Cultura e segmentação

Propaganda
Cultura e segmentação: um olhar através das revistas
Maria Celeste Mira – PUC-SP
Resumo: O objetivo do texto é discutir a questão da segmentação da cultura no século XX
através do exame de revistas de grande circulação. Dada a extensão do tema, privilegiar-seá a análise histórica da relação entre movimentos sociais e culturais e segmentos de
mercado, buscando, ao final, avançar na compreensão das relações entre consumo e
construção de identidades. 1
Um dos traços mais característicos da produção cultural no século XX é sua
progressiva segmentação. No entanto, apesar deste fenômeno mostrar-se muito claramente
nas três últimas décadas, o conceito de segmentação não tem sido estudado pelas Ciências
Sociais. Ao indagar-se sobre o tema, o pesquisador se depara com trabalhos da área de
Administração e Marketing, portanto, com estudos voltados para uma intervenção mais
eficaz das empresas no mercado consumidor. Este fato, inclusive, pode ter tido influência
no silêncio das Ciências Sociais a este respeito. O mesmo vem acontecendo em relação ao
conceito de estilo de vida, relacionado ao de segmentação e também muito caro ao
mercado.
De certa forma, o que acontece com essas noções em nada difere de todos os demais
termos usados na linguagem comum. Como sintetizaram os autores de O ofício de
sociólogo2, é sempre necessária uma análise lexicológica das palavras que empregamos,
capaz de afastar os significados que elas carregam do senso comum. Neste sentido, e com
todos os riscos que esta tarefa sempre implica, o que se pretende aqui é buscar, senão uma
definição precisa, uma caracterização sociológica do fenômeno da segmentação. Como
todos os conceitos das Ciências Sociais, esse também é histórico e compreendê-lo significa,
portanto, debruçar-se sobre a história cultural e social do século XX.
1
Para uma reflexão mais aprofundadada sobre o tema aqui tratado ver MIRA, Maria Celeste, O leiror e a
banca de revistas. A segmentação da cultura no século XX, São Paulo, Olho D´Água/ Fapesp, 2001
2
Para os profissionais de marketing, segmentação é o último estágio de
desenvolvimento do que chamam de “pensamento estratégico” e surge nos Estados Unidos,
logo após a II Guerra Mundial. Ainda no auge do “mercado de massa” – considerado por
eles a primeira fase do pensamento estratégico – os empresários perceberam que não têm
instrumentos adequados para enfrentar uma queda de vendas – o que já estava ocorrendo –
devido à similaridade de seus produtos. Não sabendo bem onde se localizava o problema, o
mercado entrou, ainda segundo seus analistas, numa segunda fase, a dos “produtos
variados”. Como o nome praticamente já diz, procurava-se elevar as vendas oferecendo
uma variedade maior ao consumidor. Logo esta estratégia se mostrou insuficiente, levando
os empresários a buscar a da segmentação que consistia no deslocamento do enfoque do
produto para o chamado “público-alvo”. Buscava-se então conhecer melhor o consumidor
para oferecer-lhe o produto certo. As primeiras variáveis consideradas pelos homens de
marketing para delinear segmentos foram, além da sua localização física, a classe social, o
sexo e a idade. Mais tarde, a estas vão se acrescendo outras características como a etnia, a
preferência sexual e outras nomeadas “sócio-psicológicas.”3
Algumas questões sociológicas podem ser extraídas do raciocínio mercadológico. A
primeira delas diz respeito à segunda fase do “pensamento estratégico”, a dos “produtos
variados”. Ela nos leva a concluir pela impossibilidade de criar necessidades de consumo
unilateralmente. Caso isto fosse possível, não teria o mercado partido para uma nova
estratégia, voltada para o conhecimento do público consumidor. Os próprios teóricos de
marketing afirmam que a segmentação é uma estratégia gerada pelo desenvolvimento da
demanda e pela percepção de que os consumidores têm necessidades diferentes, cujo
atendimento por produtos específicos pode ser, dependendo do caso, mais lucrativo do que
a atuação às cegas no mercado de massa. Conhecer o consumidor levaria a oferecer-lhe um
produto que vem exatamente de encontro ao que ele deseja ou necessita.
