SBS – XII Congresso Brasileiro de Sociologia GT 17 – Sexualidades, Corporalidades e Transgressões Título do Trabalho: Corpo, Identidade e Política Autor: Richard Miskolci* * Departamento de Ciências Sociais - UFSCar 1 Em Eu Canto o Corpo Elétrico, um poema escrito em meados do século XIX, Walt Whitman indagava: “E se o corpo não for a alma, o que é a alma?” Em nossos dias, em tempos em que a matéria parece ter vencido as especulações metafísicas, deparamo-nos não com o corpo sonhado por Whitman, o corpo intersecção das almas, das relações afetivas e sociais mais intensas. Vivemos na era do corpo como encarnação da identidade, sustentáculo dos ideais societários que incidem sobre os indivíduos e depositário das ansiedades individuais sobre a possibilidade de adequação ao mundo. Parodiando Whitman só podemos questionar: E se meu corpo não se adequar ao que esperam de mim, o que será de mim? As relações entre corpo e identidade social têm uma história ainda pouco conhecida. Se quisermos compreender porque hoje se exige uma adequação, ou mesmo equivalência, entre o que se é e o corpo que se tem, precisamos retraçar as formas como nossa sociedade compreendeu as identidades até chegarmos à “corporificação”. Nesse sentido, traçarei uma genealogia crítica dos paradigmas sociais de compreensão das relações entre corpo e identidade. O paradigma que se impôs a partir do século XVIII pode ser denominado de naturalizante, pois enfatiza a fonte biológica (ou bio-psíquica) das identidades. As ciências humanas só se contrapuseram a este paradigma por volta de meados do século XX, com o chamado “paradigma construtivista”, o qual sublinhou a construção social das identidades através de processos históricos e colocou em xeque determinantes biológico-psíquicos. Esse paradigma afirma que nascemos com corpos diferenciados sexualmente e que nossas 2 identidades são criadas, mantidas ou transformadas através de instituições, práticas e discursos. Discussões teóricas contemporâneas buscam refinar este modelo teórico. Não se trata de refutar o construtivismo e muito menos voltar a explicações deterministas de cunho biológico. O objetivo é reavaliar a dicotomia, que permanece no paradigma construtivista, entre um corpo neutro sobre o qual se construiria a identidade social. Hoje podemos afirmar claramente: a oposição natureza/cultura não é mais sustentável, pois sabemos que a própria natureza é uma invenção humana. Da mesma forma, o corpo não é neutro e não é sobre esta suposta base que opera a construção social das identidades. A superação contemporânea do construtivismo mostra que a oposição corpo/identidade é enganosa e que a oposição natureza/cultura que lhe dá sustentação camufla práticas reguladoras, processos segundo os quais se criam socialmente identidades hegemônicas e marginais. Assim, corpo e identidade se relacionam na construção social dos esquemas de inteligibilidade e dos comportamentos considerados normais ou desviantes. A identidade social não pode mais ser compreendida como algo desencarnado, pois ela é corpórea desde antes mesmo de nossa concepção. Da Ascensão da Natureza ao Modelo Construtivista Durante o século XVIII, ocorreram duas mudanças fundamentais nos saberes sobre o ser humano. A primeira mudança foi política, a decadência do Ancien Régime e a emergência de ideais democráticos de igualdade entre os seres humanos. A outra foi menos visível, mas não menos importante. Provavelmente, como reação às novas demandas de 3 igualdade, ocorreu uma transformação epistemológica em que explicações das diferenças entre os indivíduos passaram a se assentar na natureza. A esfera pública burguesa foi criada como domínio dos homens e esse privilégio se baseou em uma antropologia física da diferença sexual que manteve as mulheres na esfera privada, reféns do mito da maternidade e de sua inelutável diferença-inferioridade biológica (Laqueur, 2001, p.242). A natureza como ainda a concebemos emergiu nesse momento e tornou-se o alicerce de toda uma ciência sobre o ser humano, a qual se distanciava das explicações religiosas. Até hoje atribuir naturalidade a algo é o mesmo que o tornar indiscutível. Nesse novo padrão epistemológico, a ambição de neutralidade científica seria alcançada pela biologia. Era como se esse ramo do