A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA CORRUPÇÃO

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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA CORRUPÇÃO
ARI MARTINS ALVES FILHO 1
_________________________RESUMO___________________________
Em uma perspectiva micro é possível compreender a formação
de fenômenos de corrupção a partir da prática cotidiana do cidadão comum.
Exemplo disso é a corrupta prática social reiterada do “Você sabe com quem
está falando?”. Tal prática pode ser entendida como um mecanismo de
solução de conflitos em um contexto de forte desigualdade social.
A partir de sua tendência ao hábito, o ser humano é capaz de
criar instituições que visam sol ucionar problemas em um cenário de
repetição. Assim, em determinados arranjos sociais, podem surgir práticas
corruptas visando superar certas ordens de tensão .
Palavras-chave: hábito, instituições e corrupção.
_________________________SUMÁRIO___________________________
1. Considerações Preliminares. 2. A institucionalização do hábito, por Peter
Berger. 3. “Você sabe com quem está falando?”, por Roberto Damatta. 4.
Considerações Finais. 5. Bibliografia.
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1. Considerações Preliminares
As análises e discussões sobre o fenômeno da corrupção são
bastante antigas, seja no cenário nacional ou no internacional. Contudo, a
partir de meados do ano de 2 005 elas foram revigoradas no Brasil com o
chamado “escândalo do mensalão”.
1
Ari Martins Alves Filho é Mestrando em Sociologia pela UFG – Universidade Federal de
Goiás e Pesquisador Legislativo da Assembléia Legislativa de Goiás .
Nas digressões sobre o tema é comum sua análise do ponto de
vista macro, quase sempre as sociado ao universo da política, distanciado da
prática cotidiana do cidadão comum. Em tal contexto, esquece-se de buscar
algumas das causas sociais de tal “desvio”, e deixa -se de pensar sobre em
que medida a micro corrupção contribui para a construção da macro
corrupção.
Frente
ao
exposto,
pretende -se
neste
texto
analisar
a
construção social da corrupção em uma perspectiva micro . Assim, a
proposta consistirá em investigar de que maneira pequenas atitudes
cotidianas de corrupção têm potencial para reverberarem no universo
macro da corrupção.
Para a realização do intento apresentado serão tomadas de
empréstimo algumas formulações teóricas de dois autores: Peter Be rger,
com sua teoria da institucionalização ; e Roberto Damatta, com suas
reflexões acerca da prática do “Você sabe com que m está falando?”.
2. A institucionalização do hábito, por Peter Berger
Peter Berger, em sua obra A Construção Social da Realidade,
desenvolve profícua tese sobre a institucionalização. De acordo com o
autor, o ser humano, por uma questão de economia psíquica, ten de ao
hábito.
A ilustração do entendimento acima faz-se por diversas formas.
Realmente, há uma tendência em liberarmos nossas atividades cognitivas
superiores para tarefas mais importantes e de maiores complexidades. Às
demais criamos padrões de repetição, a fim de pouparmos atividade
cerebral, com vistas à liberação de energia psíquica para aquelas funções
mais relevantes. Assim é que tendemos, a título de ilustração, por exemplo,
a colocarmos calças em um mesmo lugar do guarda roupa, para que no dia
seguinte não tenhamos que gastar forças mentais pensando em onde elas
estão.
Ocorre que a tendência ao hábito acima descrita materializa-se
em forma de rotina. Portanto, tal tendência é um potencial que pode
transforma-se ou não em ato mediante a rotinização. Até aqui há a
dimensão
predominantemente
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individual
da
experiência
humana.
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A
passagem da dimensão individual para a dimensão coletiva, neste contexto,
dá-se pelo fenômeno da institucionalização. Assim, a sugestão é que as
rotinas humanas têm potencial para transformarem -se em instituições.
Didaticamente, o modelo de Peter Berger pode ser pensa do da forma
abaixo:
HÁBITO
ROTINA
INSTITUIÇÃO
A passagem da dimensão individual da experiência humana
(hábito e rotina) para a dimensão coletiva (instituição), na proposta teórica
aqui em análise, ocorre por um processo de exteriorização, objetivação e
interiorização da prática cotidiana. Nós exteriorizamos nossas atitudes, elas
se objetivam no mundo da v ida e são por nós interiorizadas . Contudo, a
interiorização de um comportamento , exteriorizado por uma pessoa e por
ela objetivado no mundo da vida , também pode ser interiorizado por outras
pessoas, através do processo de aprendizagem. É neste momento que
nossos hábitos materializados em rotinas podem
transformar-se em
instituições, entendidas enquanto práticas sociais reiteradas. Tal processo,
didaticamente, pode ser representado pelo esquema abaixo:
Exteriorização
Objetivação
Interiorização
A operacionalização do esquema teórico acima pode facilmente
ser percebida com um exemplo. Imagine a produçã o de um texto, como
este aqui em desenvolvimento. O agente de tal ação experimenta os três
momentos antes indicados. Há a exteriorização de seu pensamento, este
objetiva-se no texto produzido e, articuladamente, é interiorizado pelo
agente. Tal como antes apontado , a interiorização da exterioridade
objetivada pelo produtor de um determinado texto também pode ocorrer
por outras pessoas. Afinal de contas, você também não está lendo este
texto?
