Lúpus Eritematoso Sistêmico - International Journal of

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Internacional Journal of Cardiovascular Sciences. 2015; 28(3):251-261
ARTIGO DE REVISÃO
Lúpus Eritematoso Sistêmico: Revisão das Manifestações Cardiovasculares
Systemic Lupus Erythematosus: Review of Cardiovascular Aspects
Luis Otávio Cardoso Mocarzel, Pedro Gemal Lanzieri, Ricardo Azêdo Montes,
Ronaldo Altenburg Odebrecht Curi Gismondi, Cláudio Tinoco Mesquita
Universidade Federal Fluminense – Hospital Universitário Antonio Pedro – Departamento de Medicina Clínica – Niterói, RJ – Brasil
Resumo
Lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma condição autoimune com processo fisiopatológico complexo, no
qual sua atividade inflamatória é potencializadora da doença coronariana através de inflamação sistêmica,
disfunção endotelial e predisposição à trombose. O acometimento cardiovascular no LES não é critério
diagnóstico, sendo considerado somente como dano já estabelecido em longo prazo de doença. O objetivo
deste artigo é destacar a importância da visão clínica para a identificação precoce do acometimento
cardiovascular no LES. É feita uma análise crítica da abordagem cardiológica no LES, com ênfase nos aspectos
clínicos, biomarcadores cardiovasculares e genética e solicitação racional dos exames complementares. A
particularidade dos pacientes com nefrite lúpica e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo também é destacada.
A percepção do dano cardíaco subclínico é fundamental para interromper o ciclo de agressão miocárdica e
evitar progressão de doença cardíaca.
Palavras-chave: Lúpus eritematoso sistêmico; Doenças cardiovasculares; Inflamação
Abstract (Full texts in English - www.onlineijcs.org)
Systemic lupus erythematosus (SLE) is an autoimmune condition with a complex pathophysiological process in which its inflammatory
activity is an enhancer of coronary disease by systemic inflammation, endothelial dysfunction and predisposition to thrombosis. The
cardiovascular involvement in SLE is not a diagnostic criterion and is considered only as damage established in the long-term of
the disease. The objective of this study is to highlight the importance of clinical vision for the early identification of cardiovascular
involvement in SLE. A critical analysis of the cardiac approach in SLE, with emphasis on clinical aspects, cardiovascular biomarkers
and genetics and rational request of additional tests. The particularity of patients with lupus nephritis and antiphospholipid antibody
syndrome is also highlighted. The perception of subclinical cardiac damage is critical for interrupting the cycle of myocardial injury
and to avoid progression of heart disease.
Keywords: Lupus erythematosus, systemic; Cardiovascular diseases; Inflammation
Introdução
Lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma condição
autoimune com processo fisiopatológico complexo, que
envolve fatores genéticos, ambientais e possivelmente
infecciosos1. Os principais componentes do sistema
imune inato e adaptativo, celular e humoral têm
influência sobre a doença, e pode acometer de forma
variada diversos órgãos e tecidos2.
Os critérios diagnósticos de LES foram recentemente
revisados, com o objetivo de aumentar a acurácia
diagnóstica (Quadro 1), em que a presença de quatro ou
mais critérios clínico-laboratoriais é definidora de LES1.
Correspondência: Pedro Gemal Lanzieri
Av Marquês do Paraná, 303 7º andar – Centro – 24030-215 – Niterói, RJ – Brasil
E-mail: [email protected]
DOI: 10.5935/2359-4802.20150037
Artigo recebido em 04/03/2015, aceito em 31/03/2015, revisado em 10/04/2015.
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Mocarzel et al.
Lúpus e Doença Cardiovascular: Revisão
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Artigo de Revisão
Quadro 1
Critérios SLICC para diagnóstico de LES
1.
Lúpus cutâneo agudo: inclui rash malar, lúpus bolhoso, e rash fotossenssível;
2.
Lúpus cutâneo crônico: rash discoide, hipertrófico ou paniculite lúpica;
3.
Úlceras orais: palato, boca e língua; ou úlceras nasais;
4.
Alopecia não cicatricial;
5.
Sinovite de duas ou mais articulações, com edema ou derrame articular (ou artralgia, e rigidez matinal maior
que 30 minutos);
6.