conhecimento humano fosse absolutamente isento e livre de dilemas interpretativos. Progressivamente, a biologia criou os padrões científicos de investigação mais respeitados e, em meados do século XIX, seu poder explicativo parecia incontestável. Foi o poder atribuído às explicações biológicas que permitiu que a teoria da evolução exposta por Charles Darwin em 1859 se tornasse um divisor de águas na história da ciência (Stepan, 1982). Segundo a ciência pré-Darwin as espécies eram criações divinas fixas, mas seu estudo demonstrava que na verdade as espécies eram eternas mutantes através de um processo natural de variação, luta e seleção dos traços favoráveis à sobrevivência. Assim, a adaptação e a mudança ocorriam de forma que novas espécies se formavam a partir de antigas, num processo de transmissão de características aos descendentes. A ciência pós-Darwin tinha na hereditariedade um novo alicerce. As diferenças humanas eram compreendidas como produto de sua ascendência. Na verdade, não se evitou confundir aparência com essência e logo o próprio caráter, comportamento e interesses 4 passaram a ser vistos como herança dos antepassados. Tornou-se dominante a associação entre características físicas e mentes, portanto o que alguém era equivalia ao que parecia ser. Julgar pelas aparências era a regra e logo a psiquiatria criaria ramos devotados às questões do crime e da sexualidade. O que unificava todos esses saberes e fundamentava a associação entre aparência física e atributos morais era a crença de que as identidades eram naturais, biologicamente criadas. Acreditava-se que alguém nascia predeterminado por sua “natureza”, herdeiro dos atributos positivos e negativos de seus ancestrais. Pior do que isso, acreditava-se na herança de características adquiridas, portanto filhos de maus casamentos, leia-se casamentos entre pessoas de classes sociais ou raças diferentes, iriam se revelar seres degenerados, propensos à doença e comportamentos sociais perigosos (Stepan, 1996). Aqueles cujo comportamento fugisse às normas sociais estariam fadados ao crime e à degeneração sexual. Por isso, seus comportamentos ou práticas passaram a ser vistos como o cerne deles, suas essências, ou mais claramente, o que passou a ser compreendido como o que definia suas identidades. A transformação de comportamentos em identidades se deu no terço final do século XIX. A preocupação era com aqueles que supostamente ameaçavam a ordem social burguesa e seus valores. Ramos da psiquiatria como a sexologia e a criminologia enquadraram esses comportamentos-identidades em categorias sociais como o homossexual, a prostituta, o criminoso nato, o alcoólatra, portanto, atribuindo uma identidade fixa, mais especificamente uma essência “corrompida”, a todos que se desviassem das normas socialmente hegemônicas (Foucault, 2001; Miskolci, 2003). Entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX, emergiram teorias sobre o criminoso nato, a prostituta, a tendência maior dos judeus à loucura, o temor das conseqüências da miscigenação. Toda identidade era vista como produto de condições 5 biológicas fixas e irremediáveis. Tais idéias legaram-nos políticas públicas voltadas para o controle populacional, a segregação racial e também, nos momentos mais sombrios do último século, processos de limpeza étnica, internamentos dos indivíduos considerados perigosos ou ainda os campos de concentração (Stepan, 1996; Ordover, 2003). As identidades, quaisquer que fossem, eram compreendidas como biologicamente determinadas, expressão de essências imutáveis, as quais poderiam representar o enquadramento na normalidade ou no desvio. Dominava a classificação como sentença, pois ser classificado como anormal equivalia a um julgamento definitivo. O temor provocado por essa forma inflexível de regulação dos comportamentos era suficientemente poderoso para garantir a manutenção das normas hegemônicas. A ameaça do estigma fazia valer os imperativos sociais e o predomínio de formas de comportamento prescritas e controladas. Logo, todos, normais ou desviantes, só podiam compreender a si próprios como produto inelutável de uma suposta “natureza”, um termo que ocultava, sob a aparência de neutralidade, relações de poder. A superação dessa forma biológica, ou essencialista, de