A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE SEGUNDO MERLEAU-PONTY Plínio Santos Fontenelle' RESUMO o presente artigo é uma tentativa de mostrar a crítica da tradição realizada pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) à filosofia moderna iniciada com Descartes, que afirmou que o sujeito atinge a plena evidência do mundo a partir de operações mentais. A crítica da tradição é retomada com maior precisão na fase de uma ontologia de Merleau-Ponty, compreendendo-se a pintura como reconstrução da interrogação filosófica e do habitar as coisas do mundo, esquecidas pela ciência, que sempre tratou delas sem habitáIas, e pela própria filosofia, que as considerou como res extensa do pensamento puro do sujeito. Para isso, a obra O olho e o Espírito do referido filósofo, escrita em 1960, aborda este momento da tradição filosófico-científica como o abandono do mundo. Palavras-chave: Merleau-Ponty, fenomenologia, ontologia, pintura. SUMMARY The present article is an attempt of showing the critic of the tradition accomplished by the french philosopher Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) to the modern philosophy begun with you Descartes, that aftirmed that the subject reaches the full evidence ofthe world starting from mental operations. The critic ofthe tradition is retaked with larger precision in the phase of an ontology of Merleau-Ponty, being understood the painting as reconstruction ofthe philosophical interrogation and of inhabiting the things of the world, forgotten by the science, that was always about them without inhabiting them, and for the own philosophy, that considered them as extensive cattles of the subject's pure thought. For that, the work The Eye and the Spirit of the referred philosopher, written in 1960, approach this moment of the scientific philosophical tradition as the abandonrnent ofthe world. Key-word: o pensamento Merleau-Ponty - phenomenonlogy - ontology ~ painting. que abre O Olho e o Espírito através .da frase "A ciência manipula as coisas e renuncia a * Professor Especialista do Departamento habitá-Ias", é a primeira declaração feita por Merleau-Ponty, nesta obra, sobre a tradição. Também a compre- de Filosofia da UFMA. Cad. Pesq., São Luís, v. 10, n. I, p. 29-37, jan.rjun. 1999. 29 ensão do Ser Selvagem é uma forma de questionamento sobre as realizações da ciência e da filosofia. A renúncia ao "habitar as coisas" é o que se pode entender por pensamento de sobrevôo. O mundo é o objeto que a ciência pensa ter construído. E na filosofia, surge. tradicionalmente, um sujeito. desencarnado do mundo, tentando '. dominá-Io através de operações intelectuais com seu olhar puro. "Não poracaso, diz Merleau-Ponty, filosofia e ciência, desde Platão, erigiram a matemática como paradigma do conhecimento e do pensamento verdadeiro, isto é, elegeram como ideal do saber o ta máthema, aquele modo de pensar que domina intelectualmente seus objetos porque os constrói inteiramente" (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica nada mais é do que a recusa do modelo clássico de Espírito como consciência pura, encerrando os "entendimentos claros e distintos". "Trata-se, agora, de renunciar à idéia do Ser como' ser posto' pela consciência enquanto poder absoluto de posição, derivado de seu poderio como reflexão completa" (CHAUÍ, 1994, p.471). Ou ainda corno afirma Marilena Chauí: "Rum ar para o Espírito Selvagem é abandonar a definição do espírito como consciência de si, a da consciência como reflexão e da reflexão como posse intelectual de si e do mundo" (CHAUÍ, 1994, p.471). 30 A obra de arte será, então, a possibilidade de reconstrução da interrogação filosófica por parecer, de fato, habitar as coisas do mundo. Elaborar uma crítica à tradição pela pintura é, para Merleau-Ponty, uma refutação ao pensamento de Descartes. Esta idéia se concretiza precipuamente na afirmação ontológica da Carne do mundo. Se o corpo, de início, é a condição de uma primeira organização do mundo, pois "nós vivemos o mundo através de nosso corpo antes de o conhecer e de o refletir intelectualmente" (DIRAISON & ZERNIK, 1993, p.222), o homem e o mundo passam a manter relações carnais e de cumplicidade. "O homem se projeta no mundo, e o mundo encontra no homem o órgão de sua expressão" (DIRAISON & ZERNIK, 1993, p.223). Esta correlação corpo-mundo, o mundo como correlativo do próprio corpo, nasce do engajamento carnal no mundo, pois o corpo não impõe nenhum sentido ao mundo, nem este impõe ao corpo um sentido também. Para melhor ilustrar, pode-se ver em Descartes, os materiais que compõem o sensível como as cores, os odores, as impressões táteis, que são inertes e subjetivos, contrários então à expressão de coexistência do corpo com as coisas (mundo). O sensível no seu mais completo grau de significação não se situa no sujeito que percebe, nem no objeto percebido, mas no vínculo que os liga. É neste sentido que o mundo e o corpo não são separáveis um do outro. Sendo assim, a pintura como arte do sensível, encontra uma oposição na filosofia cartes iana, ou seja, a racionalidade se opõe à sensibilidade. Cad. Pesq.. São Luís, v. 10, n. l , p.29-37, jan./jun. 1999. Descartes só considera a cor como ornamento. O espaço deve conservar a forma e o conteúdo pode ser algo isolado. Sobre isto, completa MerleauPonty: "A pintura não é para ele (Descartes) uma operação central que contribua para definir o nosso acesso ao ser; é um modo ou uma variante do pensamento canonicamente definido pela posse intelectual e pela evidência" (MERLEAUPONTY, 1975,p.285). É assim que a filosofia tradicional nunca quis aceitar que a experiência se tomasse ato selvagem do "eu quero", "eu posso", como ligação do ser no mundo. Mas mesmo assim, as noções de Ser-sujeito e de Ser-objeto vistos como contraditórias, passam a estar misturadas na concepção de uma nova ontologia. Como Merleau-Ponty se refere a uma espessura (épaisseur) do corpo e suas variadas formas como senciente-sensível, vidente-visível, a mistura supracitada remete a uma das categorias mais importantes deste filósofo, a reversibilidade. Mas tanto este conceito, como o de Carne do mundo serão melhor explicitados em outro momento. É necessário, ainda, analisar a crítica que Merleau-Ponty faz da tradição, como reabilitação da visão e vista na terceira parte de O Olho e o Espírito. O pensamento conforme a tradição cartesiana é pura atividade esclarecedora daquilo que aparece a ele como pura presença a si. É uma forma de instituir uma idéia clara e distinta do instante presente. Pensar, neste sentido, é querer impor o instante presente. Merleau-Ponty afirma, ao contrário, que a filosofia de sobrevôo foi um episódio, mas que agora terminou. Ele absorve a atividade de pensar como sucessiva e simultânea (empiétement), e que não podem ser contraditórias, pois misturam-se uma sobre a outra. Neste sentido, acrescenta Merleau-Ponty: "Se penso, não é porque salto para fora do tempo num mundo inteligível, nem porque recrio toda vez a significação a partir de nada; é porque a flecha do tempo arrasta tudo consigo, faz com que os meus pensamentos sucessivos seiam, num sentido secundário, simultâneos, ou pelo menos que invadam legitimamente um ao outro" (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 14). O pensamento é o momento em que se pode estar atado ao sensível, mesmo que seja no sentido de isolamento para que este se realize; mas mesmo assim os outros, na condição de simultaneidade, devem encontrar-se implicados. O pensamento "é o estofo do mundo que surge quando tento apreender-me, e aos outros que são captados nele" (MERLEAU-PONTY, 1991, p.15). O que só confirma que pensar não é deixar o sensível para passar ao inteligível. É, portanto, refletir conforme as estruturas simultâneas deste sensível, como o vidente-visível para Cad. Pesq., São Luís, v. 10, n. 1, p. 29-37, jan./jun. 1999. 31 melhor ilustrar. Aliás, esta análise feita por Merleau-Ponty, foi colocada desde A Fenomenologia da Percepção: a tendência de considerar momentaneamente a percepção do mundo com um "aqui", como que percebendo somente um "adiante" percebido. Mas, ao contrário, a coisa que se percebe, pode-se ver como sendo já "aí", antes que "meu" olhar se coloque sobre ela. Como afirmou Merleau-Ponty em Signes, não pode estar o mundo deitado aos pés do pensamento de sobrevôo. A filosofia é, por outro lado, o aprofundamento das questões esquecidas pela tradição -les empiétements, le chiasme. O visível é o momento de querer ver mais do que se vê. E o invisível é o "relevo da profundidade do