REFLEXÕES SOBRE A DINÂMICA JURÍDICA NAS PERSPECTIVAS DE HANS KELSEN E LOURIVAL VILANOVA* REFLECTIONS ON THE LEGAL DYNAMICS IN THE PERSPECTIVES OF HANS KELSEN AND LOURIVAL VILANOVA Carlos Sérgio Gurgel da Silva RESUMO Poucas pessoas influenciaram tanto uma determinada ciência como o fez para o Direito o jurista austríaco Hans Kelsen. Seus debates ainda ecoam nos cursos de graduação e pós-graduação em direito espalhados mundo afora. No Capítulo V de sua mais famosa obra, intitulada Teoria Pura do Direito, Kelsen destaca que as normas não existem fora de uma hierarquia. No entanto, explica que não se pode dizer que sejam hierarquizadas, pois apenas o sistema jurídico o é. Para ele, dizer que as normas são hierarquizadas é apenas um modo didático de falar que certas prescrições devem ser consideradas normas em virtude de seus relacionamentos com outras normas ditas superiores. Lourival Vilanova, por sua vez, é um dos maiores juristas brasileiros, tendo ainda ampla produção nos campos da filosofia e da lógica jurídica. Para ele a dinâmica jurídica deve ser vista sob o ponto de vista sistemático, onde há uma imbricação de fatores que se somam, formando um intra-sistema de valores e princípios. Com base nestes diferentes enfoques, o presente artigo visa estabelecer um diálogo entre estas duas formas de ver a dinâmica jurídica, revelando os pontos fortes e fracos de cada uma destas concepções. PALAVRAS-CHAVES: DINÂMICA JURÍDICA, PENSAMENTO JURÍDICO, HIERARQUIA DAS NORMAS, VALORES E PRINCÍPIOS. ABSTRACT Few people had influenced one definitive science in such a way as for the Law as the Austrian jurist Hans Kelsen. Its debates still echo in the graduation courses and aftergraduation in Law spread world measures. In Chapter V of its more famous workmanship, intitled Pure Theory of Law, Kelsen detach that the norms do not exist outside of a hierarchy. However, he explains that if it cannot say that they are hierarchizated, therefore only the legal system it is. For him, say that the norms are hierarchizated is only one didactic way of speaking that certain lapsings must be considered norms in virtue of its relationships with other said norms superior. Lourival Vilanova, in turn, is one of the biggest Brazilian jurists, having still ample production in the fields of the philosophy and the legal logic. For him the legal dynamics must be seen under the systematic point of view, where it has an imbrication of factors that if add, forming a intra-system of values and principles. On the basis of these different approaches, the present article aims at to establish a dialogue enters these two forms to * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009. 6845 see the dynamics legal, disclosing the strong and weak points of each one of these conceptions. KEYWORDS: LEGAL DYNAMICS, LEGAL THOUGHT, HIERARCHY OF THE NORMS, VALUES AND PRINCIPLES. 1 INTRODUÇÃO Hans Kelsen foi um dos maiores juristas do século XX. Sua obra exerceu e ainda exerce grande influência no Direito moderno. Preocupado com o sincretismo existente em torno do objeto da Ciência-do-Direito, que contava com contribuições e ensaios de filosofia do Direito, sociologia do Direito, da Ciência Política e de outras áreas do conhecimento científico, como a ética, a religião, etc., Kelsen elaborou uma teoria, denominada Teoria Pura do Direito, onde afirmou que, não obstante a importância das áreas correlatas, o objeto de estudo do Direito são as normas postas, positivas, sejam elas escritas ou não, como no caso dos costumes. Kelsen afirmava que o Direito não devia ser interpretado com uma ciência do ser, tal como as ciências da natureza, conduzidas pelas leis da física, mas sim como uma ciência do dever-ser. Se, por exemplo, fosse apresentado a Kelsen um caso de uma norma válida (criada segundo as prescrições da norma fundamental) e lhe fosse questionado se ele a consideraria justa ou injusta, como jurista, certamente responderia que a norma era válida, e que não se arriscava a tecer juízo de valor sobre a mesma, uma vez que esta não é a função de um jurista, mas de um sociólogo, de um cientista político, de um filósofo, etc. A redução do objeto jurídico à norma causou inúmeras polêmicas. Kelsen foi continuamente acusado de reducionista, de esquecer as dimensões sociais e valorativas, de fazer do fenômeno jurídico uma mera forma normativa, despida de seus caracteres humanos. Sua intenção, no entanto não foi jamais a de negar os aspectos multifaciais de um fenômeno complexo como é o direito, mas de escolher, dentre eles, uma que coubesse autonomamente ao jurista. Sua idéia era a de que uma ciência que se ocupasse de tudo corria o risco de se perder em debates estéreis. A preocupação de Kelsen, ao descrever as características de uma ordem normativa, composta de dois tipos de sistemas: estático e dinâmico foi a construção de uma teoria purificada de toda ideologia política e de todos os elementos da ciência natural, uma teoria jurídica consciente de sua especificidade porque consciente da legalidade específica de seu objeto. Kelsen pretendia elevar a Jurisprudência, que, aberta ou veladamente, se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência de espírito. Lourival Vilanova foi um dos maiores juristas do Brasil. A influência de seu pensamento tem sido enorme nos ambientes acadêmicos de todo o Brasil, especialmente em nível de pós-graduação em Direito. Deu enorme contribuição ao estudo da lógica, da causalidade e da relação jurídica. Tem como base de suas reflexões jus-filosóficas o 6846 pensamento de Kelsen, de quem demonstra ter grande conhecimento de sua doutrina. Grande parte de suas reflexões apóia a doutrina kelseniana, mas em alguns momentos também faz algumas críticas, principalmente em relação ao sistema dinâmico que Kelsen expôs em sua teoria pura, uma vez que para ele a norma fundamental não é pressuposta pelo ordenamento jurídico, que só contém normas postas: é pressuposta pela teoria do conhecimento jurídico-sociológico, ou jurídico-histórico. Vilanova, pela sua profunda capacidade analítica, contribuiu sobremaneira à doutrina kelseniana quando deu a esta um enfoque sistemático, analisando o fenômeno jurídico de forma mais ampliada, considerando inclusive o conhecimento histórico, político e sociológico que pressupõem a norma fundamental, mesmo que não os considerem como partes integrantes do ordenamento jurídico positivo. Far-se-á a seguir uma análise da dinâmica jurídica sobre a perspectiva de Hans Kelsen e Lourival Vilanova, tomando como principais fontes de pesquisa suas principais obras. 