ENFOQUES DA CONSTITUIÇÃO 1) Enfoque sociológico O enfoque sociológico foi idealizado por Ferdinand Lassalle, em sua obra “A essência da Constituição”, de 1863. A Constituição é concebida como fato social, e não propriamente como norma. A Constituição de um país é, em essência, a soma dos fatores reais de poder que regem nesse país, vale dizer, as forças sociais que mandam no país. Esta é a constituição real e efetiva. O texto positivo da Constituição seria resultado da realidade social do País, das forças que imperam na sociedade, em determinada conjuntura histórica. Lassalle defendeu que uma Constituição só seria legítima se representasse o efetivo poder social, refletindo as forças sociais que constituem o poder. Caso isso não ocorresse, ela seria ilegítima, caracterizando-se como uma simples “folha de papel”. Segundo Lassalle, convivem em um país, paralelamente, duas Constituições: uma Constituição real, efetiva, que corresponde à soma dos fatores reais de poder que regem esse País, e uma Constituição escrita, por ele denominada "folha de papel". Esta, a Constituição escrita ("folha de papel"), só teria validade se correspondesse à Constituição real, isto é, se tivesse suas raízes nos fatores reais de poder. Em caso de conflito entre a Constituição real (soma dos fatores reais de poder) e a Constituição escrita ("folha de papel"), esta sempre sucumbiria àquela. Do enfoque sociológico foram extraídos dois conceitos: (i) o de Constituição material (disciplina do poder em determinada sociedade), e (ii) o de Constituição semântica ou de fachada (a Constituição não guarda relação com a realidade). Para explicar sua visão sociológica, Lassalle expunha, entre outras, a seguinte passagem: Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: 'Esta árvore é uma figueira'. Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, estes destruiriam a fábula, produzindo maçãs, e não figos. O mesmo ocorre com as Constituições. De nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justificar pelos fatores reais e efetivos do poder. É também sociológica a concepção marxista de Constituição, para a qual a Constituição não passaria de um produto das relações de produção e visaria a assegurar os interesses da classe dominante. Para Karl Marx, a Constituição, norma fundamental da organização estatal, seria um mero instrumento nas mãos da classe dominante, com o fim de assegurar a manutenção de seus interesses, dentro de um dado tipo de relações de produção. 2) Enfoque político O enfoque político de Constituição foi desenvolvido por Carl Schmitt, em sua obra “Teoria da Constituição”, de 1928. Para ele, a Constituição é uma decisão política fundamental, decisão concreta de conjunto sobre o modo e forma de existência da unidade política Para Schmitt, a validade de uma Constituição não se apóia na justiça de suas normas, mas na decisão política que lhe dá existência. O poder constituinte equivale, assim, à vontade política, cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência política, determinando assim a existência da unidade política como um todo. A Constituição surge, portanto, a partir de um ato constituinte, fruto de uma vontade política fundamental de produzir uma decisão eficaz sobre modo e forma de existência política de um Estado. Nessa concepção política, Schmitt estabeleceu uma distinção entre Constituição e leis constitucionais: a Constituição disporia somente sobre as matérias de grande relevância jurídica, sobre as decisões políticas fundamentais (organização do Estado, princípio democrático e direitos fundamentais, entre outras); as demais normas integrantes do texto da Constituição seriam, tão-somente, leis constitucionais. 