UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA NATUREZA DEPARTAMENTO DE FÍSICA PROGRAMA DE EDUCAÇÃO TUTORIAL MARCÍLIO DANILO NASCIMENTO DE MORAES A HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN JOÃO PESSOA 2009 MARCÍLIO DANILO NASCIMENTO DE MORAES A HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: a ciência vista em seu contexto histórico Monografia apresentada ao Programa de Educação Tutorial do curso de Física, Centro de Ciências Exatas e da Natureza, da Universidade Federal da Paraíba com a finalidade de cumprir uma das atividades do grupo, referente ao ano de 2008. Tutor do PET: Prof. Dr. Pedro Luiz Christiano JOÃO PESSOA 2009 2 M8275 Moraes, Marcílio Danilo Nascimento de A historiografia da ciência de Thomas Kuhn / Marcílio Danilo Nascimento de Moraes. ─ João Pessoa: UFPB, 2009. 25 p. Monografia (Programa de Educação Tutorial) – Curso de Física, Universidade Federal da Paraíba. 1. História da Ciência – Thomas Kuhn. 2. Ciência – Epistemologia. 3. Ciência – Evolução Histórica. 4. Ciência – Filosofia. I. Título. CDU 001.11 CDU – 087.5 3 DEDICATÓRIA Aos meus pais, que nunca mediram esforços por mim. 4 AGRADECIMENTOS Gostaria primeiramente de agradecer aos meus pais, Fernando e Fátima, que sempre me incentivaram o gosto pelo estudo e pelo conhecimento, nunca medindo esforços para me proporcionar uma boa educação, e sempre apoiando minhas decisões, fossem elas as melhores ou não. À minha namorada Wendia, pela paciência de ouvir minhas dúvidas e questionamentos, pela ajuda na formatação e revisão deste trabalho, e pelo apoio constante e em todos os sentidos que ela vem me dado nesses meses de convivência. Agradeço ainda aos integrantes do PET-Física. Ao tutor Pedro Luiz Christiano, pela disposição em nos ajudar sempre, pela sua preocupação constante com a nossa formação acadêmica e cidadã, e pelas discussões realizadas nas reuniões do PET, aos bolsistas que faziam parte na época em que entrei, pela oportunidade que me proporcionaram de fazer parte do grupo e pela forma que me receberam, e ainda aos que foram entrando no grupo com o passar do tempo. Agradeço a eles pelo companheirismo e ajuda que me deram no curso e nas atividades do PET, ao longo desse pouco mais de um ano. 5 EPÍGRAFE Se a História fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina. THOMAS S. KUHN A Estrutura das Revoluções Científicas (1962) 6 RESUMO Neste trabalho a ciência é abordada enquanto processo histórico e sociológico. Como surgiu a filosofia, desde a Antiguidade, até o momento em que a ciência tomou seu próprio rumo, como o homem passou a ver a ciência, principalmente as ciências exatas a partir de uma mistificação exagerada do conhecimento científico, e como a crise do final do século XIX modificou nossa maneira de ver a ciência, até chegar na historiografia de Thomas Kuhn, e sua idéia de ciência como um processo não cumulativo de conhecimento, que passa por períodos de crise e revoluções, mas que é caracterizada principalmente pelo período de ciência normal, onde os cientistas estão preocupados apenas em reproduzir o paradigma vigente. Palavras-chave: 1. História da Ciência – Thomas Kuhn. 2. Ciência – Epistemologia. 3. Ciência – Evolução Histórica. 4. Ciência – Filosofia. 7 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................9 2. A CIÊNCIA EM SEU CONTEXTO HISTÓRICO E EPISTEMOLÓGICO...............10 2.1. A evolução do conhecimento da pré-história ao século XIX........................10 2.2. O método científico......................................................................................13 2.3. A crise da ciência do final do século XIX.....................................................14 2.4. A epistemologia antes de Kuhn....................................................................15 3. A HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUNH....................................17 3.1. A ciência vista como processo delimitada por um paradigma....................18 3.2. A ciência normal..........................................................................................20 3.3. A crise na ciência e a pesquisa extraordinária............................................21 3.4. Revoluções científicas e a entrada em uma nova fase de ciência normal...22 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................24 REFERÊNCIAS 8 1. INTRODUÇÃO Desde a pré-história o homem se preocupou em conhecer suas origens e o mundo em que