2 DINÂMICA JURÍDICA SOBRE A PRESPECTIVA DE HANS KELSEN Hans Kelsen, ao formular sua teoria pura do direito concebeu que o Direito é como uma ordem normativa, como um sistema de normas que regulam a conduta dos homens, e questionou: O que é que fundamenta a unidade de uma pluralidade de normas, porque é que uma norma determinada pertence a uma determinada ordem? Em resposta a estes questionamentos desenvolveu um capítulo inteiro o qual ele denominou Dinâmica Jurídica (Capítulo V da Teoria Pura do Direito). Neste capítulo, em síntese, Kelsen vai destacar que as normas não existem fora de uma hierarquia. No entanto, não se pode dizer que sejam hierarquizadas, pois apenas o sistema jurídico – em outras palavras, o direito – o é. Além disso, dizer que as normas são hierarquizadas é um modo didático de falar que certas prescrições devem ser consideradas normas em virtude de seus relacionamentos com outras normas ditas superiores[1]. Neste sentido, TROPER (2008) lembra que a relação entre norma superior e inferior é complexa. Kelsen distingue ai dois tipos – um estático e outro dinâmico -, e ilustra o dinâmico com o auxílio do exemplo do pai que ordena o filho a ir para a escola. À pergunta do menino: “Porque devo ir à escola?”, seria possível responder: “Porque seu pai ordenou que você fosse e porque o filho deve obedecer às ordens do pai”. Mas o menino faz nova pergunta: “Mas porque devo obedecer às ordens de meu pai?”. Talvez pudéssemos lhe responder: “Porque Deus ordenou que obedecêssemos aos pais e devemos obedecer às ordens de Deus”. Diante deste exemplo é possível concluir que a ordem de ir à escola deve ser tida como uma norma válida ou obrigatória simplesmente porque emana do pai, habilitado por Deus (fundamento de validade) a dar ordens ao filho. 6847 2.1 Fundamento de validade de uma ordem normativa Em síntese, Kelsen destaca que uma norma, para ser válida e eficaz, deve partir de uma autoridade competente, que tenha o poder de estabelecer aquela norma, e este poder deve ser conferido por uma outra autoridade, e assim por diante, até que se chegue ao limite jurídico do sistema, que seria o fundamento de validade do mesmo: a norma fundamental. Ultrapassando a norma fundamental (em via regressa), adentra-se no mundo da política, ou seja, não mais se estará na esfera jurídica. Este é, sem dúvida, o ponto alto da Teoria Pura do Direito, que basicamente se funda em dois pilares: a Estática Jurídica e a Dinâmica Jurídica. É quando este autor formula o clássico escalonamento das normas jurídicas, tendo em seu ápice a norma fundamental, a Constituição, que de forma didática é apresentado aos alunos da graduação em direito como a pirâmide de Kelsen. Sobre a necessidade de fundamentar das normas jurídicas inferiores na norma fundamental, para só então dar-lhes validade, vale transcrever trecho do livro Teoria Pura do Direito que assim aduz: “O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior”[2]. É normal que os seres humanos questionem a validade de uma determinada norma, o que pode acontecer também com as normas jurídicas. No entanto, quando se mostra que a norma deve ser observada porque provém de uma autoridade reconhecidamente competente, e que a sua não observância pode implicar em um mal dirigido a sua pessoa, verifica-se, normalmente, a obediência de seu comando. Sobre esta questão Kelsen destaca que: “O fato de alguém ordenar seja o que for não é fundamento para considerar o respectivo comando como válido, quer dizer, para ver a respectiva norma como vinculante em relação a seus destinatários. Apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas; e uma tal competência somente se pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar normas. A esta norma se encontram sujeitos tanto a autoridade dotada de poder legislativo como os indivíduos que devem obediência às normas por ela fixadas”[3]. A esta norma que confere poder para ficar normas, Kelsen denominou norma fundamental, a qual não é posta, porque não se encontra no mesmo nível que as demais, 6848 que são postas, mas é pressuposta, ou seja, ela inaugura a ordem jurídica. É pressuposta como a norma mais elevada do ordenamento jurídico, a quem todas as outras normas devem correspondência e não-contradição aos seus preceitos. Todas as normas que se reúnem em torno desta norma, pressuposta como a “maior”, formam um sistema de normas, uma ordem normativa, ou como prefere BOBBIO (1999), um ordenamento jurídico. Todos os fatos que se realizem no âmbito de validade e aplicação deste ordenamento jurídico devem ser à luz deste observados, de modo que seja possível a produção dos efeitos desejados por aquela ordem. 2.2 Princípio estático No que tange à natureza deste fundamento de validade, Kelsen distingue dois tipos de sistemas de normas: o sistema estático e o sistema dinâmico. A conduta dos indivíduos determinada pelas normas do tipo estático é considerada como devida (devendo ser), em razão de sua matéria, seu conteúdo, uma vez que sua validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. O sistema estático é o sistema jurídico de normas postas, onde o conteúdo material das condutas está previsto. Quando se verifica no seio de uma determinada sociedade a conduta de um indivíduo que contraria uma determinada norma prescritiva da conduta esperada, ou seja, quando há violação, por ato de vontade humana, da conduta prescrita, é no próprio sistema estático que se encontrará a punição para este mal. Como sistema de normas postas, o sistema estático tem seu fundamento na norma pressuposta, na norma fundamental. Esta é a concepção de Kelsen, que se revela no trecho extraído de sua obra Teoria Pura do Direito: “Um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de normas. O princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um princípio estático”[4] Kelsen explicita, para uma maior compreensão deste princípio, que a norma de cujo conteúdo outras normas são deduzidas, como o particular do geral, tanto ao seu fundamento de validade como quanto ao seu teor de validade, apenas pode ser considerada como norma fundamental quando o seu conteúdo seja havido como imediatamente evidente. De fato, fundamento e teor de validade das normas de um sistema moral são muitas vezes reconduzidos a uma norma tida como imediatamente evidente. 6849 Sem a presença nítida desta norma tida como evidente, lançam-se no ar dúvidas quanto a validade do comando imposto, uma vez que o destinatário da norma irá, naturalmente, questionar o porque de sua obediência à norma. 