As Mulheres dos Césares

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Annelise Freisenbruch
As Mulheres dos Césares
Sexo, Poder e Política no
Império Romano
Tradução de Manuel Santos Marques
Índice
Lista de Ilustrações ...................................................................
9
Árvores Genealógicas ..............................................................
11
Introdução: Eu, Cláudia… .......................................................
19
Capítulo I – Ulisses de Vestido
Produção de uma Primeira-Dama Romana .........................
31
Capítulo II – Primeira Família
As Mulheres de Augusto ..........................................................
79
Capítulo III – Rixa Familiar
A Princesa do Povo e as Mulheres do Reinado de Tibério .. 131
Capítulo IV – Feiticeiras do Tibre
As Últimas Imperatrizes Julo-Claudianas ............................. 175
Capítulo V – A Pequena Cleópatra
Uma Princesa Judia e as Primeiras-Damas da Dinastia
Flaviana ...................................................................................... 225
Capítulo VI – Boas Imperatrizes
As Primeiras-Damas do Século ii .......................................... 263
Capítulo VII – A Imperatriz Filósofa
Júlia Domna e o «Matriarcado Sírio» .................................... 301
Capítulo VIII – A Primeira Imperatriz Cristã
As Mulheres na Época de Constantino ................................. 341
Capítulo IX – Noivas de Cristo, Filhas de Eva
As Primeiras-Damas da Última Dinastia .............................. 377
Epílogo ....................................................................................... 429
Agradecimentos ........................................................................ 433
Uma Nota de Convenções Usadas em Nomes de Datas ...... 436
Notas .......................................................................................... 438
Bibliografia Selecionada .......................................................... 482
Índice Remissivo ....................................................................... 501
Introdução
Eu, Cláudia…
A mulher de César deve ser irrepreensível.
Plutarco, Vida de Júlio César,
Sr.ª Landingham, The West Wing1
Pode perdoar-se aos visitantes do Museu de Arqueologia
Clássica da Universidade de Cambridge pensarem ter ido parar
à zona privada de um colecionador de arte em retiro. Passeie-se
por esta extensa galeria reverberante, com a sua cobertura altaneira de vidro cruzada por vigas, um sussurrante fundo sonoro
emitido pelo deslizar e arranhar dos lápis dos desenhadores, e
é-se presenteado com uma parada de para lá de 400 das mais
icónicas e imediatamente identificáveis imagens do mundo clássico. Estão lá os frisos e os frontões arrancados por lorde Elgin ao
Pártenon; está lá o Apolo Belvedere, em tempos venerado como
a mais bela estátua que da Antiguidade chegou até nós; vê-se a
pungente escultura do Vaticano a representar o trágico Lacoonte
e os seus filhos a serem arrastados para o seu túmulo aquático
por duas serpentes constritoras, diante das muralhas condenadas
de Tróia.
Ao chegarmos à divisão final do circuito do museu, somos
acolhidos por um salão de famosos romanos, uma sucessão alinhada das efígies dos homens que governaram Roma.
Encontra-se aqui a maior parte dos grandes nomes, com as suas
fisionomias de mármore a evocar as suas afamadas personalidaEFTIJTUØSJDBTVNBUBSSBDBEPFKPWFN/FSPVNFODBSRVJMIBEP
e obstinado Vespasiano, um Adriano culto e de barba e um
Cómodo atormentado e insatisfeito. Entalada na fila do fundo
desta insigne galeria de cabeças grisalhas dos patrícios, insere-se
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as mulheres dos césares
com alguma incongruência o rosto pálido de uma mulher. Tem
o nome impresso numa simples placa na parte inferior: Faustina
Minor; nem mais, nem menos. Mostra-se como máscara velada e
lívida de um rosto inexpressivo e indecifrável, com as ondulações
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dos seus olhos amendoados a fixarem cegamente algo que está
por detrás de nós2.
O que é que nos resta, neste eco branco como cal, do que
em tempos foi esta mulher? É que se trata apenas de um eco,
não somente por ser desprovido de vida, mas porque, como a
maioria das outras coisas neste museu, não passa de uma cópia,
uma reconstrução em gesso feita a partir do original há mais de
um século, quando estavam especialmente em voga essas coleções moldadas e, na verdade, também o estudo da arte clássica.