vive. Nessa tentativa de conhecer a realidade surgiu a ciência, uma forma de conhecimento que busca entender os fenômenos naturais e sociais que o homem se depara em sua existência. A ciência é frequentemente vista como um processo linear e cumulativo do conhecimento humano a cerca do mundo. Porém, a partir da segunda metade do século XX, Thomas Kuhn propôs uma nova forma de ver a ciência, não apenas a partir de seus aspectos filosóficos, mas também a partir de sua própria história e da forma como a comunidade científica produz conhecimento. Com o intuito entender melhor esse assunto, este trabalho é dividido em duas partes. Na primeira parte a ciência é mostrada em seu contexto histórico e epistemológico, desde a antiguidade, até o surgimento da epistemologia contemporânea antes de Kuhn. Na segunda parte são explanados os principais conceitos da historiografia da ciência de Thomas Kuhn, tais como paradigma, crise, revoluções científicas; como ele via a estrutura da comunidade científica, e a forma como ela aborda os problemas propostos pelo seu paradigma. 9 2. A CIÊNCIA EM SEU CONTEXTO HISTÓRICO E EPISTEMOLÓGICO O que é a ciência? Como ela surgiu? Estas são perguntas pertinentes para se iniciar um estudo sobre este ramo do conhecimento tão “privilegiado” e “superior”, como pensam muitas pessoas. A primeira questão é bastante complexa, visto que a definição de ciência é muito controvertida, mudou ao longo do seu desenvolvimento, e mesmo hoje, não é possível encontrar uma definição acertada do que ela seja, no máximo apenas boa noção. Quanto à segunda questão, situaremos a ciência em eu contexto histórico, acerca de sua origem e desenvolvimento, para então adentrar nos conceitos e idéias da perspectiva historicista da ciência formulada por Thomas Kuhn. Comecemos pela etimologia da palavra. Ciência vem do latim scientia que significa “conhecimento” ou “sabedoria”. A palavra grega para conhecimento é episteme, e para sabedoria é sophia. Não é de se espantar portanto, que durante muito tempo a ciência e a filosofia (do grego que significa “amor à sabedoria”) andaram juntas e indistinguíveis uma da outra. 2.1. A EVOLUÇÃO DO CONHECIMENTO DA PRÉ-HISTÓRIA AO SÉCULO XIX O ser humano sempre foi fascinado pelos fenômenos naturais e consequentemente, sempre procurou uma explicação para o funcionamento do mundo em que vive. Primitivamente essas explicações eram dadas através dos mitos, histórias fantásticas que explicavam a origem do universo, com deuses e seres sobrenaturais que através do seu poder desencadeavam os mais diversos fenômenos naturais, sendo aceitas sem questionamento. A criação de mitos é uma característica das civilizações humanas, que buscavam compreender o mundo fantástico que habitavam, todos os seus aspectos e fenômenos relacionados para, de alguma forma, poder interferir no seu destino, satisfazendo os deuses em suas vontades e colhendo bons frutos por sua obediência. Os mitos foram a única forma de tentar explicar o mundo que o ser humano teve por um bom tempo, sendo que mesmo hoje em dia muitas sociedades são influenciadas pelos mitos que criaram, inclusive a nossa. 10 Porém, por volta dos séculos VII e VI a.C., surgiu na Grécia uma nova tentativa de explicar o mundo. Nascia a filosofia grega, um tipo de conhecimento que se distanciava do pensamento mítico, pois baseava-se no pensamento e na reflexão racional sobre os fenômenos observados. Porém, o pensamento racional não separava filosofia e ciência, tal como conhecemos hoje. As duas formas permaneceram unidas até o século XVII, sendo que nesse tempo as ciências da natureza eram conhecidas como filosofia natural. Entre os primeiros filósofos conhecidos como pré-socráticos (ou filósofos da natureza), figurava o interesse de conhecer qual era o fundamento da matéria, qual o elemento (ou conjunto de elementos) dos quais tudo era formado. Dentre esses filósofos podemos citar Demócrito, Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Parmênides e Heráclito. Também nesse período desenvolveu-se grandemente a mecânica com Arquimedes, além da matemática, não apenas na Grécia (com Pitágoras e Euclides), mas também no Egito, Mesopotâmia e em outras civilizações antigas. Com Sócrates e Platão, o foco da filosofia grega passou da natureza para o homem, e seus problemas tais como a ética e a moral humanas. Apenas com Aristóteles, a natureza voltou à pauta da filosofia. Suas idéias e teorias a respeito da física, astronomia, biologia, lógica