J Bras Nefrol 2003;25(2):95-103 95 Revisão: Glomerulopatia aguda do transplante renal Acute allograft glomerulopathy Angelo Sementillia,b, Patrícia Bastianic e Marcello Francoc a Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES). Santos, SP SP,, Brasil. bFaculdade de Ciências Médicas de Santos c atologia da Universidade FFederal ederal de São PPaulo aulo (Unifesp/EPM). São (UNIL US). Santos, SP (UNILUS). SP,, Brasil. Departamento de PPatologia Paulo, SP SP,, Brasil Glomerulopatia aguda. Transplante renal. Rejeição aguda. Acute glomerulopathy. Kidney transplant. Acute rejection. Resumo A glomerulopatia aguda do transplante (GATR) refere-se à inflamação do glomérulo nos três primeiros meses pós-transplante, em decorrência de reações imunológicas. É caracterizada por hipercelularidade glomerular, às custas de células linfomononucleares, e entumecimento e proliferação de células endoteliais e mesangiais. Os vários estudos relatam ocorrência da glomerulite entre 4,3% a 14% dos enxertos renais. Na presente revisão, as investigações sobre a patogenia, imunofenotipagem das células infiltrantes, eventual associação com citomegalovírus (CMV) ou com episódios de rejeição aguda, e o impacto na sobrevida do enxerto são criticamente revistas. A GATR é entendida com um componente da rejeição aguda, mediada por linfócitos T, particularmente citotóxicos. A imunofenotipagem das células infiltrantes revela exsudato rico em linfócitos T, monócitos, células NK e raros linfócitos B. A associação de GATR com CMV é assunto ainda controverso, apesar da maioria dos trabalhos recentes não suportar esta correlação. É freqüente a ocorrência simultânea de GATR com rejeição aguda vascular. Porém, há casos de GATR isolada, sugerindo que a glomerulite tem mecanismo patogenético provavelmente distinto de rejeição. A GATR, na maioria dos estudos, mostrou ter impacto negativo na sobrevida do enxerto. Não está ainda totalmente esclarecido até onde esses resultados se devem à GATR per se e qual sua associação com o processo de rejeição. Estudos adicionais são ainda necessários para melhor conhecer os mecanismos patogenéticos da GATR, sua relação com rejeição e com a sobrevida do enxerto. Abstract Acute allograft glomerulopathy (AAG) refers to a glomerular inflammation within the three first months post-transplantation, which seems to be a result of immune rejection. It is characterized by glomerular hypercellularity due to the influx of lymphomononuclear cells, and the proliferation and swelling of endothelial and mesangial cells. The reported incidence Trabalho realizado no Departamento de Patologia da Universidade Federal de São Paulo/ Escola Paulista de Medicina (Unifesp). Patrícia Bastiani é bolsista de Iniciação Científica (PIBIC) do CNPq. 96 J Bras Nefrol 2003;25(2):95-103 GATR - Sementilli et al of AAG is between 4.3% and 14% of all renal allografts. Research on pathogenesis, immunophenotyping of infiltrating cells, eventual association with cytomegalovirus (CMV) or acute rejection episodes, and the impact on the graft survival are reviewed. AAG is understood as a component of the acute rejection mediated by T- lymphocytes, particularly of cytotoxic subset. Immunophenotyping of the infiltrating cells reveals an exudate rich in T-lymphocytes, monocytes, NK cells, and rare B-lymphocytes. The association between AAG and CMV is still a controversial subject; however most of the recent investigations do not support this correlation. On the other hand, the simultaneous occurrence of AAG and vascular acute rejection is very common. Most of the studies have shown negative impact of the presence of AAG on the graft survival. It is not yet clear whether these results are related to AAG per se or are due to the rejection process. Further studies are still needed to better clarify AAG pathogenesis mechanisms , and its correlation with rejection and graft survival. I n t r o d u ç ã o São várias as lesões glomerulares que podem ocorrer no transplante renal. Entre elas estão as glomerulonefrites recorrente, de novo e transmitida, a microangiopatia trombótica em rejeição hiperaguda, aguda ou devido à toxicidade dos inibidores de calcineurina, e as lesões glomerulares intrínsecas do transplante