compreender as identidades não se deu por completo e basta observar jornais, programas televisivos e até notícias sobre novas teorias genéticas sobre identidades e comportamentos para constatar que ainda é forte a associação entre identidade e natureza. Por sorte, isso não domina nas ciências sociais. Desde ao menos o final da década de 1940 houve um progressivo avanço de um paradigma de compreensão das identidades que enfatiza os fatores sociais e históricos como os mais importantes. É difícil datar as origens do paradigma construtivista, mas sem dúvida O Segundo Sexo (1948) de Simone de Beauvoir foi importante para sua criação. A frase da pensadora francesa: “Não se nasce mulher, torna-se mulher” ainda carrega consigo a oposição entre 6 natureza e cultura. A pensadora francesa indicava que ser mulher não era um fato biológico, antes uma construção social. Foi um grande passo na superação do modelo naturalizante de compreensão das identidades, mas apenas na década de 1970 podemos afirmar que o paradigma construtivista emergiu de forma definitiva. Sociólogos e antropólogos contribuíram para isso. Ainda que seja impossível citar a todos, é importante mencionar pesquisadores como Mary McIntosh, Jeffrey Weeks, Kenneth Plumer, Gayle Rubin e, é claro, Michel Foucault (Rubin, 2003, p.184). De forma geral, a teoria da “construção social” afirma que identidades não podem ser explicadas biologicamente, antes através da investigação dos processos históricos e sociais que as constituem. A compreensão desses processos colocou em evidência as assimetrias de poder que instituem as identidades e como a naturalização justifica e permite a manutenção das desigualdades. Assim, argumentos naturalizantes tendem a corroborar a dominação masculina. O paradigma da construção social das identidades representou um avanço, mas não um rompimento completo com o essencialismo. Na linha dos estudos de gênero, as explicações construtivistas davam a entender que havia algo natural, “anterior” à construção, o sexo, sobre o qual se inscrevia ou moldava a identidade social. O paradigma construtivista procurava romper com explicações naturalizantes, mas se estabelecia nos termos delas ao aceitar a existência de uma matriz “anterior ao social”. A manutenção da crença em uma base ahistórica e, de certa forma, natural, permitiu que o corpo fosse encarado como um dado fora da cultura, portanto anterior às relações de poder. Se assim o era, então características “raciais” eram aceitáveis como fixas e verdadeiras assim como a diferenciação dos genitais corroborava a existência de apenas duas opções para a compreensão dos seres humanos em termos de gênero. Dois genitais 7 apresentavam uma suposta base heterossexual irrefutável como a fonte binária do gênero. Assim, o binarismo heterossexista se justificava em termos corporais e moldava as possibilidades de luta contra as desigualdades dentro de uma oposição estreita entre dois sexos opostos e incomensuráveis: as mulheres contra os homens. A teoria da construção social se volta contra seus próprios objetivos por não romper com a oposição natureza-cultura. Este rompimento só seria possível a partir do momento que também o corpo fosse encarado como construção social, como tendo uma história, a qual é indissociável da história das identidades. Corpo e identidade social finalmente se encontravam no ponto nodal que é o gênero. Além do Construtivismo O modelo construtivista foi colocado em xeque a partir da segunda metade da década de 1980. Alguns teóricos partiram da construção discursiva das sexualidades exposta por Michel Foucault e do procedimento metodológico da desconstrução proposto por Jacques Derrida para questionar e desestabilizar binarismos que fundam a compreensão das identidades. Assim, oposições como homem-mulher e heterossexualidade- homossexualidade passaram a ser discutidas como parte de uma mesma estrutura de compreensão das diferenças humanas e de uma gramática de relações de poder. Essa estrutura mantinha intocados alguns pressupostos do paradigma essencialista e, sobretudo, ocultava o fato de que alguns desses pressupostos eram imposições sociais. Os teóricos que buscaram refinar o modelo construtivista procederam de forma a enfatizar a interdependência a fragmentação das