FILOSOFIA E EDUCAÇÃO – Licenciatura em Pedagogia 1 FILOSOFIA: CONSIDERAÇÕES GERAIS A Filosofia surgiu no final do século VII e início do VI a.C. na Grécia antiga. Resultou de um processo lento e gradativo para que contribuíram vários fatores, como as viagens marítimas, a invenção da escrita, a invenção da moeda, o nascimento da pólis (cidadeestado). Os primeiros filósofos tinham uma preocupação cosmológica e foram posteriormente denominados de pré-socráticos. A Filosofia surge em um mundo povoado por concepções míticas e em oposição a elas. O mito é a forma mais primária de compreensão da realidade. Trata-se de um tipo de saber que é afetivo, coletivo e dogmático. Os mitos são mantidos vivos pela tradição e cumprem uma função importante de atribuir sentido ao mundo, de explicar a realidade, de ordenar o caos. Esses primeiros filósofos desconfiavam das explicações míticas e passam a buscar uma explicação racional para o existente. Dessa forma, a Filosofia surge opondo-se à visão mítica predominante na época e vai configurar-se como uma reflexão racional para explicação do existente. Filosofia: de phílos ‘amigo, amante’ e sophía ‘conhecimento, saber’; significava no período pré-socrático o estudo teórico da realidade, o saber do sábio, amor e conhecimento do lógos ‘verbo, palavra’, que tudo rege e unifica. (Dicionário eletrônico HOUAISS da língua portuguesa) Alguém poderia perguntar, mas qual, afinal, o objeto da Filosofia? As ciências particulares possuem objetos definidos; e a Filosofia, de qual objeto especificamente ela se ocupa? Os pré-socráticos, por exemplo, tinham uma preocupação cosmológica, enquanto Sócrates passa a preocupar-se mais com a questão antropológica e ética. Aristóteles investigou sobre lógica, política, biologia entre outros temas. Outros filósofos ocuparam-se com a teoria do conhecimento, com a estética etc. Cabe lembrar que as ciências particulares tal como concebemos atualmente vão configurar-se a partir do século XVII, com Galileu, antes disso, encontravam-se no bojo da Filosofia. A questão fundamental é que a Filosofia não se define pelo objeto, como as ciências particulares, mas pela forma de abordagem do objeto. E qual é essa forma? Segundo o filósofo e educador brasileiro, Dermeval Saviani (2000),1 essa forma é radical, rigorosa e de conjunto. Radical, porque a reflexão filosófica precisa ir até a raiz do problema, investigar seus fundamentos. Rigorosa, porque a reflexão filosófica implica sistematização apoiada no rigor de um método próprio; De conjunto, porque ao mesmo tempo que o problema é visto em profundidade deve ser também visto em uma perspectiva mais ampla, de conjunto, em relação a outros elementos do contexto. Para Saviani, é nessa característica “que a filosofia se distingue da ciência de modo mais marcante. Com efeito, ao contrário da ciência, a filosofia não tem objeto determinado; ela se dirige a qualquer aspecto da realidade, desde que seja problemático; seu campo de ação é o problema, esteja onde estiver” (2000, p. 17). Dessa forma, a Filosofia pode ocupar-se de problemas da esfera política, ambiental, científica, social, educacional, entre outras. Segundo Terezinha Azeredo Rios, a filosofia é sempre “filosofia de” alguma coisa; ela explica que: 1 SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2000. Cosmológica: ETIM gr. kosmología, do gr. kósmos ‘lei, ordem, mundo, universo’ + rad. gr. -logía ‘tratado, ciência, discurso’. (Dicionário eletrônico HOUAISS da língua portuguesa) A philo-sofia caracteriza-se então como uma reflexão que busca compreender o sentido da realidade, do homem em sua relação com a natureza e com os outros, do trabalho do homem e seus produtos: a cultura e a história. É enquanto re-flexão que descobrimos a filosofia sempre como filosofia de. Às vezes tenta-se menosprezar o conhecimento filosófico por não ter objeto próprio, na medida em que qualquer objeto pode ser objeto do filosofar. Deve-se então retomar a afirmação de que não é pelo objeto que a filosofia se define. Ela tem sempre como objeto os problemas que a realidade apresenta, sejam quais forem esses problemas e o lugar em que se situam. (RIOS, Terezinha Azeredo. 10 ed. São Paulo: Cortez, 2001, p.18) Pré-socráticos: relativo aos primeiros pensadores do mundo ocidental e às suas doutrinas, anteriores à etapa subseqüente inaugurada por Sócrates na filosofia grega. (Dicionário eletrônico HOUAISS da língua portuguesa) 2 FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO Muitos de vocês já devem ter-se perguntado: Qual a relação entre Filosofia e Educação? Afinal, a Filosofia é necessária para a Educação? Por que o educador deve filosofar? Vamos responder começando com outras perguntas: É importante refletir sobre qual ser humano se quer formar? É importante refletir para que educar? É importante analisar os valores que devem orientar a prática educativa? Se você respondeu sim a essas interrogações é porque a reflexão filosófica não pode ser negligenciada pelo educador. No item anterior foi abordado que a Filosofia não tem um objeto de estudo específico, mas que se preocupa com diferentes problemas, colocando-se de forma crítica e reflexiva diante deles. Assim, um dos problemas com que se ocupou e se ocupa a Filosofia é a Educação. Daí a afirmação de Saviani: “Acreditamos, porém, que a filosofia da educação só será mesmo indispensável à formação do educador, se ela for encarada, tal como estamos propondo, como uma reflexão (radical, rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade educacional apresenta” (2000, p.23). Configura-se, dessa forma, a importância da reflexão para a educação. A palavra reflexão “[...] vem do verbo latino ‘reflectere’ que significa ‘voltar atrás’. É, pois, um repensar, ou seja, um pensamento em segundo grau” (SAVIANI, 2000, p.16). A reflexão é uma análise consciente daquilo que se apresenta como problema. Assim, se pensar é uma atividade que se coloca em prática espontaneamente, o mesmo não se pode dizer do refletir, porque “[...] se toda reflexão é pensamento, nem todo pensamento é reflexão” (SAVIANI, 2000, p.16). A reflexão implica uma atitude consciente de examinar detidamente as questões vitais da existência humana. Dessa forma, se se defende a reflexão enquanto um valor fundamental para a educação é necessário que essa reflexão possa ser também adjetivada de filosófica. E o que induz o educador a filosofar? Segundo Saviani: O que leva o educador a filosofar são os problemas (entendido esse termo com o significado que lhe foi consignado) que ele encontra ao realizar a tarefa educativa. E como a educação visa o homem, é conveniente começar por uma reflexão sobre a realidade humana, procurando descobrir quais os aspectos que ele comporta, quais as suas exigências referindo-as sempre à situação existencial concreta do homem brasileiro, pois é aí (ou pelo menos a partir daí) que se desenvolverá o nosso trabalho. (SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2000. p.23) Assim, o exercício filosófico possibilita que as pessoas diante dos problemas respondam com reflexão e não com idéias prontas. E, diante dos problemas que a realidade educacional apresenta ao educador, este não deve abrir mão da reflexão filosófica. 