Serosite: dor pleurítica típica por mais de um dia ou derrame pleural ou atrito pleural; dor pericárdica típica por
mais de um dia ou efusão pericárdica ou atrito pericárdico ou eletrocardiograma com sinais de pericardite;
7.
Renal: relação entre proteína e creatinina urinárias (ou proteinúria de 24 horas) com mais de 500 mg de proteínas
nas 24 horas, ou cilindros hemáticos;
8.
Neurológico: convulsão, psicose, mielite; mononeurite múltipla, neuropatia cranial ou periférica, estado confusional
agudo;
9.
Anemia hemolítica;
10. Leucopenia <4 000/mm3 ou linfopenia <1 000/mm3, na ausência de outra causa conhecida;
11. Trombocitopenia <100 000/mm3, na ausência de outra causa conhecida;
12. Fator antinuclear positivo;
13. Anticorpo anti-DNA positivo;
14. Anticorpo anti-Sm positivo;
15. Positividade de anticorpos antifosfolipídeos;
16. Complemento reduzido (frações C3, C4, CH50);
17. Coombs direto positivo (na ausência de anemia hemolítica).
Fonte: adaptado de Petri et al.1
LES – lúpus eritematoso sistêmico; SLICC – Systemic Lupus International Collaborating Clinics
O índice SLICC ( Systemic Lupus International
Collaborating Clinics, 2012 ) 1 é validado para o
acompanhamento ambulatorial dos
ABREVIATURAS E
pacientes com LES para representar
ACRÔNIMOS
dano cumulativo pela doença1,2. Nessa
classificação, o acometimento
•DAC – doença arterial
cardiovascular é determinado pela
coronariana
presença de: hipertensão pulmonar,
•ECG – eletrocardiograma
história de angina ou angioplastia, infarto
•IC – insuficiência cardíaca
prévio, diagnóstico de cardiomiopatia,
•LES – lúpus eritematoso
presença de doença valvar, pericardite há
sistêmico
mais de seis meses ou pericardiectomia,
•NT-proBNP – peptídeo
ou história de claudicação vascular por
natriurético cerebral
mais de seis meses3.
•PCR – proteína C-reativa
• SAF – síndrome do anticorpo
antifosfolipídeo
•SLICC – Systemic Lupus
International Collaborating
Clinics
A primeira descrição do comprometimento
cardíaco por LES é atribuída a William
Osler, em 1895 4 . O acometimento
cardiovascular no LES não é critério
diagnóstico (ACR), sendo considerado
somente como dano já estabelecido em longo prazo
(índice SLICC). A pericardite é incluída no critério de
serosites, porém não contempla outras formas de
agressão ao coração. Em algum momento, na progressão
da doença, o acometimento miocárdico tem início, e essa
identificação precoce permitirá abordar a doença
miocárdica e melhorar o desfecho por morbimortalidade
cardiovascular5.
A frequência do LES é variável na população, podendo
chegar a 1:200 mulheres negras. Sua prevalência está bem
estabelecida em países da Europa e da América Central,
com taxas que variam de 20 a 200 por 100 000 pessoas.
Dados epidemiológicos nos países latino-americanos são
escassos e controversos.
Apesar do grande impacto na qualidade de vida dos
pacientes, a incidência e a prevalência de LES no Brasil
foram pouco descritas, e há poucos estudos com dados
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em nível nacional. A epidemiologia do LES no Brasil
segue a tendência universal de predominar em
mulheres em idade fértil – terceira década de vida, com
a estimativa atual de 16-80 000 casos diagnosticados no
país 6,7. Na região sul, foi estimada incidência de
4,8 casos/100 000 habitantes/ano, com predominância
de sexo feminino e faixa etária na quarta década
de vida; referências internacionais mostram uma
incidência variando entre 1,15 e 9,3 casos a cada
100 000 habitantes/ano 8 . Avaliações regionais
descreveram apresentações clínicas semelhantes, com
predominância de manifestações cutâneas e articulares.
Estudo de prontuários na região norte do país
identificou acometimento renal em 62,5%, porém não
houve documentação específica do dano cardíaco9.