oposições binárias, a mostrar que cada 8 pólo contém o outro, de forma negada ou desviada. Dessa forma, os opostos carecem um do outro para adquirir sentido. A oposição heterossexualidade/homossexualidade, por exemplo, foi desconstruída em sua unidade por pesquisadoras como Eve Kosofsky Sedgwick. Inspirada nela, Joan W. Scott afirma: “Não apenas a homossexualidade define a heterossexualidade especificando seus limites negativos, e não apenas a fronteira entre ambas é mutável, mas ambas operam dentro das estruturas da mesma „economia fálica‟ – uma economia cujos fundamentos não são levados em consideração pelos estudos que procuram apenas tornar a experiência homossexual visível. Uma maneira de descrever essa economia é dizer que o desejo é definido pela perseguição ao falo – aquele significante velado e evasivo que está imediata e totalmente presente mas inatingível, e que consquista seu poder através da promessa que ele contém mas que nunca cumpre inteiramente. Teorizado desta forma, homossexualidade e heterossexualidade trabalham de acordo com a mesma economia, suas instituições sociais espelhando uma à outra. As instituições sociais nas quais o sexo homossexual é preticado pode inverter aquelas associadas com o comportamento heterossexual dominante (promíscuo versus contido, público versus particular, anônimo versus conhecido, e assim por diante), mas ambas operam dentro de um sistema estruturado de acordo com a presença e a falta. Na medida e que esse sistema constrói sujeitos de desejo (legítimos ou não), simultaneamente estabelece-os, e a si mesmos, como dados e fora do tempo, do modo como as coisas funcionam, com o modo que inevitavelmente são.” (Scott, 1998, p.303-304) A interdependência entre heterossexualidade e homossexualidade foi apresentada também de forma a sublinhar o caráter de obrigatoriedade social da primeira. Essa desconstrução da naturalidade das relações heterossexuais e o compromisso com a perspectiva do diferente diante das relações de poder estão entre as razões que levaram os teóricos de que tratamos aqui a serem definidos como parte de uma mesma corrente, a 9 teoria queer (esquisita, estranha, também a forma depreciativa com que falantes da língua inglesa se referem a gays e lésbicas).1 A teoria queer desnaturalizou as identidades e os corpos. Assim, abriu espaço para a constituição de um novo paradigma teórico de compreensão das identidades. Esse novo paradigma só foi possível por romper o binarismo natureza/cultura, ou seja, por refutar uma base biológica neutra (ou natural) sobre a qual construir-se-iam as identidades. Não é possível isolar a natureza nem definir onde começa a cultura. As identidades não são construídas sobre os corpos como se esses tivessem em si algo de anterior ao social. Ao contrário, as identidades se constroem através dos corpos, elas são matéria palpável com limites claramente definidos que geram a impressão de fixidez, constância e permitem, assim, que as convenções identitárias socialmente construídas adquiram “naturalidade”. A constatação de que não apenas as identidades, mas os próprios corpos são construções sociais têm conseqüências que mal começamos a encarar. Depreende-se do afirmado acima que a constituição do paradigma pós-construtivista exige o desenvolvimento de uma história social dos saberes e práticas sociais sobre os corpos. Em outras palavras, precisamos estudar historicamente como fomos levados a crer que os corpos eram naturais, neutros, uma base sobre a qual se construíam identidades sociais. Desvelar os processos históricos de naturalização do social permite mais do que constatar que os corpos não são naturais nem neutros. A história da construção social dos corpos-identidades revela relações de poder, práticas regulatórias e seus mecanismos que ainda atuam sobre nós. 1 Dentre os/as teóricos queer mais conhecidos destacam-se a já citada Eve Kosofsky Sedgwick, Teresa de Lauretis, David Halperin e Judith Butler. Para uma introdução a essa linha de estudos consulte Jagose, Annemarie. Queer Theory – An Introduction. New York, New York University Press, 1996. 