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O exemplo antes construído é didático. A dificuldade reside em
enxergar a aplicação do esquema teórico a atitudes que não deixam
vestígios materiais como a produção de um texto. Estas atitudes, apesar de
sua abstração, objetivam -se naquilo que se denomina em Sociologia por
consciência coletiva. De tal maneira, na perspectiva aqui a dotada, a
consciência coletiva pode ser entendida como o “local de residência” da
objetivação das atitudes exteriorizadas e que serão interiorizadas .
Portanto, frente ao exposto, este modelo permite-nos pensar a
construção de práticas sociais reiteradas a partir da experiência individual
cotidiana. Tal formulação, na proposta teórica deste texto, é uma das bases
para a leitura sobre o fenômeno da corrupção. Isto posto , passemos à
análise de uma importante contribuição analítica de Roberto Damatta.
3. “Você sabe com quem está falando?”, por Roberto Damatta
Roberto
Damatta
notabilizou-se
por
problematizar
teoricamente, como um traço a utoritário da cultura nacional , a conhecida
expressão no Brasil do “Você sabe com quem está falando?”.
Segundo o autor, a citada expressão é característica de
sociedades marcadas predominantemente por uma é tica de tipo vertical,
característica de arranjos sociais fortemente hierarquizad os. Outro traço
dessas sociedades reside na pessoalização das relações humanas. Em
sentido oposto, existem sociedades caracterizadas por uma ética de tipo
horizontal, fundadas na impessoalização das relações sociais com base nas
leis do Estado e da economia.
Em sociedades de ética vertical, como a brasileira, é comum a
utilização de expressões do tipo “Você sabe com quem está falando?” como
um mecanismo de superação da igualdade formal, a fim de se obter
facilidades privilegiadas em esferas públicas ou privadas.
Por
um
lado,
tal
mecanismo
busca
desigualar
o
que
formalmente é igual. Em palav ras outras, o “Você sabe com quem está
falando?” funciona como uma forma de burla e superação de tensões.
Por outro lado, em sociedade s bastante marcadas por uma
ética de tipo horizontal não seria comum a utilização de expressões como a
aqui em destaque. Contudo, haveria uma outra capaz de traduzir um pouco
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da sociabilidade em tais contextos. Seria a expressão “Quem você pensa
que é para falar assim?”. As duas expressões, em uma leitura mais
imediata, podem parecer ter um mesmo significado. Mas não é o caso.
O “Quem você pensa que é para falar assim?” reivindica a
igualdade, sob o império da impessoalidade. O próprio verbo “pensar” na
frase, propositalmente destacado, dá conta do mundo de fantasia no qual
está imerso o interlocutor. Já o “Você sabe com quem está falando?”
reivindica a desigualdade, sob o império da pessoalidade. Neste contexto, o
interlocutor tem certeza de que é superior.
Tal como realizado na seção anter ior, vamos operacionalizar
estes conceitos. Imagine a seguinte situação: deter minada autoridade foi
abordada no trânsito por um policial , que se comportou de maneira
inóspita. No Brasil, em tal situação, o que costumamos ouvir? O “Você sabe
com que está falando?” apresenta -se como resposta-pergunta. Pense agora
esta mesma situação e m uma sociedade de ética horizontal . A atitude não
seria buscar a desigualdade das relações, mas a igualdade, devolvendo o
inóspito policial à condição de cidadão, que a todos nivela. Neste contexto,
ouviríamos a expressão “Quem você pensa que é para falar assim?” não
como um mecanismo de burla, mas como uma forma de restabelecer a
igualdade na relação e a ela dar continuidade a partir daí. Di daticamente,
tal modelo também pode ser representado de forma esquemática como
segue abaixo:
Ética Vertical
X
Ética Horizontal
“Você sabe com
“Quem você pensa
quem está
que é para falar
falando?”
assim?”
Desigualdade
Igualdade
Império da
Império da
pessoalidade
impessoalidade
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Esta proposta teórica, com algum acerto, pode ser articulada à
discussão envolvendo o Estado de Direito. O que se tem em sociedades
como a brasileira é uma larga distância entre o Estado de Direito formal e o
real. Em tal cenário, nascem práti cas sociais reiteradas, ou seja, instituiç ões
que visam burlar a igualdade jurídica garantida por um Estado de Direito
formal, em um contexto de larga desigualdade fática.
No outro pólo, em
sociedades de ética horizontal, a maior correspondência entre o E stado de
Direito formal e o real garante que todo aquele que disto queira desviar -se
seja lembrado de que todos são iguais.