2
BOURDIEU, Pierre, CHAMBOREDON, Jean-Claude e PASSERON, Jean-Claude, El oficio de sociólogo,
México, Siglo veintiuno, 1975
3
Ver, entre outros, RICHERS, Raimar e LIMA, Cecília P. (orgs.), Segmentação: opções estratégicas para o
mercado brasileiro, São Paulo, Nobel, 1991; MARIOTTO, Loredana S., Estudo da segmentação de
mercado, São Paulo, PUC-SP, dissertação de mestrado, 1994; MEIRA, Mônica B.V., Segmentação de
mercado: principal estratégia de marketing frente ao processo de globalização, São Paulo, PUC-SP,
dissertação de mestrado, 1996; e ANSARAH, Marília, G.R. (org.), Turismo: segmentação de mercado, São
Paulo, Futura, 2000
3
É preciso, portanto, entender a questão das necessidades e de como elas são
manobradas pelo marketing estratégico pelo lado do público, do consumidor, dos grupos e
dos indivíduos. Por sua vez, os indivíduos desejam o que a sua cultura lhes ensina a desejar.
As necessidades, ou melhor, as carências, como bem expõe Agnes Heller 4, só podem ser
definidas em função de um conjunto de valores a partir dos quais cada sociedade ou grupo
social define o que é verdadeiro ou falso e – poderíamos acrescentar – o que é báscio ou
supérfluo, útil ou inútil e assim por diante. No caso da sociedade contemporânea, deve-se
considerar a atuação do mercado como uma das múltiplas causas desta determinação. Mas
tem-se que levar em conta também que os indivíduos estão mergulhados numa cultura
complexa, atravessada por relações de poder, diferenças de classe, diferenaças
profissionais, sexuais, geracionais, étnicas, religiosas, regionais, etc.
No campo da Sociologia da Cultura, o debate sobre segmentação pode ser remetido
à clássica contestação da Escola de Frankfurt a Émile Durkheim para quem a divisão social
do trabalho na modernidade levaria a uma maior diferenciação, ampliando o espaço da
consciência individual sobre a consciência coletiva. Para os autores da Escola esta
diferenciação das consciências não seria senão aparência uma vez que a sociedade pósindustrial seria ordenada por um espírito racional que visa eliminar as diferenças para
melhor controlar a todos.5 As teses da Escola de Frankfurt sobre a uniformização das
consicências levaram a um conceito de massa ancorado na idéia de homogeneização. Seria
a segmentação um sintoma de diferenciação que os frankfurtianos não consideraram? Não.
Para eles, o mercado diferencia seus produtos para que ninguém lhe escape e dentro de cada
segmento novamente transforma os indivíduos em seres genéricos. Da perspectiva da
Escola, a segmentação faria parte do processo de “pseudo-individualização”, um dos
muitos mecanismos da indústria cultural para capturar os consumidores.
Sob esse aspecto, não há como contradizer os autores da Escola. Os próprios
teóricos do marketing reconhecem que a técnica da segmentação “consiste em encarar um
4
HELLER, Agnes, “Si possono porre bisogni ‘veri’ e ‘falsi’?”, in Il potere della vergogna, Roma, Editori
Riuniti, 1985. Ver também NUNES, Edison, “Carências e modos de vida”, in São Paulo em perspectiva, 4(2):
2-7, abr/jun 1990
5
Ver, entre outros, ADORNO, T. e HORKHEIMER, M., Dialética do esclareciemtno, Rio de Janeiro, Zahar,
1985 e ADORNO, T., “Sobre música popular”, in COHN, Gabriel (org.), Theodor W. Adorno, Sâo Paulo,
Ática, 1988. Ver também ORTIZ, Renato, “A Escola de Frankfurt e a questão da cultura”, in Revista
Brasileira de Ciências Sociais n. 1, jul/86
4
mercado heterogêneo como composto de um número de mercados homogêneos menores”.6
De fato, como já apontou Renato Ortiz, a diferença entre massa e segmento é falsa,
tratando-se apenas de uma questão de grau.7 A questão parece residir mais em outro ponto
da visão frankfurtiana sobre a cultura e a sociedade contemporâneas, bem como sobre o
momento no qual ela foi escrita e, ainda, sobre como foi apropriada e difundida no mundo
das idéias, tanto no campo acadêmico quanto no próprio senso comum.
Adorno e Horkheimer produziram seu diagnóstico, após a experiência do nazismo,
exatamente no momento que os administradores de empresas chamam de “mercado de
massa”, quando a indústria em geral e a indústria cultural em particular eram altamente
padronizadas, oferecendo seus produtos pouco diversificados a uma “massa” de
consumidores. Não porque as diferenças entre os indivíduos e grupos não existissem, mas
porque neste momento elas não eram fundamentais para o desenvolvimento da produção e
do consumo. Trata-se de um período em que a família é a unidade básica de consumo.
