a inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado

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A
INCONSTITUCIONALIDADE
DIFERENCIADO
DO
REGIME
DISCIPLINAR
Daniela Carvalho Portugal1 e Bruno Nova Silva2
1. INTRODUÇÃO
A Lei n° 7.210/84, denominada Lei de Execução Penal (LEP), sofreu alteração pela
edição da Lei n° 10.792/03, que instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). À
época da referia alteração, pensou-se tratar de meio eficaz para o combate à
criminalidade crescente que figurava como responsável pela incrementação do forte
temor social frente ao crime organizado.
Neste sentido, serão analisados os gradativos fatores sociais e medidas institucionais
que
antecederam
a
instituição
do
RDD
no
ordenamento
jurídico
pátrio,
contextualizando-os com a atual política de direito penal de emergência3. Desta forma,
buscar-se-á a demonstração do mero efeito simbólico que marca tais medidas, em
especial o RDD, frente a uma sociedade gravemente abalada pelo temor da violência
social.
O presente trabalho, portanto, tem o objetivo de discutir os dispositivos legais trazidos
com a referida alteração, contrapondo-os ao sistema jurídico vigente. Para tanto, dar-seá enfoque aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo e a sua demasiada
flexibilização frente a tais políticas de segurança pública.
2. ASPECTOS TÉCNICOS
Preliminarmente, cumpre ressaltar que o Regime Disciplinar Diferenciado, apesar de tal
denominação, ainda não constitui regime autônomo de cumprimento de pena, ao menos
quanto à acepção técnica do termo. Isto porque, conforme o quanto disposto no art. 33
do Código Penal brasileiro c/c art. 110 da LEP, tem-se como regimes para o
1
Mestranda em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia; advogada e
professora de Direito Penal.
2
Mestrando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia; advogado.
3 MOCCIA, Sergio. La perenne emergenza. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 1997.
cumprimento da pena a serem determinados pelo juiz quando da condenação do réu:
fechado, semi-aberto ou aberto. Entretanto, já é demonstrada a intenção política em
torná-lo um regime autônomo de cumprimento de pena, como evidencia o Projeto de lei
do Senado n° 179 de 2005, que prevê a criação do regime penitenciário de segurança
máxima.
Assim, pode-se definir o RDD como um tratamento especial conferido, sem prejuízo da
sanção penal, ao preso, seja ele provisório ou condenado, que cometa falta grave
mediante prática de conduta prevista como crime doloso capaz de ocasionar subversão
da ordem e disciplina internas. Cabe aqui, de início, antecipar a ofensa ao modelo
garantista referente à possibilidade de submissão do preso provisório ao RDD, valendo
o destaque da construção de Ferrajoli sobre as medidas cautelares:
Naturalmente, a ausência do nexo entre pena e delito dissolve, em tais casos,
inclusive, a garantia da legalidade, ademais dos eventuais vínculos da
jurisdicionariedade: a lei que estabelece os pressupostos da medida
preventiva, com efeito, corresponde a uma norma em branco, quer dizer, a
uma espécie de caixa vazia, preenchida em cada ocasião dos conteúdos mais
arbitrários; o juízo, ao estar desvinculado de qualquer condição objetiva
preexistente e informado por meros critérios de discricionariedade
administrativa, degenera em procedimento policial de estigmatização moral,
política ou social. 4
Outrossim, imperioso ressaltar que também estão igualmente sujeitos ao RDD os presos
provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a
ordem e segurança do estabelecimento penal e da sociedade ou sobre os quais recaiam
fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em
organizações criminosas, quadrilha ou bando, conforme dispõem os §§ 1° e 2° do art. 52
da LEP. Tal fato aproxima o modelo punitivo escolhido pelo Estado brasileiro do
chamado “sistema de mera prevenção”, combatido por Ferrajoli:
É evidente o caráter não igualitário, ademais de puramente decisionista,
deste esquema de intervenção punitiva. De conformidade com ele, o direito
e o processo penal se transformam de sistema de retribuição, dirigido a
prevenir os fatos delituosos por meio da comprovação e da punição dos já
ocorridos, em sistema de pura prevenção, dirigido a afrontar a mera suspeita
de delitos cometidos, mas não provados, ou o mero perigo de delitos
futuros.5
O interno submetido ao RDD será recolhido em cela individual, tendo direito à visitas
semanais de duas pessoas, não contadas as crianças, com duração de duas horas. Terá,
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria Geral do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula
Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 82.
