O Futuro da Família – Representações e expectativas num mundo em mudança1 Carla Sofia Paixão Teixeira2 “Nos povos democráticos, há constantemente novas famílias que surgem do nada, outras que sucumbem e todas aquelas que perduram mudam de rosto: a trama do tempo rompe-se a todo o momento e o vestígio das gerações apaga-se…apenas os que nos são mais próximos nos interessam.” Alexis de Tocqueville cit. In Louis Roussel – Revista Sociologia, Problemas e Práticas nº 11 (1992) Resumo: O objectivo desta comunicação passa por partilhar algumas reflexões em torno do conceito de família e das representações, expectativas e desafios daí decorrentes, num mundo globalizado e numa sociedade em permanente mudança. Perante a diversidade de entendimentos possíveis, questiona-se quais as implicações dos novos arranjos familiares para os modos de vida e quotidianos sociais dos sujeitos e para a intervenção do próprio Serviço Social enquanto sistema de protecção aos jovens e suas famílias. Abstract: The main purppose of this article is to share some considerations around the concept of family as well some representations, expectations and challenges in a global world and in a permanent changed society. Behalf the diversity of possibly agreements, we question the implications of the new familiar arrangements for the ways of life of the citizens and for Social Work interventions with youth and families. 1 Este artigo é fruto da reflexão em torno do Papel da Família na Era Global e das questões, desafios e expectativas decorrentes do mesmo. Resulta das diferentes experiências adquiridas ao longo da formação académica em termos da Licenciatura em Serviço Social mas sobretudo dos conhecimentos de reconhecido mérito prático ministrados pelo local de estágio curricular – Centro de Saúde do Bom Jesus, Serviço de Apoio ao Jovem. Por se tratar de um estágio curricular, a produção deste artigo, visa ser objecto de avaliação da unidade curricular Estágio II enquanto critério avaliativo estabelecido pelo regente da mesma. 2 Aluna do 4º ano do 1º ciclo de Licenciatura em Serviço Social na Universidade da Madeira. 1. O sentido da Família São geralmente os professores quem nos diz que são frequentemente as perguntas mais simples que desencadeiam respostas complexas. A primeira que se impõe neste estudo, é de facto, conseguir definir o que é de forma precisa uma família? “A família é muitas vezes designada como o primeiro grupo social do qual o indivíduo faz parte, sendo vista como a célula inicial e a principal da sociedade (…) apresenta formas diferenciadas nas várias sociedades existentes e sofre transformações no decorrer do processo histórico-social.” (Pratta & Santos s/d). Neste enquadramento, sublinha-se o conceito de família como um grupo de pessoas, unidas por relações de sangue, de afectos e de uma vivência comum, que constituem a primeira e principal rede de sociabilização e de suporte social do indivíduo. A família possui um importante papel no desenvolvimento biopsicossocial dos seus membros, assumindo determinadas funções que segundo (Osário, 1996 cit. In Pratta & Santos s/d) podem ser agrupadas em três categorias: funções biológicas, ou seja, cabe à família fornecer os cuidados necessários à garantia da satisfação das necessidades básicas e da sobrevivência dos seus membros; funções psicológicas, na medida em que deve ser geradora de um meioambiente adequado ao bem-estar e desenvolvimento dos seus membros, conferindo afecto e suporte emocional em situações de maior crise e por fim, funções sociais, preparando-os para o exercício de cidadania, transmitindo-lhes valores, normas sociais e princípios morais que lhes permitam conviver em sociedade. Reconhecendo que a família não é uma unidade acabada, estática mas uma entidade viva e mutável ao longo do tempo e permeável às transformações que ocorrem na sociedade, “(…) numa sociedade em mudança, a família muda também. Á sua medida, na sua lógica, no seu ritmo, no conteúdo das suas práticas” (ESTEVES, 1991) pretende-se também dar conta que as diferentes variáveis sociais, ambientais, económicas, culturais e religiosas