visível, e, assim como ele, o visível não comporta positividade pura" (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 21). Para Descartes, aquele que pensa deve encontrar-se presente e perto das coisas pensadas. Não é permitido o ser inatual, pois é necessário encontrar sempre uma articulação direta com o ser das coisas e das idéias. "A palavra de Descartes é o gesto que mostra em cada um de nós esse pensamento pensante por descobrir, o 'abre-te Sésamo' do pensamento fundamental. Fundamental porque não é veiculado por nada" (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 21). Esta filosofia analisada por MerleauPonty e contrária à tradição, tem como fundamento, encontrar os truísmos realizados pelo pensamento deste filósofo, isto é, o pensar que pensa, o olhar que olha; existe neles uma lacuna que, evidentemente, a tradição ajudou a separá-los. A filosofia quer, agora, o 32 aprofundamento do Ser, sair desta superficialidade e juntar tais truísmos a um mesmo Ser. "A filosofia é a rememoração deste ser, com a qual a ciência não se ocupa, porque esta concebe as relações entre o ser e o conhecimento como as relações entre o geometral e suas projeções, e esquece o ser de envolvimento, esse a que se poderia chamar a topologia do ser" (MERLEAU-PONTY, 1991, p.22). Todavia, não se pode negar que a crítica realizada por Merleau-Ponty à tradição, encontra-se, como foi dito, na Fenomenologia da Percepção. Criticando a tradição nesta obra, ele procurou anular a pura exterioridade objetiva para fazer do mundo um campo intencional do sujeito perceptivo. O sujeito e o mundo não estão mais numa relação de exterioridade. O sujeito não é o observador absoluto que alça um sobrevôo a fim de contemplar o mundo de forma integral. O sobrevôo é impossível para este tipo de reflexão, pois como já foi indicado, "o mundo está aí antes de toda análise que eu possa fazer dele" (MERLEAU-PONTY, 1945, p.IV). Existe um entrelaçamento (quiasm) entre o sujeito que pensa e o mundo que por sua vez é pensado, não sendo um mundo em-si, quer dizer, a relação sujeito-pensante e mundo-pensado neste entrelaçamento é a possibilidade verdadeira de se ter o mundo real, pois conceber o mundo como pensado, puramente, seria recair em uma noção idealista. O mundo é aquilo que se pode ver: tudo aquilo que se vê e que está ao alcance do olhar, que está também no modo do "eu posso". E o Cad. Pesq .. São Luís. v. 10. n. 1. p.29-37. jan.rjun. 1999. que permite o vínculo entre o sujeito e o mundo é a noção de corpo presente na Fenomenologia da Percepção, sendo também a consciência uma noção que não está separada do mundo, logo a idéia intelectualista de que a consciência é pura interioridade será prontamente contestada. Segundo José de Anchieta Correia "a 'fé perceptiva' instala por intermédio do corpo 'uma abertura ao mundo' que não impede sua ocultação. É isto que a filosofia deve compreender" (CORREIA, 1972, p.l 03). A visão de corpo presente nesta obra e na maioria das obras de Merleau-Ponty, é a de um corpo que habita o mundo e não "uma massa inerte, instrumento exterior" (CORREIA, 1972, p.2l8). A Fenomenologia enquanto método permite, desta forma, que a consciência seja compreendida como sujeito encarnado no mundo. Mas o sujeito em Merleau-Ponty com seu sentido de corpo, consciência e mundo até agora descritos, absorve uma dimensão de Ser bruto e selvagem na fase da ontologia original. O que se pode perceber é que a crítica à tradição irá tomar uma análise mais profunda nesta fase, quando abordada a idéia desta ontologia pré-reflexiva do mundo bruto e selvagem, marcando decididamente toda essa discussão. A crítica ao pensamento de sobrevôo é a crítica ao pensamento ocidental, que sempre procurou dominar e controlar a realidade exterior. A filosofia rnerleaupontyana procura revelar a dicotomia sujeito-objeto, que foi originada por Descartes (TAMlNIAUX, 1991, p.42) e sua metafísica idealista, criando o espaço no qual é possível definir e de- terminar o ato do conhecimento e o conteúdo desse ato. Todas as dicotomias passam a ser um engano originário e comum da filosofia ocidental. "É porque na tradição cartesiana o sujeito se define essencialmente como presença a si: ser e aparecer devem coincidir" (DIRAISON & ZERNIK, 1993, p.227). Toda esta crítica