Na casuística do Hospital Universitário Antônio Pedro
(HUAP), há prevalência de nefrite em 40,0% dos
pacientes com LES e de anormalidades cardíacas em mais
de 50,0% dos pacientes (dados ainda não publicados),
porém, não se sabe a proporção desses pacientes que
apresentam doença cardiovascular (DCV) incipiente ou
estabelecida.
Não há protocolo estabelecido na literatura para
avaliação cardíaca dos pacientes com LES. O objetivo
deste artigo é destacar a importância da visão clínica para
a identificação precoce do acometimento cardiovascular
no LES. A história e o exame clínico podem levar à
suspeição do acometimento cardiovascular em pacientes
que tenham manifestações clínicas predominantes em
outros sistemas – osteoarticular, renal, hematológico, e
permitir melhor controle da morbimortalidade
cardiovascular no LES10-13.
Métodos
Realizada uma revisão não sistemática da literatura para
encontrar estudos sobre as manifestações cardiovasculares
do LES. A busca foi realizada nas bases de dados
PubMed, Medline e Google Scholar até o limite de 20 de
fevereiro de 2015. Os filtros utilizados foram: artigos de
relevância internacional e não anteriores a 1980. Os
seguintes descritores e termos, em inglês, foram
aplicados: “Systemic lupus erythematosus and cardiovascular
disease”, e “Systemic lupus erythematosus and cardiovascular
disease and nephritis”. A pesquisa retornou 1 334 artigos,
sendo 614 com ênfase nos achados cardiovasculares.
Após análise dos resumos dos artigos, foram excluídos
aqueles em duplicidade ou não relacionados ao tema,
com resultado final de 51 artigos, nos idiomas inglês,
francês, italiano e português.
Manifestações cardíacas no LES
A doença cardiovascular representa a maior causa de
morbimortalidade nos pacientes com LES, sendo as mais
prevalentes: doença coronariana (12-90,0%), doenças do
miocárdio (40-60,0%) e pericárdio (25-50,0%), insuficiência
cardíaca (5-31,0%), valvopatias (13-65,0%) e distúrbios
de condução (3-16,0%) (Quadro 2)13. Estima-se que até
50% dos pacientes com LES tenham anormalidades
cardíacas, sendo a maioria oligossintomáticas, porém
detectáveis quando investigados com métodos de
imagem de alta sensibilidade 10. Há prevalência de
hipertensão arterial sistêmica em até 2/3 dos pacientes
com LES, o que contribui para aterosclerose acelerada e
aumento do risco cardiovascular 11 . Apesar dessa
importância, não há critérios cardiológicos estabelecidos
dentro da classificação dos critérios SLICC, o que enfatiza
a necessidade de percepção clínica pelo médico.
Quadro 2
Manifestações cardiovasculares nos pacientes com LES
Sítio anatômico
Apresentação clínica
Pericárdio
Derrame pericárdico, pericardite
Miocárdio
Insuficiência cardíaca, miocardite
Alterações valvulares
Endocardite (infecciosa e não infecciosa)
Sistema de condução
Bloqueio atrioventricular, taquicardia sinusal
Doença arterial coronariana
Angina estável, síndrome coronariana aguda
LES – lúpus eritematoso sistêmico
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A atividade autoimune do LES pode induzir doença
no pericárdio (mais comum), epicárdio ou endocárdio,
com espectro de manifestações clínicas que variam
desde pacientes assintomáticos até quadros de
insuficiência ventricular esquerda aguda com
necessidade de suporte hemodinâmico12. Disfunções
valvares são menos frequentes e têm prevalência
semelhante à da população geral11. A percepção do dano
cardíaco subclínico é fundamental para interromper o
ciclo de agressão miocárdica e evitar a progressão de
doença cardíaca14,15.
Recentemente, foi descrita doença isquêmica do coração
em pacientes com LES sem doença arterial coronariana
(DAC) obstrutiva identificável. Ishimori et al. 10
descreveram, em pacientes com LES e angina de peito,
uma prevalência de 44,0% de alterações em exames de
ressonância magnética cardíaca com avaliação da
perfusão miocárdica ao estresse, com redução do índice
de reserva de perfusão coronariana, com coronariografia
normal10,11. A hipótese mais provável é que o déficit
de perfusão decorra de disfunção coronariana
microvascular12.