No empreendimento incerto de identificar os rostos do mundo
antigo, nem sequer existe a certeza de se tratar realmente de
Faustina Menor, um nome que dificilmente suscitará muitos
MBNQFKPT EF SFDPOIFDJNFOUP BQFTBS EF UFS TJEP B NVMIFS EP
muito admirado décimo sexto imperador de Roma, Marco Aurélio. Como poderemos imaginar a vida da mulher por detrás deste
enigmático invólucro de gesso, que olhou para um império por
DJNBEPPNCSPEPNBSJEPNBTEFDVKBFYJTUÐODJBQPVDPTJOEÓDJPTQFSEVSBNIPKF A tentação de fazer o papel de Pigmalião, de ressuscitar
Faustina e as outras grandes mulheres da Roma imperial em
consonância com a nossa fantasia, é extremamente sedutora,
e conseguiu cativar muitos artistas e escritores. Talvez o mais
JOGMVFOUFEFUPEPTPTSFUSBUPTNPEFSOPTTFKBPRVFGPJDSJBEP
pelo escritor britânico Robert Graves que, em agosto de 1933,
quando vivia exilado na sonolenta aldeia maiorquina de Deya,
enviou o seu mais recente manuscrito aos editores em Londres,
na esperança desconsolada de que lhe viesse a permitir pagar as
quatro mil libras que devia pela sua casa. O livro era Eu, Cláudio, um relato da primeira dinastia imperial do império romano,
contado na perspetiva do seu narrador epónimo e gago, Cláudio,
Annelise Freisenbruch
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o quarto imperador de Roma. Graves manifestou desdém pela
obra, chamando-lhe «passe de ilusionismo literário»; todavia,
tanto este livro como a sua sequela, Claúdio, o Deus, revelaram-se
grandes êxitos comerciais e de crítica, e os romances acabaram
por ser adaptados pelas televisões britânica e norte-americana
em 1976. A saga de treze episódios, vendida sob o slogan
j"GBNÓMJBDVKPOFHØDJPFSBHPWFSOBSPNVOEPxEFQSFTTBWFJP
a ser Os SopranosEPTFVUFNQPHSBOKFBOEPFODØNJPTQFMPTFV
elenco de estrelas britânicas e ocupando o topo das tabelas de
audiências. Contudo, numa mudança de ênfase no foco da narrativa dos livros de Graves, as verdadeiras vedetas do espetáculo
– aquelas que dominaram a maior parte das cenas, atraíram o
HSPTTPEBBUFOÎÍPEPTDSÓUJDPTFDVKPTSPTUPTTFUPSOBSBNBJNBgem promocional definidora do programa – foram as mulheres
na vida de Cláudio, em particular a sua avó Lívia, mulher do
primeiro imperador de Roma, Augusto, e as terceira e quarta
mulheres de Cláudio, Messalina e Agripina. Estas mulheres constituíram um trio perigoso: Lívia, a maquiavélica que eliminou
todos os rivais do seu filho Tibério com uma indiferença impiedosa; Messalina, uma provocadora assassina que traiu e humiMIPVPTFVJEPTPNBSJEP"HSJQJOBVNBWJÞWBOFHSBDVKBNÍP
esteve, em última análise, por detrás da morte de Cláudio3.
"WBTUBTPNCSBQSPKFUBEBQPSEu, Cláudio ficou bem ilustrada
na recente e popular série da HBO, Roma, que escolheu Átia,
sobrinha de Júlio César, como a mais malévola e memorável das
suas personagens. Apesar de quase não existirem quaisquer provas
históricas da vida de Ácia, para lá da indicação de que foi uma mãe
dedicada e orientadora moral do seu filho Octaviano, foi ali representada com brio de protagonista como uma sedutora astuciosa e
amoral – uma óbvia ressaca cultural da série televisiva predecesTPSBEPTBOPT$POUVEPPQSØQSJPSFUSBUPOBEBMJTPOKFJSPUSBçado por Graves das principais mulheres de Roma não irrompeu
TFNBKVEBEBTCSVNBTDSJBUJWBTEBJNBHJOBÎÍPEPBVUPS&MFPQUPV
simplesmente e sobretudo, por cooperar com as descrições delas
escritas pelos mais conhecidos e reverenciados comentadores da
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as mulheres dos césares
antiga Roma e, na verdade, fez até disso uma virtude. «Em parte
alguma fui contra a história…», escreveu na sua defesa do tema
dos livros, citando por exemplo os antigos historiadores romanos
Tácito e Suetónio como corroborantes da sua representação das
mulheres da primeira dinastia imperial de Roma4.