e vários outros campos do saber acabaram permanecendo inabaláveis durante séculos, mais pela recusa dos filósofos e cientistas em admitir as falhas dessas idéias. Na Idade Média, com o controle da Igreja Católica sobre a vida da população européia, pouco se desenvolveu a filosofia natural. Nota-se mais nesse período a tentativa de alguns teólogos de comprovar a existência de Deus e validar o domínio da igreja de uma forma racional, usando em grande parte as antigas idéias dos gregos, sendo que Santo Agostinho “cristianizou” as idéias de Platão e São Tomás de Aquino as de Aristóteles. A ciência medieval também é caracterizada pelo desenvolvimento da alquimia e pela infiltração da ciência árabe na Europa. Na Idade Moderna a ciência começou a tomar outro rumo, e finalmente iniciou a separação da filosofia. Já na Idade Média, Roger Bacon chamou a atenção para a matematização das ciências naturais, tal como o uso de experimentos para validar as teorias acerca da natureza. Porém, apenas com a revolução ocorrida na astronomia, as ciências naturais se desvincularam do 11 pensamento puramente racional e contemplativo dos gregos, para entrar num período em que a experiência faria a diferença entre saber se uma teoria seria verdadeira ou falsa. A revolução científica do século XVII, principalmente na física e na astronomia, mudou a forma como os homens encaravam o conhecimento e a técnica. Começaram a cair antigas teorias que vigoravam supremas, com o geocentrismo de Aristóteles refinado por Ptolomeu. No lugar, surgia o heliocentrimo, teoria que já existia a um bom tempo, mas que ganhou fôlego com Copérnico, Kepler e Galileu. Após isso, Newton levou a física a um outro status, com o desenvolvimento do cálculo diferencial e integral, e a mecânica Newtoniana. O êxito que essas teorias tiveram em descrever o mundo, explicar os fenômenos e predizer ainda outros foi tão grande que a física virou sinônimo de ciência em seu grau mais alto. O mundo passou a ser visto como uma máquina, à qual o homem pode conhecer em detalhes seus mecanismos e as leis que regem seus fenômenos. A física tornou-se mecânica e eficiente, e no seu rastro diversas ciências tentavam alcançar o status que ela conseguiu com Newton. A Química nos séculos XVII e XVIII (com Boyle, Lavoisier, Laplace e outros) e a biologia no século XIX (com Darwin e Mendel principalmente) conseguiram alcançar êxito semelhante ao da física. No século XVIII, o Iluminismo exaltou as conquistas humanas no campo da ciência. Com ele, o Positivismo surgiu valorizando demasiadamente o conhecimento científico, em detrimento de outras formas de saber. O que fosse caracterizado como científico era digno de méritos e o que não, tal como a filosofia, era considerado um conhecimento inferior, até mesmo repleto de superstições. Surgiu então o mito do cientificismo, segundo o qual a única maneira de se chegar a um verdadeiro e perfeito conhecimento é através do método científico. Essa idéia de ciência como conhecimento livre de falhas, subjetividade, mitos e superstições foi tão difundida, que tornou-se uma prioridade para as demais áreas do conhecimento alcançar o status das ciências naturais. As ciências humanas procuravam usar esse ideal de cientificidade e precisão nos seus campos de estudo. Dentre elas podemos destacar a economia (com Adam Smith, 12 Malthus e Karl Max), a sociologia (com Augusto Comte, Durkheim e Max Weber) e a psicologia (com Pavlov). Essa idéia do método científico das ciências naturais como única forma de se conhecer a realidade, fez com que estas outras formas de saber não procurassem uma maneira própria e mais adequada de abordar seus problemas. Isso acabou criando o mito do cientista como único capaz de pensar corretamente sobre o mundo. 2.2. O MÉTODO CIENTÍFICO A palavra método vem do grego meta (ao longo de) e hodós (via, caminho). Assim, o método científico seria o caminho seguido para se alcançar determinado conhecimento pelas ciências. Muitos filósofos teorizaram sobre o método que se deveria seguir para alcançar a verdade e o conhecimento, mas foi com Galileu que ocorreu a revolução metodológica que separou a filosofia da ciência. O método científico se baseia na experiência para averiguar se determinada teoria é verdadeira ou falsa. Na verdade, falamos de um método experimental seguido pelas ciências, enunciamos e explicamos suas etapas, porém devemos ter em mente que nenhuma ciência realmente o seguiu em sua