que podem se manifestar em curto período pós-transplante (glomerulopatia aguda), ou tardiamente como manifestação de rejeição crônica (glomerulopatia crônica do transplante). As alterações glomerulares agudas associadas ao transplante renal têm sido muito estudadas, e vários termos têm sido utilizados por diferentes autores: glomerulonefrite da rejeição,1 rejeição glomerular do transplante,2,3 glomerulopatia do transplante,4,5 glomerulopatia aguda do enxerto,6,7 glomerulopatia endocapilar,8 glomerulite aguda do transplante9 e glomerulopatia aguda do transplante.10 No nosso estudo, utilizaremos o termo Glomerulopatia Aguda do Transplante Renal. A Glomerulopatia Aguda do Transplante Renal (GATR) é parte da resposta imune do receptor ao enxerto e é caracterizada pelo aumento no número de células, especialmente mononucleares, na luz de capilares glomerulares, e entumecimento de células endoteliais. Essas alterações são vistas dentro dos três primeiros meses pós-transplante,2 com freqüência entre 4% a 14%. As alterações glomerulares agudas próprias do en- xerto renal foram inicialmente caracterizadas por proliferação de células endocapilares com depósitos hialinos subendoteliais e intercelulares. As células foram descritas como mononucleares, semelhantes àquelas presentes nos capilares intertubulares e no interstício na rejeição celular aguda.1 Na avaliação de biópsias de enxertos renais ao microscópio óptico, observou-se, com freqüência, espessamento da membrana basal do capilar glomerular. À microscopia eletrônica (ME), o espessamento da membrana basal era focal e acompanhado de fusão dos processos podais epiteliais.11 Ao contrário do observado em estudos mais recentes, as biópsias apresentaram depósitos mesangiais geralmente positivos para IgM e C3.9,12 No entanto, a maioria dessas biópsias foi feita mais de um ano pós-transplante. Outros autores também observaram depósitos semelhantes, mas os estudos referiam-se não só às lesões glomerulares agudas, como também à glomerulopatia de manifestação mais tardia. Relataram ainda, como glomerulopatia tardia do alo-enxerto, lesão glomerular caracterizada por reduplicação da membrana basal glomerular, com expansão do espaço sub-endotelial, interposição da matriz mesangial, sem depósitos significantes na imunofluorescência.4,13 Um dos estudos demonstrou que o mecanismo imunológico da GATR não envolveu deposição de imunocomplexos. A lesão glomerular era distinta da clássica glomerulonefrite endocapilar dos rins nativos. Os glomérulos eram hipercelulares, com obliteração de GATR - Sementilli et al alças capilares. Não foram encontrados, na glomerulite, depósitos imunes ou aumento de polimorfonucleares neutrófilos. A ME da forma grave de glomerulopatia aguda (G3) revelou a presença de linfócitos e macrófagos, ausência de depósitos imunes e simplificação dos prolongamentos dos podócitos. Depósitos do tipo não imune foram vistos com freqüência, tanto nos grupos com e sem glomerulite.9 Foi sugerido que a infecção por citomegalovírus (CMV), no transplante renal, poderia causar lesão glomerular aguda difusa caracterizada por aumento ou necrose de células endoteliais e acúmulo de células mononucleares e material fibrilar em capilares glomerulares.14 No entanto, esses achados não foram confirmados por outros autores.2-4,7,8,10,15-17 No critério Banff 97, para quantificar glomerulite, é utilizado: G0 nos casos sem glomerulite, G1 quando a glomerulite acomete <25% dos glomérulos, G2 na glomerulite segmentar ou global em 25% a 75% dos glomérulos e G3 quando a glomerulite envolve >75% dos glomérulos. Na classificação para rejeição aguda, inflamação túbulo-intersticial discreta é graduada como borderline, suspeita de rejeição. O Tipo I refere-se à rejeição túbulo-intersticial sem arterite, o Tipo II à rejeição vascular com arterite intimal e o Tipo III à rejeição grave com dano arterial transmural.18 A relação entre o padrão borderline de inflamação e rejeição aguda não está clara. Na rejeição aguda, são vistos leucócitos mononucleares no interstício cortical, nos túbulos (tubulite) e abaixo do endotélio (arterite intimal/intimite).18 A intimite é patognomônica de rejeição aguda, mas é alteração focal sujeita a erro de amostragem, e