Ao percorrer-se as antigas narrativas literárias em que Graves
se inspirou, as caracterizações por ele feitas afiguram-se totalmente apropriadas. Para além de Lívia, Messalina e Agripina,
uma amostra das biografias conservadas de mulheres da era
JNQFSJBMSPNBOBJODMVJVNBGJMIBKPDPTBRVFEFTHSBÎPVPQBJ
ao embriagar-se no fórum romano, entregando-se depois a atos
sexuais com estranhos na plataforma dos oradores; uma frívola
e bela amante que persuadiu o imperador a matar a mãe a fim
de poder desposá-la; uma mulher que cometeu adultério com
um ator antes de conspirar para o assassínio do marido; e uma
madrasta que tentou seduzir o próprio enteado e congeminou
depois a sua execução, antes de ela própria ter sido atirada para
água a ferver como punição. Júlia, Popeia, Domícia e Fausta são
BQFOBTBMHVNBTEBTNVMIFSFTDVKBTSFQVUBÎÜFTTÍPSFTQPOTÈWFJT
pela reação histórica, em grande medida hostil, face às mulheres
de Roma ao longo do tempo. Tão vilipendiadas têm sido que
PTTFVTOPNFTGPSBNJOWPDBEPTQPSNVJUPTDPNPKVTUJGJDBÎÜFT
para que, ao longo dos tempos, fosse negada a participação das
mulheres no poder político, tendo os seus rostos sido exibidos – nalguns casos literalmente – como espectros universais e
malignos da delinquência assassina, da promiscuidade e da criminalidade5.
É que Graves não foi de modo algum o primeiro a exumar as
mulheres antigas das páginas de Tácito e dos seus contemporâneos romanos. Longe disso. A imagem das mulheres imperiais
SPNBOBTSFDFCFSBKÈBTTFWFSBTDSÓUJDBTEFTÏDVMPTEFQSPEVÎÍP
cultural pós-clássica ocidental, através de um espectro caleidoscópico de peças de teatro, crónicas, romances, óperas, filmes,
poemas, compêndios pornográficos, pinturas, estampas, esculturas, iluminuras de manuscritos e até ilustrações em baralhos
Annelise Freisenbruch
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de cartas e outras indiscretas novidades. Desde o século xiv,
quando os primeiros catálogos biográficos das mulheres célebres da história principiaram a surgir, a começar pelo De claris
mulieribus (Acerca de Mulheres Famosas) de Giovanni Boccaccio
em 1374, as senhoras romanas apareceram regularmente nessas
listas, apresentadas nalguns poucos casos isolados como modelos exemplares de estoicismo e patriotismo feminino, mas mais
frequentemente angariadas para histórias admonitórias severamente fraseadas em volumes que gozaram de ampla divulgação no seu tempo, como o tomo Sermões às Jovens do clérigo
escocês James Fordyce, em 1766. Na história e na literatura, os
seus nomes foram reciclados com pseudónimos para outras
mulheres famosas... e controversas: Catarina, a Grande, Ana
Bolena, Maria, rainha dos Escoceses, Lucrécia Bórgia, Catarina
de Médicis, Leonor de Aquitânia, Maria Antonieta e Josefina
Bonaparte, para referir apenas algumas, todas foram ocasionalmente comparadas com congéneres femininas do império
romano. A um nível mais contemporâneo, houve até uma «Messalina de Ilford», a Edith Thompson de vinte e nove anos que,
em Janeiro de 1923, se tornou a primeira mulher enforcada na
Grã-Bretanha ao fim de quinze anos por ter alegadamente participado no assassínio do marido. Desde então, muitos questionaram esse veredicto, mas os relatos da imprensa da época não
hesitaram em citar o conteúdo erótico das cartas dirigidas por
Thompson ao seu amante e cúmplice Frederick Bywaters como
KVTUJGJDBÎÍPQBSBBBMDVOIBSDPNPOPNFEBOJOGPNBOÓBDBFDSJminosa terceira mulher de Cláudio6.