5
Id., Ibid., p. 81-82.
4
também, direito à saída da cela durante apenas duas horas diárias para banho de sol.
Vale dizer que a submissão ao RDD tem duração máxima de trezentos e sessenta dias,
podendo ser prorrogada por igual período em virtude de nova falta grave da mesma
espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada. Neste sentido, importante é recordar
o quanto disposto na súmula 715 do STF, segundo a qual os incidentes de execução da
pena são contados com base no total das penas unificadas, e não do limite de trinta anos.
Portanto, se um indivíduo fosse condenado a 200 anos, ele poderia passar até um sexto
de tal condenação em RDD!
Conforme verbera o art. 54 da supracitada lei, diferente do que ocorre com as demais
sanções disciplinares às quais ficam sujeitos os internos, para a imposição ao RDD é
necessário não mero ato motivado do diretor do estabelecimento carcerário, mas prévio
e fundamentado despacho do juiz competente.
Para tanto, caberá ao diretor ou a outra autoridade administrativa a elaboração de
requerimento circunstanciado, que passará pela análise do presentante do Ministério
Público e pela manifestação da defesa – a ser apresentada em um prazo máximo de
quinze dias –, para só então ser decidida pela autoridade judiciária competente.
Vale frisar, ainda, que há possibilidade de inclusão do interno no RDD em caráter
provisório, desde que no interesse da disciplina e averiguação do fato, o que, no entanto,
fica condicionado ao despacho do juiz competente e tem prazo máximo de dez dias a ser
abatido quando da imposição definitiva.
Importante esclarecer que também se aplica ao RDD o quanto disposto no art. 45 da
LEP. Desta forma, fica vedada a aplicação de falta grave ou sanção disciplinar sem que
haja expressa previsão legal ou regulamentar que a defina, bem como proibida a
colocação em risco da integridade física e moral do detento, a alocação em cela escura e
a aplicação de sanções coletivas.
Ultrapassada a exposição do tratamento legal instituidor do RDD, cabe agora tecer
alguns comentários acerca de tais disposições. Quando da determinação da amplitude da
sujeição passiva ao RDD, o legislador fez uso da expressão “apresentem alto risco para
ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade”. Trata-se de flagrante
violação à estrita legalidade ou taxatividade, já que, segundo tal princípio, é obrigatória
a utilização de técnica legislativa idônea a excluir dispositivos arbitrários e
discriminatórios que se refiram às pessoas e não a fatos. Com isso, cabe à lei prevê
hipóteses que traduzam apenas comportamentos empíricos determinados para não
incorrer no chamado “direito penal do autor”, severamente condenado por Ferrajoli:
Substancialismo e subjetivismo, além disso, alcançam as formas mais
perversas no esquema penal chamado tipo de autor, onde a hipótese
normativa de desvio é simultaneamente “sem ação” e “sem fato ofensivo”.
A lei, neste caso, não proíbe nem regula comportamentos, senão configura
status subjetivos diretamente incrimináveis: não tem função reguladora, mas
constitutiva dos pressupostos da pena; não é observável ou violável pela
omissão ou comissão de fatos contrários a ela, senão constitutivamente
observada e violada por condições pessoais, conformes ou contrárias. 6
Tal técnica legislativa representa, ainda, violação à estrita jurisdicionalidade, já que
exclui da hipótese acusatória os seus requisitos da refutabilidade e verificabilidade. Isto
porque configurar “alto risco” consiste em mero juízo de valor, dotado assim de inteira
subjetividade, o que, além de conferir indesejada margem de discricionariedade quando
da aplicação de tal medida, impossibilita o exercício da ampla defesa e do contraditório,
já que não se pode confrontar de maneira objetiva um juízo de valor.
Outra expressão utilizada que merece ser analisada é “fundadas suspeitas”. Isto pois sua
disposição acaba por ferir frontalmente o princípio constitucionalmente consagrado da
presunção de inocência. Como se admitir que, em um regime democrático garantidor
dos direitos fundamentais do indivíduo, uma lei faculte ao judiciário a restrição à
liberdade de um indivíduo em tal nível por existir contra ele “fundadas suspeitas”?!