Por todo o exposto, para guardar correspondência com o que
foi até aqui desenvolvido , duas questões precisam ser enfrentadas . A
primeira gira em torno de qual é a “natureza” do “Você sabe com quem está
falando?”. A resposta apresenta -se, preliminarmente, de imediato: é uma
prática social reiterada, portanto, é uma instituição , nos termos do que foi
tratado na seção anterior. A segund a questão é desdobramento da primeira,
porque está relacionada ao tipo de instituição que representa o “Você sabe
com quem está falando?”. A resposta também apresenta-se sem grandes
complicações, conforme veremos adiante.
Frente a uma sociedade marcadam ente desigual é comum que
as pessoas busquem criar mecanismos para superar ou mesmo reiterar tal
condição. Assim, como tendemos ao hábito, tal como desenvolvido
anteriormente,
estabelecemos
padrões
de
comportamento
que
se
institucionalizam e apresentam-se como mecanismos de resolução, mesmo
que momentânea, das dificuldades que uma sociedade desigual produz. Isto
pode ser percebido na constatação de que não são apenas as autoridades
que se valem deste mecanismo. É comum encontrarmos pessoas de todas
as classes e estratificação social utilizando -se dele; ou você nunca ouviu
assertivas do tipo: “você sabe com quem está falando?”, eu trabalho para o
senhor X.
Portanto, uma das teses aqui defendidas toma o “Você sabe
com quem está falando?” como uma instituiç ão, que pode ter sua formação
pensada, sem exclusão de outras possibilidades analíticas, a parti r dos
estudos
de
Roberto
Damatta
em
consórcio
com
a
teoria
institucionalização de Peter Berger.
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da
Por fim, quanto ao tipo de instituição que representa o “V ocê
sabe com quem está falando?” outra tese se estabelece. Na medida em que
a corrupção caracteriza -se como formas variadas de deturpação, a citada
prática é uma instituição com traços de corrupção, já que se configura como
um mecanismo de burla, enfim, de deturpação das relações sociais.
4. Considerações finais
Buscou-se,
ao
longo
deste
breve
texto,
analisar
como
determinadas práticas sociais, difundidas pelo corpo social, podem ser
pensadas enquanto atitudes corruptas. Foi dado destaque à prática soc ial
específica do “Você sabe com quem está falando?”. Contudo, muitas outras
podem ser pensadas à luz do mesmo esquema te órico desenvolvido: o furar
filas de bancos, as práticas de “economia fiscal” e várias outras.
Muito distante de apenas analisar o fe nômeno da corrupção no
universo da política, a tentativa foi de compreender como ela pode nascer
na prática cotidiana do cidadão comum. Para tanto, recorremos a dois
modelos teóricos, que, como toda teoria, tem a capacidade de lançar luzes
sobre fatos que parecem óbvios sem que em verdade o sejam.
A proposta analítica aqui desenvolvida permite-nos pensar a
formação da corrupção no sentido que vai da sociedade ao universo político.
Em palavras outras, atribui a todos a responsabilidade na construção das
instituições de um país , sejam as corruptas ou não . Conduto, o leitor menos
familiarizado com textos deste tipo talvez possa estar sentido falta de uma
explicitação maior de como a prática cotidiana da corrupção (micro) pode se
refletir no universo amplo, p or exemplo, da corrupção política (macro). De
fato, esta ligação não se mostra de maneira imediata ao longo texto. Mas
mediatamente ela está presente, basta o leitor dialogar com texto e sobre
ele refletir.
A corrupção, como visto, tem raízes também soci ais. Combatêla passa, sem excluir diferentes prescrições , por formarmos outras práticas
sociais reiteradas, ou seja, outras instituiç ões, no sentido dado ao termo
neste texto. Para isso, torna-se necessário conhecermos aquelas sobre as
quais hoje pautamos nossa conduta ao buscarmos economizar forças
mentais em um contexto de grande tensão , dada pelas profundas
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desigualdades em que vivemos no País. Podemos fazer isso criando
mecanismos de burla, como é o caso da instituição corrupta do “Você sabe
com quem está falando?”, com o propósito de resolvermos pontualmente e
imediatamente algumas das tensões que a nós apresentam -se ou,
alternativamente, podemos tentar construir práticas sociais reiteradas mais
compatíveis com a civilidade moderna.
Para a consecução da segunda possibilidade descrita no
parágrafo anterior, associada à inegável necessidade de maior distribuição
de renda no Brasil, parece fundamental o reforço da educação formal e real
de qualidade. Operar pelas categorias da civilidade moderna exige o
conhecimento elaborado das letras, das artes, do direito e de tantas outras
áreas do conhecimento, sob pena de continuarmos
pautando nossas
condutas por atitudes bastante incompatíveis com os tempos presentes.
5. Bibliografia
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1981.
BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade.
22ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
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