2.3 Princípio dinâmico O princípio segundo o qual se fundamenta a validade das normas do sistema dinâmico é o princípio dinâmico. Segundo este, o tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas., a atribuição de poder a uma autoridade legisladora Neste sentido, pode-se afirmas que a norma fundamental, a Constituição de um Estado é um fato produtor de normas, comportando-se como um agente estimulador da atividade legislativa, que tende a atuar de forma a conferir efetividades aos preceitos constitucionais, em maior parte, programáticos. Para Kelsen, uma norma pertencente a um ordenamento que se apóia numa tal norma fundamental porque é criada pela forma determinada através desta norma fundamental, e não porque tem um determinado conteúdo. O conteúdo é importante, mas o mais importante é a forma como se deu a produção da norma, estando esta em conformidade com a norma fundamenta, tanto no que tange ao processo de sua elaboração, quanto ao seu conteúdo estar em sintonia com os preceitos constitucionais, mesmo que implícitos através dos princípios. Após estas considerações, mostra-se relevante transcrever trecho em que Kelsen aborda, com precisão, esta questão: “Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela vida de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada – em última análise por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta (...) Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito”.[5] No entanto, pode ocorre de os princípios estático e dinâmico estarem reunidos em uma mesma norma. Isto pode ocorrer, segundo Kelsen, quando a norma fundamental pressuposta se limita, pelo princípio dinâmico, a conferir poder a uma autoridade legisladora e esta mesma autoridade ou alguma outra por esta instituída não só estabelecem normas pelas quais se prescreve uma determinada conduta dos sujeitos subordinados às normas e das quais – como o particular do geral – podem ser deduzidas novas normas através de uma operação lógica. Reforçando o que fora exposto em linhas anteriores, Michel Troper[6] esclarece que: 6850 “Quanto ao direito, esse seria um sistema principalmente dinâmico. Com efeito, as normas jurídicas são válidas, segundo ele, não em virtude de seu conteúdo, mas somente porque foram criadas de determinada maneira. Sem dúvida, uma norma cujo conteúdo fosse contrário àquele de uma norma superior poderia ser revogada por um tribunal, mas, enquanto não o for, permanece válida”.[7] 2.4 Norma fundamental A norma fundamental, como tratado anteriormente, constitui uma norma pressuposta e cuja importância se deve pelo fato de ser a “viga-mestra” do sistema jurídico de um estado. É a norma que institui o poder político e jurídico aos mais variados institutos do Estado, e que organiza a estrutura dos diversos órgãos responsáveis pela consecução dos objetivos estatais. Como ensina Kelsen a norma fundamental de uma ordem jurídica não é uma ordem material que, em razão de seu conteúdo ser havido como imediatamente evidente, seja pressuposta como a mais elevada da qual possam ser deduzidas normas de conduta humana através de uma operação lógica. Desta forma, pode-se afirmar que a norma fundamental é a instauração do fato fundamental de criação jurídica e pode, neste sentido, ser denominada como constituição no sentido lógico-jurídico. Kelsen se preocupou em afirmar a necessidade do respeito a um limite espacial de aplicação da norma fundamental, uma vez que uma constituição institui a organização política de um Estado, e este, como se sabe, tem como um de seus elementos o território. E assim o fez, limitando sua análise a ordem jurídica estatal, como ele próprio ressalta: “Nas páginas que se seguem começaremos por considerar apenas a ordem jurídica estadual, quer dizer, uma ordem jurídica cuja validade é limitada a um determinado espaço, o chamado território do Estado, e é tida como soberana, quer dizer, como não subordinada a qualquer ordem jurídica superior”. Kelsen assevera que se questionarmos acerca o fundamento de validade da norma pressuposta como a maior do ordenamento jurídico, a norma fundamental, inevitavelmente, temos que ser reportados à norma fundamental mais antiga, ou seja, temos que fundamentar a validade da constituição estadual vigente no fato no fato de ela ter surgido de conformidade com as determinações de uma Constituição estadual anterior pela via de uma alteração constitucional constitucionalmente operada, o que significa: de acordo com uma norma positiva estabelecida por uma autoridade jurídica. Desta forma se chega a Constituição estadual histórica, que surgiu revolucionariamente, rompendo com uma Constituição anteriormente existente, ou então, veio a surgir com 6851 validade para um domínio que antes não era abrangido pelo domínio de validade de uma Constituição estadual de uma ordem jurídica estadual sobre ela apoiada. Esclarece que a norma fundamental de uma ordem jurídica que estatui atos coercitivos deve conter uma proposição que diga: devem ser postos atos de coerção sob os pressupostos e pela forma que estatuem a primeira Constituição histórica e as normas estabelecidas com ela. Estas normas de uma ordem jurídica que possuem como fundamento de validade uma norma fundamental não são um complexo de normas válidas colocadas no mesmo nível, mas uma construção escalonada de normas suprainfra-ordenadas umas às outras. Na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, quer dizer, como normas objetivamente válidas, pode a norma fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica ser designada como condição lógico-transcendental desta interpretação. Segundo ele a Teoria Pura do Direito pergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas descritíveis em proposições jurídicas? A resposta da Teoria Pura do Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos nos conduzir como a constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade constituinte, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição. Em razão da quantidade de normas existentes em nível infraconstitucional, não se pode negar a possibilidade de os órgãos jurídicos efetivamente estabelecerem normas que entrem em conflito umas com as outras. Um tal conflito de normas surge quando uma norma determina uma certa conduta como devida e uma outra norma determina também como devida uma outra conduta, inconciliável com aquela. Para Kelsen, uma contradição lógica entre duas afirmações consiste em que apenas uma ou a outra pode ser verdadeira; em que se uma é verdadeira a outra tem de ser falsa. Nesta linha de raciocínio, uma norma não é verdadeira nem falsa, mas válida ou não válida. Os