Com o diagnóstico precoce da DAC, a sobrevida desses
pacientes aumenta, assim como também melhora o
prognóstico dos pacientes que evoluem com insuficiência
cardíaca (IC). Clarke et al.14 descreveram custo médio de
tratamento do LES superior a 10 mil dólares por ano,
sendo superior ao de outras doenças do colágeno. A
carência de dados epidemiológicos no Brasil impossibilita
uma estimativa precisa, mas o impacto nos gastos de
saúde pública certamente existe.
Além dos fatores de risco clássicos de Framingham para
DAC15,16, a atividade inflamatória do LES se tornou mais
um potencializador da doença coronariana através de
atividade inflamatória sistêmica, disfunção endotelial e
predisposição a trombose, além dos paraefeitos
cardiovasculares de drogas utilizadas, principalmente
os glicocorticoides17-19. Por esse motivo, considera-se que
a classificação de Framingham subestima o risco
cardiovascular no paciente com LES15-20.
Bartels et al.20 demonstraram que pacientes com LES
apresentam maior chance de morbimortalidade
cardiovascular nos dois anos que precedem o diagnóstico
do LES. Isso fortalece a hipótese da atividade inflamatória
do LES como fator de risco cardiovascular15-20.
A síndrome do anticorpo antifosfolipídeo (SAF) é
associada com o LES e também com alta morbidade
cardiovascular. Seu diagnóstico depende de critérios
clínicos: trombose arterial ou venosa e morbidade
gestacional; e laboratoriais: positividade para
anticoagulante lúpico e presença de anticorpos
anticardiolipina e antiB2-glicoproteína-I. O dano
miocárdico pode ocorrer por mecanismos diretos
(imunomediados) ou indiretos (trombose), e a
manifestação cardíaca mais prevalente na SAF são as
doenças valvares, seguida de doença isquêmica
(Quadro 3).
Quadro 3
Manifestações cardiovasculares nos pacientes com SAF
Apresentação clínica
Aterosclerose acelerada
Aterosclerose de vasos centrais e esplâncnicos.
Alterações valvulares
Insuficiência mitral (frequente) e estenose (rara); espessamento de folhetos,
vegetações (endocardite marântica).
Miocárdio
Hipertrofia ventricular, disfunção sistólica ou diastólica, miocardite,
insuficiência cardíaca.
Doença arterial coronariana
Embolização ou aterosclerose, angina, infarto agudo do miocárdio, dano
microvascular.
Tromboembolismo pulmonar
Embolia ou trombose de vasos pulmonares, hipertensão pulmonar.
Embolia arterial sistêmica
Trombose de aorta ou artérias carótida, axilar, mesentérica, hepática,
pancreática, esplênica, ilíaca, femoral ou poplítea.
SAF – síndrome do anticorpo antifosfolipídeo
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Abordagem cardiológica no LES
- Abordagem clínica
A disfunção cardiovascular pode estar evidente tanto na
apresentação inicial da doença com IC aguda21 quanto no
contexto de sobrecarga volêmica devido a insuficiência
renal aguda ou crônica por nefrite lúpica22. Outros fatores
como a hipoalbuminemia (secundária à síndrome
nefrótica ou ao estado inflamatório) também podem
contribuir para o estado de sobrecarga hemodinâmica,
mesmo em pacientes jovens.
Gladman e Urowitz23 demonstraram em pacientes com
LES prevalência de angina em até 12,0%, história de
infarto agudo do miocárdio em 16,0% e de morte súbita
em 8,0%. Esses pacientes também apresentam risco
aumentado de evoluir com síndrome metabólica,
havendo correlação com fração C3 do complemento
diminuída, tempo de doença e de uso de corticoide como
fatores de risco independentes 22-24. Sinais clínicos
mucocutâneos sugerem atividade de doença e
manifestações vasculares extracardíacas, como
telangiectasias, vasculite, livedo reticular, fenômeno de
Raynaud e tromboflebite, podem ser evidências clínicas
de que o paciente tenha risco aumentado de acometimento
vascular cardíaco24.
