aspectos da imunologia da gravidez

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ARTIGO DE REVISÃO
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Acta Med Port 2007; 20: 355-358
ASPECTOS DA IMUNOLOGIA DA GRAVIDEZ
SOFIA SARAFANA, RAQUEL COELHO, ANA NEVES, JOSÉ COSTA TRINDADE
Unidade de Imunoalergologia Pediátrica. Hospital Santa Maria. Lisboa
RESUMO
O estudo dos mecanismos biológicos da gravidez contribui para aumentar os
conhecimentos sobre tolerância imunológica. A forma como o sistema imunitário é
modulado e o estudo dos sistemas de reconhecimento materno, inatos e adaptativos,
que ocorrem durante a gravidez, permitem compreender a sobrevivência do feto.
Procedemos neste artigo a uma revisão das interacções imunológicas celulares e
moleculares, que contribuem para uma gravidez bem sucedida. À medida que a gestação
evolui, o embrião em desenvolvimento fica isolado num ambiente semi-permeável. A
organização anatómica da interface materno-fetal parece ser essencial para a evolução
saudável da gravidez. A ausência de moléculas clássicas de MHC na superfície do
trofoblasto, e o reconhecimento de moléculas não clássicas de HLA-G por receptores
KIR nas células uterinas NK constituem exemplos de tolerância celular na interface
materno-fetal, com consequências benéficas para o feto.
Os papéis únicos das proteínas reguladoras do complemento, células NK uterinas,
macrófagos, células T de diferentes fenótipos, ambiente de citoquinas, bem como a
demonstração de mecanismos específicos de tolerância imunológica periférica,
constituem uma base para eventuais abordagens terapêuticas não só em gravidezes
patológicas e em complicações gestacionais das doenças auto-imunes, mas também
na modulação imunológica em transplantes de tecidos.
SUMMARY
GESTATIONAL IMMUNOLOGY
This review summarises the fundamental immunologic principles regarding the cellular
and molecular relations involved with immune function in a normal gestation. During
the past decades, more information has been gathered to explain these complex
immunological mechanisms. These mechanisms include both fetal factors such as
trophoblast cell properties and altered MHC Class I expression and local maternal
factors such as specialized uterine natural killer cells and a shifting of the T-helper cell
cytokine profile from a type 1 to a type II array. Other novel immunomodulators are
found to be expressed in the local uterine environment to aid in fetal survival. Increased
knowledge about the immune relationship between the mother and the fetus permits
not only a better understanding about pathological outcomes of pregnancy and
gestational complications of autoimmune diseases but also the development of
therapeutic approaches for solid organ transplantation.
Recebido para publicação: 8 de Fevereiro de 2007
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SOFIA SARAFANA et al
INTRODUÇÃO
A INTERFACE MATERNO-FETAL
Os processos imunológicos envolvidos no desenvolvimento humano são fundamentais para a evolução saudável da gravidez. Estes princípios imunes têm sido amplamente estudados nas últimas décadas, mas alguns aspectos ainda não estão totalmente esclarecidos. Medawar et al
propuseram vários mecanismos para explicar o fenómeno
de tolerância imunológica que ocorre entre o feto e a mãe
durante a gestação:
1- Separação anatómica entre o feto e a mãe;
2 - Imaturidade antigénica do feto e;
3 - Inexistência de resposta imunológica por parte da
mãe1. Provavelmente todos estes processos estão envolvidos e são essenciais para o normal desenvolvimento da
gravidez2.
O feto pode ser considerado como um semi-enxerto,
uma vez que tem antigénios de origem paterna e materna.
Grande parte do que se sabe acerca da imunologia materno-fetal resulta de estudos concebidos para explicar como
o feto e o sistema placentário semi-enxerto evitam a agressão imunológica por parte da mãe. Não é surpreendente
uma abordagem deste tipo, uma vez que existe uma tendência da imunologia para enfatizar aspectos relacionados com o transplante. Como resultado, os imunologistas
que se dedicam ao estudo da reprodução dispenderam
mais de duas décadas a tentar fazer com que os conceitos
de imunologia materno-fetal se adequassem aos conceitos obtidos através de estudos de aceitação e rejeição
imunológica de enxertos3.