estão na base dos factores que influenciam a tipologia das distintas composições familiares. Até meados dos anos 60, o modelo de família predominante era o da chamada “família tradicional”, no qual os homens e as mulheres possuíam papéis específicos, social e culturalmente estabelecidos (Pratta & Santos s/d). Ao homem, tido como “chefe de família” cabia o trabalho renumerado e a autoridade sobre a gestão da casa, sobre a mulher e os filhos. Por sua vez, à mulher cabiam os cuidados domésticos com a casa, o cuidado aos filhos e ao marido. Neste modelo, as 2 relações familiares eram pautadas por uma dose de distanciamento, rigidez e respeito, sobretudo às normas sociais, princípios religiosos e morais. A partir da segunda metade do século XX começa a emergir uma concepção de família mais igualitária em termos dos papéis sociais que cada um dos membros deveria assumir, “ (…) os homens e as mulheres passam a actuar em condições mais ou menos semelhantes no mercado de trabalho formalmente renumerado começando a dividir entre si o trabalho doméstico e a educação dos filhos” (Pratta & Santos s/d). Também as dinâmicas relacionais se alteram, havendo espaço para uma maior abertura do diálogo e menor imposição de autoridade. “Assim, se existe algo que se possa chamar de família pós-moderna (…) a nova mulher e o novo homem participam hoje de uma nova coreografia, definindo distintos arranjos não só para as suas relações afectivosexuais mas para a relação de cuidado e convivência com os filhos que geram.” (GRANDESSO, 2000) Importa então questionar que factores estiveram na origem de tais mudanças e quais as principais tendências observáveis nas famílias contemporâneas. Comecemos por apontar o processo de urbanização e industrialização que culminaram no avanço tecnológico e na mudança dos modos de vida e dos comportamentos dos sujeitos; seguiu-se a elevação do custo de vida; a participação activa da mulher no mercado de trabalho; o aumento do número de separações e divórcios; o surgimento de agregados monoparentais; a redução das famílias alargadas (em grande número); a definição e aumento de uniões estáveis entre casais homossexuais, o aumento do número de filhos que permanecem tardiamente a morar com os pais; a crescente dificuldade de inserção dos jovens no mercado de trabalho acrescido da exposição do fenómeno do desemprego que se tornou transversal a todas as camadas da população (passando de fenómeno localizado a globalizado) e o aumento do número de população idosa. (Pratta & Santos s/d). “Este perfil da população portuguesa, constitui o cenário no qual se constituem as famílias. Acarreta implicações sociais que se apresentam como desafios para as políticas públicas, leis, práticas de saúde e educação.” (GRANDESSO, 2000) Nesse sentido, foram se legitimando socialmente no mundo pós-moderno e ao longo do tempo, “formas atípicas” de arranjos familiares: as famílias alargadas, nucleares, reconstituídas, monoparentais e mais recentemente as famílias homoparentais. Estes novos arranjos familiares que coexistem hoje na nossa sociedade, configuram distintas dinâmicas 3 funcionais e relacionais, cujo significado e alcance no âmbito social se ramifica quer na política social, na política habitacional e educativa. (ESTEVES, 1991). É nesta sequência que se sugere o recurso à Abordagem Sistémica como tentativa de análise e interpretação da família enquanto mais importante instituição das sociedades, por se considerar ser a que melhor possibilita uma compreensão contextualizada e desfragmentada das relações interpessoais, dos papéis assumidos pelos membros e das suas interacções, porque no fundo são estes aspectos que conferem à família a sua identidade. 