Conclui-se, portanto, que a previsão legal do Regime Disciplinar Diferenciado, da
forma que está posta no nosso ordenamento jurídico, apresenta graves defeitos formais.
Apega-se em conceitos fluidos, indeterminados, e elementos normativos do tipo, que
conferem ampla margem de discricionariedade na aplicação dos seus dispositivos.
Frise-se, por oportuno, que uma discricionariedade demasiada nada mais é senão um
pressuposto para arbitrariedades!
6
FERRAJOLI, op. cit., p. 80-81.
3. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-POLÍTICA
A Lei de Execução Penal, quando editada, foi considerada uma lei a frente de seu
tempo, pois, mesmo antes da promulgação da denominada Constituição “cidadã” de
1988, já previa uma série de direitos e garantias fundamentais, bem como princípios a
serem seguidos no tratamento dispensado ao indivíduo apenado.
O grande problema, à época, era a falta de estrutura do Estado que permitisse a garantia
de uma efetividade dos dispositivos da supramencionada lei. Diante dessa situação, o
Estado optou não por criar medidas político criminais de base que viabilizassem a
aplicação de tais dispositivos, mas por suprimi-los de forma gradativa.
Tal supressão configurou verdadeiro “atestado” de incompetência estatal frente ao
combate à criminalidade, configurando flagrante ofensa ao princípio da vedação ao
retrocesso social, aproximando mais o país do modelo totalitarista e, consequentemente,
distanciando-o do suposto ideal democrático politicamente proclamado.
O contexto de institucionalização do RDD está intimamente ligado à evolução do crime
organizado no país, bem como ao espaço que se fez ocupar de tal assunto na mídia
brasileira. A crescente violência urbana e o forte temor social “legitimaram” a
flexibilização de direitos e garantias consagrados não só pela LEP como também pela
Constituição Federal de 1988.
Pode-se afirmar, inclusive, que a intenção política já era manifesta neste sentido, já que
é muito mais fácil resumir a política criminal à construção de presídios em lugar de
investir em programas sociais de base. Faltava, apenas, uma justificativa politicamente
idônea para se conquistar o massificado apoio popular em prol do sistema de lei e
ordem que passam a defender e inaugurar.
Neste sentido, para a conquista do clamor social – e sua conseqüente manipulação –
faltava tão somente a existência de um “vilão”, um “inimigo do Estado”, rótulo para o
qual os presidiários, sobretudo o traficante serviram muito bem. Escolhido o “bode
expiatório”, ficaria mais fácil isentar o dito “cidadão de bem” de culpa pelas mazelas
sociais que influenciam, direta ou indiretamente, no aumento da criminalidade e
persuadi-lo a aderir à política de tolerância zero.
O fato mais marcante propulsor da supressão de direitos e garantias foi o surgimento do
Primeiro Comando da Capital (PCC), facção de presidiários no estado de São Paulo. Em
1985, quando criado o Anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, foram
construídas 160 celas separadas, utilizadas no isolamento dos internos considerados
perigosos. Já naquela época, tal segregação revoltava os presos, que se organizaram,
fazendo surgir, em 1993, o PCC.
A partir de então, tal facção criminosa comandou uma série de acontecimentos, dentre
os quais é possível destacar duas rebeliões como fatores decisivos no endurecimento
penal e na busca por mecanismos eficazes para evitar semelhantes situações.
O primeiro fato marcante, neste contexto, foi o grave motim na Casa de Custódia em
Taubaté, no ano de 2000, em que houve a destruição completa da penitenciária, bem
como a morte de nove internos, sendo quatro decapitados.
O segundo evento, considerado a maior rebelião do país até então, ocorreu em 2001
após o retorno dos “presos perigosos” para a Casa de Custódia, quando findada a sua
reforma. Tal rebelião envolveu 25 presídios e 4 cadeias do estado de São Paulo.
Este último fato gerou grave repercussão social, culminando na edição da Resolução n°
26 de 2001 pelo então Secretário da Administração Penitenciária (SAP) do estado de
São Paulo Nagashi Furukawa, que instituiu o RDD no mesmo ano.
