HANNAH ARENDT: AUTORIDADE E EDUCAÇÃO * Hannah Arendt, no seu texto “A crise na educação”, esclarece que autoridade e qualificação do educador não são a mesma coisa, não são sinônimas: Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém, sua autoridade se assenta na responsabilidade que assume por este mundo. (2003, p.239) Assim, a qualificação, entendida como conhecimento do mundo e competência em relação aos conteúdos ministrados, não conduz automaticamente a autoridade, uma vez que esta só se configura à medida que o professor assume responsabilidade, ou seja, que responde por seus atos em relação ao papel que assume enquanto representante do mundo. “A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças” (2003, p.240). Para Arendt, autoridade não deve ser confundida com o autoritarismo dos países totalitários. A autoridade legítima implica assumir responsabilidade pelo devir das coisas, o que não vem ocorrendo na vida pública e política. Para Arendt, é necessário um caráter conservador para a educação, mas não para a política. Na política, pressupõe-se, por um lado, uma igualdade entre pessoas que já foram educadas e, por outro lado, que a conservação levaria à estagnação e destruição de algo que deve permanecer em devir. Em relação à educação, Arendt entende que a conservação é inerente à atividade educacional uma vez que sua “[...] tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa – a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo” (2003, p.242). E por que a educação deve ser conservadora? Arendt explica o caráter dialético de tal situação: Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição. (2003, p.243) A dificuldade da educação moderna encontra-se na dificuldade de preservar um mínimo de conservação necessária para a existência da própria educação. Segundo Arendt há uma íntima conexão entre a crise da tradição e a crise da autoridade na educação. O professor é um ser que representa o passado, que faz a ligação entre o passado e o presente, entre o velho e o novo, e isso não é tarefa fácil. Tal situação não se colocava para os antigos, que tinham o passado como modelo de excelência, no qual a autoridade do professor encontrava apoio. O problema da educação moderna é uma crise em relação à autoridade e à tradição, mas a situação agora é outra e não adianta querer retomar o passado. Nas palavras de Arendt: O problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição. (2003, p.246) Assim, Arendt propõe que não só educadores e professores, mas adultos de um modo geral, devam ter uma relação apropriada com crianças e jovens, relação esta que faça uso da autoridade e da tradição específica para eles. Nas suas palavras: [...] devemos ter em relação a eles uma atitude radicalmente diversa da que guardamos um para com o outro. Cumpre divorciarmos decisivamente o âmbito da educação dos demais, e acima de tudo do âmbito da vida pública e política, para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados mas não possuem validade geral, não devendo reclamar uma aplicação generalizada no mundo dos adultos. (2003, p.246) Para ela, a conseqüência prática dessa atitude “[...] seria uma compreensão bem clara de que a função da escola é ensinar as crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver” (2003, p.246). Também não se deve tratar as crianças como se fossem maduras, mas isso não significa separá-las totalmente do mundo adulto, como se a infância tivesse uma autonomia em relação a ele. Segundo Arendt, a relação entre adultos e crianças em geral não deve ser um problema exclusivo da pedagogia. Cabe a todos nós essa questão, já que habitamos um mundo comum que é renovado pelo nascimento. A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, o ponto em que decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las do nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 2003, p.247) *(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e educação na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap. 4) Bibliografia ABBAGNANO, N. & VISALBERGHI, A. Historia de la pedagogia. México-Buenos Aires: Fondo de cultura económica, 1999. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença, [s.d]. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS, Maria Helena P. Martins. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2003. ARANHA, M. L. de Arruda. Filosofia da Educação. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2006 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. BECKER, Fernando. Educação e construção do conhecimento. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 15 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1997. CASSIRER, Ernst. 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