foi observada por Colvin et al,19 somente em 27% das biópsias com rejeição aguda. O infiltrado borderline não tratado, após cerca de 40 dias, evolui sem rejeição ou com rejeição aguda em 72% e 18% dos casos, respectivamente. Os pacientes com aumento da creatinina ou sua persistência em grau elevado evoluem para rejeição aguda em 51% dos casos. A presença de glomerulite nos casos borderline para rejeição que evoluíram para rejeição aguda foi mais freqüente do que nos casos que não evoluíram (39% versus 0,6%).20 Várias investigações indicam forte associação de GATR com rejeição aguda vascular (RAV).2,5,6,8,9 A relação exata entre elas ainda permanece em aberto. Apesar da freqüente simultaneidade dos dois processos, a ocorrência de GATR na ausência de qualquer tipo de rejeição não é rara, sugerindo que, provavelmente, a glomerulite tem mecanismo patogenético distinto da J Bras Nefrol 2003;25(2):95-103 97 RAV. A presença de glomerulopatia aguda está relacionada à baixa sobrevida do enxerto em muitos estudos.2,4,6,10 Outros autores sugeriram ainda, que a perda do enxerto, nesses casos, estaria relacionada ao desenvolvimento de rejeição crônica vascular.21 Por outro lado, observaram que glomerulopatia aguda moderada, ou mesmo grave, é compatível com o funcionamento estável do enxerto após um e dois anos de evolução.8 Proteinúria e aumento da creatinina sérica são parâmetros clínicos associados a GATR. A GATR deve ser diferenciada da glomerulopatia crônica do transplante. Essa lesão é detectada, em geral, após os três primeiros meses do transplante e é caracterizada por espessamento e reduplicação da membrana basal do capilar glomerular com expansão do espaço subendotelial, interposição da matriz mesangial, acompanhado de fusão dos processos podais epiteliais, detectados na microscopia eletrônica (ME).11 As biópsias apresentam depósitos mesangiais geralmente positivos para IgM e C3.9,12,13 Esses e outros aspectos da GATR serão analisados a seguir. Morfologia e patogenia A alteração morfológica de GATR mais precocemente detectada é o entumecimento das células endoteliais e mesangiais. Essa fase foi denominada como estágio de desenvolvimento. O estágio avançado corresponde à forma crônica da doença e o estágio intermediário, à transição entre as duas formas. Apesar de ter sido detectada hipercelularidade mesangial leve e focal, os tipos celulares envolvidos não foram inicialmente descritos.4 Os autores, posteriormente, tentaram demonstrar a progressão da GATR para o que se denominou de forma clássica de glomerulopatia do enxerto, correspondente à forma crônica da doença; essa progressão, porém, não foi observada em todos os casos. Documentou-se, entretanto, a transição entre as duas formas de lesão glomerular em 34% dos casos e, em menor porcentagem, observou-se um estágio intermediário.21 O estudo ultra-estrutural revelou que a anormalidade mais proeminente e consistente é o estreitamento ou oclusão de capilares glomerulares por células mononucleares, possivelmente monócitos e linfócitos, com distensão e perda de fenestrações dos capilares envolvidos. Na maioria dos glomérulos, a área mesangial mostra-se aumentada, às vezes entremeada por 98 GATR - Sementilli et al J Bras Nefrol 2003;25(2):95-103 monócitos, com ocasional reduplicação da MBG.2 Anticorpos monoclonais têm sido utilizados na identificação das células mononucleares intraglomerulares presentes nos casos de GATR. Observou-se no grupo com glomerulopatia, aumento de linfócitos T, incluindo as subpopulações CD4+ e CD8+, assim como monócitos, em comparação com o grupo controle. A proporção de linfócitos T CD8+ para linfócitos T CD4+ foi de 3,2:1. Pouca ou nenhuma célula B foi encontrada.3 Esses achados foram confirmados destacando-se também a presença de células NK e macrófagos nos casos de GATR. Além disso, células mononucleares intraglomerulares mostraram expressão para receptor de IL-2 (IL-2R).6 Os principais achados dessas alterações estão resumidos na Tabela 1. A GATR tem sido, então, entendida como um componente da rejeição do transplante mediada por células T, onde a maioria das células intra-glomerulares pertence à subpopulação citotóxica CD8+.6 As moléculas de adesão do sistema imunológico são receptores