O risco aumentado de DAC, a cardiotoxicidade
por drogas (principalmente ciclofosfamida e
hidroxicloroquina) e a miocardite lúpica devem orientar
a abordagem desses pacientes em um contexto de
apresentação aguda de sintomas cardiopulmonares25. A
suspeição clínica do acometimento cardíaco no LES, seja
na apresentação inicial seja no paciente ambulatorial,
definirá a utilização de exames complementares nesses
pacientes.
Mocarzel et al.
Lúpus e Doença Cardiovascular: Revisão
Embora a presença dos fatores de risco tradicionais seja
frequentemente documentada nesses pacientes, Liu et al.28
indicam que haveria outros fatores causais para o maior
risco cardiovascular global e trombose nas doenças
autoimunes. A dinâmica de aterosclerose, trombose e
inflamação se soma aos fatores relacionados ao lúpus:
inflamação e disfunção endotelial, nefropatia, fenótipo
lúpico, autoanticorpos e predisposição genética29.
Os autoanticorpos mais relacionados com inflamação
vascular são o anticorpo antifosfolipídeo e o
antifosforilcolina 29 . Análises dos fatores de risco
tradicionais em pacientes com LES demonstraram maior
percentual de hipertensão e dislipidemia - aumento de
colesterol total, triglicerídeos e lipoproteína de baixa
densidade (LDL-c), e diminuição da lipoproteína de alta
densidade (HDL-c) comparado a grupos-controle30.
A proteína C-reativa (PCR) ultrassensível é um
biomarcador inflamatório com evidência de correlação
com risco coronariano aumentado para ruptura de
placas31. Estudos da PCR nos pacientes com LES não
demonstraram associação com atividade de doença,
número de critérios diagnósticos ou dano específico de
órgãos, mas se correlacionou com os fatores de risco
tradicionais: peso corporal, hipertensão arterial e
apoproteína-I32.
Chen et al.25 descreveram a apresentação de pacientes na
sala de emergência com sinais e sintomas sugestivos de
IC aguda sem história de doença cardiopulmonar ou
fatores de risco tradicionais, sendo o LES uma
possibilidade diagnóstica.
A troponina-I específica do coração é um biomarcador
de injúria miocárdica que pode estar elevado em
doenças inflamatórias crônicas, em que o protótipo é a
artrite reumatoide, mesmo na ausência de insuficiência
cardíaca ou de fatores de risco cardiovascular33. A
injúria miocárdica subclínica nos pacientes com doenças
inflamatórias sistêmicas se associa ao risco aumentado
de miocardite e vasculite de vasos coronarianos
nesses pacientes - condições em que há elevação da
troponina-I34.
- Biomarcadores cardiovasculares e genética
Autoanticorpos (antifosfolipídeo, anti-SSA/RO,
anticélulas endoteliais) se correlacionam com lesão
cardíaca em doenças autoimunes26. Nos pacientes com
LES, estão descritos anticorpos contra proteínas contráteis
do coração, receptores de membrana, proteínas
mitocondriais e proteínas estruturais. Em razão da
concomitância de nefrite e sobrecarga hemodinâmica,
além do uso prolongado e de altas doses de corticoide e
outras medicações citotóxicas, pode haver combinação
de etiologias para o desenvolvimento de insuficiência
cardíaca nesses pacientes27.
O peptídio natriurético cerebral (NT-proBNP) se associa
com morbidade e mortalidade cardiovascular na população
geral35. Pacientes com LES apresentam níveis mais elevados
de NT-proBNP, mesmo na ausência de doença
aterosclerótica clinicamente detectável. Há correlação do
NT-proBNP com dano cumulativo e tempo de diagnóstico
do LES, e é possível que esse mecanismo seja explicado
pela associação com inflamação crônica. O NT-proBNP
pode estar elevado na ausência de doença cardíaca
clinicamente detectável, porém indica a propensão desses
pacientes a desenvolver doença miocárdica36.
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Mocarzel et al.