Evidentemente com exceções, o carro é da família, a televisão é da família e assim a
geladeira, a máquina de lavar roupas, etc.
Adorno e Horkheimer escrevem nesse momento em que é alto o nível de
padronização tanto dos bens materiais quanto dos bens simbólicos. Para ficar apenas com o
melhor exemplo, pode-se lembrar que a programação de televisão é feita para a família que
a assiste em conjunto no horário nobre na sala de estar. Neste período, nos países ricos,
uma grande faixa da classe trabalhadora se aburguesou, voltou-se para o conforto do lar.
Outro problema teórico herdado da Escola tem relação com essa cooptação da classe
trabalhadora pela sociedade de consumo nos países ricos: é a sua visão da sociedade pósindustrial como uma sociedade estagnada, onde a luta de classes e as ideologias foram
neutralizadas e, portanto, não movem mais a história. É possível que, com base nesta
análise, vários conceitos elaborados pelos frankfurtianos a respeito da indústria cultural
tenham sido cristalizados naquele momento histórico ou até retirados da história. É o caso,
por exemplo, do conceito de padronização. A partir daí firmou-se a idéia de que, uma vez
estabelecido, um padrão se fixa, não muda mais. Nunca mais o novo, mas apenas a
novidade, dizia Adorno. Esta noção rígida e imutável de padrão foi incorporada nos estudos
6
MEIRA, Mônica B.V., op. cit., p. 48
ORTIZ, Renato, “Cultura, comunicação e massa”, in Um outro território. Ensaios sobre a mundialização,
São Paulo, Olho D´Água, 1997, p. 119
7
5
sobre a cultura de massa durante longo tempo, associando-se ao conceito de massa para
significar indistinção e passividade total dos consumidores. Desistoricizada, a noção de
massa tornou-se uma verdadeira cortina de fumaça que impediu a percepção de outras
dimensões do grande público, inclusive sua progressiva segmentação.
No domínio do mercado, ao contrário, a percepção da diferenciação e da
mutabilidade dos públicos prevaleceu desde o início dos estudos sobre segmentação. Como
resumiu Cecília Pimenta Lima, “a única coisa absolutamente imutável em qualquer
segmento de mercado – enquanto grupo de indivíduos que é – será sempre sua condição de
permanente mutação”.8 Daí a necessidade que têm de aprimorar constantemente seus
instrumentos de conhecimento do consumidor, dando início ao desenvolvimento da área de
pesquisa de mercado, hoje absolutamente imprescindível ao seu funcionamento. A data em
que isto ocorre e os estudos de marketing sobre segmentação têm início, o pós-guerra,
também é sugestiva. É no pós-guerra, mais especificamente nos anos 50/60, que um
conjunto de transformações sociais emerge no cenário social, expressando-se através de
uma série de movimentos sociais e culturais.
Marcada pela tensão entre diferenciação e homogeneização, a cultura moderna é
também portadora da contradição entre dominação e libertação. Há aspectos da razão que
são emancipadores, no sentido de desvincularem os indivíduos ou grupos de determinadas
tradições, religiosas ou de outra ordem. Desde Max Weber, sabe-se que isto nem de longe
elimina a dominação, apenas a organiza de outra forma. Mas, ao libertar os indivíduos de
tradições totalizantes, a modernidade cria a possibilidade da diferença bem como da
legitimidade de sua expressão pública.
Evidentemente, nas sociedades tradicionais já existem diferenças entre os sexos e
entre as classes de idade, pelo menos. Além de introduzir novas diferenças, a sociedade
burguesa confere àquelas e estas o direito de se expressar como tal. Contraditoriamente, no
entanto, proclama que todos os indivíduos são iguais. Os movimentos sociais e culturais
gerados neste contexto buscam questionar esse conceito de igualdade centrado na figura do
homem, adulto, branco, ocidental, a partir da experiência de grupos historicamente
submetidos como as mulheres, os jovens, os negros, etc. Ao fazer isto, acentuam o
8
LIMA, Cecilia Pimenta, “Um modelo composto de segmentação”, in RICHERS, R. e LIMA, C.P. (orgs.),
Segmentação: opções estratégicas para o mercado brasileiro, op. cit., p. 53
6
potencial moderno de ruptura com as tradições, aprofundam cada vez mais esse processo
até chegar à atual “política das identidades”, quando aparecem movimentos como os das
mulheres negras, homossexuais negros, mulheres homossexuais, etc.. Portanto, um dos
fatores que faz com que o mercado tenha que se empenhar cada vez mais em conhecer cada
grupo de indivíduos que pode formar um segmento é esse processo de demarcação das
diferenças sociais que já pode ser considerado de longa duração.