princípios lógicos em geral e o princípio da não-contradição em especial podem ser aplicados às proposições jurídicas que descrevem normas de Direito e, assim, indiretamente, também podem ser aplicados às normas jurídicas. É possível, então, dizer-se que duas normas jurídicas se “contradizem” uma à outra. E, por isso mesmo, somente uma delas pode ser tida como objetivamente válida. Dizer que A deve ser e que não deve ser ao mesmo tempo é tão sem sentido como dizer que A é e não é ao mesmo tempo. Um conflito de normas representa, tal como uma contradição lógica, algo de sem sentido. Caso isso ocorra, haverá um conflito aparente de normas, e para resolver-se, há de se aplicar a norma estabelecida em último lugar em detrimento da norma fixada em primeiro lugar, segundo o princípio lex posterior derogat priori. Kelsen destaca ainda, que é possível que haja também um conflito entre duas normas individuais, como por exemplo, entre duas decisões judiciais, particularmente quando as duas normas foram postas por órgãos diferentes. Uma lei pode conferir competência a dois tribunais para decidir o mesmo caso, sem emprestar à decisão de um dos tribunais o poder de anular a decisão do outro. Para ele, este conflito entre duas normas individuais não constitui um gravame em si mesmo, pois nunca haverá dois casos 6852 idênticos para que tenham que ser julgados da mesma forma. Além disso, o juiz tem plena liberdade para formar o seu convencimento. 2.5 Validade e eficácia das normas jurídicas Kelsen ensina que a relação entre validade e eficácia das normas jurídicas é um caso especial da relação entre o dever-ser da norma jurídica e o ser da realidade natural. Explicita que existem duas teses sobre a matéria, sendo uma delas responsável pela concepção de que não existe conexão de espécie alguma entre validade e eficácia, e que a validade do Direito é completamente independente de sua eficácia, e a outra entendendo que a validade do Direito se identifica com a sua eficácia. Diante destas duas teses Kelsen se posiciona em favor da que entende que não há conexão entre validade de uma norma e sua eficácia. Para ele: “As normas de uma ordem jurídica positiva valem (são válidas) porque a norma fundamental que forma a regra basilar de sua produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes; mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer dizer, enquanto esta ordem jurídica for eficaz”.[8] Pouco importa se a norma está sendo cumprida ou não. O que importa é saber se a ordem jurídica é eficaz ou não. Um fato isolado (não aplicação de uma lei, falta de eficácia social) não pode taxar a ordem jurídica como ineficaz. Se a norma, respeitando a forma prescrita na norma fundamental e na legislação que a apóia, foi posta em vigor então ela deve ser tida como válida, devendo o seu cumprimento, na medida do possível, ser exigido. Na medida do possível porque caso esta norma esteja desfalcada de eficácia em sua estrutura de norma secundária, não se tem o que fazer, senão lançar olhar de reprovação. Sobre esta questão, segue abaixo trecho de sua obra: “Uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de fato observadas e aplicadas. E também uma norma jurídica singular não perde a sua validade quando apenas não é eficaz em casos particulares, isto é, não é observada ou aplicada, embora deva ser observada e aplicada”. 6853 Somente em caso de procedimento destinado a sua revogação ou de declaração de incompatibilidade com a norma fundamental, segundo trâmite previsto nesta, é que se pode expurgar a referida norma (de eficácia social reduzida ou nula) do ordenamento jurídico estatal, ou tornar sem efeito seus comandos. Com estes ensinamentos, Kelsen reforçava a importância dos órgãos responsáveis pela jurisdição constitucional ao exercer o papel de órgão responsável pela unidade lógica do sistema jurídico, corrigindo distorções à luz da hermenêutica constitucional. 2.6 Norma fundamental e doutrina do direito natural Kelsen destaca em trecho de sua obra Teoria Pura do Direito, em síntese que a norma fundamental é condição de validade jurídica objetiva, ou seja, fundamenta a validade de qualquer ordem jurídica positiva, melhor dizendo, de toda ordem coercitiva globalmente eficaz estabelecidas por atos humanos. Em razão deste fato, nenhuma ordem jurídica positiva pode prescindir a observância da norma fundamental que lhe dá sustentáculo, sendo não-válida. A Teoria Pura do Direito, como teoria jurídica positivista, descreve o Direito positivo, ou seja, toda ordem de coerção globalmente eficaz, como uma ordem normativa objetivamente válida e constata que esta interpretação somente é possível sob a condição de se pressupor uma norma fundamental por força da qual o sentido subjetivo dos atos criadores de Direito é também o seu sentido objetivo. Em trecho de sua obra, Kelsen deixa bem claro que a norma fundamental tem como principal função fundamentar a ordem jurídica positiva: “...a norma fundamental, como norma pensada ao fundamentar a validade do Direito positivo, é apenas a condição lógico-transcendental desta interpretação normativa, ela não exerce qualquer função ético-política mas tão só uma função teóricognoseológica”.[9] Vale asseverar que a filosofia do direito, desde os seus primórdios, até aproximadamente o século XIX, foi a doutrina do direito natural. Essa designação envolve manifestações de diferentes tipos. O direito natural na Antiguidade girava em torno da oposição entre natureza e norma; no período medieval, entre direito divino e humano, e na modernidade, em torno da oposição existente entre coação jurídica e razão individual. Ele ora está a serviço da consolidação do direito positivo, ora, exatamente ao contrário, serve à luta contra esse mesmo direito. No entanto, em todas as suas formas, caracteriza-se por quatro traços essenciais. Primeiro, oferece juízos de valor jurídico que são determinados quando ao conteúdo; esses juízos de valor, conforme sua fonte – natureza, revelação, razão -, têm validade geral e são invariáveis; são também acessíveis 6854 ao conhecimento; e, uma vez conhecidos, têm primazia sobre os diretos positivos que lhes são opostos: o direito natural rompe o direito positivo[10]. Nesta mesma linha de raciocínio, Kelsen ensina que: “Segundo uma genuína doutrina do Direito natural, portanto, não pode – ao contrário do que se dá com a Teoria Pura do Direito como teoria jurídica positivista – toda e qualquer ordem coercitiva globalmente eficaz ser pensada como ordem normativa objetivamente válida. A possibilidade de um conflito entre Direito natural