tem como ponto de apoio a arte da pintura. Este tema é muito bem descrito em O Olho e o Espírito fundamentando a investigação ontológica, que serviu como caminho à região bruta e selvagem do Ser; é uma nova leitura da Filosofia ou o seu retorno às origens da verdadeira reflexão (CRAUÍ, 1981, p.195), onde deverá descobrir o solo anterior à atividade reflexiva: é a região do "logos do mundo estético", da unidade sensível e indivisa do corpo e das coisas; é a não existência de uma ruptura reflexiva entre sujeito e objeto. Esboça-se, aqui, uma crítica à Filosofia especulativa da tradição, a crítica ao pensamento de sobrevôo. A partir da descoberta então do "logos do mundo estético" ou do corpo e mundo "encarnados" é que Merleau- Ponty passará à crítica do pensamento de sobrevôo. E é neste exato momento que a arte se torna uma das experiências preponderantes em relação à transcendentalidade do real. A esse respeito, pode-se inserir Paul Cézanne como o grande inspirador de Merleau-Ponty a criticar o "pensamento de sobrevôo", típico da filosofia tradicional. Cézanne procurou fixar os "instantes do mundo" através de suas telas. O Monte de Sainte- Victoire (1904) foi a obra de arte de Cézanne a Cad. Pesq .. São Luís. v. 10. n. 1. p. 29-37. jan./jun. 1999. 33 que Merleau-Ponty se refere ao tratar do "pensamento de sobrevôo". Diz o filósofo referindo-se ao pintor: "eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim" (MERLEAU-PONTY apud NOVAES, 1988, p.13). Assim, Merleau-Ponty se dirige à tradição que "elege a idéia ou o Espírito absoluto como fonte do conhecimento e indiretamente a Descartes que pretendia a dominação das paixões pela consciência, e a cisão entre espírito e corpo" (NOVAES, 1988, p.13). A arte é então essa possibilidade de pintar o "Espírito Selvagem" do sujeito que não diz mais o "eu penso", e sim o "eu quero", "eu posso". É o ser bruto também, que indiviso no mundo, desconhece a cisão sujeito-objeto, consciência-mundo. Como afirma Marilena Chauí, "as artes ensinam à filosofia a deiscência da Carne do mundo e do corpo" (CHAUÍ, 1980, p.X), A pintura é a que poderá, então, figurar os traços (épures) do Ser, seu fluxo e refluxo, seu entrecruzamento. "Se a pintura tem um lugar privilegiado na pesquisa de MerleauPonty, é porque seu trabalho opera cada vez uma percepção nascendo" (THIERRY, 1991, p.9-10). A partir dessa abordagem, não é difícil perceber que neste momento a filosofia e a pintura partilham tanto do tema da encarnação do mundo quanto do dualismo tradicional sujeito-objeto. A pintura é o enigma da expressão do Ser no mundo, sem se notar quem é o vidente e quem é o visível. E o tempo todo, o enigma da visão, o "olhar" fundamentado na arte deste pintor, serviu como metáfora ao entendimento que se 34 pode ter da percepção em MerleauPonty, desde A Fenomenologia da Percepção. A idéia central de Merleau- . Ponty sobre a pintura, e em particular na obra O Olho e o Espírito, é o resgate que a própria pintura faz dos problemas do pensamento como atividade simultânea e não mais esclarecedora. Atividade como fixar os instantes do mundo. Parece então trivial, num primeiro momento, que a frase que Merleau-Ponty tomou de Valéry, "o pintor emprega seu corpo", seja uma simples obviedade na criação deste em relação à sua obra de arte. Ela é, num sentido contrário, a confmnação daquele que emprega sobre sua tela, as relações de simultaneidade, de truísmos, que o visível mantém com o corpo. O quadro não é, a partir daí, uma simples cópia, nem fragmentos ou dados visuais emprestados ao mundo dito real, "para visá-lo em sua falta, como pensavam Platão e os gregos, ou Descartes, e também Pascal, no início da modernidade" (TAMINIAUX, 1991, p.44). O pintor não pinta diretamente o visível, mas a simultaneidade (l'empiétement) do visível sobre o vidente. É neste termo que se delineia essa ambigüidade, encontrada no pensamento de Merleau-Ponty da seguinte maneira: Cad. Pesq.. São Luís, "O visível em torno de nós parece repousar nele mesmo. É como se nossa visão se formasse em seu coração, ou como se houvesse entre ele e nós uma familiaridade tão v. 10, n. 1, p.29-37, jan./jun. 1999. estreita quanto a do mar e da praia" (MERLEAUPONTY apud DlRAISON. & ZERNIK, 1993, p.230). A relação da filosofia com a pintura, é este momento da visão, quando o pintor que empresta seu corpo ao mundo, transforma-o em pintura. O corpo não é uma res extensa ou um "pedaço de espaço" encontrados no mundo; é portanto, um entrelaçamento de visão e movimento. Através do olhar '. o corpo está aberto para o mundo. Eis a reabilitação da visão, anunciada em O Olho e o Espírito: "O enigma reside nisto: meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer no que está vendo então o 'outro lado' do seu poder vidente. Ele se vê vidente, toca-se tateante, é visível e sensível por si mesmo" (MERLEAUPONTY. 