No entanto, nem todas as apreciações das mulheres ligadas
às casas imperiais romanas se mostraram negativas. Várias delas
gozam de reputações relativamente favoráveis, tanto nas fontes
literárias da Antiguidade como na lenda póstuma, incluindo
Agripina Maior («Agripina, a Velha»), mãe da infame mãe do
imperador Nero, Agripina Menor («Agripina, a Jovem»). Depois
de ficar viúva no ano 19, na sequência da morte suspeita do seu
QPQVMBSDÙOKVHF(FSNÉOJDPB"HSJQJOBNBJTWFMIBUPSOPVTF
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as mulheres dos césares
uma figura polarizadora da simpatia daqueles que pressentiram a mão cruel do imperador reinante, Tibério, e a da sua
mãe, Lívia, no assassínio de Germânico. Cénis e Berenice,
respetivamente amantes da equipa pai e filho Vespasiano e Tito,
apareceram ambas na pele de heroínas de peças e romances
populares, enquanto a Helena, mãe do primeiro imperador cristão do mundo romano, Constantino, foi até concedido um lugar
de santidade. Foram, todavia e indubitavelmente, as suas congéneres mais célebres, libertinas e ditatoriais quem, com o auxílio
da romantização popular das suas vidas, veio a dominar a conceção corrente daquilo que seriam realmente as mulheres imperiais
de Roma, e até os exemplos santificados parecem ginóides* de
papelão, o equivalente antigo das mulheres de Stepford**.
Este livro reabre o processo de Lívia e das suas pares, as
«primeiras-damas» romanas, tendo em vista revelar algo mais
acerca delas para além do que possibilitam os seus estereótipos
estáticos e caricaturais. Todavia, a pergunta sobre como falamos
em sua defesa e acerca delas tem as suas próprias complicações.
Roma era um mundo de homens, não há outra perspetiva nessa
matéria. A identidade romana definiu-se exclusivamente em
termos de realização nas esferas masculinas do militarismo e da
política, das quais as cidadãs estavam excluídas. Até mesmo a
palavra romana virtus, que significa «coragem», tinha por raiz a
palavra que significava homem – vir. As mulheres não puderam
ser detentoras de cargos políticos em momento algum da história romana. Não puderam comandar exércitos, não puderam
WPUBSFNFMFJÎÜFTUJOIBNSFMBUJWBNFOUFQPVDPTEJSFJUPTKVSÓEJcos e desempenhavam, genericamente, um papel limitado e em
grande medida determinado na vida pública romana, nomeadamente quando comparado com o dos seus maridos, irmãos,
pais e filhos. Não obstante os indícios ocasionais de rebelião
*
Designação feminina correspondente a andróide. (N. do T.)
As Mulheres de Stepford é um romance satírico de Ira Levin, publicado em 1972,
no qual a protagonista começa a suspeitar que as dóceis donas de casa suas vizinhas
poderão ser robôs criados pelos maridos. (N. do T.)
**
Annelise Freisenbruch
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GFNJOJOBDPOUSBMFJTJNQPQVMBSFTFEFEFCBUFFOUSFKVSJTUBTF
filósofos acerca dos privilégios que deveriam ser concedidos às
mulheres romanas nos domínios da edução e da transmissão
por herança da propriedade, decerto que não houve nenhum
movimento pelos direitos da mulher na Antiguidade. Muitas
(embora não todas) das primeiras-damas romanas aqui tratadas
nunca teriam merecido a atenção da história se não tivesse sido
através dos homens com que casaram ou dos filhos que trouxeram ao mundo, e as suas biografias foram invariavelmente
construídas na sombra e como reflexo das dos seus parentes
masculinos.