3 O ATO DE EDUCAR* Kant inicia seu texto Sobre a pedagogia2, enfatizando que o ser humano é o único ser que precisa ser educado. Com isso, o filósofo de Königsberg chama a atenção para o fato de que o ser humano não nasce pronto e para se desenvolver e não perecer necessita de educação. E a educação, por sua vez, acontece de várias formas e em variados lugares e tempos. Vejamos quais são seus propósitos gerais. Kant, Immanuel - (1724-1804) Fonte: http://www.consciencia.org/imagens/banco/ Filósofo alemão, representante do Iluminismo, autor da Crítica da razão pura entre outras obras. Segundo Abbagnano e Visalberghi, na sua História da Pedagogia (1999) o mito de Prometeu, exposto por Platão no diálogo Protágoras, é a melhor e mais fácil forma para se compreender a natureza e as tarefas da educação. Platão - (428-348 a.C.) Fonte: http://www.consciencia.org/imagens/banco/ 2 KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. 4 ed. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2004. O mito conta que quando os deuses criaram os animais encarregaram Prometeu e Epimeteu de distribuírem as qualidades necessárias à sobrevivência de cada grupo. Epimeteu3 começou a distribuição sem Prometeu.4 Para alguns concedeu velocidade, mas não força; dessa forma, poderiam fugir daqueles que dotou com força, mas não com velocidade; alguns revestiu com peles grossas; outros dotou com garras; alguns outros receberam asas etc. Enfim, procurou estabelecer um certo equilíbrio de modo que todas as raças pudessem sobreviver e nenhuma pudesse desaparecer. Mas Epimeteu3, ue não era muito inteligente, havia gastado quase todas as faculdades com os animais e se esquecido do gênero humano. Foi quando chegou Prometeu4 e constatou que realmente havia um certo equilíbrio entre os animais, mas que o homem encontrava-se nu e indefeso e dessa forma poderia facilmente perecer diante das ameaças do meio. Prometeu então, resolveu roubar o fogo de Hefesto e a habilidade mecânica (técnica) de Atena e concedê-los aos homens. Com esses dois atributos os homens ficaram providos para se defender e sobreviver. Com a habilidade mecânica o homem pôde criar moradias, vestimentas, armas, utensílios etc. Foram dotados também da arte de emitir sons e palavras. Mas, mesmo assim, ainda não tinham sua vida assegurada porque viviam separados e não uniam forças para lutar contra as feras. Quando tentaram se unir e criar cidades não foi possível conviver, pois não possuíam a arte política. Foi quando Zeus interveio e dotou a todos com a arte política, ou seja, com a capacidade de agir com respeito recíproco e justiça. Aqueles que se recusassem a agir assim deveriam ser expulsos da comunidade ou condenados à morte. Dessa forma, segundo Abbagnano e Visalberghi (1999), podem-se extrair algumas verdades importantes do mito de Prometeu: Primeira, que o gênero humano não pode viver sem a arte mecânica e sem a arte da convivência. Segunda, que estas artes, justamente por serem tais (é dizer, artes e não instintos ou impulsos naturais) devem ser aprendidas. (1999, p.9) No ser humano, o período de sua “infância” é mais longo e penoso do que, comparativamente, o correspondente nos animais. Esse período serve para o ser humano aprender a utilizar os órgãos com os quais foi dotado pela natureza. O filósofo da educação Olivier Reboul5 chama a atenção para o fato de o ser humano nascer inacabado, como se nascesse prematuramente, antes de estar totalmente pronto. Segundo ele, esse “inacabamento”, embora aparente um limite, revela, na verdade, a grandeza do ser humano. Enquanto os animais nascem praticamente prontos, já que rapidamente se apropriam das capacidades que foram distribuídas por Epimeteu, o ser humano ao maturar-se lentamente vai muito mais longe, uma vez que aos poucos vai revelando todas suas potencialidades latentes. Nos animais, suas possibilidades já estão inscritas na estrutura orgânica e não necessitam de aprendizagem, no sentido humano. No ser humano, apenas o uso de seus órgãos não é garantia de vida, já que necessita utilizar os dons concedidos por Prometeu – o uso das técnicas mecânicas - e por Zeus – a arte moral. É por isso que se faz necessária uma aprendizagem mais longa e penosa. O pressuposto para aquisição de tais técnicas é a linguagem. Sem a linguagem não haveria comunicação entre os homens e também não haveria aprendizagem, nem desenvolvimento, assim como, a possibilidade de fazer abstrações e generalizações necessárias para a formação e desenvolvimento das técnicas. 3 Do grego epimetheús: aquele que pensa depois. Do grego prometheús: aquele que pensa antes. 5 REBOUL, Olivier. A filosofia da educação. Lisboa, Portugal: Edições 70. 4 *(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e educação na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap. 4) 4 CULTURA E EDUCAÇÃO* O que é cultura? Em um sentido amplo e antropológico, podemos entender por cultura toda produção que o ser humano realiza ao construir sua existência, seja produção material ou espiritual. Por exemplo, em uma tribo indígena seus utensílios, suas armas, suas moradias, suas crenças, sua língua, seus mitos, fazem parte da sua cultura. Daí falarmos em cultura tupi-guarani, em cultura chinesa, em cultura brasileira, entre outras. Quando se pensa no mundo humano, costuma-se fazer uma primeira e grosseira divisão entre “sociedades primitivas” e “sociedades civilizadas”. Tanto entre as “sociedades primitivas” quanto entre as “sociedades civilizadas” os grupos que as compõem são muito diversos e diferentes em relação às suas crenças e costumes. Tal questão se deve ao fato de cada grupo humano (primitivo ou civilizado) possuir uma cultura própria para sobreviver. Sem cultura6 um grupo humano não sobrevive. É do interesse do grupo que a cultura não pereça nem seja esquecida. Para isso, é preciso que seja transmitida para as gerações mais jovens a cultura adquirida pelas gerações adultas. A cultura deve ser aprendida e esse é o caráter mais geral e fundamental de uma cultura. Essa transmissão da cultura é feita pela educação (Cf, ABBAGNANO e VISALBERGHI, 1999, p.11). Embora as sociedades primitivas não possuam escolas tal como as concebemos, elas possuem um processo educativo. Tal processo é informal, e a aprendizagem se dá nas várias atividades cotidianas do grupo. Assim, pode-se afirmar que a educação não tem uma única forma, mas sim que pode assumir diferentes formas de acordo com o grau de desenvolvimento dos grupos: Mas em essência é sempre a mesma coisa, isto é, a transmissão da cultura do grupo de uma geração a outra, dádiva pela qual as novas gerações adquirem a habilidade necessária para manejar as técnicas que condicionam a sobrevivência do grupo. (ABBAGNANO e VISALBERGHI, 1999, p.12) Nas sociedades primitivas, suas técnicas culturais de comportamento, de sobrevivência, acabam por adquirir um caráter sacro. Os ritos que acompanham várias de suas atividades servem para garantir a repetição das técnicas tradicionais, de forma que elas não sejam esquecidas nem modificadas. De acordo com Abbagnano e Visalberghi (1999), quanto mais difícil para o grupo é a transmissão e conservação de sua cultura, maior a tendência de atribuir um caráter sacro a cada elemento do seu patrimônio cultural e, dessa forma, adotar uma postura conservadora ao extremo em relação aos elementos de sua cultura imprimindo, assim, Segundo Abbagnano e Visalberghi: “[...] por ‘cultura’ entenderemos o conjunto de técnicas de uso, de produção e de comportamento, mediante os quais um grupo de homens pode satisfazer suas necessidades [...]”