admitir que algo vale para todos os números naturais, não sendo
possível considerar completa a tarefa de examiná-los um a um ?
Rejeitaria o intuicionista a indução matemática ? A resposta é que ele não precisa
rejeitar a indução matemática. A nossa conclusão a respeito de que algo vale para todos
os números naturais não precisa ser entendida como afirmação de que tenhamos
percorrido toda a série infinita de números naturais. Pode ser encarada como afirmação
de que, para qualquer número natural, arbitrariamente escolhido, é possível contar, a
partir de zero, até chegar a esse número, mostrando, assim, que aquele algo - fosse qual
fosse - também se aplica ao número em questão. Assim considerado, o raciocínio é
“construtivo”, pois cada específico número natural pode ser alcançado percorrendo-se
apenas um número finito de fases do processo de contagem.
Do ponto de vista do intuicionismo, devemos dispor de uma demonstração
construtiva de qualquer enunciado matemático a propósito dos números, antes de
estarmos autorizados a dizer que sabemos da verdade desse enunciado. Se o enunciado
afirma a existência de pelo menos um número de tal ou qual espécie, devemos saber
como construir ou computar esse número, usando apenas um número finito de fases. Se
o enunciado assevera que todos os números são de tal ou qual espécie, devemos estar
em condições de demonstrar, usando apenas um número finito de fases, qualquer que
seja o número dado, que esse número é daquela espécie. De maneira semelhante, é
preciso dispor-se de uma contra-demonstração construtiva de qualquer enunciado, antes
de poder dizer que se sabe da sua falsidade. E que acontece nos caso em que não se
dispõe nem de uma demonstração nem de uma contra-demonstração matemática?
Dois exemplos bem conhecidos de asserções matemáticas que não foram
demonstradas nem refutadas até o presente merecem atenção. O chamado “último
teorema” de Fermat assevera que:
“não existirem números naturais, com n maior do que 2 , tais que se verifique a
equação xn + yn = zn “.
A conjetura de Goldbach afirma que:
“todo número par pode ser expresso como a soma de dois números primos”.
(sendo o número não exatamente divisível por qualquer outro número, salvo a
unidade e o próprio número). A despeito da inúmeras tentativas, os matemáticos não
conseguiram encontrar demonstrações para essas duas asserções; também não
conseguiram refutá-las.
O intuicionista assume uma posição radical diante de casos como esses. O
intuicionista acredita que os números sejam criações do espírito e admite, com Kant, que
a mente pode conhecer cabalmente aquilo que ela mesma gera. Sustenta o intuicionista
que não pode haver verdade ou falsidade incognoscível (isto é, não-demonstrável
construtivamente) acerca dos números.
Afirma, em conseqüência, que não podemos ter certeza a propósito da verdade
ou da falsidade do último teorema de Fermat ou da conjetura de Goldbach. Se não
podermos demonstrar nem refutar essas asserções, elas nem são verdadeiras nem são
falsas. Não podemos demonstrar a demonstrabilidade (para atingir, portanto, a verdade
ou a falsidade) dessas asserções; mas é possível que se chegue a fazê-lo, pensam os
intuicionistas.
O intuicionismo admite uma terceira possibilidade e sustenta que pode haver um
enunciado dotado de sentido e que não seja nem verdadeiro nem falso .
Está claro, pois quando se trata de rigor lógico, defenderem os intuicionistas
padrões mais altos do que os matemáticos da linha de Cantor. Qualquer raciocínio
aceitável aos olhos do intuicionista seria também aceitável aos olhos de Cantor; a
recíproca, no entanto (como já vimos), não é verdadeira. É provável que ninguém daria
muita importância ao fato, se os rígidos padrões intuicionais implicassem apenas o
sacrifício da teoria cantoriana do transfinito. As atividades matemáticas poderiam
prosseguir, excluída a teoria de Cantor, sem grande sensação de prejuízo. Acontece,
porém, que algumas partes importantes da matemática chamada clássica também teriam
de ser sacrificadas ao aceitar-se a posição intuicionista.