Um dos principais enigmas para o historiador atual das mulheres da Roma antiga é o facto de não ter sobrevivido no registo
histórico um único escrito de autoria feminina, muito menos
de uma mulher da família imperial, com exceção de trechos
muito fragmentários de poesia, caligrafia e graffitis. Enquanto
OPTEJBTEFIPKFBTNVMIFSFTQPMÓUJDBTQPEFNDPODFEFSFOUSFvistas ou redigir memórias para repor a verdade das suas vidas, a
única autobiografia feminina conhecida da antiguidade, escrita
pela mãe de Nero, Agripina Menor, tombou a dado momento
EPTFVQFSDVSTPTPCBTHBSSBTDFOTØSJBTEBIJTUØSJBKVOUBNFOUF
com eventuais outras obras de mulheres que podem ou não ter
existido em tempos. Os homens da Antiguidade, tal como as
mulheres, foram também vítimas de tais acidentes e sabotagens
literárias – os escritos de Cláudio, por exemplo, não chegaram até
nós, obras que poderão ter exercido uma influência inibidora no
veredicto popular de que o quarto imperador de Roma foi uma
figura incapaz e ridícula7. Contudo, a cortina de silêncio sistematicamente imposta às vozes das mulheres da história antiga
reflete os preconceitos mais genéricos relativos às mulheres, e o
valor ou a premência de saber delas em primeiro lugar. Em consequência, nunca conseguimos ver as mulheres da Antiguidade
a não ser por intermédio dos olhos daqueles que muitas vezes
escreveram acerca delas décadas, ou até mesmo séculos, após as
suas mortes e que, em geral, estavam menos interessados nelas
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as mulheres dos césares
como indivíduos do que como atores secundários e de apoio nas
narrativas das vidas dos seus parentes masculinos.
É, contudo, possível, que o maior de todos os dilemas resida
em traçar um rumo através do acidentado terreno literário de que
dependemos para a grande maioria das nossas ideias acerca das
mulheres imperiais de Roma. Como optar, por exemplo, entre
as versões contrastantes de Lívia que coexistem nas descrições
QPVDPMJTPOKFJSBTRVFEFMBTÍPGFJUBTDPNPSVGJBJOTVCNJTTBQFMP
HSBOEFIJTUPSJBEPSSPNBOPoFDSÓUJDPGFSP[EPTKVMPDMBVEJBOPT
– Tácito, a adulação manhosa que lhe dirige o poeta Ovídio,
mostrando-a como uma matrona casta com a beleza de Vénus,
e a apreciação da sua estoica força de espírito face ao luto pelo
filósofo Séneca? As fontes antigas constituem muitas vezes um
desconcertante e frustrante nó górdio de contradição, apostas
múltiplas, intriga, insinuação e mudança de assunto. De resto,
eles não partilham connosco as preocupações biográficas, como
as relativas ao desenvolvimento do caráter e a motivação psicológica, algo que é particularmente verdadeiro no caso das suas
descrições de personagens femininas. Em lugar disso, tendem
a retratar as suas figuras em cores rudes, superficiais e primárias, classificando-as por «tipos» morais em que são arrumadas
como em pombais – por exemplo, como madrastas conspiradoras (Lívia, Agripina Menor e, em certa medida, a mulher de
5SBKBOP 1MPUJOB QFSUFODFSJBN B FTUB DBUFHPSJB
PV NVMIFSFT
pérfidas (a irmã de Augusto, Octávia, ou a primeira mulher de
Nero, Cláudia Octávia)8.
Confrontados com tais dilemas, há a tentação de escolher que
partes das histórias relativas às mulheres da Antiguidade soam
mais plausíveis – usando normalmente como pedra de toque o
facto de parecerem menos tétricas – e recorrer depois à psicanálise e à intuição para preencher o restante. Todavia, a tarefa
de decidir definitivamente que elementos destes esboços crus de
personagens são verdadeiros e quais são falsos é, na maioria dos
casos, um empreendimento votado ao fracasso. Nenhum historiador dispõe de uma antena privilegiada para o passado e seria
Annelise Freisenbruch
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desonesto pretender que podemos servir de ventríloquos para
estas mulheres, na ausência das suas próprias vozes e de outros
elementos das suas vidas. Este livro não pretende fazê-lo, nem se
assume como uma «biografia» dessas mulheres em nenhum dos
sentidos convencionais – não consegue penetrar nas suas cabeças,
não pode proporcionar-nos um guia alfabético completo das
suas vidas9.
