Judicializando a Política, Politizando o Direito John Ferejohn 1 Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, observa-se um profundo deslocamento do poder do Legislativo para tribunais e outras instituições jurídicas. Tal deslocamento – que recebeu o nome de judicialização – tem ocorrido em escala mais ou menos global. O espetáculo dos juízes italianos pondo abaixo o sistema de troca-troca de gabinetes estabelecido na Itália no pós-guerra, magistrados franceses caçando primeiros-ministros e presidentes, e até mesmo juízes tomando a iniciativa para prender e julgar ex-ditadores e líderes militares, são os aspectos mais visíveis dessa tendência. Mesmo a intervenção da Suprema Corte americana na disputa eleitoral em Bush v. Gore é outra manifestação bastante conhecida desta tendência. A teoria democrática clássica associa, por um lado, a política com as atividades desempenhadas pelo Legislativo e, por outro, o Direito com as operações do Judiciário. É natural que a política tenha seu lugar no Legislativo, onde sua ocorrência é não só inevitável mas também legítima. Com efeito, a contestação política é condição necessária para a realização plena dos valores democráticos. O Legislativo produz leis que obrigam a todos e, portanto, cada um de nós participa da decisão de quem deve ocupar assento no Legislativo. Temos o direito de monitorar debates legislativos, de informar e influir nas decisões e de exigir que legisladores se responsabilizem perante nós pelos seus atos nas próximas eleições. Essas expectativas políticas legitimam o nosso direito a organizar partidos e facções para eleger, monitorar, criticar, opor e influenciar os legisladores. Nesse sentido, é de se esperar que a política no processo legislativo seja contenciosa, parcial e ideológica. 1 Esse artigo foi originalmente publicado em HOOVER DIGEST 2003 – No. 1 – WINTER ISSUE. Esta tradução foi feita para uso exclusivo e privado dos integrantes do curso Humanismo em Nove Lições, promovido pelo CEDES/IUPERJ e pela ENM/AMB de 20 a 30 de junho de 2005. Tradução de Thiago Nasser, revisão de José Eisenberg. Em contrapartida, a aplicação da lei deveria ocorrer nos tribunais. A aplicação da lei pode ser controversa, mas espera-se que seja tratada primordialmente como um assunto técnico em que o que importa é escolher o princípio adequado à resolução do contencioso. O dever dos juízes e dos funcionários do Judiciário é fornecer tribunas eqüitativas e imparciais para que as partes em disputa possam resolver seus conflitos de acordo com as normas legais pré-existentes e válidas. Os tribunais não são lugares onde se formula normas genéricas e prospectivas, tampouco são lugar para a atividade política de facções. As duas atividades – a legislativa e a judiciária – devem ser conduzidas separadamente, de acordo com princípios distintos. TÊNUES FRONTEIRAS Hoje já reconhecemos que a noção de que política possa ou deva se restringir ao processo legislativo é simplista demais. Também reconhecemos que os tribunais têm estado crescentemente mais aptos e dispostos a limitar e a regular o poder de instituições legislativas, o que significa, vale dizer, que os tribunais têm se constituído como instâncias de elaboração de políticas públicas substantivas e que os juízes estão cada vez mais dispostos a regular a maneira pela qual se desenvolve a atividade política. Esse crescente papel dos tribunais, tanto na formulação de políticas públicas quanto na atividade política, significa que um fenômeno que Tocqueville já identificara na política americana anos atrás hoje se tornou global: a transformação de questões políticas em questões jurídicas. Qual é a razão dessa transformação? Em uma república, o poder legislativo deve ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo. legislativo está representativo. sempre, pelo menos É por esse motivo que o poder inicialmente, investido de um mandato Embora constituições e o público associem o poder legislativo a esse mandato, tal poder pode e necessariamente irá migrar para outras instituições governamentais – historicamente, é exatamente isso que tem acontecido repetidas vezes. O modelo de um mandato popular e prestador de contas possui certa elegância austera, mas não lida com a complexidade do processo de criação de boas leis. O processo legislativo encontra-se, por natureza, permeado por incertezas na medida em que ninguém pode prever as conseqüências da adoção de uma nova norma. Esperamos, naturalmente, que o Legislativo estabeleça instituições e administrem de maneira inteligente esse elemento de incerteza. práticas internas que Nos Estados Unidos, o Congresso adotou um complexo sistema de comitês (committees) com extensos quadros profissionais, e freqüentemente os próprios membros do Congresso acabam