A grande polêmica à época versava sobre a ilegalidade de tal resolução, tanto no seu
aspecto material, posto que contrariava os dispositivos da LEP, quanto no seu aspecto
formal, já que violava a separação de Poderes e a competência para a edição de leis que
pertence, exclusivamente, ao Poder Legislativo.
Neste sentido, houve diversas manifestações jurisprudenciais pela inconstitucionalidade
de tal dispositivo, dentre as quais merece destaque a decisão proferida pela 1ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo quando do julgamento do Habeas Corpus
relativo ao processo de n° 978.305.3/0-00. O referido HC tinha como paciente Marcos
Willians Herbas Camacho, vulgo “Marcola”, e como relator o desembargador Borges
Pereira, no qual seque trecho do voto:
[...] Trata-se, no entanto, de medida inconstitucional, como se sustenta a
seguir:
O chamado RDD (Regime disciplinar diferenciado) é uma aberração jurídica
que demonstra à saciedade como o legislador ordinário, no afã de tentar
equacionar o problema do crime organizado, deixou de contemplar os mais
simples princípios constitucionais em vigor.
Já no seu nascimento, a medida ofende mortalmente a Constituição Federal,
desde que a resolução SAP n° 026/01, que cria o regime disciplinar
diferenciado, é ato de secretário de estado, membro do Poder Executivo, a
que não cabe legislar sobre matéria penal, nem tampouco penitenciária,
segundo a Constituição Federal (arts. 22, I e 24, I). Assim, a inexistência de
procedimento legislativo e da necessária edição de lei federal, é que deveria
bastar para demonstrar a inviabilidade de sua efetivação, configurando
evidente constrangimento ilegal.
Solucionando a polêmica apenas em seu aspecto formal, foi editada, dois anos após a
SAP n° 026/01, a lei n° 10.792 de 2003, que altera a LEP e institui o RDD.
4. DIREITO PENAL DE EMERGÊNCIA E O RDD
Os discursos têm o efeito de centrar a atenção sobre certos fenômenos e seu
silêncio em relação a outros os condena à ignorância ou à indiferença. Isso é
o que acontece com a verdadeira dimensão política do poder punitivo, que
não se radica no exercício repressivo-seletivo da criminalização secundária
individualizante, mas no exercício configuradr-positivo da vigilância, cujo
potencial controlador é imenso em comparação com a escassa capacidade
operativa da primeira.7
A violência urbana e sua respectiva exploração pela mídia, consoante já mencionado,
geram um intenso temor pela falta de segurança pública, que repercute no clamor social
por medidas céleres e enérgicas por parte do Estado no combate à criminalidade.
Mas a velocidade da notícia e a própria dinâmica de uma sociedade
espantosamente acelerada são completamente diferentes da velocidade do
processo, ou seja, existe um tempo do direito que está completamente
desvinculado do tempo da sociedade. E o Direito jamais será capaz de dar
soluções à velocidade da luz.
Estabelece-se um grande paradoxo: a sociedade acostumada com a
velocidade da virtualidade não quer esperar pelo processo, daí a paixão pelas
prisões cautelares e a visibilidade de uma imediata punição. Assim querem o
mercado (que não pode esperar, pois o tempo é dinheiro) e a sociedade (que
não quer esperar, pois está acostumada ao instantâneo).8
7
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito
Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de janeiro: Renavan, 2003, p.
69.
8
LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da instrumentalidade
Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p. 28.
Neste contexto, os poderes políticos encontram terreno fértil para a adoção de medidas
emergenciais, com forte valor simbólico frente a uma sociedade amedrontada e, por
isso, de fácil manipulação, como é o caso do RDD.
O simbolismo decorre da falsa, porém tranqüilizante, idéia de que esta nova política é
eficaz: raciocínio construído e propagado pelos meios de comunicação, que exploram
lucrativamente o temor social e manipulam a opinião pública. Deflagra-se um processo
de fobia generalizada em que está presente não só o medo concreto decorrente de uma
prática delitiva consumada, como também o pânico diante da possibilidade constante da
agressão. Desenvolve-se, portanto, a perseguição à figura do “bode expiatório”,
“inimigo do estado”, o que contribui para o fortalecimento da segregação e da
marginalização social.
A legislação penal de emergência surge no momento em que o Estado se utiliza de
medidas de reafirmação da sua soberania no combate a situações excepcionalmente
graves, capazes de abalar a ordem e segurança do país, ocasionando forte temor social.