e o Direito positivo, isto é, uma ordem coercitiva eficaz, implica a possibilidade de considerar como não válida uma ta ordem coercitiva”[11] Kelsen considera, no entanto, que a distinção entre uma teoria jurídica positivista e uma teoria jusnaturalista é simplesmente relativa e não absoluta, uma vez que segundo uma teoria jurídica positivista, se a validade do Direito se apoiar em uma norma fundamental que é norma pressuposta e que, portanto, está fora do Direito positivo cuja validade objetiva é por ela fundamentada, e ainda, segundo uma doutrina jusnaturalista, se a validade do Direito positivo se apoiar em uma norma que não pertence ao Direito positivo relativamente ao qual ela funciona como critério ou medida de valor, é possível visualizarmos uma limitação ao princípio jurídico positivo. Sobre esta questão, complementa Kelsen: “...a suposição de que uma teoria do Direito natural poderia dar uma resposta incondicional à questão do fundamento de validade do Direito positivo se baseia sobre uma ilusão. Uma tal doutrina vê o fundamento de validade do Direito positivo no Direito natural, quer dizer, numa ordem posta pela natureza como autoridade suprema colocada acima do legislador humano. Neste sentido, o Direito natural é também Direito posto, isto é, positivo”.[12] 2.7 Estrutura escalonada da ordem jurídica Quando Kelsen concebeu a norma fundamental como a norma fundante de uma ordem jurídica, e afirmou que a referida ordem jurídica (ou sistema jurídico) era composta por inúmeras normas que deviam deveriam estar em consonância com seus preceitos, implicitamente quis demonstrar que existe, em uma determinada ordem jurídica, uma estrutura escalonada de normas, das quais a norma fundamental ocupa o local de maior destaque, no cume da “pirâmide kelseniana”, formulação didática utilizada comumente nos cursos de graduação em Direito, para abordar a questão da hierarquia natural das normas. 6855 Kelsen, ao longo do livro Teoria Pura do Direito, explica que dado ao caráter dinâmico do Direito, uma norma só é válida porque e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela forma determinada por outra norma, que representa o fundamento imediato de validade daquela. A norma fundamental, como já ressaltado em momento anterior, é a norma superior, responsável por atribuir poder aos entes governamentais responsáveis pela elaboração de outras normas hierarquicamente inferiores. Sobre esta matéria, Kelsen ilustra que: “A norma que regula a produção e a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a nora inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas”.[13] Se as normas estivessem em um mesmo plano, nenhuma seria o fundamento da outra, haveria o caos total, que resultaria em uma grande perda de efetividade Kelsen ensina, em diversos momentos de sua obra, que as normas são respeitadas quando os destinatários reconhecem a autoridade de quem as elabora. Convém destacar ainda que em muitos essa autoridade se impõe, fazendo uso, caso necessário, da coação, da força do Estado, de sorte que os destinatários das normas preferem, em tese, cumprilas, a estar sujeito às penas pelo não cumprimento. Ao descrever a estrutura escalona das normas, Kelsen afirma que a norma fundamental é uma norma hipotética, sendo portanto o fundamento de validade último que constitui a unidade da interconexão criadora. Antes de tratar da produção das normas jurídicas gerais, Kelsen diz que a Constituição, entendida num sentido material, quer dizer: “...com esta palavra significa-se a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais. Esta Constituição pode ser produzida por via consuetudinária ou através de um ato de um ou vários indivíduos a tal fim dirigido, isto é, através de um ato legislativo. Como neste segundo caso, ela é sempre condensada num documento, fala-se de uma Constituição “escrita”, para a distinguir de uma Constituição não escrita, criada por via consuetudinária. A Constituição material pode consistir, em parte, de normas escritas, noutra parte, de normas não escritas, de Direito criado consuetudinariamente”.[14] Na estrutura das Constituições modernas, segundo Kelsen, consta um catálogo de direitos, tidos como fundamentais, os quais são especialmente protegidos, de sorte que a legislação infra-constituição não pode, em regra, limitá-los. Em regra porque, segundo 6856 RAUTENBACH; MALHERBE (1997)[15], tais direitos, em situações excepcionais, podem ser limitados, como no caso de calamidade grave, estado de sítio, em casos de guerras, etc. Este catálogo é facilmente identificável nas denominadas Constituições escritas. Kelsen destaca ainda que as Constituições, tanto escritas, como costumeiras podem ser alteradas, as primeira por um processo mais dificultoso que o de criação das leis simples (ordinárias) definido no próprio texto constitucional, e as segundas por um processo mais simples, como o da elaboração de leis simples ou pelo Direito consuetudinário. Sobre as características das Constituições dos Estados modernos, Kelsen destaca estas instituem sempre órgãos legislativos que são competentes para a produção das normas gerais a aplicar pelos tribunais e autoridades administrativas, de forma tal que ao escalão da produção constitucional, se segue o escalão legislativo e, a este, o escalão do processo judicial e administrativo. Outra parte importante na estrutura das Constituições é a que dispõe sobre a forma do Estado e a composição do órgão legislativo. Sobre a forma do Estado Kelsen ressalta que se é um indivíduo, um monarca hereditário u um ditador que chegou ao poder através da revolução estamos perante uma autocracia; se é a assembléia de todo o povo ou um parlamento eleito pelo povo, temos uma democracia. Parece até óbvio, mas Kelsen deixa registrado que somente no caso de legislação democrática se faz necessário que hajam determinações que regulem o processo legiferante, quando se vive em uma autocracia os limites dos processo legiferante são dados pelo próprio legislador, uma vez que a própria Constituição deixa margem para tanto. Em relação à aplicação do Direito consuetudinário, Kelsen elucida que este só pode ser aplicado pelos órgãos aplicadores do direito quando estes órgãos sejam competentes para tal mister. Ainda em relação à força dos costumes, ele destaca que “se a Constituição jurídico-positiva, que regula a produção de normas gerais, pode ser produzida por via consuetudiária, já se tem de pressupor que o costume é um fato produtor de Direito”. Na seqüência, Kelsen ressalta a principal diferença entre Lei e decreto, definindo este