de superfície celular que têm participação importante nos mecanismos de interação celular em transplante de órgãos. A regulação de sua expressão e de sua capacidade de adesão é mediada por citocinas, fatores quimiotáticos e outros mediadores.22 O influxo inicial de monócitos, logo transformados em macrófagos, do receptor ao enxerto, que ocorre secundário à isquemia e reperfusão, provavelmente tem efeitos importantes na função inicial ou mesmo tardia do enxerto. Os aloantígenos do doador, via o complexo molecular HLA de classe II, induzem a resposta imune. Os macrófagos secretam citocinas, como IL-1 e TNF-α, que atraem e ativam células T, permitindo a infiltração destas no enxerto.23 A migração transendotelial das células inflamatórias ocorre pela expressão de moléculas de adesão no endotélio, como molécula-1 de adesão intercelular (ICAM-1), molécula-1 de adesão de célula vascular (VCAM-1), molécula-1 de adesão de lecitina (ELAM-1) e selectinas, na presença dos receptores. A transcrição ativando a codificação gênica das moléculas de adesão é regulada por fatores como o NFkB, complexo protéico ligado ao DNA.24,25 As quimiocinas constituem-se em outro importante grupo de citocinas envolvidas com quimiocinese e quimiotaxia. Elas são agrupadas em duas subfamílias, CXC e CC. As quimiocinas CXC atuam, por exemplo, sobre os neutrófilos (IL-8) e sobre o endotélio facilitando a adesão leucocitária (CX3C). As quimiocinas CC são quimioatraentes de monócitos (MCP-1), podendo também atuar sobre eosinófilos, basófilos e linfócitos T.26 Moléculas de adesão e citocinas As moléculas de adesão têm papel importante nos mecanismos de migração leucocitária e de ativação das células T na rejeição ao enxerto. O endotélio íntegro ou sob agressão isquêmica expressa moléculas MHC de classe I. No entanto, esta ligação ativa as células T apenas quando estão envolvidas as moléculas co-estimulatórias, citocinas e moléculas de adesão. Durante a interação entre os linfócitos T auxiliares e as células apresentadoras de antígenos, são gerados sinais coestimulatórios que regulam a atividade dos linfócitos. Tabela 1 Glomerulopatia aguda do transplante renal: achados de microscopia óptica (MO), imuno-histoquímica (IH), imunofluorescência (IF) e microscopia eletrônica (ME) Características Autor MO: proliferação endocapilar Hamburger et al,1 1964 entumecimento de células endoteliais e Maryniak et al,4 1985 mesangiais exsudação linfomononuclear alças capilares obliteradas IH: ↑↑ linfócitos T, CD4 e CD8 (CD8/CD4= 3,2/1) Hiki et al,3 1986 ↑↑ monócitos raros linfócitos B células NK Tuazon et al,6 1987 expressão de receptor de IL-2 IF: sem depósitos imunes Habib et al,7 1987 ME: ausência de depósitos eletro-densos Marcussen et al,9 1996 simplificação dos processos podálicos dos podócitos GATR - Sementilli et al Os pares de moléculas regulatórias CD28/B7, CD40/ CD40L, 4-1BB/4-1BBL e ICOS/LICOS são glicoproteínas transmembranáceas que co-estimulam os linfócitos T e B, e macrófagos presentes no foco inflamatório. O par CD28/B7 co-estimula os linfócitos T auxiliares e produz IL-2, que induz sua proliferação e interação com células B e linfócitos T citotóxicos. O processo é inibido pela molécula CTLA-4.27 Nos transplantes, é encontrada maior expressão de moléculas de adesão, como resultado de vários fatores, como citocinas geradas durante a resposta imune e pelos efeitos da isquemia. Assim, teoricamente, seria possível intervir na rejeição, usando bloqueio destas moléculas com anticorpos monoclonais. O papel demonstrado do par de moléculas LFA-1/ICAM-1 na função citotóxica da célula T, foi o racional para a utilização terapêutica de anticorpos monoclonais contra moléculas de adesão em transplante.28,29 O endotélio participa em reações imunes apresentando antígenos a linfócitos e secretando citocinas como IL-1, TNF, prostaglandinas e fatores de ativação plaquetária, com efeitos modulatórios imunes e inflamatórios. VCAM1 e ICAM1 apresentam-se significativamente aumentados em células endoteliais durante episódios de rejeição aguda.30 Estudos adicionais são ainda necessários para se determinar, com maiores detalhes, quais moléculas de adesão e citocinas apresentam-se aumentadas na GATR, coincidente ou não