Em lugar disso, é necessária uma abordagem agnóstica da
vastidão eclética de opções narrativas e protótipos de primeira-dama romana com que nos confrontamos. E é precisamente a
sensação de se estar a combater um distúrbio de personalidade
múltipla histórico, quando se trata de determinar a verdadeira
mulher romana por detrás das máscaras e caricaturas dos seus
antigos retratos, que constitui efetivamente a chave para a nossa
compreensão do seu lugar na sociedade romana. Defendo a tese
de que as identidades das primeiras-damas romanas aparentam
ser tão fluidas, contraditórias e contenciosas por terem sido ditadas pela agenda e reputação políticas do imperador com quem
foram casadas ou de que eram parentes, bem como pela reação
crítica ao seu reinado. Em geral, os imperadores pretendiam
QSPKFUBSEFTJNFTNPTBJNBHFNEFIPNFOTGPSUFTEFGBNÓMJBF
as suas parentes femininas seriam apresentadas como embaixadoras da boa vontade e modelos de decoro familiar, escorando
essa imagem. É óbvio, porém, que nas mãos dos inimigos de um
imperador ou de uma dinastia posterior empenhada em cortar
laços e extinguir as memórias dos seus predecessores, a representação da sua mulher poderia ser radicalmente diferente.
É por isso que a minha utilização da expressão «primeira-dama» no texto do livro parece apropriada. Trata-se em parte
de pactuar com a descrição de Lívia, em mais de uma ocorrência na literatura da Antiguidade, como femina princeps – uma
versão feminizada do título escolhido pelo seu marido Augusto,
princeps, que significa «cidadão principal» ou «primeiro» –, que
em tradução livre será «primeira-dama»10. Mas incita também a
atentar nas similaridades inelutáveis, e por vezes desconcertantes,
28
as mulheres dos césares
entre os papéis-chave desempenhados por essas mulheres da
Roma antiga e as suas congéneres políticas atuais no «comércio»
de uma imagem doméstica dos seus maridos – visto continuar
a ser mais habitual tratar-se de maridos do que de mulheres –
KVOUPEPTFVQÞCMJDPBPNFTNPUFNQPRVFDPOUSJCVFNQBSBB
promoção da sua agenda política, como defendo que fizeram
Lívia e as suas pares romanas.
Veremos então, por exemplo, como as mulheres individuais
dos imperadores romanos foram louvadas por posições como
a de adotarem uma atitude acessível e aberta para com os seus
TÞCEJUPTTBDSJGJDBOEPWFTUVÈSJPFCFOTQBSBBKVEBSFNBBOHBriar fundos para o exército romano e cultivando um estilo de
vida frugal, tudo em prol da imagem do imperador reinante. Se
tivermos em conta algumas das mulheres para as quais foi inicialmente cunhada a expressão «primeira-dama», veremos tais
ações exemplares a ecoarem ao longo das eras exatamente com o
mesmo propósito. Exemplificando: a primeira mulher presidencial dos Estados Unidos, Martha Washington, iniciou a tradição
muito imitada de abrir a residência oficial a visitantes em certos dias, um gesto adequado da parte da mulher de um dos pais
fundadores e republicanos da América; Edith Wilson leiloou a lã
de um rebanho de ovelhas de Shropshire e doou o produto das
vendas para o esforço da I Guerra Mundial durante a presidência do marido, Woodrow; e Michelle Obama seguiu as eficazes
pisadas da filha de Andrew Johnson, Martha Johnson Patterson,
e de Lucy, mulher de Rutherford B. Hayes – a primeira das quais
fez pastar vacas leiteiras no relvado da Casa Branca e a segunda
conservou os recibos do seu vestuário para serem inspecionados
oBPQMBOUBSVNBIPSUBVNBQFSTQJDB[KPHBEBQPMÓUJDBOPTUFNpos de consciência ecológica e economicamente perigosos em
que o marido foi empossado.