10 Nesse intuito de uma história dos corpos que permita desenvolver o paradigma pósconstrutivista é importante sublinhar que lidar com identidade necessariamente exige lidar com gênero, pois como afirma Judith Butler: “Seria errado supor que a discussão sobre a „identidade‟ deva ser anterior à discussão sobre a identidade de gênero, pela simples razão de que as „pessoas‟ só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade de gênero.” (Butler, 2003, p.37) Assim, a identidade-chave de todo indivíduo é a de gênero, a qual durante muito tempo se baseou em uma relação com os órgãos sexuais, sobre uma base material que se acreditava neutra. Ninguém nasce com um corpo neutro sobre o qual será construída uma identidade. Antes mesmo do nascimento e até nos planos dos futuros pais só existem duas possibilidades culturais de compreensão do ser que será gerado: menino ou menina? A bipolaridade de gênero associada aos órgãos sexuais existe antes de nossa concepção. Assim, chegamos ao mundo em um corpo generizado, culturalmente definido pelos genitais como prometido a uma das polaridades socialmente construídas do masculino ou feminino. A perspectiva pós-construtivista torna claro que foi por meio da delimitação dos limites externos, negativos, que foi possível estabelecer a hegemonia de certas identidades socialmente desejadas. Além de classificar e controlar os chamados “anormais” ou desviantes, a consolidação de uma forma de entender comportamentos e práticas como marcas delimitadoras de identidades tinha uma utilidade maior e menos visível: regular os processos de identificação segundo as normas sociais. Dois exemplos ajudam a compreender esse processo de criação de identidades hegemônicas em contraste com as socialmente estigmatizadas: a identidade considerada padrão para a mulher e o homem. A identidade feminina socialmente esperada foi consolidada por meio do que ela não deveria ser, através de um exemplo negativo: a 11 prostituta. A identidade estigmatizada expressava os tabus a serem mantidos, ou seja, a mulher normal deveria se conformar a uma posição coadjuvante no casamento, na família e dedicar-se ao marido e filhos. A sexualidade monogâmica, heterossexual e reprodutiva definia também o que se esperava do homem. A figura que representava o inaceitável em seu caso era o homossexual, o qual a psiquiatria definia como pura sexualidade, promíscuo e refém de relações “estéreis”. O paradigma construtivista revela sua fraqueza diante das constatações mencionadas: não há natureza, pois ela mesma é uma invenção humana. O corpo tem uma história e, portanto, nada tem de neutro. Os paradigmas de identificação se arvoram no binarismo sexual e de gênero, mas de forma mais sofisticada do que antes se compreendia. A identidades do homem e da mulher não se constroem em oposição uma à outra, antes por meio de processos que camuflam o caráter contestável dessa oposição. A história da construção social da inteligibilidade dos corpos e das identidades está em processo e podemos citar o avanço representado por uma obra como A Invenção do Sexo de Thomas Laqueur. O historiador da ciência mostra como as ciências biológicas, em especial a anatomia, construíram uma nova imagem e um novo significado para os sexos a partir do século XVIII. A incomensurabilidade dos sexos “opostos” foi uma invenção que reagiu a uma nova configuração das relações de poder e, sobretudo, da possibilidade da afirmação da igualdade entre os seres humanos (Laqueur, 2001, p.254). A partir de fins do século XVIII emergiu a tendência progressiva à consolidação de um paradigma binário em que os órgãos sexuais se tornam os pólos determinantes da crença em sexos opostos, naturais, portanto justificadores cabais das diferenças de gênero. No momento em que se declara que todos nascemos iguais, as conseqüências políticas 12 dessa afirmação são neutralizadas por saberes e práticas sociais que conferem uma incomensurabilidade entre os sexos e, a partir destes, aos gêneros. Os sexos são criação social tanto quanto o gênero e isto nos impõe um desafio teórico: como lidar com corpo e identidade sem cair nos velhos determinismos biológicos e psíquicos? Antes de mais nada, é necessário constatar que a oposição criada entre a teoria da construção social e o essencialismo obscurece a complexidade das condições em que se assumem sexo e sexualidade. O essencialismo apresentava a visão falsa de um lócus original, biológico ou psíquico, que