. (1999, p.11) “Em resumo, uma cultura é o conjunto das faculdades e habilidades não puramente instintivas de que dispõe um grupo de homens para manter-se vivo singular e coletivamente (quer dizer, em grupo)”. (1999, p.11) 6 um caráter estático a ela. Já as sociedades denominadas de secundárias são mais permeáveis às mudanças. Segundo os autores, “[...] são aquelas cuja cultura está aberta às inovações e possui instrumentos aptos para fazer-lhes frente, compreendê-las e utilizálas” (1999, p.13). É por meio do saber racional que estas últimas podem enfrentar o duplo problema da conservação e da renovação dos elementos culturais considerados válidos na sua sociedade. Segundo expõe Jaeger (2001), em sua Paidéia: “A educação é uma função tão natural e universal da comunidade humana, que por sua mesma evidência tarda muito tempo em chegar à plena consciência daqueles que a recebem e a praticam” (2001, p.19). Ou seja, embora a educação ocorra em várias épocas e lugares de modo difuso e informal, a plena consciência do seu processo é um fruto tardio. O ser humano precisa ser socializado para sobreviver. Desde que nasce ele é submetido a um constante processo de aprendizagem por meio da educação informal. Através da família, da comunidade, da Igreja, dos meios de comunicação etc., as pessoas vão tomando contato com os conhecimentos e valores de sua sociedade, com os comportamentos adequados a sua idade, a seu sexo, a sua classe social etc. Então podemos dizer que, mesmo em sociedades em que não há escolas, existe educação, uma educação informal. À medida que a sociedade vai tornando-se mais complexa e começa a lidar com questões como produção, divisão do trabalho e, relacionada a esta, a questão do poder, é que a educação vai, segundo Brandão (1994), sendo vista como um problema. A partir do momento em que a educação é concebida como um problema se faz necessário refletir sobre sua prática. A busca de como lidar com a transmissão do saber vai levando paulatinamente à instituição dos meios necessários a tal fim. Dessa forma, a educação formal surge quando as sociedades se tornam mais complexas e há necessidade de organizar a transmissão dos conhecimentos em lugar específico, como a escola. *(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e educação na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap. 4) 5 DIVERSOS TIPOS DE CULTURA Podemos definir cultura em um sentido amplo e antropológico, conforme foi abordado anteriormente, significando tudo que o ser humano produz ao construir sua existência. Assim, diferentes povos criam suas próprias e diferentes culturas. Já, em sentido restrito, podemos entender por cultura as diversas produções intelectuais realizadas por um povo e expressas na Arte, Filosofia, Ciência, Religião, enfim, nas diversas obras espirituais. Nesse sentido falamos em cultura erudita, cultura popular, cultura de massa, cultura popular individualizada. A cultura erudita “é a produção elaborada, acadêmica, centrada no sistema educacional, sobretudo na universidade, também conhecida como cultura de elite ou alta cultura, por ser produzida por uma minoria de intelectuais das mais diversas especialidades (escritores, artistas em geral, cientistas, tecnólogos)” (ARANHA, 2006, p. 61). Esse tipo de cultura implica elevado rigor na sua produção e, devido a isso, acaba restringindo-se a um público reduzido. Em geral, em sociedades desiguais, a maioria das pessoas não têm oportunidade e/ou não são incentivadas a participar, tanto da produção como do consumo desse tipo de cultura. A cultura popular possui um conceito complexo, mas de um modo geral, “consiste na cultura anônima produzida pelos habitantes do campo, das cidades, do interior ou pela população suburbana das grandes cidades. No sentido mais comum, a cultura popular é identificada ao folclore, que constitui o conjunto de lendas, contos, provérbios, práticas e concepções transmitido oralmente pela tradição” (ARANHA, 2006, p. 62). Isso não significa que o folclore seja uma realidade pronta imutável, porque toda cultura implica certa dinâmica, em transformação. A cultura de massa “resulta dos meios de comunicação de massa, ou mídia. São considerados meios de comunicação de massa o cinema, o rádio, a televisão, o vídeo, a imprensa, as revistas de grande circulação, que atingem rapidamente um número enorme de pessoas pertencentes a todas as classes sociais e de diferente formação cultural” (ARANHA, 2006, p. 63). Essa cultura tem como diferencial a figura do produtor cultural, que não realiza um trabalho individual, nem anônimo, mas sim coletivo pelo trabalho de equipe de um conjunto de especialistas. “Ao contrário da cultura popular, a cultura de massa é produzida ‘de baixo para cima’, impõe padrões e homogeneíza o gosto por meio do poder de difusão de seus produtos. Em linhas gerais, é também uma produção estandardizada que visa ao passatempo, ao divertimento e ao consumo” (ARANHA, 2006, p. 63). A cultura popular individualizada “se caracteriza por ser produzida por escritores, compositores, artistas plásticos, dramaturgos, cineastas, enfim, intelectuais que não vivem dentro da universidade (e, portanto, não produzem cultura erudita) nem são típicos representantes da cultura popular (que se caracteriza pelo anonimato), tampouco da cultura de massa (que resulta do trabalho de equipe)” (ARANHA, 2006, p. 64). É nesse tipo de cultura que podemos classificar, por exemplo, a música de Caetano Veloso ou de Tom Zé, o teatro de Plínio Marcos, a poesia de Manoel Bandeira, entre outros. De acordo com o que foi abordado, fica evidente a diversidade cultural, tanto nas diferentes sociedades como dentro de cada uma delas, nas suas diferentes manifestações. 6 PLURALIDADE CULTURAL E EDUCAÇÃO* A educação formal é a educação que se faz de modo sistemático e busca ter clareza em relação às questões: o que ensinar, como ensinar, quem ensinar, para que ensinar, por que ensinar, surge quando a educação passa a ser vista como um problema e, dessa forma, se faz necessária sua organização. Um dos desafios que a educação enfrenta é em relação à dialética conservaçãotransformação. Quais elementos da cultura devem ser conservados, porque são valorizados e quais devem ser transformados, porque são considerados ultrapassados? A própria etimologia latina da palavra educação remete também a um processo dialético do par conservação– transformação. Segundo Haydt (2001)7, a educação: 7 HAYDT, Regina Célia Cazaux. Curso de didática geral. 