Existem, no entanto, evidências crescentes de que a
relação imunológica entre mãe e feto não se enquadra facilmente no paradigma do enxerto. Em vez de ser essencialmente destrutiva, e como tal necessitar de ser interrompida, a interacção imunológica normal entre a mãe e tecidos fetais poderá servir para promover o crescimento e
desenvolvimento do feto, um conceito que faz bastante
mais sentido do ponto de vista causal4.
A aceitação materna do feto resulta do isolamento do
embrião num ambiente semi-permeável. Deste modo, a resposta imunitária materna é modulada, permitindo esse reconhecimento, e tornando-se compatível com o desenvolvimento de uma gravidez bem sucedida.
A interface materno-fetal caracteriza-se igualmente pela
actividade única das proteínas reguladoras do complemento, células Natural Killer (NK) uterinas, macrófagos,
células T com diversos fenótipos e citoquinas do meio
ambiente local5.
O Trofoblasto e Expressão de HLA
O trofoblasto é a camada de células da mesoectoederme
que reveste o blastocisto e contribui para a formação da
placenta. As células do trofoblasto têm características
imunológicas específicas, nomeadamente no que se refere
à expressão de HLA. Estas células expressam HLA-C,
HLA-G e HLA-E e não as móleculas clássicas de histocompatibilidade A, B, DR, DQ e DP, o que constitui uma potencial justificação para a não rejeição materno-fetal6. Apesar
da função biológica ainda não estar totalmente esclarecida,
as moléculas de HLA-G expressas pelas células do trofoblasto parecem ter um papel na protecção relativamente à
lise mediada por células NK7,8. Verificou-se que o efeito
protector resultava da ligação de células do trofoblasto a
receptores inibitórios das células NK, designados por receptores inibitórios da morte (KIRs). Estes receptores
veiculam sinais inibitórios, que inibem a activação de células NK.
Crescimento Celular, Diferenciação e Apoptose
As citoquinas produzidas pela mãe podem funcionar
como factores de crescimento placentário, limitar a invasão do trofoblasto e mediar a remodelação tecidular. A
natureza proliferativa e invasiva do trofoblasto tem que
ser regulada com precisão, de forma a garantir que o endométrio permaneça intacto e não seja invadido pela placenta em crescimento. Esta regulação é, em parte, mediada
pela apoptose selectiva de células, um processo que não
altera a estrutura normal do tecido9.
Componentes celulares (NK, Macrofagos, Linfocitos
T) e Complemento
Vários estudos demonstraram a existência de numerosos agregados de células T e B, macrófagos, mastócitos e
eosinófilos no útero humano normal. Contudo, após a implantação, os agregados de células T e B desaparecem, os
eosinófilos e mastócitos tornam-se raros, e existe um claro
predomínio das células Natural Killer (NK) e de macrófagos10,11.
As células NK constituem 60% a 70% dos linfócitos
maternos isolados a partir de suspensões de decídua materna12 e localizam-se fundamentalmente no epitélio glandular do endométrio e em torno das pequenas artérias.
Identificaram-se células precursoras nos tecidos linfóides
secundários, incluindo baço e nódulos linfóides no rato;
o timo e a medula óssea contém igualmente células
356
ASPECTOS DA IMUNOLOGIA DA GRAVIDEZ
progenitoras, com potencial para se diferenciarem em células uterinas NK12. Estas células NK de origem materna
aumentam em número e precedem a implantação durante a
fase lútea, diferenciam-se durante a gravidez e diminuem
substancialmente em número, quase desaparecendo, no
final da gravidez13. Pouco se sabe acerca dos sinais que
atraem estas células para locais específicos. A progesterona pode contribuir para este tipo de quimiotaxia, através
do aumento da expressão de receptores de fibronectina14.
A expressão de níveis elevados de KIR constitui o aspecto característico destas células NK. Após a ligação de
moléculas da classe I do MHC, são veiculados sinais inibitórios, que bloqueiam a activação da célula NK15.
O número de macrófagos permanece estável ao longo
da gravidez, representando 10 a 15% do número total de
células no endométrio. Os monócitos são activados na
gravidez, e diversos produtos solúveis produzidos pela
placenta activam os monócitos e suprimem a proliferação
de linfócitos in vitro16.