determinava as identidades de forma que essas permaneciam no terreno da determinação e da fixidez. O construtivismo, por sua vez, se levado ao extremo, poderia levar-nos à falsa impressão de que tudo se constrói discursivamente e até mesmo à idéia de que existiria a “liberdade de um sujeito para formar sua sexualidade como lhe interessa.” (Butler, 2003, p.145) Butler, em Bodies that Matter (1997), propos superar este quase voluntarismo implícito na teoria da construção social ao levar em consideração o terreno das restrições no desenvolvimento de sua teoria da materialização, na qual o principal conceito é o de performatividade, o qual não pode ser confundido com performance, pois é muito mais do que atuação. Segundo Butler, a performatividade é um processo temporal de construção dos corpos-identidades que opera através da reiteração de normas. A reiteração presente de uma norma ou um conjunto de normas oculta ou dissimula as convenções das quais é uma repetição. Assim, emerge a impressão de naturalidade dos corpos, dos gestos, das fronteiras e diferenças que criam a ilusão da incomensurabilidade dos sexos e gêneros. Ou, nas palavras de Butler: “não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero, essa identidade é performaticamente constituída, pelas próprias „expressões‟ tidas como seus resultados.” (Butler, 2003, p.48) 13 Na performatividade, encontramos um processo de materialização que se estabiliza com o tempo para produzir um efeito de fronteira, de permanência, de superfície, ou seja, de matéria. É a performatividade que cria os corpos que importam, ou, sendo mais fiel ao sentido desta expressão em inglês (bodies that matter), os corpos que têm matéria, são inteligíveis, normais. No extremo, esses corpos-identidades são naturais porque conformados às normas da aceitabilidade social. O processo de materialização dos corpos revela-se socialmente determinado. É a vitória da teoria da construção social que sabiamente incorpora as restrições, a estrutura corporal, a matriz, a matéria. A materialização dá inteligibilidade e legitima os corpos “normais” em constante comparação, delimitação de fronteiras com os corpos abjetos ou deslegitimados, aqueles que no limite nem são considerados corpos, os “corpos que escapam” segundo Guacira Lopes Louro ou ainda os “corpos errados” na visão de Sander L. Gilman (1999). Chegamos àquela que considero a principal conseqüência deste novo paradigma de compreensão das identidades sociais: ele evidencia as relações de poder que constituem os corpos-identidades como práticas reguladoras da naturalidade e da anormalidade, da normalidade e do desvio. A identidade social é corporificada, portanto é no corpo que o social investe símbolos e os materializa. Assim, o corpo é um projeto social em andamento, objeto de pedagogias reiteradoras das normas de sexo e gênero. Os “corpos que importam” são os corpos conformados às normas, mas há algo mais do que conformação em jogo. Os corpos aceitáveis, normalizados, só existem em uma relação ambígua com os “corpos que escapam”. Não se trata de uma relação de inclusão e aceitação social versus exclusão e 14 rejeição, antes de uma economia dos limites e das fronteiras que conferem forma e legitimidade a alguns apenas recusando naturalidade e legitimidade a outros. Os corpos que não importam, escapam ou são “errados” não são excluídos. O excluído também é constituído pelo centro, portanto não lhe cabe uma existência independente dele, uma exterioridade absoluta. Isso é apenas um dos fatos que a perspectiva construtivista era incapaz de explicitar ou, quando muito, o fazia dentro de uma oposição binária entre categorias cuja relação era, na verdade, de complementariedade. A oposição mulher-homem, por exemplo, induzia a uma política em que a luta contra a desigualdade entre os sexos se dava nos termos da dominação masculina, dentro da heterossexualidade compulsória. A teoria da construção social tornou visíveis as assimetrias de poder que permitiram e mantém a dominação masculina. De qualquer forma, esse paradigma mantinha veladas as relações de poder que constituem corpos-identidades naturalizados em oposição a corposidentidades anormais. A teoria da materialização proposta por Butler escapa às oposições tradicionais herdadas do