com episódio de rejeição, o que permitirá estabelecer a relação entre os dois processos e conhecer melhor o mecanismo patogênico da GATR. Associação com CMV Alguns autores atribuíram as alterações glomerulares agudas próprias do transplante à infecção por citomegalovírus (CMV). Na viremia da infecção por CMV, pode-se observar lesão glomerular aguda e sua recuperação é favorecida pela diminuição dos imunossupressores.14 No entanto, estudo posterior mostrou que a infecção por CMV não é obrigatoriamente prérequisito para a ocorrência de GATR.3 Mais tarde, foi sugerido que a GATR seria uma forma distinta de rejeição mediada por células T citotóxicas, que teriam o endotélio glomerular como alvo, podendo ou não estar associada com infecção por CMV.6 Outro estudo mostrou não haver relação temporal consistente entre a ocorrência das alterações glomerulares e soro-conversão de CMV.2 Há relato, que a glo- J Bras Nefrol 2003;25(2):95-103 99 merulite é mais freqüente em transplantados soro-negativos, não-convertidos, do que nos soro-convertidos.8 Além dos já mencionados, outros autores, posteriormente, testaram essa hipótese e não detectaram relação direta entre infecção por CMV e GATR.4,7,15-17 Associação com rejeição aguda Estudos prévios mostraram correlação significativa entre a glomerulopatia do transplante em geral e algum tipo de rejeição.2,5,6 Estudos mais recentes, que enfatizaram a forma aguda da glomerulopatia do transplante, mostraram forte correlação entre esse tipo de glomerulite, com rejeição aguda do tipo vascular.6,19,30 O principal alvo de dano na GATR é provavelmente o endotélio glomerular, a julgar pela gravidade da lesão e pelas alterações reativas dessas células. Certamente o endotélio arterial também deve ser alvo importante, já que a GATR está associada com rejeição vascular em 92% dos casos analisados.6 A intimite ou rejeição aguda tipo II de Banff 97 correlaciona-se com maior gravidade clínica quando associada à presença de hemorragia intersticial e glomerulite aguda.19 A arterite é considerada como parâmetro histológico específico da rejeição aguda, enquanto que a glomerulite endocapilar deve ser considerada como de valor preditivo no diagnóstico da rejeição aguda.30 Foi encontrada evidência histológica de algum tipo de rejeição em todos os casos de glomerulopatia do transplante. Observou-se que 58,2% delas estavam associadas à rejeição crônica vascular e 11,9% associadas à rejeição aguda vascular. Entretanto, é importante lembrar que esse estudo levou em consideração tanto a forma aguda como a forma crônica da glomerulopatia e que 47,8% das biópsias foram feitas mais de um ano pós-transplante.5 A glomerulite mostrou-se presente em muitos dos casos de rejeição aguda; mais ainda, quando se apresentava como achado predominante, geralmente antecedia um episódio de rejeição.31 Tem sido descrito que, lesões arteriais características da rejeição aguda vascular, ocorrem simultaneamente com lesões glomerulares, sem que haja, porém, continuidade entre os processos. É salientado, no entanto, a similaridade morfológica entre as células do lúmen dos capilares glomerulares e aquelas do lúmen ou da íntima de artérias com rejeição vascular. Lesões vasculares associadas a glomerulite, especialmente em biópsias com pouco tempo pós-transplante, parecem GATR - Sementilli et al 100 J Bras Nefrol 2003;25(2):95-103 diferir daquelas da rejeição vascular aguda. Entretanto, agrupamentos de células mononucleares similares àquelas dos capilares glomerulares, são vistas no lúmen ou íntima arterial durante a RA. Biópsias subseqüentes mostram, com freqüência, transformação desse tipo de alteração celular para lesões mais graves de rejeição vascular.2 Outro estudo mostrou também a correlação estatisticamente significante entre GATR e rejeição aguda; entretanto em 40% das biópsias com GATR não se observou rejeição associada e, em 53% das biópsias com rejeição, não se detectou GATR.8 Apesar da GATR estar associada a casos de rejeição, a relação exata entre elas ainda permanece não totalmente esclarecida. É possível que a glomerulite aguda tenha desenvolvimento ligado a mecanismo patogênico distinto da rejeição aguda convencional. Fazse, portanto, fundamental, o elucidamento