7 ed. São Paulo: Editora Ática, 2001. Do ponto de vista social, é a ação que as gerações adultas exercem sobre as gerações jovens, orientando sua conduta, por meio da transmissão do conjunto de conhecimentos, normas, valores, crenças, usos e costumes aceitos pelo grupo social. Nesse sentido, o termo educação tem sua origem no verbo latino educare, que significa alimentar, criar. Esse verbo expressa, portanto, a idéia de que a educação é algo externo, concedido a alguém. (2001, p. 11) Durkheim, Emile - (1858-1917) Fonte: http://www.consciencia. org/imagens/banco/ Pensador francês é considerado o primeiro grande teórico da Sociologia. Nesse sentido, a educação visa à transmissão e à preservação da cultura na qual o indivíduo se encontra inserido. Tem como objetivo que a cultura se mantenha viva por meio da sua aquisição pelas novas gerações. Nessa perspectiva, privilegia-se o elemento externo – sociedade – que se impõe ao interno – aluno. Essa concepção se encontra, de forma extrema, naquele que é considerado o pai da Sociologia, Émile Durkheim. Para ele: “A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social [...]” (1978, p. 41) e deve preparar as crianças para a integração harmônica ao social. Na sua visão funcionalista do social, a educação é entendida como um elemento externo coercitivo que deve integrar os indivíduos à sociedade existente, independente das suas vontades. Mas há outro sentido para o termo educação, ainda segundo Haydt: Do ponto de vista individual, a educação refere-se ao desenvolvimento das aptidões e potencialidades de cada indivíduo, tendo em vista o aprimoramento de sua personalidade. Nesse sentido, o termo educação se refere ao verbo latino educare8, que significa fazer sair, conduzir para fora. O verbo latino expressa, nesse caso, a idéia de estimulação e liberação de forças latentes. (2001, p.12) Nessa abordagem, privilegia-se o interno e o externo deve propiciar as condições favoráveis para que os educandos desenvolvam sua própria personalidade, sua singularidade, para que cada um se torne aquilo que pode ser. Nessa perspectiva, se possibilita que cada um se torne um sujeito ativo e criativo, que não adote uma postura apenas passiva em relação à cultura vigente, mas que também seja crítico e produtor de cultura. Outro desafio, relacionado a este, que a educação enfrenta é: como lidar com a pluralidade cultural, referida nos itens anteriores? Há uma tendência de muitos considerarem sua própria cultura como a única válida e verdadeira e, conseqüentemente, as outras culturas são concebidas como “estranhas”, “exóticas” ou mesmo “inferiores”. Tal 8 Alguns autores usam o termo educare para o primeiro sentido e o termo educere para este segundo sentido. (Cf LIBÂNEO, 2001, p.64) concepção revela uma postura etnocêntrica, ou seja, uma visão de mundo que tem como centro sua própria cultura, e tal postura pode levar a xenofobia, isto é, a aversão e ódio em relação ao diferente, que sustenta práticas de violência e dominação em relação aos considerados “outros”. É necessário considerar a diversidade cultural entre as várias culturas e dentro de uma mesma cultura, a diversidade pessoal e, ainda mais: que não existem raças, apenas a raça humana do animal symbolicum que constrói diferentes interpretações simbólicas para o mundo. Daí a necessidade da tolerância. Tolerar que a criatividade do ser simbólico que é o homem leva a uma diversidade de respostas diante do existente e do não existente, ou do não empírico. Dito de outro modo, os seres humanos, diante do existente, produzem diferentes interpretações, escolhem diferentes perspectivas; dessa forma, a diversidade do produzir atesta a igualdade na capacidade humana de produção. Dessa forma, tolerar implica reconhecer o outro como um outro-eu, como um animal symbolicum e buscar entender sua perspectiva. Eis um desafio para a educação: preparar para diversidade cultural *(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e educação na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap. 4) 7 O TRABALHO COMO MEDIAÇÃO ENTRE O HOMEM E A NATUREZA O ser humano depende da natureza para sobreviver? Vimos nos itens anteriores que o ser humano produz cultura. Isso implica que ele estabelece relações com a natureza e com outros seres humanos, que ele transforma seu meio. O ser humano é parte integrante da natureza e sua sobrevivência está condicionada ao intercâmbio que realiza com ela para satisfazer suas necessidades. Para isso, realiza trabalho. Veja o que dizem Marx e Engels, sobre isso: Marx, Karl (1818-1883) Fonte: http:// www.consciencia.org/imagens/banco/ Filósofo alemão, autor de O capital, A luta de classes em França, entre outras obras. Analisou as contradições da sociedade capitalista, assim como as possibilidades de superação pelo comunismo. Engels, Friedrich (1820-1895) Fonte: http://www.consciencia. org/imagens/banco/ Foi um importante divulgador do comunismo. Escreveu junto com Marx: O manifesto do partido comunista, A ideologia alemã. “Podem-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material. O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de produzir”. (MARX e ENGELS, A ideologia alemã (I – Feurerbach). 6 ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1987, p.27) Para Marx e Engels o grande diferencial do ser humano em relação aos outros seres vivos é a sua capacidade de produzir, ou seja, de realizar trabalho. Por meio do trabalho o ser humano produz os meios necessários para se manter vivo, ou seja, ele retira coisas da natureza, ele interfere na natureza, ele fabrica coisas a partir da natureza. Quando se fala em trabalho não é só no sentido do trabalho na fábrica, por exemplo, mas de toda ação transformadora consciente de seu fim. Nesse sentido, mesmo quando os animais modificam a natureza, por exemplo, quando o João de Barro faz sua moradia, ou um castor faz uma pequena represa, não estão realizando trabalho. É ilustrativa a comparação de Marx entre o mestre-de-obras e a abelha: “Mas há algo em que o pior mestre-de-obras é superior à melhor abelha, e é o fato de que, antes de executar a construção, ele a projeta em seu cérebro” (MARX, apud ARANHA e MARTINS, 2003, capítulo 1). Apenas o ser humano realiza trabalho, pois apenas ele projeta sua ação antes de executá-la. E essa ação implica práxis. E o que vem a ser isso? Práxis é a união interdependente e recíproca entre a teoria e a prática. Dito de outro modo: “práxis (...) significa a união indissolúvel da teoria e da prática, porque não existe anterioridade nem superioridade entre uma e outra, mas sim reciprocidade. Ou seja, como práxis, qualquer ação humana é sempre carregada de teoria (explicações, justificativas, intenções, previsões etc.). Também toda teoria, como expressão intelectual de ações humanas já realizadas ou por realizar, é fecundada pela prática.” (ARANHA, M. L. de Arruda. Filosofia da Educação. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2006, p.76) Será que em nossa sociedade o trabalho se dá dessa forma, contemplando essa relação interdependente entre a teoria e a prática? Será que em nossa sociedade o trabalho é condição de humanização do ser humano? De um modo geral, pode-se dizer que tudo depende de como o trabalho é realizado. Vamos ver, no próximo item, algumas críticas feitas à forma da organização do trabalho na sociedade capitalista. 