2. A Família como um Sistema Na actualidade, são muitos os autores que tendem a abordar a família segundo uma lógica sistémica. Um dos modelos teóricos que facilita esta tendência é a teoria geral dos sistemas de Von Bertalanffy (1968). Segundo esta abordagem a família deve ser entendida como “uma rede complexa de relações e noções na qual se passam sentimentos e comportamentos que não são possíveis de ser pensados como instrumentos criados pelo estudo dos indivíduos isolados” (Gameiro,1994 cit in Ferreira, 2011, p. 245). É precisamente a partir desta definição que a família pode, de facto ser considerada um sistema, uma vez que funciona como uma entidade cujo funcionamento depende fortemente da interacção e interdependência das partes que a compõem, sendo que a modificação de uma das partes afecta o equilíbrio no seu todo. É neste sentido que se afirma que quer a família, quer o meio-social onde se insere, ambos influenciam-se mutuamente e são também eles próprios, influenciados, ou seja, permeáveis às influências externas. “A família não pode substrai-se à mudança da sociedade, servir-lhe como antídoto ou propor-se como alternativa.” (ESTEVES, 1991) Esta teoria reconhece a priori que, uma vez que a família é considerada um sistema, coexistem naturalmente subsistemas que a compõem, a saber: o sistema individual, o sistema conjugal, o sistema parental e por fim, o sistema fraternal. Estes subsistemas estão separados dos restantes por fronteiras que definem os limites e as funções de cada um. Desta forma, a noção de fronteiras altera de família para família predominando as necessidades e características que se transformam com o decorrer do ciclo de vida. Assim, um dos problemas que surge aquando as fronteiras não se encontram delimitadas é a capacidade da família se adaptar face à evolução dos seus membros (Fazenda, 2008, p.76). 4 “Ler sistemicamente uma família implica ter uma visão global da sua estrutura e do seu desenvolvimento, olhá-la como um todo, na emergência dos seus elementos e naquilo que a torna única.” (Sampaio e Gameiro, s/d). 3. Posicionamento do Serviço Social na intervenção com e para as Famílias Reconhecendo uma “plasticidade” inerente à profissão que se traduz pela capacidade dos profissionais se adaptarem a diferentes contextos e lócus de actuação, reinventando as suas capacidades criativas e de intervenção (Amaro, 2012) pretende-se neste ponto, retratar a prática profissional dos Assistentes Sociais enquanto resposta social às necessidades individuais e familiares manifestas num contexto institucional específico, Serviço de Atendimento ao Jovem no Centro de Saúde do Bom Jesus. Tendo como ponto de referência a prioridade de intervenção: conflitos na relação pais-filhos, apresenta-se a imagem do Assistente Social enquanto “artesão do tecido social”. Este atributo justifica-se, desde logo, pelo facto dos Assistentes Sociais agirem sobre o tecido social e relacional criando condições favoráveis à compreensão, análise, expressão e mediação de conflitos, reconstruindo o meio-social onde os indivíduos se inscrevem. “O Assistente Social tem a missão especial de ser um artesão do tecido social porque dentro da complexa teia de relações sociais, assume-se como um agente transformador que pode fortalecer processos de conservação ou de mudança. Daí a necessidade de uma permanente busca da realidade humana numa sociedade em movimento.” (Adams, 2001:23) Na sua intervenção com e para as famílias, o Assistente Social não trabalha sozinho, de forma isolada mas em estreita colaboração com os utentes que acompanha. De facto, se o seu propósito passa por minorar os conflitos relacionais existentes entre pais e filhos, a intervenção não se vai desenvolver em torno de apenas um indivíduo. Embora o jovem seja de facto colocado no centro da intervenção, para que se consigam alcançar resultados o trabalho tem de ser feito com ambas as partes: jovem e família. Assim, pensar a intervenção com famílias exige um olhar micro e macroscópico sobre as mesmas, capaz de reconhecer dificuldades e potencialidades em cada um dos seus membros e enquanto família no seu todo. Importa do mesmo modo, reconhecer uma complexidade e dinâmica funcional própria que tem de ser desconstruída e compreendida se quisermos trabalhar e transformar a realidade- 5 problema. A este propósito, importa reiterar que contrariamente ao que se pensa não existem “famílias disfuncionais”, porque todas elas, à sua maneira, ao seu próprio ritmo acabam por encontrar formas de funcionar. Existem