Para Giddens, esses movimentos são como a ponta de um iceberg. Trata-se, na
verdade, de uma transformação profunda das concepções de família, sexualidade e
intimidade que remontam ao final do século XVIII. Hobsbawn considera a desestruturação
acelerada da família burguesa no pós-guerra como uma das mudanças mais importantes do
século XX.9 Mas o aspecto que mais interessa ao debate sobre a segmentação é que a
família, que já havia sido desarticulada como unidade de produção, desde o início do
capitalismo, começa a ser desmontada enquanto unidade de consumo. Na segunda metade
do século XX, novos sujeitos sociais e novos sujeitos consumidores entrarão em cena.
O estudo dos movimentos sociais e culturais dos anos 50/60 permite compreender
que eles se constituem na história moderna, ao mesmo tempo, como “alteridades” e
“segmentos de mercado” ou, em outras palavras, como sujeitos que buscam sua autodeterminação e como sujeitos consumidores. Por que estas duas características estão
ligadas? Seria possível expressar-se na sociedade capitalista sem algum nível de “inclusão”
no sistema? É possível no mundo moderno ser sujeito da história sem ser sujeito
consumidor?
Examinemos primeiro o caso das mulheres. Historicamente subordinadas aos
homens, elas já estão no mercado de trabalho e de consumo desde o século XIX. Melhor
dizendo, as mulheres operárias no mundo do trabalho e as burguesas no mundo do
consumo. É quando surge o primeiro movimento feminista que luta principalmente pelo
direito ao voto. Na mesma época, ou seja, na segunda metade do século, acontece também
o primeiro surto de expansão da imprensa feminina. O caso da França é o melhor exemplo.
De acordo com o trabalho clássico de Evelyne Sullerot, a imprensa feminina se divide
então em dois grandes setores, um voltado para o mundo da moda e outro, escrito por
9
GIDDENS, Anthony, As transformações da intimidade. Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades
modernas, São Paulo, Editora da UNESP, 1993 e HOBSBAWM, Eric, A era dos extremos. O breve século
XX, São Paulo, Companhia das Letras, 1995
7
mulheres, dedicado às lutas feministas. No decorrer de sua história, no entanto, “as duas
imprensas... vão incansavelmente se imitar, se interpenetrar, até finalmente se confundirem
no momento da explosão da imprensa feminina de massa”. 10
Essa explosão ou segundo surto expansionista da imprensa feminina terá início nos
anos 30, mas acontecerá de fato no pós-guerra, quando o capitalismo mundial entra em
nova fase de prosperidade e mais movimentos sociais e culturais florescem. Uma segunda
onda de feminismo se agiganta, reivindicando para um número crescente de mulheres que
trabalham fora do lar o direito a salários e condições de trabalho iguais às dos homens. Para
conciliar o trabalho com o casamento e a maternidade e trazendo a marca liberalizante dos
movimentos dos anos 50/60, luta-se ainda pelo divórcio, o direito à contracepção, ao
aborto, etc. Nas palavras de Lesley Johnson, esse novo ciclo do movimento feminista
contribuiu para a constituição das mulheres “como um grupo com força política”, “um
grupo que quer falar e ser ouvido”, “um novo sujeito”, “uma nova identidade”. 11
Essa nova identidade será captada especialmente pela publicação feminina mais
bem sucedida da história das revistas, a Cosmopolitan. A fórmula, de autoria de Helen
Gurley Brown, até então uma modesta copydesk de agência de publicidade, surge nos
Estados Unidos no final dos anos 60, logo se espalhando pelo mundo. No Brasil desde
1973, a revista circulava em 80 países no final do século XX. Sua proposta volta-se para
essa “mulher liberada” que não pretende ser reconhecida apenas como mãe, esposa ou filha,
mas como profissional que busca sucesso no trabalho e como mulher que procura amor e
sexo.