Lúpus e Doença Cardiovascular: Revisão
A vitamina D é um biomarcador relacionado com
efeitos modulatórios da resposta imune e no sistema
renina-angiotensina-aldosterona, e sua deficiência se
correlaciona com maior mortalidade por eventos
cardiovasculares - insuficiência cardíaca, infarto agudo
do miocárdio, morte súbita, acidente vascular encefálico,
fibrilação atrial e doença vascular periférica37. Pacientes
com LES e níveis reduzidos de 25(OH) vitamina D têm
maior associação com fatores de risco cardiovascular e
maior atividade de doença pelo LES38.
A patogênese do LES é multifatorial e se baseia em um
modelo hereditário poligênico em que a concomitância
de genes de susceptibilidade eleva o risco de
desenvolvimento da doença39. Estudos moleculares
demonstraram a relação do LES com defeitos na
eliminação intracelular de ácidos nucleicos e consequente
ativação de interferon-I do sistema imune inato40.
A ativação de mediadores inflamatórios, especificamente
de metaloproteinases de matriz 2 (MMP-2) e 9 (MMP-0)
e o estresse oxidativo estão envolvidos no processo de
inflamação crônica, e podem também ter relação com a
doença cardiovascular41. Os alelos MMP-9 -C1562 T e
MMP-2 -G1575A foram identificados como indicadores
de risco três vezes maior de desenvolver LES, e
também se correlacionaram com maiores níveis
tensionais e de colesterol LDL e menores níveis de HDL
colesterol42.
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LES sem acometimento renal, e sua identificação precoce
pode alterar a morbimortalidade desse subgrupo, pelo
tratamento específico da condição.
Aplicabilidade clínica dos exames complementares
A utilização racional dos exames de imagem
cardiovascular no LES depende das manifestações
clínicas, e é relevante porque a mortalidade desses
pacientes associada à DCV não melhorou ao longo do
tempo, ao contrário de outras causas de mortalidade,
como a nefrite lúpica48,51.
O grande desafio do cardiologista clínico é diagnosticar a
doença cardiovascular em pacientes assintomáticos, sem
outros fatores de risco além do LES. Seguindo uma
complexidade crescente de exames, o eletrocardiograma
(ECG) de 12 derivações é importante para demonstrar sinais
de sobrecarga ventricular esquerda e distúrbios do ritmo9
e a radiografia simples de tórax (RX) pode revelar sinais
indiretos de congestão pulmonar, hipertensão pulmonar e
derrame pericárdico (Figura 1). Os achados iniciais
orientarão a decisão clínica para os passos seguintes no uso
racional dos outros exames complementares, como método
de avaliação de atividade de doença. O ECG (Figura 2) é o
exame inicial da avaliação cardiológica, e os achados mais
prevalentes são sinais de sobrecarga ventricular esquerda
e taquicardia sinusal, além de bloqueios de condução
(geralmente associados com LES neonatal)9. Uma proposta
de uso dos exames complementares na abordagem desses
pacientes é apresentada na Figura 3.
O coração na nefrite lúpica
Dentre as manifestações viscerais do LES, a doença renal
secundária está descrita em 25-60,0% dos pacientes, nos
quais a remissão total da nefrite é alcançada após dois
anos em 25-50,0% dos casos43,44; e 5-20,0% evoluem para
terapia de substituição renal em um período de dez anos
após o diagnóstico45-48. Nefrite lúpica é definida por
parâmetros clínico-laboratoriais (proteinúria persistente
acima de 500 mg/24 horas, cilindros celulares e
hemáticos) e/ou biopsia renal45. A biopsia pode ser
considerada em todos os pacientes lúpicos com evidência
de nefrite, principalmente no primeiro episódio44,45.
Pacientes com diagnóstico de nefrite lúpica têm
sobrevida menor que a população geral com LES sem
nefrite, devido à correlação com a morbidade
cardiovascular49,50.
A prevalência de doença miocárdica isquêmica em
pacientes com LES e nefrite é superior à população com
Figura 1
Telerradiografia de tórax em incidência anteroposterior.
Paciente com LES jovem com aumento da região
precordial por derrame pericárdico
LES – lúpus eritematoso sistêmico
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Artigo de Revisão
Mocarzel et al.
Lúpus e Doença Cardiovascular: Revisão
Figura 2
ECG de uma paciente de 26 anos com LES sem fatores de risco cardiovascular clássicos.
Sinais de aumento de câmaras esquerdas e sobrecarga ventricular esquerda.