sim famílias mal valorizadas e incompreendidas em termos das suas dinâmicas funcionais e relacionais. Isto acontece, porque temos uma tendência natural para perspectiva a família exclusivamente como uma fonte segura capaz de conferir protecção e suporte social aos seus membros, descrevendo como atípico e disfuncional, tudo o que se afasta deste padrão. “you may have noted that family usuallky consists of adults and children living in the same place. Those people will have a relationship with each other that might be defined in biological, emotional or legal terms, and there might be dependency and mutual support as well as conflict and violence. This is called being in relation. It is extremely violent to think that a family doesn´t work just because it doesn’t fit in our standards, values or beliefs.” (O´Loughlin, 2012 adaptado). (Siqueira e Aglio, 2007) têm defendido que existem factores de risco e de protecção transversais a todas as famílias, que marcam o seu ciclo evolutivo familiar, colocando em causa o bom funcionamento e estabilidade familiar. Neste sentido, “práticas educativas saudáveis, vínculo afectivo, apoio e supervisão parental constituem para as famílias factores de protecção, pois reduzem o impacto do risco e exercem efeitos positivos na saúde mental dos seus membros.” (ibidem) Por sua vez, “a negligência parental, violência doméstica; competências parentais inadequadas, problemas socioeconómicos e habitacionais actuam nas famílias como factores de risco”(ibidem) colocando em causa a estabilidade e funcionamento da família e dos seus membros. O esquema3 que se segue é uma abordagem que funciona como uma espécie de Análise S.W.O.T. em torno da família. Aconselha-se o recurso à mesma, enquanto valioso instrumento de trabalho que possibilitará que as famílias confiram “sentido” às intervenções processadas. Ao verem retratadas as dificuldades/necessidades que atravessa, bem como as forças e recursos que dispõem serão elas próprias capazes de perspectiva que aspectos deverão ser trabalhador, reconhecer os progressos realizados e que expectativas poderão depositar num futuro próximo. Parte integrante da obra 3 O´LOUGHLIN, M. (2012) Social work with children and Families. Third Edition. SAGE Publications, Ltd. 6 A título de conclusão e reconhecendo que “a adolescência é por si um período que favorece as condições necessárias para a emergência de uma série de problemas e conflitos dentro do contexto familiar” (Pratta & Santos s/d), fica a sugestão de uma maior aposta no diálogo como forma de ultrapassar as crises que enfrentam as famílias nesta sociedade em permanente mudança. A falta de diálogo entre os membros da família, origina com frequência problemas de relacionamento, conduz a sentimentos de desorientação e incompreensão e conduz a falta de informação e aconselhamento sobre matérias de maior importância como a sexualidade e o consumo de substâncias, que se mostram hoje como as crescentes preocupações dos pais desta nova geração. 7 Referências Bibliográficas ADAMS, T. (2001) Prática Social e formação para a cidadania: Cáritas do Rio Grande do Sul. Supernova Editora. FAZENDA, I. (2008) O Puzzle Desmanchado: Saúde Mental, Contexto Social, Reabilitação e Cidadania. Climepsi Editores. FERREIRA, J. (2011) Serviço Social e Modelos de Bem-Estar para a Infância. Sociedade Editora ; SAMPAIO, D. GAMEIRO, J. (s/d) Terapia Familiar. Edições Afrontamento. O´LOUGHLIN, M. (2012) Social work with children and Families. Third Edition. SAGE Publications, Ltd. Artigo: ESTEVES, A. (1991) A Família numa Sociedade em mudança. Artigo: GRANDESSO, M. (2000) Viver em Família – Que tipo de futuro nós terapeutas familiares podemos ajudar a construir. Artigo: PRATTA, E.; SANTOS, M. (s/d) Família e Adolescência: A influência do contexto familiar no desenvolvimento psicológico dos seus membros. Artigo: Roussel, L. (1992) O Futuro da Família. Revista – Sociologia Problemas e Práticas, nº 11. MARTINS, T. (2009) Intervenção Social- O Serviço Social no Século XXI: desafios e oportunidades. Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, nº 35. 8