Esta resposta estatal, em princípio, seria legítima e necessária, não fossem as
conseqüências que, na prática, são extraídas de tal política.
As intervenções de urgência parecem sempre chegar ao mesmo tempo
demasiado cedo e demasiado tarde: demasiado cedo porque o tratamento
aplicado é sempre superficial; demasiado tarde porque, sem uma inversão de
lógica, o mal não parou de se propagar.9
Essa situação excepcional acaba por se perpetuar e tais medidas são incorporadas ao
ordenamento jurídico pátrio, dando vez à institucionalização de um “Direito Penal de
Emergência”. Significa, então, que o Estado acaba por “atestar” a sua incapacidade de
restaurar o ambiente de normalidade, e a situação supostamente excepcional se torna
regra.
Assim,
legitima-se
a
quebra
de
direitos
e
garantias
fundamentais
constitucionalmente consagrados, ferindo o modelo de Direito Penal garantista,
preconizado por Luigi Ferrajoli.
Conclui-se, portanto, que o RDD é mais um fruto desta legiferação de emergência e,
como tal, possui caráter meramente simbólico, não constituindo medida idônea ao
verdadeiro enfrentamento da problemática da criminalidade, até porque é manifesto que
9
OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Piaget, 1999, p. 356 apud LOPES JUNIOR, Aury. Op
cit., p. 29.
tal fenômeno vai muito além de um mera e efêmera situação de anormalidade. Desta
forma, mais uma vez o Estado cede às pressões da mídia e, consequentemente, da
sociedade, dispensando tratamento superficial a um assunto de tamanha gravidade.
Elege-se figuras, tais como “Fernandinho Beira-Mar” e “Marcola” como “bodes
expiatórios”, atribuindo-lhes a falsa responsabilidade pela violência urbana. Assim,
utiliza-se do intolerante e cruel tratamento a tais “líderes”, dando-lhes publicidade
essencialmente comercial e politiqueira, com o mero fim de representatividade da
atividade estatal de combate à violência.
5. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
O RDD viola flagrantemente os direitos e garantias fundamentais consagrados pelo
nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, observa-se não só a afronta aos preceitos
expressamente dispostos na Constituição de 1988, como também aos princípios
implícitos e aos direitos e garantias consagrados em tratados internacionais em que o
país é signatário.
Cabe aqui uma breve digressão com o objetivo de distinguir as supracitadas vertentes
assumidas pelos direitos e garantias fundamentais no nosso ordenamento jurídico.
Primeiramente, existem aqueles devidamente expressos em nossa Magna Carta,
elencados não só em seu art. 5°, como também ao longo de seu texto. Os princípios
implícitos, por sua vez, têm o seu conteúdo extraído da interpretação sistemática dos
dispositivos atinentes às regras de garantias. Por fim, seguindo a moderna orientação de
Direito Internacional Público, os direitos inscritos em tratados internacionais ocupariam
mesma posição hierárquica – ou até superior – em relação aos preceitos constitucionais
expressos.
O que vem ocorrendo, em termos práticos, é a manifestação da atual tendência a
interpretar a Constituição à luz dos textos infraconstitucionais. É verdade que um
princípio,
quando
isoladamente
considerado,
traduz
diversas
possibilidades
interpretativas, dentre as quais caberá ao Estado a escolha daquela que irá tutelar.
Entretanto, ao ser inserido em um sistema jurídico harmônico, tal princípio tem suas
possibilidades de interpretação naturalmente reduzidas, uma vez que o todo do qual ele
é parte limita a escolha do significado correspondente exato a ser tutelado. Não fosse
esta busca de unidade e coerência, impossível seria falar em sistema harmônico.
A interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não de
textos isolados, desprendidos do direito.
Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços.
A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em
qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele
– do texto – até a Constituição. um texto de direito isolado, destacado,
desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo
algum.10
Desta forma, o interesse pela segurança pública não pode ser visto de outra forma senão
em conjunto com os demais princípios garantistas consagrados pela Constituição
“cidadã” de 1988. A crescente legiferação de emergência, no afã de prever situações
rápidas – embora ineficazes – de combate a problemas estruturais, para a conquista de
apoio político, acaba por desnaturar o modelo garantista e democrático proposto, ao
menos em tese, pela Magna Carta. Esta carência de diretrizes e valores agrava a situação
de temor social, facilitando a manipulação do cidadão para o apoio de medidas de
urgência, das quais o RDD é grande exemplo, flagrantemente inconstitucionais.