totalidade. Basicamente, o método que seria usado pelas ciências experimentais teria a seguinte estrutura: primeiramente é feita uma observação objetiva de fatos ou fenômenos os quais se deseja conhecer, com a conseqüente formulação de um questionamento; em seguida, o cientista levanta uma hipótese para explicar o fenômeno, a qual deve ser verificada; um experimento é realizado para verificar a sua validade; se o experimento confirmá-la, então são formuladas leis e teorias que generalizam e explicam o fenômeno estudado; se a experiência não confirma a hipótese, então deve-se formular outra, que deve ser novamente verificada por um experimento, e esse processo se repete até que uma das hipóteses seja confirmada. Podemos perceber aqui uma formulação de ciência que leva em conta a indução como forma de se conhecer o mundo, ou seja, a partir de casos particulares adquirimos um conhecimento mais geral. Porém, o problema com este método científico já começa na própria 13 observação dos fenômenos. O ideal positivista de ciência exige que a observação feita pelo cientista seja objetiva, livre de preconceitos, opiniões ou qualquer outra forma de subjetividade. O cientista deve ser totalmente neutro quando realiza uma observação, mas as coisas não acontecem de acordo com este ideal de objetividade e neutralidade. Ao observar os fenômenos, o cientista já o vê segundo seus próprios olhos, organizando-os implicitamente em sua mente de acordo com a carga teórica que ele carrega consigo, o que faz com que ele selecione determinados aspectos dos fatos, geralmente aqueles que reforçam a teoria implícita em sua mente, em detrimento de outros aspectos que porventura outro cientista selecione. Percebemos então que mesmo a observação não é objetiva, mas sim carregada de vários aspectos subjetivos, que variam de um indivíduo para outro. Assim, todas as etapas seguintes do método científico ficam comprometidas em relação ao ideal proposto, pois vão ser orientadas de acordo com a visão que cada cientista tem do fenômeno estudado. 2.3. A CRISE DA CIÊNCIA DO FINAL DO SÉCULO XIX No final do século XIX, a ciência entrou num período de crise que levou a uma revolução na forma de entender o método por ela adotado. A física, até então uma ciência vista como modelo de cientificidade e objetividade, parecia estar chegando ao fim dos seus estudos a respeito da natureza. Acreditava-se que tudo o que havia para ser estudado já tinha sido satisfatoriamente entendido, e restava apenas refinar os experimentos para se obter uma maior precisão dos dados, sem se suspeitar a revolução que estava por vir. O primeiro passo para a crise da física aconteceu na verdade na matemática. As teorias físicas estão em estreita relação com a matemática, usando esta para descrever o mundo com maior precisão. Então, a matemática deveria ser absoluta para manter o caráter objetivo da física. Entretanto, no século XIX, começaram a surgir novas formas de geometria diferentes daquela estudada por Euclides na antiga Grécia, as geometrias não-euclidianas. Embora nenhuma delas substitua a geometria proposta por Euclides, elas mostram que mesmo na matemática, os conceitos não são absolutos, dependendo do conjunto 14 inicial de axiomas que se utiliza. Então, se a própria geometria que a física utiliza no seu estudo não é absoluta, como garantir que as teorias físicas o sejam? Não há como garantir que essas teorias são absolutas, como foi visto na passagem do século XIX para o XX. Nesse período, começou-se a notar fenômenos que estavam em discrepância com a física newtoniana, e que apesar das inúmeras tentativas dos cientistas, não conseguiam ser explicados pela física clássica. Estava surgindo nesse meio as teorias da relatividade e da mecânica quântica. A teoria da relatividade geral de Einstein, por exemplo, não pode ser explicada pela geometria ordinária, mas apenas por geometrias não-euclidianas. Além disso, conceitos como tempo e espaço, energia e matéria, perderam o caráter que tinha antes na física. Tempo e espaço deixaram de ser absolutos, dependendo do movimento que o observador faz em relação a um referencial. Já energia e matéria se tornaram equivalentes. Um pode ser transformado no outro e vice-versa. A mecânica quântica proporcionou outra revolução na física. Os estudos mostravam que a física newtoniana, até então imagem verdadeira do mundo, não era capaz de explicar todos os fenômenos na escala microscópica. A partir de 1900 com a explicação de Planck para radiação do corpo negro, as certezas da mecânica clássica começaram a ser abaladas. Nas três décadas que se seguiram, muitas foram as descobertas que mostraram que a física clássica não era tão absoluta assim, se restringindo as fenômenos de escala ordinária. Dentre essas descobertas podemos citar a estrutura quantizada do átomo e o princípio de incerteza de Heisenberg, segundo o qual não é possível conhecer com absoluta exatidão a velocidade e a posição de uma partícula simultaneamente. 