se tornando especialistas na análise substantiva de determinada área de políticas públicas. Em outros países, o governo, que constitui um dos mais importantes e poderosos comitês do Legislativo, centraliza a administração dos recursos destinados aos departamentos executivos para administrar a incerteza legislativa. Independente, entretanto, do quanto se consiga administrar essa incerteza, é impossível antecipar todos os efeitos de normas prospectivas. A delegação de autoridade para agências administrativas especializadas é uma resposta parcial à incerteza do processo legislativo. Ao invés de tentar antecipar toda a complexidade com a qual uma norma geral terá que se confrontar, o Congresso autoriza administradores a desenvolverem regras mais detalhadas. Ainda assim, a tendência é que regras administrativas sejam bastante rígidas e custosas e, uma vez adotadas, se tornem praticamente impossíveis de serem alteradas caso os efeitos antecipados não se materializem. Tendo em vista a dificuldade em lidar com a incerteza do processo legislativo – tanto em agências governamentais quanto em parlamentos – os tribunais certamente oferecem algumas vantagens únicas. Os tribunais lidam com regras à luz de circunstâncias específicas e estão bem posicionados para perceber injustiças e inconvenientes trazidos por essas circunstâncias às partes em litígio. Ainda que as normas desenvolvidas pelos tribunais sejam prospectivas – na medida em que servirão como precedentes para casos similares no futuro – a resolução do caso em questão não é prospectiva. Ademais, a prática do stare decisis (o precedente) permite que regras gerais se desenvolvam gradativamente, por meio da atividade de muitos tribunais, juízes e casos. Como têm argumentado juristas há séculos, esse tipo de experiência pode ajudar na formatação de normas que sejam adequadas para serem aplicadas a situações concretas de interação. Acredito que seja nesse ponto que nos defrontamos com duas causas gerais da judicialização. Em primeiro lugar, a crescente fragmentação do poder entre as instituições políticas limita a capacidade que cada uma tem de legislar – isto é, de se constituir no foro em que políticas públicas serão efetivamente formuladas – resultando em um movimento pelo qual as pessoas, buscando soluções para conflitos, gravitarão para instituições que sejam capazes de produzir soluções. Freqüentemente, tribunais oferecem tais caminhos. Em segundo lugar, há um sentimento de que os tribunais (pelo menos alguns deles) podem merecer confiança para a proteção de uma vasta gama de valores importantes contra abusos políticos potenciais. Em outras palavras, à medida que o público perde confiança na capacidade do Legislativo legislar de acordo com seus interesses, suas esperanças e desejos se voltam aos tribunais. Essa tendência é ainda mais evidente na Europa do segundo pós-guerra. A necessidade de garantir que o processo legislativo ordinário fosse regulado por valores fundamentais foi sentida especialmente na Itália e na Alemanha. Naqueles países, os processos legislativos ordinários haviam fracassado completamente no respeito aos direitos humanos. Não só o Legislativo era considerado suspeito na defesa dos direitos humanos, mas o mesmo temor recaía sobre os tribunais, que pouco haviam feito para controlar ou limitar o impacto da legislação autoritária. A instituição de novos tribunais constitucionais – com o poder de derrubar leis, mas ao mesmo tempo manter independência em relação ao Judiciário – foi parte de uma reação a essa dupla desconfiança em relação ao poder legislativo e ao sistema da justiça comum. FRAGMENTAÇÃO O nível de fragmentação entre as várias instituições políticas varia de acordo com cada sistema particular de governo. Nos Estados Unidos, por exemplo, raras e breves têm sido as instâncias em que o partido majoritário é capaz de coordenar e impor uma disciplina às suas atividades legislativas. Provavelmente as únicas vezes em que isso ocorreu foram os primeiro e segundo “Hundred Days”2 de Franklin Roosevelt, o 89o Congresso durante a presidência de Lyndon B. Johnson e o “Contrato com a América” promovido por Newt Gingrich durante o 104o Congresso. Isso foi, em parte, decorrência de um sistema eleitoral que transforma cada membro do Congresso em uma espécie de embaixador do seu estado de origem e também do fato de que a eleição do presidente é desvinculada das eleições legislativas. Em tal sistema, os legisladores recebem todo tipo de incentivo para reagir à diversidade de demandas de seu eleitorado local ao invés de se unir a outros parlamentares para agir de acordo com um programa partidário coerente. São circunstâncias ideais para a fragmentação e, portanto, circunstâncias ideais para que haja uma maior dependência nos