3) Enfoque jurídico Em sentido jurídico, a Constituição é compreendida de uma perspectiva estritamente formal, apresentando-se como pura norma jurídica, como norma fundamental do Estado e da vida jurídica de um país, paradigma de validade de todo o ordenamento jurídico e instituidora da estrutura primacial desse Estado. A Constituição consiste, pois, num sistema de normas jurídicas. O enfoque jurídico foi idealizado pelo austríaco Hans Kelsen, que desenvolveu a denominada “Teoria Pura do Direito”, de 1920. Para Kelsen, a Constituição é considerada como norma, e norma pura, como puro deverser, sem qualquer consideração de cunho sociológico, político ou filosófico. Embora reconheça a relevância dos fatores sociais numa dada sociedade, Kelsen sempre defendeu que seu estudo não compete ao jurista como tal, mas ao sociólogo e ao filósofo. Segundo a visão de Hans Kelsen, a validade de uma norma jurídica positivada é completamente independente de sua aceitação pelo sistema de valores sociais vigentes em uma comunidade, tampouco guarda relação com a ordem moral, pelo que não existiria a obrigatoriedade de o Direito coadunar-se aos ditames desta (moral). A ciência do Direito não tem a função de promover a legitimação do ordenamento jurídico com base nos valores sociais existentes, devendo unicamente conhecê-lo e descrevê-lo de forma genérica, hipotética e abstrata. Esta era a essência de sua teoria pura do direito: desvincular a ciência jurídica de valores morais, políticos, sociais ou filosóficos. A validade das normas jurídicas é baseada na hierarquia, de forma que uma norma inferior tem seu fundamento de validade em norma superior. Kelsen desenvolveu dois sentidos para a palavra Constituição: (a) sentido lógicojurídico; (b) sentido jurídico-positivo. O jurídico-positivo corporificado pelas normas postas, positivadas. O lógico-jurídico situa-se em nível do suposto, do hipotético, uma vez que não editada por nenhum ato de autoridade. Em sentido lógico-jurídico, Constituição significa a norma fundamental hipotética, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental da validade da Constituição em sentido jurídico-positivo. Essa idéia de uma norma fundamental hipotética, não positivada, pressuposta, era necessária ao sistema propugnado por Kelsen, porque ele não admitia como fundamento da Constituição positiva algum elemento real, de índole sociológica, política ou filosófica. Assim, Kelsen viu-se forçado a desenvolver um fundamento também meramente formal, normativo, para a Constituição positiva. Denominou esse fundamento "norma fundamental hipotética" (pensada, pressuposta), que existiria, segundo ele, apenas como pressuposto lógico de validade das normas constitucionais positivas. Essa norma fundamental hipotética, fundamento da Constituição positiva, não possui um enunciado explícito; o seu conteúdo pode traduzir-se, em linhas gerais, no seguinte comando, a todos dirigidos: "conduzam-se conforme determinado pelo autor da Constituição positiva"; ou, de forma mais simples, "obedeçam à Constituição positiva". Para Kelsen, a norma jurídica não deriva da realidade social, política ou filosófica. O fundamento de validade das normas não está na realidade social do Estado, mas sim na relação de hierarquia existente entre elas. Uma norma inferior tem fundamento na norma superior, e esta tem fundamento na Constituição positiva. Esta, por sua vez, se apoia na norma fundamental hipotética, que não é uma norma positiva (posta), mas uma norma imaginada, pressuposta, pensada. É uma norma presente apenas na consciência do indivíduo. Em sentido jurídico-positivo, Constituição corresponde à norma positiva suprema, conjunto de normas que regulam a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau. Ou, ainda, corresponde a certo documento solene que contém um conjunto de normas jurídicas que somente podem ser alteradas observando-se certas prescrições especiais. Dessas concepções de Constituição, a relevante para o Direito moderno é a jurídico-positiva, a partir da qual a Constituição é vista como norma fundamental, criadora da estrutura básica do Estado e parâmetro de validade de todas as demais normas. A teoria de Kelsen pode ser demonstrada no seguinte quadro: PLANO LÓGICO-JURÍDICO * norma fundamental hipotética * plano do suposto * fundamento lógico-transcedental da validade da Constituição jurídico-positiva PLANO JURÍDICO-POSITIVO * norma posta, positivada * norma positivada suprema Esses enfoques pecam pela unilateralidade. Vários autores, por isso, têm tentado formular conceito unitário de constituição, concebendo-a em sentido que revele conexão de suas normas com a totalidade da vida coletiva; constituição total, mediante a qual se processa a integração dialética os vários conteúdos da vida coletiva na unidade de uma ordenação fundamental e suprema.