2.4. A EPISTEMOLOGIA ANTES DE KUHN Esses fatos e diversos outros levaram a uma reavaliação da ciência como um todo, e de seus critérios para se alcançar o conhecimento. Várias críticas já haviam sido feitas ao método da ciências, por pensadores como Poincaré que dizia que “as teorias não são nem verdadeiras, nem falsas, mas úteis”, mas foi a partir desses fatos que resultaram no empenho da filosofia da ciência em resolver essas 15 questões. A primeira tentativa de se posicionar a respeito disso foi o Círculo de Viena, um grupo de filósofos e cientistas que se formou em 1928 para estudar como as teorias podem ser consideras verdadeiras, em contrapartida a todas as especulações da época. A postura adotada por eles ficou conhecida como neopositivismo, ou positivismo lógico. Para eles, a lógica, a matemática e as ciências empíricas formam todas as possibilidades de conhecimento, e enfatizavam exigências como clareza e precisão, propondo o critério de verificabilidade, segundo o qual uma teoria científica teria que passar pela verificação empírica para ser considerada verdadeira. Já para o filósofo austríaco naturalizado britânico Karl Popper (1902-1994), o que torna uma teoria aceita como verdadeira é a possibilidade de refutá-la. Assim ele criou o critério da refutabilidade ou da falseabilidade. Para Popper, o que caracteriza uma ciência e suas teorias como científicas é a busca dos cientistas por experimentos e formas de refutá-las. Enquanto a teoria sobreviver aos testes que tentam mostrar que ela é falsa, ela continua sendo aceita como verdadeira. Isso leva à consideração de que, para Popper, nunca se pode saber com certeza se uma teoria é verdadeira, apenas se ela é falsa, logo temos apenas conjecturas a respeito da natureza, sendo estas transitórias. Popper também destaca que não existe pesquisa totalmente objetiva e neutra, pois os cientistas sempre fazem suas observações de acordo com teorias que eles já possuem previamente. Um ponto importante na filosofia de Popper que o difere de seus antecessores é a idéia de que os métodos das ciências naturais são não-indutivos. Para ele, não há justificativa alguma em se tirar uma conclusão geral a partir de casos particulares, sendo o pensamento indutivo uma fantasia, pois todas as teorias são no fundo especulativas, e para que se tornem justificáveis e aceitas como verdadeiras, é preciso que passem por testes de falseamento, sendo este um processo dedutivo, e não indutivo. 16 3. A HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUNH Contrariamente aos filósofos da ciência que o precederam, o norteamericano Thomas Kuhn (1922-1996), desenvolveu uma teoria acerca da história da ciência e não da filosofia da ciência propriamente dita. Suas idéias básicas são encontradas no seu livro mais conhecido, A Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962. A epistemologia da ciência antes de Kuhn a via como um processo linear e cumulativo de conhecimento. Isso significa que o conhecimento científico só tende a crescer, refinando suas teorias e ao mesmo tempo abrangendo-as cada vez mais, afastando os fatores não científicos. Assim, as teorias podem ser superadas por versões que englobem melhor a realidade, mas não as superam completamente, tal como ocorreu com a mecânica clássica que, mesmo com advento da mecânica quântica e da mecânica relativista, continua válida para a sua área de atuação. A posição de Kuhn é diversa desta. Para ele, a ciência não é um processo linar e cumulativo do saber. Pelo contrário, trata-se de um processo que se modifica de tempos em tempos pela adoção de um paradigma diferente pela comunidade científica. Essa nova postura adotada por Kuhn, apesar de ser uma teoria da história da ciência, tem consequências decisivas na própria forma de vermos ela, e consequentemente sua epistemologia. Segundo Stegmüller (1977, p. 355): “as propostas de Kuhn questionam a possibilidade de formular-se uma teoria