último como norma que provêm não de um parlamento, mas de uma autoridade administrativa, enquanto que aquela segue o regular trâmite legislativo, definido na própria norma fundamental, o qual não pode ser afastado, passa depois a tratar da distinção entre normas materiais e normas formais, que naturalmente existe entre as normas criadas por via legislativa, referindo-se as primeiras a normas de conteúdo substantivo, materializado nos principais ramos do Direito: Direito Civil, Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, etc., e as segundas a normas de conteúdo adjetivo, formal, processual, funcionando como instrumento de realização do Direito material, e por fim, aborda a questão das fontes do Direito, da aplicação do direito, que se dá através da criação de uma norma inferior (norma individual) com base numa norma superior ou execução do ato coercitivo estatuído por uma norma, da jurisprudência, momento em que trata do caráter constitutivo da decisão judicial, da relação entre a decisão judicial e a norma jurídica geral a aplicar, das “lacunas” do Direito, da criação de normas jurídicas gerais pelos tribunais, quando o juiz age como legislador, do negócio jurídico, da administração, do conflito entre normas de diferentes escalões, e da nulidade e anulabilidade. 6857 3 DINÂMICA JURÍDICA SOB A ÓTICA DE LOURIVAL VILANOVA Lourival Vilanova, ao discorrer sobre a dinâmica jurídica, o faz com poderosa capacidade analítica, submetendo a matéria, como bem lembrou Paulo de Barros Carvalho na apresentação da obra Estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo, a um tratamento fino, minucioso, extraindo, com a delicadeza de um cirurgião, a essência de sua formulação. A dinâmica jurídica, o direito em movimento, na concepção de Lourival Vilanova é vista sob o ponto de vista sistemático, onde há uma imbricação de fatores que se somam, formando um intra-sistema de valores e princípios. Em sua vasta obra, não raras vezes, Lourival Vilanova esforça-se em demonstrar como o pensamento de Kelsen fora importante para a construção de uma nova concepção do fenômeno jurídico, despida, em seu método, de fatores externos ao objeto da ciência do Direito, não obstante o jurista de Viena os considerem importantes para o entendimento, e até mesmo, para a visualização de tendências futuras. Em outras palavras, Vilanova debruça-se sobre a teoria de Kelsen, complementando-a, tecendo algumas críticas, mesmo que “suaves” e dando contornos filosóficos aos limites de seu pensamento jurídico, o que consegue fazer com êxito. 3.1 Sistema jurídico como referência Vilanova ressalta que não há fato jurídico, em sentido técnico, sem norma jurídica, cuja hipótese de incidência tenha o fato natural, ou o fato social como base de qualificação. A primeira parte de uma norma jurídica qualifica e tipifica o suporte fático. Só norma individual tem suporte fático individual. Qualificar um fato como sinistro, acidente, delito, manifestação ou declaração de vontade importa num corte abstrato na série, numa esquematização típica sobre a multiplicidade contínua e qualificativamente heterogênea da realidade. Destaca este autor que para dar-se causalidade jurídica, temos sempre norma, fato e eficácia. Sem norma, um fato não adquire qualificação de fato jurídico. E sem fato jurídico, efeito nenhum advém. De onde se extrai que os fatos jurídicos são internos a cada sistema. Não há fato jurídico “fora” de sistema normativo. É o sistema que decide que fatos são fatos jurídicos (juridicização do fáctico), e que fatos deixam de ser jurídicos (desjuridicização do fáctico)[16]. Para Vilanova, todo e qualquer fato jurídico que é ligado a efeitos insere-se num sistema de normas jurídicas. E não há norma jurídica que não pertença a um determinado 6858 sistema. Sem norma e sem a porção do fato que lhe serve de incidência, sem o suporte fáctico, não sobrevém norma. Um dos efeitos do fato jurídico é o estatuir norma. O efectual do processo legislativo é a criação da lei. É fato jurídico um plexo de manifestações de vontade, normativamente qualificado como ato constitutivo de normas. Vale frisar, por sua vez, que o órgão competente para estatuir normas é qualificado por normas de organização e competência, normalmente presentes na norma fundamental. Nesta mesma esteira de raciocínio, merece recorte um trecho da obra do mestre recifense, a seguir exposto: “O que denominamos “fontes do direito” são fatos jurídicos criadores de normas: fatos sobre os quais incidem hipóteses fácticas, dando em resultado normas de certa hierarquia. Assim, as normas, potencialmente, incidentes sobre as classes de fatos que delinearam, resultam de fatos que, por sua vez, são qualificados como fatos jurídicos por outras normas do sistema. (...) Se tomarmos todas as classes de normas, as gerais e as individuais, as abstratas e as concretas, qualquer que seja o nível hierárquico no sistema, a não ser os últimos fatos de execução matéria, todo fato é fato jurídico constitutivo (ou desconstitutivo) de normas[17]”. 3.2 A dinâmica do processo de produção normativa Sobre a dinâmica do processo de produção normativa Lourival Vilanova ressalta que enquanto Kelsen se manteve estabelecendo os fundamentos epistemológicos do conhecimento dogmático do direito, sem sair do sistema jurídico, como em repouso, o problema da criação de normas não entrou em linha de conta. Por este caminho, em síntese, nada, em princípio, é insusceptível de figurar como suporte fático de uma norma jurídica[18]. Vilanova assevera que se ainda não se incidiu uma hipótese normativa, está ao lado dos meros fatos juridicamente indiferentes. Encontram-se no sistema jurídico, além de normas de conduta, normas-sobre-normas, ou seja, normas que prescrevem como se devem criar outras regras. Neste ponto, Vilanova compartilha a mesma concepção de Kelsen, de que para uma norma ser válida, eficaz, necessita de um fundamento de validade tal, imediato, que afaste quaisquer dúvidas quando à sua legitimidade. Em suas palavras, diz: “Podemos ir regredindo de norma em norma, buscando numa norma superior o fundamento dinâmico (criador) da norma subordinada. Mas esse regressus não é intérmino. Há de existir uma última norma positiva, que não tenha sido posta de acordo com outra norma. Então o suporte factual dessa produção originária da primeira norma de positivo está fora do sistema jurídico”.