8 ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA O trabalho não é condição de humanização quando, por exemplo, o ser humano é escravizado, quando trabalha em condições degradantes, quando é explorado, quando executa mecanicamente sua função, quando, enfim, realiza um trabalho alienado. E o que vem a ser a alienação? “O verbo alienar vem do latim alienare, ‘afastar, distanciar, separar’. Alienus significa ‘que pertence a outro, alheio, estranho’. Alienar, portanto, é tornar alheio, é transferir para outrem o que é seu” (ARANHA, 2006, p.76). Isso significa que o trabalhador que trabalha e produz não fica com o fruto do seu trabalho. Os operários produzem, mas o fruto do trabalho não lhes pertence, porque em troca eles recebem um valor determinado, recebem um salário. Essa alienação do produto leva a alienação do próprio trabalhador que produz, porque com a “perda da posse do produto, o próprio indivíduo não mais se pertence: não escolhe o horário, o ritmo de trabalho, nem decide sobre o valor do salário; não projeta o que será feito, comandado de fora por forças estranhas a ele” (ARANHA, 2006, p.76). Dessa forma, o trabalhador alienado não se reconhece no mundo que ele mesmo ajudou a construir. Mas se são os seres humanos que produzem cultura, que transformam a natureza, que trabalham, porque não mudar tal situação? Aí entra o papel da ideologia. E o que vem a ser ideologia? Se você olhar no dicionário irá verificar que o verbete ideologia possui muitos significados, como por exemplo: “Conjunto articulado de idéias, valores, opiniões, crenças etc.”. “Sistema de idéias dogmaticamente organizado como um instrumento de luta política”. “Conjunto de idéias próprias de um grupo” etc. Mas um sentido que se tornou clássico, e que será utilizado aqui, é aquele utilizado por Marx. Nessa perspectiva: A ideologia “é uma representação ilusória da realidade porque o conjunto de idéias e normas de conduta veiculado leva os indivíduos a pensarem, sentirem e agirem de acordo com os interesses da classe que detém o poder. Desse modo, a ideologia camufla o conflito existente dentro da sociedade dividida, apresentando-a como una e harmônica, como se todos partilhassem dos mesmos interesses e ideais” (ARANHA, 2006, p.80). Dessa forma a classe que detém o poder faz uso da ideologia para fazer valer os seus interesses e, por outro lado, a classe trabalhadora nem sempre tem a clareza e a organização necessária para fazer valer seus interesses. Dessa forma, há uma tendência de continuidade da dominação, uma vez que a função da ideologia é justamente essa: “ocultar as diferenças de classe, facilitar a continuidade da dominação de uma classe sobre a outra, assegurar a coesão entre os indivíduos e a aceitação sem críticas das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, simplesmente como decorrentes da ‘ordem natural das coisas” (ARANHA, 2006, p.81). PARA REFLETIR: O educador é um intelectual e como tal corre o risco de realizar um trabalho alienado? 9 PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO Toda teoria pedagógica pressupõe uma teoria epistemológica, da qual o professor faz uso, mesmo que ele não tenha consciência disso. Ou seja, mesmo que o professor ou a professora não saiba qual a teoria do conhecimento sustenta sua práxis pedagógica ele faz uso de alguma, mesmo que isso não seja claro para ele ou ela. Isso porque o ato de educar pressupõe quem educar e como educar. Quem eu vou educar já sabe alguma coisa? Quem eu vou educar não sabe nada, é como uma lousa em branco? Se concebo meu aluno como uma lousa em branco, eu, professor, serei o transmissor exclusivo do conhecimento. Se não concebo meu aluno como uma lousa em branco, meu procedimento deverá ser diferente. Epistemologia: reflexão geral em torno da natureza, etapas e limites do conhecimento humano, especialmente nas relações que se estabelecem entre o sujeito indagativo e o objeto inerte, as duas polaridades tradicionais do processo cognitivo; teoria do conhecimento. (Dicionário eletrônico HOUAISS da língua portuguesa) 9.1 Empirismo e a pedagogia diretiva Na pedagogia diretiva o professor é o centro do processo de conhecimento. Ele é o portador do conhecimento que deve ser transmitido aos alunos. O aluno é concebido como uma lousa em branco, como uma tabula rasa ou mesmo um balde vazio, que deverá ser preenchido com os conhecimentos transmitidos pelo professor. A epistemologia que sustenta essa prática é a do empirismo. Nessa concepção o indivíduo nasce como uma folha em branco que será preenchida no seu contato com o meio físico e social. Na escola, quem representa os conhecimentos, conteúdos e valores a serem transmitidos são os professores. Assim, na relação sujeito-objeto, o professor é o sujeito do processo de conhecimento, o detentor do conhecimento e o aluno o não sujeito ou um sujeito ainda não dotado de conhecimento, Dessa forma, tanto o conteúdo dos conhecimentos quanto a capacidade do aluno conhecer vêm do meio físico ou social. O professor é o agente do conhecimento e considera seu pupilo como uma folha em branco, não apenas quando nasceu ou quando chegou a escola, mas sempre que inicia um novo conteúdo da matéria. (Cf. Becker, 2001, p.17)9. Dessa forma, cabe ao professor transmitir os conhecimentos e depois avaliar, medindo o “nível de conhecimento” que foi transferido aos alunos. (Cf. Machado, 2004, p.16)10 Essa relação epistemológica é caracterizada pela passividade dos alunos, já que eles devem ficar sentados, enfileirados, em silêncio, prestando atenção, para assim obterem o conhecimento transmitido pelo professor. Tal modelo epistemológico favorece a reprodução da ideologia e a manutenção do status quo, ou seja, da situação existente, uma vez que não há incentivo ao questionamento, à reflexão e à criatividade. (Cf. Becker, 2001, p.18) 9.2 Apriorismo e a pedagogia não diretiva A concepção pedagógica não diretiva ou apriorista, do ponto de vista epistemológico, apóia-se na concepção idealista que admite a existência de idéias inatas nos indivíduos. Na pedagogia não diretiva o aluno é o centro do processo de conhecimento e o professor é um mediador, um facilitador da aprendizagem. O aluno é concebido como sendo dotado de potencialidades inatas, pela sua bagagem genética. Cabe ao professor despertar o que cada um já tem em potência. O aluno aprende não porque o professor ensina, mas porque ele já nasceu com o dom de aprender, ou seja, a inteligência é algo dado a priori que nasce com o aluno e necessita desenvolver-se. Cabe ao professor auxiliar, ajudando a despertar o conhecimento já existente no aluno. Se na concepção anterior o professor era o centro do processo e seu poder e autoridade era legitimado pelo modelo epistemológico, aqui isso já não poderia ocorrer. Por outro lado, já que o modelo 9 BECKER, Fernando. Educação e construção do conhecimento. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001. 