da ciência”. Kuhn, apesar de formular sua teoria em cima da história e sociologia das ciências, sabia que algumas de suas implicações iam mais fundo: Muitas das minhas generalizações concernem à sociologia ou à psicologia social dos cientistas. No entanto, pelo menos algumas de minhas conclusões pertencem ao que tradicionalmente se convencionou chamar Lógica ou Epistemologia. (Kuhn, 1970, p. 70) Assim como Popper, Kuhn defende a tese de que os métodos das ciências naturais são não-indutivos, poém, ele também faz uma crítica à racionalidade científica vigente na época. Ele não se preocupa em procurar critérios indutivos ou dedutivos nas ciências pois segundo ele, esses critérios não existem. No seu lugar, diversos outros fatores são primordiais para o sucesso ou não de uma teoria 17 científica, como veremos mais adiante. Cabe salientar que Kuhn não diz que a ciência está baseada em uma irracionalidade, mas sim em uma razão diferente daquela proposta pelos epistemólogos. Para ele não basta pensar como a ciência deveria ser, quais os critérios que ela deveria utilizar, quais os requisitos que ela deveria ou não satisfazer, mas sim olhar como a comunidade científica trabalha, como é efetivamente o processo que a ciência utiliza para desenvolver seus conhecimentos, procurando na história da ciência os argumentos que apóiem suas idéias. Mesmo concordando com Popper sobre o processo não-indutivo da ciência, Kuhn faz uma crítica ao critério de refutabilidade. Stegmüller (1977, p. 360), citando Kuhn, menciona que: “nenhum dos processos, dentre os que até hoje foram revelados, guarda a menor semelhança com os padrões de falseamento propostos por Popper.” Como veremos mais adiante, o que realmente caracteriza uma ciência para Kuhn é o inverso, ou seja, a tentativa de se manter o paradigma vigente, sem procurar formas de refutá-lo. 3.1. A CIÊNCIA VISTA COMO PROCESSO DELIMITADO POR UM PARADIGMA Antes de iniciarmos esta parte, devemos ter pelo menos uma idéia do que seja um paradigma. O próprio Kuhn não dá apenas uma definição de paradigma, mas várias ao longo de seu livro. Talvez a mais conhecida seja: “Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma.” (Kuhn, 1970, p. 219). Embora seja uma definição circular, ela pelo menos nos dá uma idéia da posição de Kuhn a este respeito. Outra definição mais explicativa usada por Kuhn (1970, p. 58) é: “Paradigmas são realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes.” Contrariamente a Popper que pensava a ciência como o processo pela busca da refutação de teorias, para Kuhn, a ciência em si se desenvolve no seio de 18 um paradigma, dentro de seus limites, sem se preocupar com métodos ou critérios de validade de suas teorias. Ou seja, a ciência tal como vista por Kuhn, insere-se não num processo de busca da melhoria das teorias e seu paradigma, mas como um processo de busca da manutenção do paradigma vigente. Nesse estágio, ele chama a disciplina de ciência normal onde os cientistas estão em consenso sobre qual paradigma seguir. Depois de um tempo na fase de pesquisa normal, a ciência pode entrar em uma crise, que leva a uma pesquisa extraordinária e uma revolução (mudança de paradigma) para depois entrar em uma nova fase de ciência normal, conforme mostrado abaixo: Ciência normal → Crise → Pesquisa extraordinária → Revolução → → Nova ciência normal → Nova crise → ... Podemos por esse esquema perceber claramente que a ciência tal como vista por Kuhn não é linear, nem cumulativa, mas está inserida dentro de um ciclo de paradigmas e revoluções que se sucedem. Porém, antes de entrar na fase de ciência normal, a disciplina passa por um período denominado pré-paradigmático, período esse que se caracteriza pela ausência de consenso entre os estudiosos da área a respeito de qual paradigma seguir. É comum nessa fase existirem tantos paradigmas quanto escolas de pensameto ou mesmo especialistas na área. Essa fase de pré-ciência é marcada por constantes debates a respeito do tema, suas metodologias, problemas, etc. e ainda por progredir relativamente pouco. Todos esses paradigmas estão em competição para se sobrepujar sobre os outros, até que um deles vai conseguindo o consenso da maioria. Quando isso acontece, a ciência entra na fase normal, onde o paradigma vencedor oferece a maneira de se tratar seus problemas. Para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada. (Kuhn, 1970, p. 38) 19 Porém devemos frisar que mesmo o próprio Kuhn não descarta a possibilidade de uma ciência entrar na fase normal tendo vários, e não um único paradigma dominante, onde até mesmo podem conviver bem durante algum tempo. Isso ocorre com mais frequência nas ciências sociais, onde temos várias formar de abordar os problemas, e menos frequentemente que nas ciências naturais, onde um paradigma sempre se sobressai aos outros. 