Tanto no caso das revistas femininas do século XIX quanto no das publicações
surgidas nos anos 60, os estudos demonstram que o feminismo não foi abandonado, mas
incorporado como tema de debate, sendo responsável por parte do seu sucesso. Mas,
também nos dois casos, a expansão da imprensa feminina esteve fortemente ligada a surtos
de expansão do próprio capitalismo nos quais a mulher era visada como sujeito consumidor
de um modo muito especial. Na segunda metade do século XIX estava se desenvolvendo
largamente a indústria de confecções e, portanto, todo o circuito de moda, desde então e até
o final do século XX, voltado para as mulheres. Na mesma época, desenvolvia-se também a
10
SULLEROT, E., La presse féminine, Paris, Armand Colin, 1963, p.57
JOHNSON, L., The modern girl. Girlhood and growing up, Buckingham/ Philadelphia, Open University
Press, 1993, p. 21. Eric Hobsbawm se expressa de modo muito semelhante em A era dos extremos, op.cit.
11
8
fabricação de uma série de bens de uso doméstico, cujo consumo, de novo até fins do
século XX, dependia das mulheres. No pós guerra, um novo surto de produtos voltados
para o lar, os eletrodomésticos e outros itens, seria um dos carros-chefe do capitalismo
fordista e, mais uma vez, o seu alvo eram as mulheres. Isto sem entrar em detalhes sobre os
novos ciclos da moda, dos produtos de beleza e assim por diante. Ou seja, as mulheres
surgem ao mesmo tempo como um “outro sujeito” e como “segmento de mercado” e assim
são interpeladas constantemente pelas revistas femininas. Voltaremos a problematizar este
ponto após examinar um outro caso, o dos jovens.
Como se sabe, os movimentos dos anos 60, sejam encabeçados por mulheres,
negros, estudantes ou hippies, são todos jovens. Pela primeira vez na história, os jovens se
tornam mais importantes na escala social de valores do que os mais velhos, um dos grandes
impactos da modernidade sobre a tradição. A partir de então, assegura Eric Hobsbawm, a
“juventude” torna-se um “agente social”. Ao mesmo tempo, esses jovens que se destacam
nos anos 60 são a primeira geração que tem poder de compra nesta idade. Fazem parte da
chamada “geração baby boom” a qual, nascida e criada na prosperidade do pós-guerra, é a
primeira a receber “mesada” dos pais. São também a primeira geração a construir e
consumir a cultura pop, uma cultura popular, midiática e internacional. Uma cultura do
lazer, do prazer, da diversão. Idealismo, rebeldia, hedonismo e consumismo se confundem
desde o início dessa cultura jovem a tal ponto que muitos dos seus símbolos são produtos
que circulam no mercado mundial, como o jeans, a motocicleta, o chiclete, a Coca-Cola.
Tudo sendo difundido através da música, especialmente do rock e de inúmeros sons e
estilos de vida que aí nasceram, mas também através do cinema, da moda, do turismo
internacional, do contato entre universidades, enfim, da ampliação sem precedentes da
mobilidade que caracteriza a cultura moderna. Novamente é muito difícil separar o sujeito
alternativo do sujeito consumidor.
Esta onda jovem foi captada pelo mercado editorial em todas as partes do mundo
onde havia potencial de consumo. Revistas voltadas para os jovens e adolescentes
estouraram como pipocas, uma atrás da outra. Nos anos 60/70, dirigiam-se ao público
jovem em geral. Nos anos 80, passaram a se especializar também por sexo, uma vez que os
interesses de cada um deles se mostravam diferentes e rentáveis. Além de aprofundar o
processo de segmentação criando uma nova série de revistas específicas, cruzando sexo e
9
faixa etária, o mercado encontra aí o seu mais rico filão. Estudos acadêmicos demonstram
que o adolescente ou jovem é o estrato que mais consome, mesmo sem ter recursos para
isto.12
O que acontecera com as mulheres e os jovens repetiu-se com os negros, os idosos,
os homossexuais, os deficientes físicos e outros grupos que se destacaram nos anos 90. O
processo de diferenciação se acelerou e a segmentação do mercado consumidor também.
No final dos anos 90, estimava-se haver no Brasil um segmento de negros de classe média
de 7 milhões de pessoas, para as quais logo apareceram revistas como Raça Brasil, discos,
bares e restaurantes, produtos de beleza, moda, etc. O mercado composto por pessoas da
terceira idade era calculado na mesma época em cerca de 20 milhões de pessoas, para as
quais foram abertas universidades, locais de lazer, academias de ginástica, etc. Os exemplos
se multiplicam sempre na mesma direção. O segmento conhecido como GLS foi
contemplado com inúmeras iniciativas, de revistas a turismo especializado, passando por
bares, clubes, roupas, acessórios e outros tantos produtos.