1975, p.278). Este enigma da reabilitação da visão permite ao pintor, a existência de um mundo lançando-lhe sempre um apelo que ele jamais terá condições de terminar de responder (CAVALLIER, 1998, p.34): a pintura pode manifestar a visibilidade das coisas mesmo não encontrando-se, de início, perceptíveis, porque, como diria Cézanne, "a natureza está no interior". Pois é nisso que consiste o enigma da visibilidade e, assim, o retrato do mundo nem sempre encontra-se na natureza presente nos quadros (TAMINlAUX, 1991,p.43-44), e quanto ao pintor, é necessário pulsar nele mesmo, em seu interior, aquilo que deseja pintar. "Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão aí diante de nós, aí só estão porque despertam um eco em nosso corpo, porque este lhes faz . acolhida. Este equivalente interno, esta fórmula carnal da sua presença que as coisas suscitam em mim por que não haveriam de, por seu turno, suscitar um traçado, visível ainda, onde qualquer outro olhar reencontrará os motivos que sustentam a sua inspeção do mundo?" (MERLEAU-PONTY, 1975, p.279). Completando esta idéia, o quadro ao ser visto, não encontra-se como simples .coisa, como se estivesse em superfície para ser captado pela visão. Como diz Merleau-Ponty, o olhar vagueia nele, mostrando a diversidade do Ser, segundo o próprio quadro e com ele. E ao celebrar o enigma da visibilidade, a pintura empresta ao mundodo pintor, um mundo visível. Este é um truísmo exato daquele que ao pintar, "pratica uma teoria mágica da visão" (MERLEAUPONTY, 1975, p.281) mas ele deve admitir que também as coisas entram nele. Elas estão no coração do kósmos e da visão. É por isso que MerleauPonty fez questão de citar Paul KIee, confirmando este momento: ''Numa floresta, repetidas vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Em certos dias, senti que eram as árvores que olhavam para mim, que me falavam" (MERLEAU-PONTY, 1975, p.282). Este outro sentido da visão é a permissão que o quadro oferece de manifestar a existências das coisas. "O 'instante do mundo' que Cézanne queria pintar, Cad. Pesq., São Luís, v. 10, n. 1, p. 29-37, jan./jun. 1999. 35 e que de há muito já passou, suas telas continuam a no-lo lançar, e sua montanha Santa-Vitória faz-se e refaz-se de um extremo a outro do mundo" (MERLEAU-PONTY, 1975, p.283). É por isso que o pensamento cartesiano fica a querer despedir o mundo da sensibilidade. Não há mistérios neste pensamento e a pintura é levada diretamente à consciência onde, comenta Merleau-Ponty, não existem no cérebro, olhos para que se possa ver o próprio mundo. A pintura para Descartes não permite o acesso ao Ser. "Para Descartes, é uma evidência que BIBLIOGRAFIA não se pode pintar senão coisas existentes, que a existência delas é serem extensas, e que o desenho possibilita a pintura ao se tomar possível a representação da extensão" (MERLEAUPONTY, 1975, p.286). O enigma que Merleau-Ponty se refere, é a impossibilidade de reduzir o pensamento à visão, aliás, tal enigma é a devolução do "pensamento de ver" da visão em ato. É a afirmação de um pensamento de espaço, de um espaço que é a "evidência do onde" (MERLEAU-PONTY, 1975, p.287), que Descartes e todos os momentos clássicos rejeitaram. CONSULTADA CHAUÍ, Marilena. Artepensamento. São Paulo: Cia das Letras, 1994. __ ___ Marilena. Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo. Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty. São Paulo: Brasiliense, 1981. nologie. Bruxelles: Académie Royale des Beaux-Arts de Bruxelles, n. 7.. 1991. ->, , Marilena. "Merleau-Ponty: vida e obra". In: Merleau-Ponty. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.1O. (Os Pensadores). 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