10 MACHADO, Nílson José. Conhecimento e Valor. São Paulo: Moderna, 2004. epistemológico não legitima o poder do professor, esse poder acaba, em geral, assumindo uma forma mais dissimulada e perversa que no modelo tradicional (Cf. Becker, 2001, p.21). Segundo Becker: Essa mesma epistemologia, que concebe o ser humano como dotado de um saber “de nascença”, conceberá, também, dependendo das conveniências, um ser humano desprovido da mesma capacidade, “deficitário”. Esse “déficit”, porém, não tem causa externa; sua origem é hereditária. – Onde se detecta maior incidência de dificuldades ou retardos de aprendizagem? – Entre os miseráveis, os malnutridos, os pobres, os marginalizados... (...) A criança marginalizada, entregue a si mesma, em uma sala de aula não-diretiva, produzirá, com alta probabilidade, menos, em termos de conhecimento, que uma criança de classe média ou alta. Trata-se, aqui, de acordo com o apriorismo, de déficit herdado; epistemologicamente legitimado, portanto (2001, p.22). 9.3 Construtivismo e a pedagogia relacional Na pedagogia relacional ou construtivista, os pólos sujeito-objeto, aluno-professor, não estão dicotomizados, conforme exposto nas teorias anteriores. Nesta concepção, o conhecimento não é visto como algo que vem do exterior para o interior, como na tendência com base no empirismo, ou como algo dado de forma inata, como na tendência com base no apriorismo11. Na pedagogia construtivista, o conhecimento é algo concebido como uma construção contínua, realizada na interação entre sujeito e objeto. Tanto a bagagem hereditária quanto o meio social são importantes para o processo de conhecimento, mas nenhum desses fatores pode assumir uma independência em relação ao outro. Desde que nasce a criança irá, na sua relação com o meio, construir conhecimento por meio de um processo que altera mobilidade e estabilidade, avançando sempre a novos equilíbrios mais consistentes que os anteriores. Segundo Becker, o professor construtivista: Não acredita na tese de que a mente do aluno é tabula rasa, isto é, que o aluno, frente a um conhecimento novo, seja totalmente ignorante e tenha de aprender tudo da estaca zero, não importando o estágio do desenvolvimento em que se encontre. Ele acredita que tudo o que o aluno construiu até hoje em sua vida serve de patamar para continuar a construir e que alguma porta se abrirá para o novo conhecimento – é só questão de descobri-la; ele descobre isso por construção (2001, p.24). 10 EDUCAÇÃO, POLÍTICA E SOCIEDADE: AS TEORIAS DA EDUCAÇÃO Assim como a prática pedagógica pressupõe um modelo epistemológico ela também pressupõe uma finalidade em relação à organização social. Ou seja, diante da questão: qual o objetivo da educação em relação à sociedade, podemos ter diferentes respostas. 1) Ela visa salvar a sociedade de suas mazelas? 2) Ela visa conservar a sociedade tal qual essa se encontra? 3) Ela visa transformar a sociedade e suas estruturas? 10.1 As teorias não-críticas da educação ou tendência redentora 11 1O termo inato indica uma ordem psicológica, significa o que já nasce com o indivíduo. Já o termo a priori, indica uma ordem lógica do conhecimento, significa o que é anterior à experiência. Dermeval Saviani, no seu livro Escola e democracia, discute as questões assinaladas acima. Segundo ele, diante do problema da marginalidade escolar e social é possível identificar três grandes grupos, em relação ao posicionamento que adotam. Em um primeiro grupo ele denomina que estão as “teorias não-críticas da educação” e identifica alguns aspectos gerais comuns a elas. Para essa tendência a sociedade é concebida como um conjunto orgânico, harmonioso, e a marginalidade é entendida como um desvio. Assim, já que a marginalidade é um desvio, cabe à escola corrigir essa distorção. Ela deve ser corretora dos desvios sociais e promotora da coesão social. Dessa forma, a escola é concebida com uma certa autonomia em relação à sociedade. Ela atua modelando a sociedade sem ser influenciada pela mesma. Saviani denomina como teorias não-críticas: a pedagogia tradicional, a pedagogia nova e a pedagogia tecnicista. São denominadas de não-críticas devido à forma ingênua como concebem sua relação com a sociedade. Essa teoria é também chamada de tendência redentora, no sentido de ser a salvadora da sociedade. Sobre as concepções dessa tendência Luckesi, no seu livro Filosofia da educação, explica: A tendência redentora – concebe a sociedade como um conjunto de seres humanos que vivem e sobrevivem num todo orgânico e harmonioso, com desvios de grupos e indivíduos que ficam à margem desse todo. Ou seja, a sociedade está ‘naturalmente’ composta com todos os seus elementos; o que importa e integrar em sua estrutura tanto os novos elementos (novas gerações), quanto os que, por qualquer motivo, se encontram à sua margem. Importa, pois, manter e conservar a sociedade, integrando os indivíduos no todo social (LUCKESI, 1994, p.38). 10.2 As teorias crítico-reprodutivistas da educação ou a tendência reprodutivista Em um segundo grupo Saviani coloca as “teorias críticoreprodutivistas” da educação e identifica alguns aspectos comuns no seu posicionamento geral em relação à questão colocada acima sobre a marginalidade. Para essa tendência a sociedade é concebida com divisões de classes e estas possuem interesses divergentes. A marginalidade é concebida como algo inerente e produzido pela própria estrutura social. Já a educação está condicionada pela estrutura social e é também reprodutora da marginalidade social, uma vez que reproduz a marginalidade cultural. Dessa forma, a estrutura socioeconômica determina a forma de manifestação da educação e esta, por sua vez, é colocada a serviço dos interesses da classe dominante. Um exemplo dessa tendência encontra-se na obra Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado de Louis Althusser. Esse pensador defende que a escola é um dos aparelhos ideológicos do Estado e serve para reproduzir a ideologia da classe dominante e, dessa forma, manter o status quo. Althusser, Louis (1918 http://www.consciencia.org/ imagens/banco/ 1990) Fonte: Essas teorias são críticas devido à forma como concebem a relação da educação com a sociedade. Ou seja, analisam a educação a partir dos seus condicionamentos socioeconômicos. São também “reprodutivistas”, pois entendem que a educação é reprodutora da sociedade. Daí serem denominadas por Luckesi como tendências reprodutivistas. Segundo ele: Diversa da tendência anterior aborda a educação como uma instância dentro da sociedade e exclusivamente a seu serviço. Não a redime de suas mazelas, mas a reproduz no seu modelo vigente, perpetuando-a, se for possível. (...) A escola, segundo a análise de Althusser, é o instrumento criado para otimizar o sistema produtivo e a sociedade a que ele serve, pois ela não só qualifica para o trabalho, socialmente definido, mas também introjeta valores, que garantem a reprodução comportamental compatível com a ideologia dominante (LUCKESI, 1990, p.41 e 45). 