ECG – eletrocardiograma; LES – lúpus eritematoso sistêmico
Figura 3
Exames complementares na avaliação cardiológica do paciente com LES.
LES – lúpus eritematoso sistêmico; B3 – 3a bulha cardíaca; RHJ – refluxo hepatojugular; P2 – componente pulmonar da 2a bulha;
A2 – componente aórtico da 2ª bulha; RNM – ressonância nuclear magnética; PET-CT – tomografia computadorizada com emissão de
pósitrons; USG – ultrassonografia
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Mocarzel et al.
Lúpus e Doença Cardiovascular: Revisão
O ecoDopplercardiograma é o exame mais acessível
para avaliar a função cardíaca. O Doppler tecidual
permite avaliar o grau de disfunção do ventrículo e
estimar a pressão de artéria pulmonar (PSAP)52,53. As
alterações ecocardiográficas mais comuns são derrame
ou espessamento pericárdicos, aumento de câmaras
esquerdas, alteração da fração de encurtamento
ventricular esquerda e identificação de trombos
intracavitários9. Das alterações valvares, o achado mais
comum no LES é o espessamento de válvulas das
câmaras esquerdas, e os achados mais característicos
são nódulos valvares e endocardite marântica não
infecciosa (Libman-Sacks), que é uma fibrose
proliferativa do endocárdio valvular, principalmente
mitral, com risco de embolização ou infecção53. A técnica
de speckle trecking permite a identificação de cardiopatia
estrutural subclínica através da identificação de pontos
intramiocárdicos brilhantes (speckles) e os acompanha
durante o ciclo cardíaco (tracking)54 e demonstram
achados precoces de remodelamento e disfunção
ventricular esquerda à ecocardiografia. Pacientes com
LES apresentam índice de massa do ventrículo esquerdo
e redução de todos os componentes de strain55,56. O uso
da ecocardiografia em três dimensões é também
promissor para análise de disfunção precoce e
subclínica do ventrículo esquerdo.
A ultrassonografia com Doppler de carótidas permite
avaliar a espessura da camada média-íntima e a
presença de placas vasculares. Esses achados se
correlacionam com risco aumentado para eventos
cerebrovasculares, além de sugerirem presença de
doença vascular sistêmica57. Estudos com pacientes com
LES mostraram que há correlação entre achados de
doença vascular carotídea com a presença de outros
fatores de risco cardiovascular58.
A angiotomografia computadorizada com escore de
cálcio de artérias coronárias pode identificar defeitos
de perfusão e se correlacionar com isquemia miocárdica
com rendimento semelhante ao de pacientes sem
LES, mas com outros fatores de risco cardiovascular
(Figura 4) 59 . A presença de autoanticorpos
(anticardiolipina IgG e antiβ2-Glicoproteína IgG) se
correlacionam com chances quatro vezes maiores de
calcificação coronariana60.
A cintilografia miocárdica com tecnécio 99m-sestamibi,
executada nas fases de repouso e de estresse, é sensível
para detectar alterações da perfusão miocárdica, e
Sella et al.61 demonstraram alterações em até 40-60,0%
dos exames em pacientes com LES assintomáticos do
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Artigo de Revisão
ponto de vista cardiovascular. Níveis baixos de HDL-c e
presença de diabetes mellitus foram correlacionados com
alterações na perfusão miocárdica nesses pacientes, o que
sugere que os defeitos de perfusão possam representar
um estágio precoce da aterosclerose subclínica61,62. A
cintilografia com gálio-67 é útil na identificação de doença
inflamatória miocárdica que, no caso dos pacientes com
LES, pode ocorrer em 3-15,0% dos pacientes em algum
período da evolução da doença62.
Figura 4
Exame de angiotomografia de coronárias em mulher
jovem com LES. Escore de cálcio inapropriadamente
elevado para a faixa etária, acima do percentil 95, na
ausência dos fatores de risco cardiovascular tradicionais.
A seta indica a presença de calcificação na projeção das
artérias coronárias.