essencialismo como mulher em oposição a homem ou feminino em oposição ao masculino. O reconhecimento dos corpos-identidades fora dos esquemas de inteligibilidade e aceitação social obriga-nos a repensar a gramática das relações de poder. São os corpos sem matéria, os indivíduos que não são reconhecidos como sujeitos que constituem os limites do aceitável e do que é considerado normal. É esse espaço do queer que aponta para uma superação das convenções que marcaram as lutas políticas do feminismo até o presente. Aproximamo-nos, portanto, de uma crítica radical das categorias de identidade, de uma desestabilização de sua presumida coerência. Isso nos coloca diante da questão de Butler: “que possibilidades políticas são conseqüência de uma crítica radical das categorias de identidade?” (Butler, 2003, p.9) 15 Há poderes que constituem as próprias reivindicações representacionais dos movimentos identitários, quer seja o feminismo ou o movimento gay ou ainda o negro. Butler afirmou a necessidade de formular uma política representacional capaz de renovar o feminismo em outros termos que não os fincados na categoria mulheres, a qual só alcança consistência na matriz heterossexual. É necessário romper com a lógica binária por trás das identidades, a qual gera hierarquia, dominação e exclusão. A política fincada em identidades leva sempre à demarcação e à negação do seu oposto. Esse “outro” indispensável, ou identidade rejeitada, constitui o sujeito fornecendo-lhe limites, mas como bem demonstra Butler, esse outro também ameaça o sujeito com a instabilidade. A estratégia queer evidencia as fissuras internas ao hegemônico para criticar a materialização diferenciada do humano, a produção social do abjeto, dos corposidentidades que até pouco eram classificados como anormais, degenerados ou desviantes. A velha política identitária caia facilmente na discussão do que era próprio ou impróprio, natural ou anormal, portanto no binarismo que elidia a diferença dentro dos sujeitos. A nova política precisa encarar o abjeto, evidenciar os processos que o criam e mantém como oposto necessário para a existência do hegemônico, como a ameaça que o constitui. Diante desse novo paradigma de compreensão das identidades-corpos emerge a necessidade de uma visão política em que a diferença seja vista como parte dos sujeitos ao invés de algo que lhes é exterior, oposto ou ameaçador. Devemos estar atentos para as estratégias coletivas e individuais que já buscam superar o medo das identidades socialmente estigmatizadas e encaram o desafio de incorporá-las com o intuito não de assimilá-las, antes como meio de colocar em xeque a suposta coerência das identidades hegemônicas. 16 Referências Bibliográficas BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. BUTLER, Judith. Cuerpos que importan – sobre los limites materiales y discursivos Del “sexo”. Buenos Aires, Anagrama, 2002. ___________. Problemas de Gênero – Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. GILMAN, Sander L. Making the Body Beautiful – A Cultural History of Aesthetic Surgery. Princeton: Princeton University Press, 1999. JAGOSE, Annemarie. Queer Theory – An Introduction. New York, New York University Press, 1996. LAQUEUR, Thomas. Inventando o Sexo – Corpo e Gênero dos Gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001. LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer – Uma Política Pós-Identitária para a Educação. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, v. 9, n. 2, 2001. 17 MISKOLCI, Richard. Reflexões sobre Normalidade e Desvio Social. In: Estudos de Sociologia. Araraquara: Programa de Pós-Graduação em Sociologia/Departamento de Sociologia, 2003, p. - ORDOVER, Nancy. American Eugenics – Race, Queer Anatomy, and the Science of Nationalism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003. RUBIN, Gayle.Tráfico Sexual – Entrevista. In: Cadernos Pagu.Campinas, PAGU, v. 21, 2003, p.157-209. SCOTT, Joan W. A Invisibilidade da Experiência. In: Projeto História 16. São Paulo, fevereiro de 1998, p.297-325. STEPAN, Nancy Leys. The Hour of Eugenics – Race, Gender, and Nation in Latin America. Ithaca and London: Cornell University Press, 1996. __________________. The Idea of Race in Science: Great Britain 1800-1960. London: MacMillan, 1982.