da patogenia da glomerulopatia aguda, para se estabelecer sua correlação não só com os fenômenos de rejeição, como também com a sobrevida do enxerto. Episódios de rejeição aguda, com a presença de anticorpos anti-HLA de classe I do doador, apresentam associação significante entre vasculite grave e glomerulite aguda, incluindo trombos fibrinosos em capilares glomerulares. Casos com anticorpos negativos tendem a apresentar, por outro lado, tubulites mais freqüentemente, com padrão de rejeição túbulo-intersticial.32 Freqüência A ocorrência de glomerulopatia aguda nos rins transplantados é incerta, tendo em vista a dificuldade na diferenciação das formas incipientes, muito próximas do normal, e os estudos que incluem tanto a forma aguda como a forma crônica da doença. Os achados de literatura, com variação de freqüência entre 4,3 a 14,0%, estão resumidos na Tabela 2. Tabela 2 Glomerulopatia aguda do transplante renal: incidência em diferentes casuísticas, como observado nos três primeiros meses de transplante renal % com GATR Autor No casos Axelsen et al,2 1985 576 8,2% Maryniak et al,4 1985 57 4,3% Tuazon et al,6 1987 17 7,3% Habib & Broyer,21 1993 540 7,0% 444 12,0 a 14,0% Olsen et al,8 1995 Marcussen et al,9 1996 não referido 13,5% Desde 1985, há referências do encontro da glomerulite aguda entre 4,3% e 8,2% das biópsias nos primeiros seis meses pós-transplante.2,4 Em série descrita posteriormente, relatou-se a presença de glomerulite aguda em 7,3% das biópsias, correspondendo a 5,2% dos pacientes, até um ano pós-transplante.6 Relatos mais recentes, encontraram 13,5% das biópsias com G2 e G3 nos primeiros três meses pós-transplante.9 Em novo estudo, 7,0% das biópsias foram diagnosticadas como glomerulopatia do enxerto número que incluiu tanto a forma aguda, como a forma crônica da doença, representando 22,6% das lesões glomerulares encontradas nos enxertos.7 Há referência recente que essa afecção esteve presente em 12% a 14% das biópsias protocolares e com suspeita de rejeição nos três primeiros meses pós-transplante, sendo que 72% dos casos ocorreram antes dos 60 dias pós-transplante.8 Prognóstico A GATR, na maioria dos estudos, mostrou ter impacto negativo na sobrevida do enxerto.2,4,17 Não está ainda totalmente esclarecido até onde esses resultados se devem à GATR per se e qual a influência da associação com processos de rejeição. Em uma serie avaliada, somente 18% dos enxertos com glomerulite recuperaram a função renal, contra 85% dos pacientes sem glomerulite.33 Outros investigadores obtiveram sobrevida de um ano em 34% dos transplantados com glomerulite, contra 56% dos casos sem glomerulite.2 Existem relatos da sobrevida do enxerto de seis meses em 14% dos casos com glomerulite, contra 42% dos enxertos sem glomerulite.17 Em outra série com seguimento médio de 13,3 meses, observou-se perda do enxerto em 80% dos casos e maior probabilidade de transição para glomerulopatia crônica do enxerto.4 A presença de monócitos nos glomérulos, uma das principais características da GATR, poderia estar associada a prognóstico significativamente pior do enxerto. Nenhum enxerto que apresentou monócitos intraglomerulares teve melhora na função, sendo que na maioria dos casos houve piora progressiva da função e o transplante foi rejeitado em seis meses.12 Mais ainda, um número aumentado de células T CD8+ intraglomerulares, que também é alteração característica da GATR, está correlacionado com baixa sobrevida do enxerto.6 A forma aguda, tipo I, e a forma crônica, tipo II, da glomerulite associada ao transplante apresentam GATR - Sementilli et al diferenças morfológicas, caracterizadas por reduplicação da membrana basal glomerular e hipercelularidade menor no tipo II do que no tipo I. Em um estudo de 12 casos de GATR, nove evoluíram do tipo I para o tipo II e três resultaram em lesões extensas de necrose e perda do enxerto. Aparentemente, todas as perdas de enxerto (tipos I ou II) estavam relacionadas com rejeição crônica vascular.13 Na avaliação de enxertos com ou sem GATR, o pior prognóstico em seis meses foi detectado em pacientes portadores de glomerulite (42%), quando comparados com os casos sem glomerulite (14%).9 Em casuística recente, o encontro de glomerulopatia