Sob uma perspectiva sistemática, o RDD foge à construção de um modelo de Estado
garantidor, conforme restará demonstrado a seguir, ignorando a construção feita por
Ferrajoli:
Cada uma das implicações deônticas – ou princípios – de que se compõe
todo modelo de direito penal enuncia, portanto, uma condição sine qua non,
isto é, uma garantia jurídica para a afirmação da responsabilidade penal e
para a aplicação da pena. Tenha-se em conta de que aqui não se trata de uma
condição suficiente, na presença da qual esteja permitido ou obrigatório
punir, mas sim de uma condição necessária, na ausência da qual não está
permitido ou obrigado punir. 11
O RDD viola o princípio do non bis in idem, que, apesar de não ser expressamente
previsto na Constituição, é necessário à própria legitimação de um Estado Democrático
de Direito. Isto porque o envolvimento em quadrilha ou bando, além de ser previsto
como hipótese de incidência do RDD, também constitui crime autônomo, tipificado no
art. 288 do nosso Código Penal em vigor.
O princípio da dignidade da pessoa humana, disposto já no art. 1°, III, combinado com a
leitura do art. 5°, XLIX, ambos da Carta Constitucional pátria também resta
10
11
Id., Ibid., p. 40.
FERRAJOLI, op. cit.,p. 74.
desrespeitado. A ofensa à integridade física e moral do preso submetido ao RDD é
alarmante, pois o excessivo confinamento consiste em condição capaz de desencadear
um processo de atrofia muscular, bem como o acometimento do interno a um estado de
depressão profunda.
Observa-se, ainda, a ofensa ao princípio da humanização das penas, previsto não só na
Constituição Federal, em seu art. 5°, III, como também na Convenção Americana de
Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), em seu art. 5° n° 2,
segundo o qual “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis,
desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o
respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”.
O RDD agride, ainda, os princípios do in dubio pro reo e da presunção de inocência,
este último previsto no art. 5°, LVII, segundo o qual “ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Isto ocorre não só
porque o RDD pode ser aplicado ao preso provisório, como também pelo fato de as
hipóteses de incidência estarem calcadas em conceitos valorativos e ambíguos, tais
como “alto risco” e “fundado temor”, o que enseja demasiada discricionariedade quando
da aplicação da norma em detrimento do preso. Desta forma, a mera suspeita justifica,
de forma arbitrária e nefasta, a inclusão de um indivíduo em condições de confinamento
subumanas.
Neste contexto, a utilização legal de termos imprecisos e repletos de subjetividade
revela-se, ainda, uma afronta direta ao princípio da legalidade estrita vigente no direito
penal pátrio, conforme dispõe o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal. Vale aqui
mencionar as duas condições intrínsecas a tal princípio, quais sejam: “o caráter formal
ou legal do critério de definição do desvio e o caráter empírico ou fático das hipóteses
de desvio legalmente definidas” 12. Assim, tem-se atendida apenas a primeira condição,
já que se encontra legalizada tal aberração jurídica, “apenas” não restando preenchida a
segunda condição, o que decorre da utilização de figuras subjetivas intrinsecamente
ligadas ao autor, e não a qualquer fato. Mais uma vez, mostra-se indispensável a
doutrina de Ferrajoli:
12
FERRAJOLI, op. cit.,p. 30.
O princípio da legalidade estrita é proposto como uma técnica legislativa
específica, dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias, as
convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e,
portanto, com caráter “construtivo” e não “regulamentar’ daquilo que é
punível: como as normas que, em terríveis ordenamentos passados,
perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do
povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os
“desocupados” e os “vagabundos”, os “propensos a delinqüir”, os
“dedicados a tráficos ilícitos”, os “socialmente perigosos” e outros
semelhantes.13 (grifo nosso).
