comunicação e expressão por J. B. Oliveira* Calúnia, difamação e injúria contra... uma palavra! “Daqui a dez lustros, quando ninguém se recordar das polêmicas que armei e das resmas de papel que quis encher, estas três ordens de Leituras hão de ainda bradar longo tempo por mim; meio século após o meu decesso, quando se houver calado, em derredor da minha pessoa, a bisbilhotice dos contemporâneos, o meu nome estará no frontispício de alguns grupos escolares, e ao pé deles, no pátio dos recreios, à garotada brasileira, algum mestre-escola de boa sombra há de explicar, soletrando a minha assinatura: - Meninos, este foi um paulista que amou as crianças do Brasil.” Essas palavras foram proferidas – no discurso de recepção na Academia Paulista de Letras – por um dos mais notáveis educadores brasileiros do final do século XIX e início do XX: Erasmo Braga, nascido em 1877 e falecido em 1932. Para se ter uma ideia de sua importância, os livros didáticos que produziu numa série intitulada Leituras, foram os únicos, naquela época, a ser traduzidos para o idioma japonês. Poderíamos dizer, em bom e culto português, que Erasmo Braga era um verdadeiro pedófilo! Calma! Calma! Não há aqui nenhuma intenção de proferir calúnia, difamação ou injúria, o trio de crimes contra a honra previstos nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal! É recomendável fazer, em “apertada síntese”, como costumam dizer os colegas advogados, a distinção entre essas três figuras jurídicas. A calúnia ocorre quando se atribui a alguém, falsamente, algo que constitui crime. Por exemplo: “fulano roubou o dinheiro da dona da pensão”. Na difamação, essa imputação não configura crime, mas ofensa à reputação da pessoa prejudicada. Pode-se figurar com esta frase: “sicrano costuma trabalhar embriagado”. A injúria, por fim, se dá quando se ofende a dignidade pessoal ou o decoro de alguém. “beltrano é o homem mais feio que já vi”. À parte essa digressão, vamos recorrer à etimologia – parte da gramática que trata da origem ou da história das palavras e da explicação de seu significado através da análise dos elementos que as constituem. (A propósito, a própria palavra etimologia tem sua origem no vocábulo grego étymos, que significa verdadeiro. A ele se soma logos: ciência, estudo, tratado). Dentro dos domínios da etimologia, o verdadeiro sentido da palavra pedófilo é apenas “amigo da criança”. A palavra surge a partir de dois termos gregos comuns à formação de outras palavras portuguesas. Paidos (o ditongo ai soa como e), que quer dizer criança e que dá origem a pedagogia, pedagogo, pelo acréscimo de flexão do verbo agogô, que se traduz por conduzir. O pedagogo, portanto, é aquele a quem compete conduzir a criança. [Como estamos iniciando um período de campanha eleitoral, registre-se que demagogo é aquele que conduz o povo. Originalmente, era um termo elevado. Foi aplicado, entre outros, a Sólon (638-558 a.C.) e a Demóstenes (384-322 a.C.)]. Já em nossa época, Bertrand de Jouvenel (1903-1987) define demagogia como “A arte de conduzir habilmente as pessoas ao objetivo desejado, utilizando os seus conceitos de bem, mesmo quando lhes são contrários”. Philo, o outro termo usado para formar a hoje terrível palavra pedófilo, traz essencialmente o sentido de amoramizade, estima, afeição amiga. É uma das três palavras usadas no grego para exprimir esse sentimento humano. As outras duas são eros e ágape. Elas se aplicam a condições próximas, porém, distintas. Eros refere-se ao amor romântico, aproximando-se do carnal, voluptuoso. Nossos vocábulos erótico e erotismo, erotização, por exemplo, saem daí. Já ágape define sentimentos de amor fraternal e espiritual, de convívio sadio e elevado, não vinculado a manifestações carnais. Philo é o mesmo elemento tomado para a formação da palavra filosofia, que tem uma interessante história quanto à sua origem. Consta que, discorrendo diante de Leonte, tirano dos fliuntes, Pitágoras (571 ou 570 – 497 ou 496 a.C) causou tão profunda impressão, que o rei exclamou: “Este homem é um sábio” (sophus). Ao que Pitágoras respondeu com humildade: “Não sophus, mas philosophus” ou seja, “não sábio, mas amigo da sabedoria.” É lastimável que um termo que, em sua essência, exprime um sentimento humano tão sublime, puro e elevado como o amor-afeto, o amor-estima, o amor-proteção à criança tenha se tornado, ao longo dos anos, algo tão indigno, repulsivo, odioso e apavorante como – em seu sentido atual deturpado, caluniado, difamado e injuriado – é a palavra pedófilo! * J. B. Oliveira é Consultor de Empresas, Professor Universitário, Advogado e Jornalista. É Autor do livro “Falar Bem é Bem Fácil”, e membro da Academia Cristã de Letras www.jboliveira.com.br – [email protected] 42