[19] 6859 Em suma, pode-se afirmar que o processo de produção normativa é algo que, segundo Vilanova, pode, e em alguns casos até deve, exorbitar da esfera jurídica, de modo que se possa buscar, fora do sistema, os fundamentos da necessidade de uma nova proposição jurídica. Nesta direção, ressalta este jurista pernambucano que a norma fundamental não é pressuposta pelo ordenamento jurídico positivo, que só contém normas postas: é pressuposta pela teoria do conhecimento jurídico-sociológico, ou jurídico-histórico. 3.3 Norma fundamental e fechamento lógico do sistema Vilanova inicia a abordagem deste tema destacando que se toda norma provém de norma – em rigor inexiste a produtividade normativa do fáctico -, o conjunto, que é o sistema, é ontologicamente, em-si-mesmo bastante. Mas há o problema do começo normativo do sistema. Para o sistema normativo que evoluiu para a forma estatal, o princípio está na Constituição. Mas de onde provém a Constituição positiva, qual o fato constituinte, o protofato que dá origem ao Direito constitucional? Como sistema requer uma norma fundante, um ponto de partida, e não se dilui em uma seqüência interminável de antecedentes, há que se deter numa forma que não seja positiva, por não ter sobrenorma da qual seja aplicação. É uma norma pressuposta que confere conclusividade ou fechamento ao conjunto de normas que é o direito. Em outras palavras, Lourival Vilanova destaca que a norma fundamental é aquela norma que dá conclusividade ao sistema jurídico, que cria um círculo limitado de atuação, que cria o “esqueleto” do Estado, o seu arcabouço, ou melhor dizendo fecha o ordenamento jurídico, fazendo com que todos os atos e situações que se observem no espaço territorial por ela delimitada estejam sujeitos a sua aplicação. 3.4 Conteúdo e validade da norma fundamental Vilanova assevera que a norma fundamental, ou Constituição em sentido lógico-jurídico é pura forma vazia, ou uma espécie de forma lógica. Forma lógica é nível de abstração a que se chega, como mostra Husserl, quando se põem entre parênteses os correlatos objetivos das significações e suas possíveis combinações. A norma fundamental, cuja expressão é a proposição, como ente lógico, tem uma direção para o objeto. O correlato objeto é o fato, a situação fáctica que dá origem ao ordenamento jurídico. Sem suporte fáctico fundamental, o jurista não conta com apoio para formular a norma fundamental. Muito embora a norma fundamental seja tida como hipótese e tenha precedência na escala normativa sob o aspecto de validade, quanto ao conteúdo ela é a posteriori. 6860 Para Vilanova, a relação validade/conteúdo verifica-se na norma fundamental, como se verifica na interconexão das normas componentes do sistema. A norma supra-ordenada é fundamento de validade da norma subordinada. Com mais pureza na relação da norma fundamental em face das normas jurídico-positivas. Vilanova, da mesma forma que Kelsen, também entende que enquanto uma determinada norma, acusada de contradição ou de incompatibilidade não for declarada (pelo órgão competente) incompatível e, consequentemente, extinta do ordenamento jurídico ela continua válida, deve ser exigido o seu cumprimento. Em suas palavras: “A não-contradição, que é lei lógica excludente do conflito de proposições contraditórias, não é, eo ipso, lei jurídica. É o próprio sistema que, por meio de normas jurídicas (naturalmente seguindo as leis lógicas), diz como deve ser eliminada a contradição. Normas jurídicas contraditórias não podem ser simultaneamente válidas até o momento em que o órgão, seguindo procedimento normativamente prescrito, exclua a norma conflitante”.[20] Diante deste trecho, percebemos que a validade lógica não se confunde com a validade em sentido jurídico-positivo. 3.5 Ato-base, ato teorético, ato de vontade da norma fundamental Referindo o fundamento último de validade da ordem jurídica de norma fundamental, a teoria pura admite o caráter preceptivo ou deôntico do fundamento básico do ordenamento. Não poderia ser de outra forma. Todo o conjunto de normas que formam o direito provém de uma norma, ou seja, todas as proposições normativas do direito positivo têm sua matriz em uma proposição inicial. Este seria o ato-base. Vilanova relembra que durante seis longas décadas, Kelsen manteve a firme posição de que a norma fundamental era hipotética, até que, durante um Simpósio realizado em Salzburgo (1963) ele repensou sua teoria e chegou a conclusão que aquela norma fundamental era uma ficção. Lembrando deste momento na vida acadêmica de Kelsen, Alf Ross (Lógica de lãs normas, p. 147) reproduziu as palavras de Kelsen: “Em obras anteriores tenho falado de normas que são o conteúdo significativo de um ato de volição. Em minha doutrina, a norma básica foi sempre concebida como uma norma que não era o conteúdo significativo de um ato de volição, mas estava pressuposta por nosso pensamento. Devo agora confessar que não posso seguir mantendo esta doutrina, que acabo de abandoná-la. Podem crer que não tem sido fácil renunciar a uma doutrina que tenho defendido durante décadas. Tenho-a abandonado 6861 ao comprovar que uma norma (Sollen) deve ser o correlato de uma vontade (Wollen). Minha norma básica é uma norma fictícia, baseada num ato de volição”. [21] Kelsen chegou a conclusão que a norma fundamental não fugia a regra de ser uma norma positiva. Ela deixava de ser uma hipótese (algo que precisava de comprovação) e passou ao nível do palpável, passando esta a ser vista como uma criação humana, um ato de vontade (ficção) de que esta seja a norma mais importante do ordenamento, ou seja, a ordem que sempre inaugura uma nova ordem jurídica. A norma fundamental é vista aqui como um ato-teorético e um ato de vontade. A norma última, que dá fechamento ao sistema normativo, que confere ao sistema o caráter de continuum de dever-ser, provém da Ciência-do-Direito ou, com mais rigor, da teoria da Ciência-do-Direito, que é uma metateoria, relativamente à ciência que é teoriaobjeto. Uma das teses da teoria pura do direito, segundo Vilanova, é a de que ciência dogmática do direito é uma ciência e, como tal, não pode ser fonte de direito positivo. O jurista teórico não se confunde com o legislador (em sentido amplo): nem emite regras gerais, como órgãos legislativos e executivos, nem normas individuais (e eventualmente gerais) como o poder jurisdicional[22]. Por fim, Vilanova ensina que a norma fundamental não é pressuposta pelo ordenamento jurídico, que só contém normas postas (positivas, dotadas de validade própria ao direito positivo): é pressuposta pela teoria do conhecimento jurídico-sociológico, ou jurídicohistórico. É uma hipótese teorética para uma ciência cujo objeto é o direito positivo, e conclui seu pensamento afirmando que a norma fundamental não pertence à linguagem do direito positivo, mas à linguagem da Ciência-do Direito. 