Também resta violado o princípio da proporcionalidade, já que não há base legal que
indique a dosimetria adequada à aplicação da sanção em virtude de cada uma das
hipóteses de submissão do preso ao RDD, nem mesmo em relação à possibilidade
prevista no caput do art. 52 da LEP, que é definida com base em critérios razoavelmente
objetivos. Neste sentido, sepulta-se, também, o quanto disposto no art. 7° n° 3 do Pacto
de San José da Costa Rica, uma vez que a falta de critério firmado na aplicação da
sanção acaba por submeter o preso a encarceramento arbitrário.
O princípio da individualização da pena, previsto no art. 5° XLVI da Magna Carta, é
ofendido com a aplicação do RDD. A escolha do tempo de duração do castigo feita pelo
juiz é meramente casuística, inexistindo critérios objetivos para a sua respectiva
aplicação com base nos diferentes graus de reprovabilidade sobre o fato. Nada mais
elementar, posto que não se está tratando de diferenciados graus de reprovabilidade da
conduta, mas do autor – hipótese em que resta impossível a delimitação de critérios
concretos de dosimetria, já que se ancora em valoração puramente subjetiva! O
resultado disso é aplicação da mesma punição aos mais diversos presos, ainda que por
motivos absolutamente distintos.
Vale dizer, ainda, que o preso em RDD tem violado o seu direito à informação,
fundamentado pelo art. 5°, XIV da Constituição Federal e pelo art. 39 das Regras
mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Prisioneiros. O confinamento
impossibilita o contato do interno com a realidade que o cerca, incrementando a
alienação do preso – refletindo o interesse político do Estado no isolamento, sobretudo
de líderes de organizações criminosas, como meio de esconder em uma pequena cela de
prisão a sua vasta e evidente incompetência frente o combate às desigualdades sociais e
suas conseqüências.
13
FERRAJOLI, op. cit.,p. 31.
Diante disso, já não se pode mais falar em princípio da função ressocializadora da pena,
uma vez que o art. 1° da LEP, diante da atual política penal da intolerância, configura
texto morto, desprovido de qualquer sentido prático.
O discurso da lei e da ordem conduz a que aqueles que não possuem
capacidade para estar no jogo sejam detidos e neutralizados,
preferencialmente com o menor custo possível. Na lógica da eficiência,
vence o Estado Penitência, pois é mais barato excluir e encarcerar do que
restabelecer o status de consumidor, através de políticas públicas de inserção
social.
Trata-se de uma conseqüência (penal) do afastamento do Estado do setor
social, onde um menos Estado-providência necessita de um Estado (mais)
Penal para conter a decorrente marginalização social. É o que WACQUANT
sintetiza em supressão do Estado econômico, enfraquecimento do Estado
Social, fortalecimento e glorificação do Estado penal.14
Por fim, percebe-se que, ao contrário do que dispõe o art. 5° § 1° da CF-88, as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais não têm, em verdade, aplicação
imediata, aliás, sequer têm qualquer aplicação prática: seria hipocrisia afirmar o
contrário. Caso os princípios normativos realmente guardassem relevância e respeito, ou
mesmo real eficácia normativa em nosso ordenamento, jamais seria permitido o
ingresso ou a permanência do instituto do Regime Disciplinar Diferenciado no sistema
jurídico pátrio.
Com efeito, a segurança pública não é um assunto a ser tratado de forma maniqueísta.
Há quase que uma mitificação do chamado “cidadão de bem” em contraposição à
demonização do indivíduo apenado. Frisa-se tal expressão com o intuito de lembrar que
as jaulas do cárcere não abrigam monstros, mas pessoas. A sociedade “de bem”
frequentemente esquece deste “detalhe” porque não quer se sentir responsável pela
incrementação da miséria humana por intermédio do cárcere.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Só o jurista consciente da insuficiência do monólogo jurídico está apto a
compreender a complexidade característica da sociedade contemporânea.
Para tanto, deve ter humildade científica suficiente para socorre-se de
leituras de sociologia, antropologia, história, psiquiatria, etc. sem falar no
lastro filosófico. Não há espaço para o profissional alienado, porque ele
ali-é-nada.15 (grifo nosso)
14
15
LOPES JUNIOR, Aury. Op cit., p. 13.
LOPES JUNIOR, Aury. Op cit., p. 11-12.