Os linfócitos T do útero têm pelo menos, duas funções conhecidas. Em primeiro lugar, estas células têm actividades efectoras/citotóxicas, eliminando antigénios
nocivos de bactérias e vírus. Em segundo lugar, a regulação
das células T define as propriedades fundamentais da tolerância imunológica. Assim, no interior do útero, as células T podem contribuir para o ambiente imunossupressivo
local, que permite a sobrevivência do feto. No início da
gravidez, o número de linfócitos T agregados no endométrio diminui e aumenta na decídua à medida que a gravidez
avança.
Verifica-se igualmente, através da expressão de citoquinas, que os linfócitos T intra-uterinos se compõem de
diferentes fenótipos. As citoquinas Th2 (IL-4, Il-10) podem diminuir as respostas Th1 (IL-2 e IFN-g), formando
um micro-ambiente essencial para uma boa evolução da
gravidez17,18. No entanto as células Th1 têm um papel essencial para a implantação e o desenvolvimento placentário. Parece assim ser fundamental o equilíbrio entre células Th1 e Th2, e que esta dicotomia Th1/Th2 pode auxiliar
na explicação dos ambientes de citoquinas subjacentes a
uma gravidez bem sucedida19.
O sistema do complemento é um elemento essencial da
resposta imunitária inata. Existe um conjunto de proteínas
efectoras circulantes, direccionadas para micróbios e outros antigénios no plasma e espaços extravasculares, que
constitui um componente importante do sistema complemento. Estas proteínas são normalmente inactivas, e a sua
expressão é regulada com precisão. Após activação
proteolítica específica, as proteínas do complemento podem ligar-se à superfície de organismos estranhos e des-
truí-los, através de lesões criadas nas suas membranas
celulares. Por outro lado, o complemento protege as células e tecidos normais, evitando a libertação de produtos
de degradação, que actuariam sobre as células adjacentes, causando lesão nos tecidos16.
Tolerância materna
As microquimeras definem-se pela existência, num indivíduo, de um baixo nível de células de outro indivíduo.
A gravidez é uma causa importante de quimerismo. Podem
encontrar-se células masculinas em indivíduos do sexo
feminino a partir das seis semanas de gestação. As células
maternas podem também alcançar a circulação fetal, como
demonstrado, pela primeira vez, em crianças com imunodeficiência combinada grave. Mais recentemente, detectaram-se células deste tipo na vida adulta, o que sugere a
sua persistência, durante períodos prolongados, em determinadas circunstâncias5. Uma vez que se identificam
frequentemente microquimeras em indivíduos normais,
permanece por esclarecer o significado dos achados nesta área. No entanto, a compreensão da forma como células
estranhas conseguem alcançar um estado de tolerância
poderá permitir uma melhor compreensão dos mecanismos de auto-imunidade.
As células T maternas reconhecem aloantigénios fetais,
como demonstrado pela identificação de clones distintos de
células T no sangue materno durante a gravidez. Recorrendo
a ratos que expressam um receptor de células T transgénico
(TCR), de especificidade antigénica conhecida, pode estudar-se o destino de antigénios fetais durante a gravidez. É
interessante verificar que a delecção clonal, a anergia imunológica, e a diminuição da expressão de co-receptores foram identificados como mecanismos específicos de tolerância imunológica periférica na gravidez de ratinhos20.
Embora estas experiências tenham demonstrado diferentes mecanismos de tolerância periférica, factores como
a fonte materno-fetal de apresentação de antigénios, bem
como a carga específica de antigénios do feto, podem contribuir para que seja posto em prática um determinado
mecanismo de tolerância imunológica periférica em detrimento de outro5.
DISCUSSÃO
Durante a gravidez, o sistema imunitário materno é activo e funcional. Existem diversos mecanismos subjacentes
à tolerância materna do feto que permitem a implantação e
a gestação bem sucedida. A expressão de moléculas de
HLA-G, HLA-E e HLA-C nas células do trofoblasto, o controlo da actividade citolítica NK através de receptores ini357
SOFIA SARAFANA et al
bitórios, a expressão de proteínas reguladoras do complemento, a regulação do recrutamento de leucócitos e proliferação celular na interface materno-fetal e a supressão
de linfócitos Th1 na decídua parecem ser constituintes
essenciais do fenómeno de tolerância imunológica que
ocorre entre o feto e a mãe durante a gestação.
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