tribunais para produzir aquilo que deveria ser da alçada do poder legislativo. Instituições políticas européias – ressalvado o caso da Grã-Bretanha – são exemplos perfeitos de fragmentação. Elas combinam uma estrutura federativa com instituições políticas extremamente indecisas, que precisam tomar decisões por unanimidade ou maiorias qualificadas. Nesse contexto, as instituições burocráticas e judiciais da Europa têm encontrado amplo espaço para seu desenvolvimento. À Comissão Européia foi concedida ampla latitude para formular políticas públicas. A Corte de Justiça Européia tem tido o mesmo sucesso no estabelecimento de jurisdição sobre leis ou decretos nacionais que afetam o movimento de bens, capitais e pessoas por toda a União Européia. Fragmentação institucional pode ser superada se os partidos políticos se tornam bem organizados e disciplinados. Sistemas uni - partidários, tal como aqueles que existiram na União Soviética e continuam a existir em ditaduras modernas, obviamente não apresentam tanta fragmentação. Partidos políticos na Europa Ocidental, de modo geral, são disciplinados, mas dificilmente conseguem maiorias parlamentares – a exceção sendo o modelo britânico de Westminister em que um partido geralmente atinge uma 2 Foi assim que ficaram conhecidos os primeiros 100 dias imediatamente após a primeira e segunda eleição de FDR (1933-1945), quando conseguiu apoio irrestrito do Congresso americano para implementar as primeiras medidas do New Deal (N. do tradutor) maioria e mantém rígida disciplina nas votações parlamentares. Com efeito, o poder legislativo na Inglaterra nunca se encontra fragmentado. A ESCALADA DA JUDICIALIZAÇÃO A política tende a se situar na atividade legislativa, pois legislar é, por natureza, uma atividade política. Por esse motivo, é lógico supor que, na medida em que os tribunais absorvem cada vez mais atividades de cunho legislativo – seja como resultado da fragmentação ou da vontade de proteger uma gama maior de direitos -, a política seguirá o mesmo caminho. Esta migração do poder legislativo para agências e tribunais significa que esses, principalmente os importantes e muitas vezes definitivas. tribunais, tomarão decisões politicamente Qualquer ator que tenha algum interesse colocado em jogo nessas decisões terá motivos para buscar influenciar, senão até mesmo controlar, as indicações que definem a composição dos tribunais e de outras instituições judiciais enquanto, ao mesmo tempo, busca dirigir o debate a respeito das novas leis no sentido de antecipar a resposta que será dada pelas instituições jurídicas. Esta politização dos tribunais, ou a transformação de temas anteriormente restritos à esfera política em questões jurídicas é exatamente o que Tocqueville previu há mais de um século. A judicialização da política também leva à regulação judicial da política. recente regulação judicial de práticas democráticas tem se concentrado A no desenvolvimento de doutrinas constitucionais que permitam que tribunais reorganizem as práticas políticas. Por exemplo, nesse momento, algumas das mais importantes decisões legais a respeito da política estão sendo tomadas em tribunais: nomeações, acesso às urnas, financiamento de campanhas, e outras maneiras de regular a vida política que por muito tempo ficaram blindadas contra qualquer tipo de escrutínio judicial. Outra conseqüência importante é a crescente disposição demonstrada por parte dor tribunais – especialmente a Suprema Corte dos Estados Unidos – de impor o que pode ser chamado de requerimentos deliberativos sobre o Legislativo. Nota-se a força dessa tendência na série de decisões federalistas recentemente tomadas pela Suprema Corte em que esta demandou que o Congresso fornecesse um parecer substanciado para a sua autoridade presumida de aprovar estatutos. Como outros autores já perceberam, a Suprema Corte parece dar ao legislativo o mesmo tratamento que dá a outras agências ou mesmo tribunais inferiores. Isto é significativo porque, mesmo que a Corte não interfira no exercício da autoridade do Legislativo, ao exigir que a sua autoridade de fazer determinado tipo de lei seja justificada racionalmente – tal qual seria se julgada em um tribunal – acaba forçando o Legislativo a se comportar como uma corte inferior quando aprovando estatutos. Ademais, a vontade crescente da Suprema Corte de impor tais restrições constitucionais sobre o Legislativo pode ser explicada em termos de sua independência cada vez maior em relações aos outros poderes. O processo legislativo sempre migrará para as instâncias capazes de ação efetiva. Se essas ações possuírem implicações políticas, a política certamente se fará presente no processo legislativo, onde quer que ele se manifeste. Isto não equivale a dizer que haja algo de errado