Uma vítima importante seria o teorema da análise que afirma que: todo conjunto
limitado de números reais admite um menor limitante superior (supremo). O teorema é
inaceitável para o intuicionista porque a definição do número real que seja o menor
limitante superior de um conjunto de números reais exige que se faça referência a um
conjunto ao qual a entidade definida pode pertencer (definições desse gênero são
chamadas definições “não-predicativas”). Para o intuicionista, a definição “constrói” a
entidade que está sendo definida; mas, prossegue ele, não se pode admitir a existência
de um conjunto a não ser depois de se haver “construído” o conjunto, decidindo quais
são os seus elementos.
De acordo com o intuicionista, portanto, uma definição não-predicativa nada
chega a construir, pois pressupõe a existência daquilo que, supostamente, devera estar
gerando. Outra vítima notável dos escrúpulos intuicionistas seria o “axioma da escolha”,
formulado, pela primeira vez, pelo matemático alemão Zermelo, que se encarregou de
mostrar, ainda, que esse axioma é um dado essencial em vários argumentos que dizem
respeito ao conjuntos cujos elementos são conjuntos infinitos. Segundo o axioma da
escolha, dado um conjunto cujos elementos são conjuntos não-vazios e mutuamente
excludentes, existe pelo menos um conjunto que tenha exatamente um elemento em
comum com cada um dos conjuntos pertencentes ao conjunto original. A objeção
levantada pelos intuicionistas é que esse conjunto, cuja existência é alegada, não pode
ser “construído”; “construir” o conjunto equivaleria a formular uma regra que nos
permitisse, relativamente a qualquer objeto, determinar, por meio de algum processo
finito de contagem e de computação, se o objeto pertence ou não pertence ao conjunto.
Não há, todavia, regra alguma correspondente à espécie de conjunto que o axioma da
escolha declara existir.
O intuicionismo - a mais influente das formas da Filosofia conceitualista do
número - mutila, assim, de modo considerável, a matemática clássica, rejeitando alguns
de seus axiomas. A filosofia que sustenta o intuicionismo teria atrativos bastantes para
compensar essas perdas? Não, por certo. A doutrina segundo a qual números e
conjuntos nascem da pura intuição do processo de contagem é toda ela muito vaga e
discutível, especialmente se tomada ao pé da letra. Que seria, aliás, essa “pura intuição”
? Não poderia a mente contar, em “pura intuição”, com velocidade infinita, construindo,
assim, os números transfinitos? As deficiências da doutrina tornam-se bem visíveis
quando se compreende que ela decorre da teoria de Kant (e, presumivelmente, de
Brouwer), segundo a qual as leis dos números valem para as coisas como a mente as
intui ( concebe), não para as coisas como são por si mesmas. A idéia de que o número
não se aplica às coisas tais quais elas realmente são, por si mesmas, equivale à idéia
de que as coisas, na realidade, não são uma nem muitas. Isso está muito próximo de
uma auto-contradição para tornar-se admissible.
A concepção filosófica do intuicionismo, relativa à criação de entidades
matemáticas, pode, naturalmente, desligar-se dos seus princípios relativos à prática
matemática (como a rejeição de argumentos não-construtivos, a rejeição de definições
não-predicativas, e assim por diante). Ainda, separados de seu lastro filosófico, os
princípios relativos à prática matemática parecem arbitrários e destituídos de justificativa.
Por que abandonar certos tipos de procedimentos matemáticos, em geral aceitos, até
determinada época, se isso não defluiu de um princípio filosófico?
[1] Disponível em: <http://www.eumed.net/libros/2009a/482/conceitualismo%20e%20os%20intuicionistas.htm>.
Acesso em 10 jun. 2011.
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Margarida.Sandeski
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