3.2. A CIÊNCIA NORMAL Após superado o período pré-paradigmático, a ciência entra na fase da denominada normal, caracterizada pelo consenso dos cientistas a respeito de um paradigma em particular, comprometidos com a reprodução deste paradigma, sem se questionarem sobre ele. A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; frequentemente mostramse intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulaçãon daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma. (Kuhn, 1970, p. 45) Nessa fase, a ciência fica muito distante do ideal de Popper. Os cientistas não estão nem um pouco preocupados em procurar formas de tentar refutar as teorias. Na verdade, fazer isso implicaria para eles ter que desmontar toda a base teórica pelo qual eles tanto batalharam para consolidar. Outro ponto importante é a valor da educação científica dada durante o período da ciência normal. A formação científica é vista por Kuhn como uma forma de reproduzir o consenso de todos em relação ao paradigma, podando duramente qualquer crítica feita a este. Ao invés disso, os cientistas se debruçam sobre os problemas e quebra-cabeças fornecidos pelo paradigma. Assim, as anomalias do paradigma não são vistas como anomalias propriamente ditos, mas como quebra-cabeças a serem resolvidos baseados no paradigma vigente. Nesse 20 caso, a ciência normal é vista como uma partilha de teorias pela comunidade científica dotada de meios de torná-la imune a falseadores. Cessa-se qualquer discurso crítico a respeito das teorias adotadas. Acontece também que se não se consegue explicar um determinado problema em termos do paradigma vigente, é o cientista individual que é testado em sua engenhosidade, e não a teoria. Se mesmo assim o problema persiste, o fracasso é creditado ao cientista que foi incapaz de resolvê-lo pelo paradigma. muitas vezes a solução para este impasse é dada através de explicações ad hoc. Porém, se não fosse pela ciência normal não conseguiríamos estudar os problemas da natureza em profundidade. Se cada quebra-cabeça, inicialmente insolúvel pela teoria aceita, fosse visto como uma anomalia e um debate acerca da validade da teoria fosse iniciado, com novas propostas de teorias como no período pré-paradigmático, a ciência nunca estudaria processos específicos em profundidade, tornando nosso conhecimento acerca do mundo bastante superficial. 3.3. A CRISE NA CIÊNCIA E A PESQUISA EXTRAORDINÁRIA Teoricamente, pelos epistemólogos anteriores a Kuhn, bastaria apenas uma experiência que entre em contradição com a teoria para se iniciar uma pesquisa mais extensa em torno da validade desta. Mas como vimos isso não é tão fácil assim, principalmente porque os pesquisadores foram treinados para resolver os problemas focando apenas aquele paradigma, e é muito difícil para eles abandonarem todo o trabalho realizado em busca de novos paradigmas. Assim é preciso um número muito grande de problemas que não podem ser resolvidos pela ciência normal para que os pesquisadores comecem a aceitar a idéia de mudança. Chega-se a um período de tensão intelectual bastante elevada e de crise na comunidade científica. Apenas quando as anomalias atingem as bases do paradigma, fazendo com que se perca ao menos em parte a fé nele, é que se inicia a pesquisa extraordinária, onde são levados em consideração outras formas de pensar a respeito, novos métodos e teorias. Esse período é semelhante ao período pré-paradigmático, onde várias 21 teorias entram em debate, porém com menor intensidade de divergências. E é apenas em momentos de crise e pesquisa extraordinária, segundo Kuhn, que realmente se é utilizado o critério de falseabilidade de Popper. Através desse estado de pesquisa extraordinária, podem acontecer três desfechos: o paradigma acaba se mostrando eficiente em resolver as anomalias; mesmo depois de todas as abordagems, o problema persiste e o cientistas supõem que é um problema não pode ser resolvido no estado atual da área de pesquisa; ou a crise termina com o surgimento de um novo paradigma seguido pela luta pela sua aceitação. 