com o fato de a produção de normas pelo judiciário possuir aspectos políticos. Muito pelo contrário. O poder de estabelecer normas deve ser objeto de contestação política e deliberação por aqueles que serão afetados por elas. Contudo, o modo como a política é feita no judiciário é, e deve ser, diferente do modo como ela é conduzida dentro dos outros poderes. Os tribunais precisam ter cuidado quando deslocam assuntos legislativos para a esfera judicial. Esse cuidado requer, acima de tudo, a formulação de critérios normativos que orientem a alocação de autoridade legislativa. NORMAS E REFORMAS Quais seriam os traços essenciais desses critérios normativos? Talvez seja o caso de diferentes tipos de legislação serem produzidos em diferentes cenários institucionais. Os tribunais estão bem preparados para criar certos tipos de normas legislativas, tais como aqueles que garantem princípios como o da igualdade, devido processo legal e justiça. Isto não quer dizer que o poder legislativo não deva participar na elaboração de políticas públicas acerca desses valores, mas os tribunais também devem possuir um papel importante e estável na regulação de atividades legislativas nessas áreas. As mesmas considerações administrativas. devem nortear as atividades legislativas das agências Normas atentas a aspectos técnicos geralmente são mais bem formuladas quando a expertise e normas profissionais conseguem moldar o discurso político. O desenvolvimento e a aplicação de normas que norteiem a alocação da autoridade legislativa não constituem, por si só, garantia que essas leis sejam realmente desenvolvidas e cumpridas. No caso apresentado acima, é duvidoso que se possa esperar dos juízes americanos – protegidos por cargos vitalícios e escolhidos por processos partidários – a auto-restrição e prudência exigidas por essa nova configuração. É, pois, inevitável que, em determinadas circunstâncias, juízes exerçam poderes legislativos em áreas de competência que o Legislativo julgava ser originalmente suas. Pode parecer lógico, portanto, que americanos contemplem algumas reformas que alterem a dinâmica dos seus tribunais, principalmente a Suprema Corte. Já estão em vigor nos tribunais constitucionais da Europa medidas que requerem uma supermaioria no Senado para a confirmação de indicações e que limitam magistrados a um único mandato não renovável. O resultado empírico dessas experiências deverá ser bastante informativo. O requisito de uma supermaioria para a confirmação de indicações significa que novos juízes terão de contar com uma aceitação mais ampla, para além de divisões partidárias e ideológicas, o que desencorajaria a indicação de juízes com convicções ideológicas extremas e, a longo prazo, resultaria em tribunais ocupados por magistrados moderados. A estipulação de mandatos fixos para juízes significaria, entre outras coisas, sua participação no tribunal nunca duraria mais que um mandato mesmo se suas opiniões se tornassem extremadas após sua indicação. Uma resposta natural a tais propostas de reforma é simplesmente ignorá-las, uma vez que muitas delas são infactíveis, principalmente limitar mandatos, já que necessitaria de emenda constitucional. O requisito de uma supermaioria, no entanto, não necessita de uma mudança constitucional. Tal reforma poderia ser implementada convencionalmente, tal como os britânicos modificam sua constituição. Se os membros do Senado fizessem da maioria de 2/3 um requisito auto-imposto, eles poderiam se recusar a confirmar qualquer indicação que não obtivesse o mesmo patamar de apoio. Agora, se os senadores agüentariam ou não o contencioso político produzido por tal postura é outra questão. *** A politização dos tribunais em certas estruturas governamentais é, até certo ponto, não só inevitável como legítima. Responsividade democrática e legalidade são ideais complexos e às vezes antagônicos, e o que cada um deles requer em determinado momento tempo é um problema que está sempre aberto para debate. As atividades do Judiciário em que normas são produzidas se situam justamente na contestada fronteira entre responsividade democrática e legalidade. O que está institucionalmente em jogo é a alocação do poder de legislar – no pós 2a Guerra Mundial esse poder está sendo persistentemente deslocado de Legislativos para tribunais e outras instituições judiciais. O resultado é o crescimento das atividades legislativas dos tribunais bem como a regulação crescentemente judicializada das atividades legislativas que ocorrem em outras instituições. Se essa judicialização da política é inevitável, como a história parece sugerir, os seus benefícios dependerão fundamentalmente de como aquelas instituições que originalmente permitiram a transformação do político no jurídico reagirão ao fenômeno.