Diante do quanto exposto, conclui-se que o Regime Disciplinar Diferenciado não pode
ser abrigado em nosso sistema jurídico, uma vez que viola diretamente os direitos e
garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal de 1988. Consiste, pois,
em verdadeiro retrocesso, uma vez que atropela o modelo garantista preconizado por
Ferrajoli, aproximando o Estado brasileiro de um modelo totalitarista e autoritário:
[...] reprimem não tanto ou não apenas determinados comportamentos, senão
atitudes ou situações de imoralidade, de perigosidade ou de hostilidade ao
ordenamento, para além de sua exteriorização em manifestações delituosas
concretas. Entretanto, os sistemas e as normas “sem ofensa” prescindem da
lesão de bens jurídicos concretos, ou reprimindo antecipadamente a simples
e freqüente colocação abstrata em perigo, ou mesmo punindo puramente o
desvalor social ou político da ação, para além de qualquer função penal de
tutela.16
A mídia exerce, junto ao Estado, grande parcela de culpa pelo processo de demonização
do indivíduo apenado. Explora lucrativamente o medo da sociedade mediante a
incessante e sensacionalista exibição da violência urbana. A finalidade dos meios de
comunicação em massa, neste sentido, não tem como o objetivo principal a difusão da
informação ao seu público alvo, uma vez que estes manipulam da forma que lhes for
mais conveniente (política e economicamente) a informação que será vendida à
sociedade.
Vale dizer, ainda, que o famigerado RDD não constitui meio idôneo de combate à
criminalidade, uma vez que não é capaz de reduzir os altos índices de violência urbana
ou mesmo reincidência penal. Não é com base em uma política de intolerância que o
Estado conseguirá solucionar tal problemática. Impossível pensar em uma política de
combate ao crime desprovida de um programa social que objetive (e viabilize, por
óbvio) a efetiva melhoria de qualidade de vida da grande parcela miserável da
população brasileira.
O confinamento desencadeia um ciclo vicioso de estigmatização social, uma vez que
aquele indivíduo privado do contato com o mundo exterior retornará à sociedade e o
crime, para ele, funcionará como uma espécie de “reação social”, uma vez que também
é vítima da falta de educação, de oportunidade e da descriminação pelo dito “cidadão
de bem”.
16
FERRAJOLI, op. cit.,p. 80.
É cediço que o ser humano possui como importante característica a capacidade de se
habituar ao meio em que vive. Mesmo não desconsiderando as imperfeições intrínsecas
aos indivíduos, pode-se afirmar, hipoteticamente, que qualquer indivíduo “puro”, livre
das experiências sociais com as quais, diariamente, os brasileiros convivem, entraria em
“choque”, em estado de perplexidade diante da mazelas que circundam as cidades
brasileiras.
Tal espanto, entretanto, apenas dura o curto espaço de tempo em que o indivíduo precisa
para se habituar e, por conseqüência, acomodar-se a tal realidade. É o que ocorre, pois,
com a gradual quebra dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo,
rotineiramente intensificada, maliciosamente inserida na sociedade.
A falência da pena de prisão, neste diapasão, é ainda mais gritante quando submetido o
preso ao RDD, pois é aqui que o processo de demonização é levado ao extremo, já que
são somados os esforços do Estado e da Mídia para rotular aquele indivíduo como
“inimigo do Estado”. Essa constatação frente à falência do sistema carcerário, a muito
declarada por diversos estudiosos, deixa claro que a instituição do Regime Disciplinar
Diferenciado consiste verdadeira “contra-mão” histórica!
Por fim, cabe ao Estado seguir as diretrizes fixadas (expressa e implicitamente) na
Constituição Federal de 1988 e nos tratados internacionais – sobretudo os Tratados
Internacionais de Direitos Humanos e das Regras Mínimas das Nações Unidas para o
Tratamento de Prisioneiros – e expulsar RDD do sistema jurídico pátrio.
Entretanto, frente à constante omissão e manifesto desinteresse político do Estado em
transformar tal realidade e seguir as supracitadas orientações, não se pode perder de
vista que, além desta habilidade se habituar, possui, também, o ser humano a capacidade
de modificar o meio em que vive! É neste último sentido que deve se direcionar a
atitude do jurista, do cidadão, numa postura de efetivação substancial dos direitos e
garantias fundamentais, por meio de políticas sociais de base, e não mediante o uso do
direito penal como vassoura a esconder a sujeira debaixo do tapete.
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