aguda nos primeiros três meses pós-transplante correlacionou-se com glomerulosclerose segmentar, recorrência da glomerulonefrite e falência do enxerto em 12 meses.34 Entretanto, outros resultados foram diferentes. A sobrevida do enxerto foi de 66% em um ano pós-transplante em casos de rejeição aguda com glomerulite, cuja presença não parece alterar a sobrevida do rim transplantado. Glomerulite moderada e até mesmo grave mostraram-se compatíveis com funcionamento normal do enxerto.8 Segundo outros observadores, a presença de glomerulite não mostrou correlação com a gravidade clínica ou perda do enxerto, tendo sido concluído que arterite, mas não tubulite ou glomerulite, é fator prognóstico adverso na rejeição aguda, como incorporado na classificação Banff 97.35 Foi demonstrado, que a perda mais comum do enxerto, nos três primeiros meses, ocorre quando a glomerulite está associada à vasculite grave e presença de anticorpos anti-HLA classe I do doador.32 Em modelo experimental de alotransplante em primatas, anticorpos monoclonais anti-ICAM-1, associados a esquema imunossupressor, foram capazes de retardar o aparecimento de GATR e de rejeição aguda, mas não de reverter um episódio já em curso.36 Diagnósticos diferenciais A GATR deve ser diferenciada de outras lesões glomerulares agudas que podem ocorrer no transplante. As lesões decorrentes da perfusão exibem perda do endotélio, com ativação do sistema de coagulação e microangiopatia trombótica. Nas rejeições agudas de caráter humoral, o quadro é semelhante ao da perfusão, porém com exsudato neutrofílico mais evidente. A toxicidade das drogas inibidoras da calcineurina é J Bras Nefrol 2003;25(2):95-103 101 caracterizada por proliferação endotelial, edema e trombose capilar. Na síndrome hemolítica urêmica (SHU), ocorre necrose com infiltração de fibrina na parede arteriolar, podendo também haver microangiopatia. Na verdade, todas as entidades acima referidas são formas de microangiopatia trombótica. A presença de neutrófilos, necrose fibrinóide e trombose capilar permitem o diagnóstico diferencial com GATR.37 C o n c l u s õ e s As alterações morfológicas mais marcantes da GATR, apesar de algumas divergências, são comuns a várias publicações e resumidas na Tabela 1. Mesmo conhecendo-se as células envolvidas no infiltrado glomerular, a participação de citocinas e moléculas de adesão, os aloantígenos do doador, e o papel do patrimônio genético na resposta imune, a patogenia da lesão não está totalmente definida. A associação da GATR com RA vascular parece bem demonstrada, visto que esta relação pode atingir 92% dos casos.6 Contudo, há trabalho que refere 40% das biopsias com GATR sem rejeição concomitante e 53% das amostras com RA, sem evidências de GATR.8 É fundamental tentar esclarecer essa relação para melhor entender a patogenia das lesões e sua importância na evolução do enxerto. Novas investigações sobre a imunofenotipagem das células presentes na GATR e na RA vascular serão importantes para comparar os perfis imuno-histoquímicos e estabelecer similaridade dos mecanismos imunes. O prognóstico difere nas diferentes publicações, sendo em média de 34% de sobrevida do enxerto em portadores de GATR. Porém, em acompanhamento de um a dois anos, há referencia de até 80% de perda do órgão transplantado, com nítida transição para glomerulopatia crônica do enxerto.2,4 Em publicações mais recentes, há tendência de não correlacionar a GATR com a evolução do transplante renal, mesmo nos casos de glomerulite moderada e grave. Finalmente, a glomerulopatia aguda é considerada altamente preditiva da recorrência de glomerulonefrites e da ocorrência de glomerulosclerose segmentar e focal, acometendo transplantados durante os primeiros 12 meses de enxerto.34 102 J Bras Nefrol 2003;25(2):95-103 GATR - Sementilli et al R e f e r ê n c i a s 1. Hamburger J, Crosnier J, Dormont Y. Observations in patients with a well-tolerated homotransplanted kidney: possibility of a secondary disease. Ann NY Acad Sci 1964;120:558-77. 2. Axelsen RA, Seymour AE, Mathew TH, Canny A, Pascoe V. Glomerular transplant rejection: a distinctive pattern of early graft damage. Clin Nephrol 1985;23:1-11. 3. 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