3.6 Pontos de vista estático e dinâmico Lourival Vilanova aduz que se considerarmos o ordenamento como se estivesse em repouso, enquanto a realidade flui no âmbito da sociedade, alterando-se constantemente, onde novas relações inter-humanas são criadas, se tomarmos do ordenamento só as normas gerais, em contraste com a individualidade do real, que confere à realidade social sua multiplicidade qualitativa e quantitativa, então o sistema de normas é frustrada tentativa de corresponder ao sistema social. Todavia, essa visão estática não dá na efetiva estrutura do ordenamento. E destaca ainda que o conceito de completude não exprime o estático do ordenamento. Mesmo havendo o legislador previsto o caso mediante norma geral, sua aplicação contenciosa ou não-contenciosa é um processo de individualização. O que enche os poros inevitáveis no esquema abstrato da norma geral é o ato judicial, continuando o processo de produção normativa. Sob o ponto de vista estático, o Direito aparece posto, sobretudo na Constituição, nas leis e regulamentos, e a função jurisdicional consistindo em aplicar o que já está normativamente preestabelecido pelo legislador. 6862 Por fim, Vilanova assevera que tão-só em aparência o ordenamento é algo já feito e concluso; é, porém, algo se fazendo: as normas gerais não são completas, mas estruturas cujos quadros normativos vão-se completando, com outras normas integradoras, entre as quais se acham as normas individuais do ato sentencial. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao final deste breve estudo é possível afirmar que para Kelsen, o conhecimento jurídico pode considerar as normas integrantes de seu objeto a partir de suas perspectivas distintas. Segundo ele, é possível, de um lado surpreender as normas jurídicas enquanto reguladora de condutas humanas. Opera-se, então, a partir de uma teoria estática do direito, procurando relacionar as normas entre si como elementos da ordem em vigor. Mas pode, por outro lado, surpreendê-las no processo de sua produção e aplicação, hipótese em que opera a partir de uma teoria dinâmica. Essa perspectiva também cuida exclusivamente de norma jurídica, mas daquelas que regulam o processo de produção normativa. Para Kelsen, a teoria dinâmica não ultrapassa, certamente, os limites traçados pelo princípio metodológico fundamental, e assim, não se deve entender produção normativa senão em seu sentido meramente normativo. Neste trabalho, inicialmente, tratamos do fundamento de validade de uma ordem normativa, extraindo das lições de Kelsen, que o fundamento de qualquer sistema jurídico de direito positivo é uma norma pressuposta, a norma fundamental. Esta hierarquia de normas superiores e normas inferiores, as primeiras justificando e fundamentando as segundas, constitui a essência do princípio dinâmico, principal motivador da produção de normas. Na seqüência tratamos especificamente do princípio estático (direito posto) e do princípio dinâmico (processo de produção normativa e de aplicação do direito posto), passando em seguida a tecer considerações mais aprofundadas sobre a norma-base, o ato-base do ordenamento jurídico, e logo após passando a abordar a distinção entre validade e eficácia das normas jurídicas, onde Kelsen ensina que existem duas teses sobre a matéria, sendo ele adepto da que considera que a validade do Direito completamente independente de sua eficácia. Em seguida, ainda sob a ótica de Kelsen, tratamos da norma fundamental e de considerações sobre a doutrina do direito natural, e por fim, após todo o suporte teórico anterior, abordamos a estrutura escalonada da ordem jurídica, aquilo que nas graduações dos cursos de Direito no Brasil se chama de “pirâmide de Kelsen”. Na seqüência, foi feita uma análise da dinâmica jurídica na concepção de Lourival Vilanova, partindo do sistema jurídico como referência. Então foi abordada a questão da dinâmica do processo de produção normativa, onde Vilanova basicamente ratifica a doutrina de Kelsen, apenas divergindo quando ressalta que a norma fundamental não é pressuposta pelo ordenamento jurídico, que só contém normas postas: é pressuposta pela teoria do conhecimento jurídico-sociológico, ou jurídico-histórico. Após, foi abordada a teoria da norma fundamental como fechamento lógico do sistema, onde 6863 Lourival Vilanova destaca que a norma fundamental é aquela norma que cria um círculo limitado de atuação, que cria o arcabouço do Estado, fazendo com que todos os atos e situações que se observem no espaço territorial por ela delimitada estejam sujeitos a sua aplicação. Seguindo a mesma lógica da exposição de Kelsen passou-se a tratar do conteúdo e validade da norma fundamental, que lança reflexos sobre o conteúdo e validade de todas as outras normas, hierarquicamente inferiores, logo após, tratou-se do ato-base, ato-teorético e ato de vontade da norma fundamental, e por fim, fez-se uma recapitulação dos pontos de vista estáticos e dinâmicos à luz agora do mestre pernambucano, onde este afirma que apenas em aparência o ordenamento é algo já acabado; é, porém, algo sendo feito: as normas gerais não são completas, mas estruturas cujos quadros normativos vão-se completando, com outras normas integradoras, entre elas as normas individuais do ato sentencial. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. TROPER, Michel. A filosofia do direito. 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Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [10] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. [11] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [12] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [13] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [14] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [15] RAUTENBACH,I.M., MALHERBE, E.F.J. Constitutional law. 2ª edição. Durban: Butterworths,1997. [16] VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. [17] VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. [18] VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. vol. 1. São Paulo: Axis Mvndi IBET, 2003. [19] VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. vol. 1. São Paulo: Axis Mvndi IBET, 2003. [20] VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. vol. 1. São Paulo: Axis Mvndi IBET, 2003. [21] VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. vol. 1. São Paulo: Axis Mvndi IBET, 2003. 6865 [22] VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. vol. 1. São Paulo: Axis Mvndi IBET, 2003. 6866