10.3 A teoria crítica ou a tendência transformadora A partir da análise dos dois grupos anteriores, Saviani propõe uma via alternativa a estes. Trata-se da teoria crítica. Há alguns pontos comuns entre a “teoria crítica” em relação às “teorias crítico-reprodutivistas”. Em relação à concepção de sociedade, pode-se afirmar que há consenso entre as duas: a sociedade é concebida com divisões de classes e estas possuem interesses divergentes. Daí que a marginalidade é algo inerente e produzido pela estrutura social. Em relação à concepção de educação, a teoria crítica também concebe que a educação está condicionada pela estrutura social e é também reprodutora da marginalidade social, uma vez que reproduz a marginalidade cultural. Mas não entende que essa é sua única possibilidade. Uma vez que a educação, ao se fazer consciente dos mecanismos sociais, das influências que recebe do sistema no qual está inserida, pode atuar no sentido contrário. Ou seja, a escola com base em um projeto social pode atuar no sentido de promover a conservação ou a transformação da sociedade. Essa tendência é denominada por Luckesi como transformadora. Em resumo temos: A tendência redentora propõe uma ação pedagógica otimista, do ponto de vista político, acreditando que a educação tem poderes quase que absolutos sobre a sociedade. A tendência reprodutivista é crítica em relação à compreensão da educação na sociedade, porém pessimista, não vendo qualquer saída para ela, a não ser submeterse aos seus condicionantes. Por último, a tendência transformadora, que é crítica, recusa-se tanto ao otimismo ilusório, quanto ao pessimismo imobilizador. Por isso, propõese compreender a educação dentro de seus condicionantes e agir estrategicamente para a sua transformação. Propõese desvendar e utilizar-se das próprias contradições da sociedade, para trabalhar realisticamente (criticamente) pela sua transformação (LUCKESI, 1990, p. 51). 11 KANT - EDUCAÇÃO PARA AUTONOMIA: A SAÍDA DA MENORIDADE * Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem da sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem de se servir de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung] (KANT, 2005, p. 64). Kant, no seu texto “Resposta à pergunta: Que é ‘Esclarecimento’?”, explica que liberdade corresponde a autonomia, isto é, ser capaz de seguir as próprias leis pensadas pelo sujeito moral e não simplesmente seguir passivamente o que é ditado. É poder fazer uso do próprio esclarecimento. Para Kant, esclarecimento significa a saída do homem da condição de menoridade, menoridade essa caracterizada como a incapacidade de se utilizar o próprio entendimento sem a orientação de outrem. Para esse filósofo, a nãosaída da condição de menoridade é culpa do próprio homem, que não tem coragem de fazer uso do seu entendimento. Segundo Kant, as causas que explicam a não-saída de muitos homens da menoridade são a preguiça e a covardia. Por um lado, existe a preguiça para mudar de posicionamento e, por outro, covardia para tomar tal atitude. “É tão cômodo ser menor”. Por isso, é mais fácil continuar sendo o que se é: menor. Muitos preferem simplesmente não pensar, já que existem aqueles que pensam por eles: o padre, o médico, o político, entre outros. Esses tutores procuram manter os homens sob sua orientação, prevenindo-os de que é perigoso caminhar por si mesmos. Por isso, muitos consideram difícil e perigosa a passagem para a maioridade. Para Kant esse perigo não é muito grande, pois após algumas quedas seria possível aprender a andar por conta própria. Mas, para muitos, essa menoridade tornou-se quase que uma natureza e se adquiriu amor por ela, pois nunca os deixaram sair dessa condição. A condição para que um povo se esclareça é a liberdade. Sem ela, apenas poucos conseguem a transformação necessária para sair da menoridade. Para Kant, liberdade significa poder fazer uso público da própria razão em quaisquer questões. Ou seja, poder usar a razão de forma livre e pública entre os homens sobre todos os assuntos. A liberdade ética do sujeito moral não é algo dado, mas deve ser conquistada. Pressupõe sair da condição cômoda, mas nefasta da dependência. Em épocas de crise social, manter a liberdade torna-se uma tarefa mais difícil, pois se esta não está bem embasada os indivíduos passam a desconfiar de si mesmos. Como liberdade pressupõe pensar, escolher, decidir etc., ela é considerada muitas vezes mais como um problema do que uma conquista ou privilégio. E como é mais cômodo ter quem assuma essa tarefa e pense pelos outros, os homens acabam abrindo mão desse privilégio, acabam desejando e aceitando o feitiço de Circe12. Dessa forma, Kant valoriza o aprimoramento da razão como condição que possibilita ao ser humano libertar-se de sua condição de menoridade. É necessário Sapere aude!, ousar pensar, ousar “fazer uso do próprio entendimento”. Nessa tarefa, a educação tem um papel fundamental. *(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Ernst Cassirer: o mito político como técnica de poder no nazismo. PUCSP: Dissertação de mestrado, 2000, capítulo 3) PARA REFLETIR Como a educação pode contribuir para que o ser humano saia da sua condição de menoridade? 12 Na Odisséia de Homero, a feiticeira Circe transformou os companheiros de Ulisses em animais selvagens. 12 HANNAH ARENDT: CRISE NA EDUCAÇÃO * A filósofa Hannah Arendt é autora do texto “A crise na educação”, que vem sendo considerado clássico para reflexão sobre o papel da educação na sociedade, em uma perspectiva filosófica. Apesar de ser um texto que reflete uma problemática que ocorria na década de 1950, nos Estados Unidos da América, ele não permanece circunscrito à sua época, uma vez que discute conceitos intrínsecos à questão educacional de qualquer época. Arendt, Hanna (1906http://www.consciencia.org/imagens/banco/ 1975) Fonte: Pensadora alemã emigrou para os Estados Unidos em 1940, devido ao nazismo, e naturalizou-se norte-americana em 1951. Autora de A condição humana, As origens do totalitarismo, Entre o passado e o futuro, entre outras obras. Arendt esclarece que não é uma educadora profissional, mas que a crise oferece oportunidade para reflexão. A crise obriga a buscar respostas e também retornar as próprias perguntas. O que é desastroso diante de uma crise é buscar responder com respostas prontas, com preconceitos, não desenvolvendo reflexão. A filósofa então propõe-se refletir sobre “[...] o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação [...]” (2003, p.234), ou seja, sobre qual o verdadeiro papel da educação em relação à civilização, sobre o fato de nascerem crianças e quais obrigações isso acarreta para as sociedades humanas? Pode-se afirmar que a educação se dirige especialmente à criança, que é seu objeto, e esta se apresenta ao educador numa dupla característica: a) “[...] é nova num mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação [...]” e b) “[...]