LES – lúpus eritematoso sistêmico
A tomografia computadorizada por emissão de pósitrons
(PET-CT) utiliza um radiofármaco (em geral,
fluordesoxiglicose) para quantificar a sua concentração
nos tecidos63. A presença de pericardite ou miocardite
pode induzir captação do radiotraçador, e a intensidade
dessa captação possibilita definir com 100% de
sensibilidade e especificidade o diagnóstico de miocardite
aguda, em comparação com a biopsia endomiocárdica
quando o exame se realiza dentro de duas semanas do
início da doença64.
A ressonância nuclear magnética miocárdica oferece
detalhes da estrutura do coração e é sensível para
alterações que caracterizam a miocardite lúpica,
principalmente na sequência T2 (edema do miocárdico)
e o realce precoce e tardio pelo gadolíneo, com
sensibilidade de 76,0% e especificidade de 95,5% para
detecção de inflamação65. Além disso, permite avaliação
do tamanho, da função e da massa do ventrículo
Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(3):251-261
Artigo de Revisão
esquerdo, e pode correlacionar os achados de imagem
com atividade e duração da doença, estado inflamatório
e anticorpos antifosfolipídeos66.
Estudos recentes com métodos de imagem nuclear têm
descrito diferentes padrões de acometimento cardíaco
que, em geral, são mais prevalentes em pacientes com
outros fatores de risco para doença coronariana, e
usualmente correlacionadas com doença coronariana
microvascular67. Pelo fato de usar radioatividade de
meia-vida muito curta, a exposição à radiação é baixa e
aceitável em face à qualidade do exame. Outros métodos,
como a tomografia de coerência óptica, a ressonância
magnética invasiva e a angioscopia coronariana são
promissores para o estudo da morfologia e microestrutura
das placas coronarianas, mas ainda não foram estudados
nesse grupo de pacientes66,68.
A angiocoronariografia é o exame mais disponível para
estudo da anatomia coronariana com possibilidade de
intervenção69. Em razão da alta prevalência de doença
aterosclerótica obstrutiva, muitos pacientes jovens são
encaminhados para angiografia coronariana, que é um
procedimento que envolve riscos e tem aplicação limitada
em pacientes com função renal alterada.
Mocarzel et al.
Lúpus e Doença Cardiovascular: Revisão
Urowitz et al.70 descreveram um padrão bimodal de
mortalidade no LES que é reconhecido até a atualidade,
em que há um pico no primeiro ano devido à intensa
atividade de doença (principalmente renal), e outro
tardiamente (após oito anos)71 em que estudos mais
recentes demonstram a participação da doença
coronariana como fator etiológico predominante10-12.
Pacientes com LES têm incidência de DAC até sete vezes
maior, mesmo quando ajustado pelos fatores de risco
cardiovascular10,11,14. Por esse motivo, reafirma-se a
necessidade de investigação de DAC mesmo em paciente
jovem com dor precordial sem fatores de risco
tradicionais. O cardiologista precisa estar atento para as
manifestações subclínicas e decidir pela estratificação
desses pacientes.
A identificação e o combate aos fatores de risco cardiovascular
são preocupação constante dos cardiologistas. O LES tem
prevalência relevante em meio brasileiro, e a suspeição
clínica precoce do acometimento cardiovascular nesta
síndrome clínica é de extrema importância. A abordagem
apropriada e a solicitação racional de exames
complementares podem reduzir a morbimortalidade e
contribuir para a qualidade de vida desses pacientes. Mais
estudos são necessários para delinear a população brasileira
com LES e seu perfil cardiovascular.
Comentários
Apesar de não ser parte dos critérios diagnósticos, o
acometimento cardíaco no LES pode ocorrer isoladamente
em qualquer fase de evolução da doença, como dano
isolado ou concomitante a outras manifestações
(principalmente a nefropatia), o que potencializa o risco
de mortalidade cardiovascular. A abordagem racional
das cardiopatias no contexto de uma doença sistêmica
pode permitir um cuidado mais efetivo a esses pacientes
com risco aumentado de doença cardiovascular.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.
Fontes de Financiamento
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Vinculação Acadêmica
O presente estudo está vinculado ao serviço de Clínica Médica
do Hospital Universitário Antônio Pedro e ao Programa de
Pós-graduação em Ciências Cardiovasculares da Universidade
Federal Fluminense.
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