De certa forma, esses grupos dão a entender que eram discriminados também como
consumidores. Tinham que se submeter a um mercado que desconhecia sua existência, o
que se constituía em mais uma falta de respeito. É clássico o exemplo da menina negra que
brincava com boneca branca. Num mundo pautado por uma “pedagogia do consumo”,
como ela poderia construir sua identidade se não encontrava essa referência no mundo dos
brinquedos? Certamente foi para comtemplar esse tipo de expectativa que os fabricantes da
boneca mais famosa do mundo lançaram com sucesso a Barbie de cadeira de rodas e Bob, o
boneco gay.
Uma questão que salta aos olhos é a relação dessa tendência do mercado com a
chamada “política das identidades”. É através da expressão das diferenças que cada grupo
procura legitimar e dar visibilidade à sua causa. Exatamente porque buscam esta
visibilidade é que podem ser identificados como segmentos de mercado. O que está por trás
desses novos fatos, mais uma vez, são movimentos sociais e culturais tão importantes como
os dos jovens e das mulheres: os movimentos negro, homossexual, da terceira idade, dos
deficientes físicos, etc. Para o mercado, evidentemente, o que interessa é o seu potencial de
12
Ver, entre outros, REIMER, Bo, “Youth and modern lifestyles”, in FORNÄS, Johan e BOLIN, Göran
(eds.), Youth culture in late modernity, Londres/ N. Deli, Sage Publications, 1995.
10
consumo. Para estes grupos, historicamente discriminados, trata-se de recuperar sua autoestima e mudar sua trajetória social.
Tanto nos movimentos como nas revistas – apesar das críticas que os primeiros
fazem a estas – a questão da auto-estima tem sido central. Recuperá-la é fundamental para
dar início a um projeto de mudança, tanto do ponto de vista pessoal quanto coletivo. E neste
ponto, mais uma vez, nos dois casos - dos movimentos e das revistas – um outro ponto de
convergência os integra a um processo mais geral que poderíamos chamar de uma “nova
disciplina corporal”.
Observa-se nos anos recentes a tendência crescente a uma mudança de percepção e
de hábitos relativos ao corpo que liga a recuperação da auto-estima à recuperação da estima
pelo próprio corpo. Mas trata-se aqui de uma noção de corpo que progride, tanto no
discurso médico, alternativo ou não, como no meio acadêmico e no campo político, no
sentido de algo que integra o físico e o mental, na idéia de que se é um corpo ou, nas
palavras de Giddens, de que “o eu é corporal”. 13 Isto tem eficácia no processo de mudança
porque, na verdade, a discriminação de todos esses grupos se apoiava, antes de mais nada,
na discriminação do seu corpo, caso das mulheres, dos negros, dos idosos, dos
homossexuais, dos deficientes físicos, etc. Os desdobramentos mais recentes destes
movimentos (e da segmentação da segmentação) levam a crer que eles próprios percebem
sua diferença como sendo de natureza corporal. Homossexuais negros, mulheres negras,
mulheres homossexuais: a diferença está no corpo.
Como se sabe, o corpo é uma construção pessoal e social. Para construí-lo cada
indivíduo obedece a uma disciplina, um conjunto de hábitos cotidianos relativos ao corpo
que engloba higiene, dieta alimentar, embelezamento e sobretudo, nos tempos atuais,
prática de determinados exercícios físicos. Como esses hábitos cotidianos estão integrados
ao mercado quase que na sua totalidade, remetem a construção de identidades para o
mundo do consumo. Em outras palavras, no mundo contemporâneo torna-se inviável
constituir-se como igual ou diferente sem passar pelo mercado. Do ponto de vista da vida
prática, cotidiana, material, é impossível construir sua identidade fora do mercado. Uma
série de produtos é necessária para que alguém possa construir seu senso de existir como
13
GIDDENS, Anthony, Modernity and self-identity. Self and society in the late modern age, Londres, Polity
Press/ Blackwell Publishers, 1992 (reimpressão).
11
pessoa e obter o reconhecimento alheio desta construção. As revistas segmentadas dos anos
80 e 90 exploram isto à vontade, estruturando-se, ao mesmo tempo, como laboratórios de
identidades e guias de compras.