3.4. REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS E A ENTRADA EM UMA NOVA FASE DE CIÊNCIA NORMAL Quando o antigo paradigma é abalado de tal forma em suas estruturas, inicia-se o processo de revolução científica. A pesquisa extraordinária leva fenômenos novos e ao debate na comunidade científica, e semelhante ao período pré-paradigmático, existem debates filosóficos a cerca da novas visões e experimentos que tentam refutar certas teorias. Um novo paradigma começa a se delinear, e aos poucos vai ganhando adeptos no meio científico. Na escolha de um novo paradigma, tão ou mais importante quanto ele estar de acordo com os experimentos, é a argumentação persuasiva dos seus seguidores: Na escolha de um paradigma, tanto quanto nas revoluções políticas, não existe critério superior ao assentimento da comunidade relevante. Para descobrirmos como as revoluções científicas ocorrem teremos de examinar portanto, não apenas o impacto da natureza e da lógica, mas também as técinicas de argumentação persuasiva, que se revelam eficazes no interior dos grupos muito especiais que constituem a comunidade dos cientistas. (Kuhn, 1970, p. 156) Nesse período de grandes mudanças na ciência, Kuhn afirma que: Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos 22 instrumentos e olham em novas direções (...) durante as revoluções os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando, utilizando instrumentos familiares, dirigem seu olhar para lugares anteriormente por eles examinados. É como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente levada para outro planeta onde objetos familiares são vistos sob uma luz diferente e a eles se juntam objetos diferentes. (Kuhn, 1970, p. 173) Essa mudança de paradigma porém não acontece gradualmente e de forma homogênia. É preciso ainda muito trabalho dos adeptos de um novo paradigma para que ele seja aceito. Depois disso a ciência volta à fase onde permenece a maior parte de seu desenvolvimento, voltando a um novo estado de ciência normal, e se debruçando sobre os quebra-cabeças do novo paradigma. 23 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A historiografia da ciência de Thomas Kuhn abalou de uma forma inegável as bases da filosofia da ciência. Deste modo, ela mesma pode ser vista como uma crise na “epistemologia normal”, a qual leva a uma revolução no nosso modo de pensar a ciência. Olhando o contexto histórico da ciência, Kuhn nos leva a vê-la da forma como ela se comporta através da comunidade científica, e não como ela deveria ser de acordo com a epistemologia clássica. Os cientistas na verdade estão muito longe de seguir o modelo de ciência dos positivistas, neopositivistas ou mesmo Popper, mas sim trabalham de acordo com critérios subjetivos implícitos socialmente. A ciência nesse caso é vista como um processo histórico e social construído por pessoas com seus anseios e sua subjetividade e não por um ideal metafísico de objetividade como queriam muitos. A visão de Kuhn mostra-se como uma ruptura epistemológica bastante frutífera, uma nova perspectiva acerca do conhecimento científico e das pessoas que o produzem. Trata-se de uma abordagem que deixa de lado o mito da ciência como forma mais elevada de conhecimento e do cientistas como senhores desse saber; portanto, uma visão mais humana da ciência e seus praticantes. 24 REFERÊNCIAS ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 11. ed. São Paulo: Loyola, 2006. 224 p. ARANHA, Maria de Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 2. ed. ver. atual. São Paulo: Moderna, 1993. 396 p. CHALMERS, Alan F. O que é ciência afinal?. Tradução de Raul Filker. São Paulo: Brasiliense, 1993. 196 p. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000. 567 p. FOUREZ, Gerard. A construção das ciências: introdução à filosofia e a ética das ciências. Tradução de Luiz Paulo Rounet. São Paulo: UNESP, 1995. 320 p. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. et al. 5. ed. ver. São Paulo: Perspectiva, 1970, 266 p. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittigenstein. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 298 p. OMNÉS, Roland. Filosofia da ciência contemporânea. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 1996. 320 p. PORTOCARRERO, Vera (Org.). Filosofia, história e sociologia das ciências I: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994. 272 p. STEGMÜLLER, W. A filosofia contemporânea. Hegenberg. São Paulo: EPU, 1977. p. 353 – 405. Tradução de Leônidas 25