é um novo ser humano e é um ser humano em formação [...]” (ARENDT, 2003, p. 235). Esse duplo aspecto é característico dos seres humanos e não se aplica a outros seres vivos. Também não é evidente por si só. Envolve um relacionamento também duplo: com o mundo e com a vida. Os pais por meio da concepção geram um novo ser humano e o introduzem num mundo já existente. A criança é nova em relação a esse mundo e está em processo de formação. Os pais, ao conceberem, assumem, ou deveriam assumir, a responsabilidade pela preservação da vida e devir da criança e pela continuidade do mundo. (Cf. 2003, p.235) A criança precisa ser protegida dos elementos destrutivos do mundo e o mundo, por sua vez, precisa ser protegido para não ser derrubado pelas novas gerações. A criança precisa ser preservada do mundo, para crescer e se desenvolver, por isso, seu lugar é no aconchego do lar, no seio da família. Na vida familiar privada, em convivência com os adultos, preservada da vida pública, encontra o lugar seguro para desenvolver-se. Tudo o que vive, e não apenas a vida vegetativa, emerge das trevas, e, por mais forte que seja sua tendência natural a orientar-se para a luz, mesmo assim precisa da segurança da escuridão para poder crescer. (ARENDT, 2003, p.236) Para Arendt, o problema da educação moderna é que ela buscou servir à criança, estabelecendo um mundo de crianças, mas errou ao minar justamente aquilo que era condição de possibilidade para o desenvolvimento delas. “... a educação moderna, na medida em que procura estabelecer um mundo de crianças, destrói as condições necessárias ao desenvolvimento e crescimento vitais.” (2003, p.236) A autora questiona: como isso pode acontecer? Se a educação passada foi criticada por ver a criança como um adulto em miniatura, como pode a educação moderna expor as crianças ao aspecto público do mundo, que é o que mais caracteriza o mundo adulto? Essas condições básicas para o crescimento vital foram violadas, mas não intencionalmente, já que o objetivo era o bem-estar da criança, apesar de os resultados não terem sido os esperados. Dessa forma, Arendt questiona: qual o papel da escola e qual sua relação com a família e com o mundo? A escola é uma espécie de espaço intermediário entre o espaço do lar e o espaço do mundo. Nas suas palavras: [...] a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. (2003, p.238) Uma vez que as crianças chegam à escola, os professores devem assumir a responsabilidade por elas. Não tanto a responsabilidade pelo crescimento vital, mas sim pelo desenvolvimento da sua singularidade. O educador diante da criança e do jovem deve assumir a responsabilidade de representante do mundo, deve possibilitar o acesso ao que o mundo é. Segundo Arendt, essa responsabilidade é fundamental e está implícita na tarefa educativa. “Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade pelo coletivo, pelo mundo, não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação” (2003, p.239). *(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e educação na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap. 4) 13 HANNAH ARENDT: AUTORIDADE E EDUCAÇÃO * Hannah Arendt, no seu texto “A crise na educação”, esclarece que autoridade e qualificação do educador não são a mesma coisa, não são sinônimas: Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém, sua autoridade se assenta na responsabilidade que assume por este mundo. (2003, p.239) Assim, a qualificação, entendida como conhecimento do mundo e competência em relação aos conteúdos ministrados, não conduz automaticamente a autoridade, uma vez que esta só se configura à medida que o professor assume responsabilidade, ou seja, que responde por seus atos em relação ao papel que assume enquanto representante do mundo. “A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças” (2003, p.240). Para Arendt, autoridade não deve ser confundida com o autoritarismo dos países totalitários. A autoridade legítima implica assumir responsabilidade pelo devir das coisas, o que não vem ocorrendo na vida pública e política. Para Arendt, é necessário um caráter conservador para a educação, mas não para a política. Na política, pressupõe-se, por um lado, uma igualdade entre pessoas que já foram educadas e, por outro lado, que a conservação levaria à estagnação e destruição de algo que deve permanecer em devir. Em relação à educação, Arendt entende que a conservação é inerente à atividade educacional uma vez que sua “[...] tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa – a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo” (2003, p.242). E por que a educação deve ser conservadora? Arendt explica o caráter dialético de tal situação: Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição. (2003, p.243) A dificuldade da educação moderna encontra-se na dificuldade de preservar um mínimo de conservação necessária para a existência da própria educação. Segundo Arendt há uma íntima conexão entre a crise da tradição e a crise da autoridade na educação. O professor é um ser que representa o passado, que faz a ligação entre o passado e o presente, entre o velho e o novo, e isso não é tarefa fácil. Tal situação não se colocava para os antigos, que tinham o passado como modelo de excelência, no qual a autoridade do professor encontrava apoio. O problema da educação moderna é uma crise em relação à autoridade e à tradição, mas a situação agora é outra e não adianta querer retomar o passado. Nas palavras de Arendt: O problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição. (2003, p.246) Assim, Arendt propõe que não só educadores e professores, mas adultos de um modo geral, devam ter uma relação apropriada com crianças e jovens, relação esta que faça uso da autoridade e da tradição específica para eles. Nas suas palavras: [...] devemos ter em relação a eles uma atitude radicalmente diversa da que guardamos um para com o outro. Cumpre divorciarmos decisivamente o âmbito da educação dos demais, e acima de tudo do âmbito da vida pública e política, para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados mas não possuem validade geral, não devendo reclamar uma aplicação generalizada no mundo dos adultos. (2003, p.246) Para ela, a conseqüência prática dessa atitude “[...] seria uma compreensão bem clara de que a função da escola é ensinar as crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver” (2003, p.246). Também não se deve tratar as crianças como se fossem maduras, mas isso não significa separá-las totalmente do mundo adulto, como se a infância tivesse uma autonomia em relação a ele. Segundo Arendt, a relação entre adultos e crianças em geral não deve ser um problema exclusivo da pedagogia. Cabe a todos nós essa questão, já que habitamos um mundo comum que é renovado pelo nascimento. A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, o ponto em que decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las do nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 2003, p.247) *(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e educação na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap. 4) Bibliografia ABBAGNANO, N. & VISALBERGHI, A. Historia de la pedagogia. México-Buenos Aires: Fondo de cultura económica, 1999. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença, [s.d]. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS, Maria Helena P. Martins. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2003. ARANHA, M. L. de Arruda. Filosofia da Educação. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2006 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. BECKER, Fernando. Educação e construção do conhecimento. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 15 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1997. CASSIRER, Ernst. 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