O movimento de segmentação da cultura no século XX pode ser pensado como o
resultado da interação entre o caráter aberto da construção da identidade pessoal e coletiva
na modernidade, fator multiplicador das diferenças e a tendência do mercado de alta
competitividade de encontrar novos nichos a serem explorados. Numa relação de
circularidade, um fator alimenta o outro. No entanto, a crítica dos movimentos à absorção
desses processos identitários pelo mercado procede. Os movimentos sociais e culturais
procuram tornar-se sujeitos da sua própria história. O mercado promete a realização de suas
legítimas aspirações através da aquisição de determinados produtos. Uma formulação mais
precisa pode ser extraída das reflexões de Agnes Heller: o mercado transforma a
necessidade moderna de auto-determinação dos grupos e indivíduos em carência ou falta de
determinados produtos. E retira daí a sua força.14
14
HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc, “Da satisfação numa sociedade insatisfeita”, in A condição política
pós-moderna, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998
12
A relação com os movimentos sociais e culturais do século XX é um dos aspectos
da segmentação. Os inúmeros títulos de revistas, por exemplo, podem ser agrupados por
segmentos, cruzando-se as variáveis de gênero, idade e classe sócio-econômica. Estas três
variáveis acabam explicando grande parte do problema. Bo Reimer. Assim, pelo
conhecimento que já se acumulou sobre os gêneros que atraem um determinado tipo de
público, é possível conhecê-lo. Por exemplo, o que interessa mais às mulheres ou aos
homens, mais aos jovens do que aos mais velhos, mais aos jovens do sexo feminino ou do
sexo masculino, o que interessa mais às classes populares ou às mais intelectualizadas e
assim por diante.
Estas características tendem a se repetir em todos os meios, seja televisão, revista,
cinema ou o que for, o que permite que as empresas ao explorarem um segmento ganhem
em sinergia entre todos eles, o que perdem em abrangência do mercado. Assim, por
exemplo, é o mercado das revistas de surf, voltado para jovens do sexo masculino. Como
ele já é um mercado estável no Brasil desde os anos 80 e a prática do esporte se populariza
nos anos 60, esse jovem pode ter 40 ou 50 anos. O que conta aí é o chamado “estilo de
vida”. Como o surf já é um mercado estável desde os anos 80, este estilo de vida já se
autonomizou. Muitas pessoas aderem a ele sem serem praticantes de surf, por pura
identificação, por uma relação estética, existencial, por vezes, ideológica. Milhares de
adolescentes do final do século XX voltaram a se identificar com a imagem de Che
Guevara ou Bob Marley, entre outros. O estilo de vida
Trata-se de um momento de planetarização da modernidade. Embora esta já viesse
mudando o cenário sócio-cultural europeu ao longo do século XIX e dos Estados Unidos na
virada para o século XX, é só no pós-guerra que, com o auxílio dos meios de comunicação
de massa eletrônicos, ela se expande para o resto do mundo. Embora de forma desigual,
como observa Eric Hobsbawn15, a partir de então, as mudanças sociais e culturais do século
XX vão acontecer um pouco por toda parte. Estas mudanças se expressarão nos anos 50/60
através de movimentos como o feminismo, o movimento negro, o movimento jovem, etc.
15
HOBSBAWM, Eric, A era dos extremos. O breve século XX, São Paulo, Companhia das Letras,
1995
13
Tendo um caráter mundial, eles terão repercussão e provocarão transformações em várias
partes do mundo, criando em locais diferentes condições de vida homogêneas e, assim, a
possibilidade de segmentos de mercado iguais em lugares distantes. Globalização e
segmentação caminham juntas: “frase livro Renato”.
na expressão de Hilary Radner, “é no corpo que o sucesso e o fracasso são
negociados”.
Por isto, segundo o autor, os hábitos cotidianos (fortemente relacionados ao mundo
do consumo) em relação à alimentação, práticas de higiene e beleza, cuidados com a saúde,
são tão importantes: porque eles são os responsáveis diretos pela aparência. Poderíamos
dizer que no corpo a dicotomia entre essência e aparência se anula. O corpo diz aquilo que
alguém é. O corpo é o lugar da identidade e, portanto, da diferença.
Como bem formulou Anthony Giddens, romper com as tradições significa tornar
aberto e reflexivo o processo de construção das identidades pessoais e coletivas.
Download