Reciprocamente, tal como certas imperatrizes romanas foram
arrasadas como perdulárias ou acusadas de interferirem na política pelos adversários dos maridos, críticas análogas assediaram
muitas das primeiras-damas modernas. Mary Lincoln e Nancy
Annelise Freisenbruch
29
Reagan acabaram ambas numa situação difícil devido ao seu pródigo despesismo – a primeira pelas contas de vestuário por pagar,
numa altura em que as famílias choravam os parentes perdidos
na Guerra Civil americana; a segunda quando foi anunciada,
logo no princípio do primeiro mandato do marido, a aquisição
de novos serviços de porcelana para a Casa Branca num valor
superior a 200 mil dólares, na véspera de a administração anunciar uma redução nos padrões nutricionais dos programas das
cantinas escolares. Numa ilustração de como estereótipos positivos e negativos podem ser associados à mesma primeira-dama,
Michelle Obama é apenas a mais recente numa longa sucessão
de mulheres de presidentes que fizeram pôr cabelos em pé por
expressarem estridentes opiniões políticas pessoais, conduzindo,
no seu caso, ao culto do lado mais suave de «Mamã-suprema»,
a fim de não criar o risco de alienar os eleitores de tendência
conservadora11. Muito embora as consortes políticas antigas e
NPEFSOBT TFKBN JORVFTUJPOBWFMNFOUF NVOEPT TFQBSBEPT FN
termos das oportunidades políticas e sociais que lhes estão abertas, os modelos de feminilidade que foram transmitidos ao longo
das épocas permanecem em muitos aspetos imutáveis.
Este livro inicia-se na véspera da era imperial, precisamente
quando o marido de Lívia, Augusto, estava prestes a tornar-se o
primeiro imperador de Roma e ela a sua primeira imperatriz, e
prossegue na senda de uma seleção de mulheres que sucederam
a Lívia nesse papel desde o século i ao v, culminando na morte de
uma das últimas imperatrizes de Roma, Gala Placídia. Nem todas
as mulheres imperiais desse longo período histórico podem aqui
ser incluídas, mas optei por me concentrar naquelas relativamente
ËTRVBJTTPCSFWJWFVVNBUSBEJÎÍPNBJTSJDBFDVKBTCJPHSBGJBTTÍP
mais importantes no desenrolar narrativo da história de Roma.
As mulheres imperiais constituem o ponto fulcral da maioria dos
capítulos, mas, em muitos casos, as filhas, irmãs, mães e outros
membros femininos da família dos imperadores desempenham
um papel analogamente destacado – tal como de facto desempenharam no decurso da história das primeiras-damas americanas,
30
as mulheres dos césares
nomeadamente no século xix, quando as sobrinhas, irmãs e noras
de um presidente eram muitas vezes chamadas a atuar como consortes substitutas e anfitriãs na Casa Branca, devido à relutância
da própria mulher do presidente em fazê-lo12.
Olhar retrospetivamente para o passado pode muitas vezes
ser como espreitar através de uma vidraça coberta de gelo, para
lá da qual formas e cores indistintas se deslocam num movimento arrastado. Tal é, em grande medida, a experiência de
tentar vislumbrar o mundo das mulheres de Roma. No entanto,
por vezes as imagens e as formas aproximam-se mais da vidraça,
entram no campo de focagem, levam-nos a esforçar mais a vista
OPOPTTPEFTFKPEFBTQFSDFDJPOBSDPNDMBSF[B5PEPTUFNPTPT
nossos anseios para satisfazer neste olhar, um sentimento de
necessidade de estabelecer contacto com o passado, de nos colocarmos onde em tempos alguém esteve, de tocar algo que ela ou
ele certa vez tocaram. Nunca poderemos saber exatamente quem
eram as «verdadeiras» Lívia, Messalina, Agripina e companhia,
o que pensavam, o que sentiam, se eram realmente tão sinistras
ou santas quanto as pintaram. Isto, porém, nunca pode abafar o
arrepio que sentimos nos momentos de descoberta que parecem
aproximar-nos delas um torturante passo mais: os restos mortais
cremados de alguns dos escravos que em tempos dobraram as
vestes de Lívia e lhe serviram o cálice do seu vinho tinto favorito; a casa ricamente decorada em que Júlia, a desgraçada filha
de Augusto, viveu em tempos; a boneca articulada de marfim
com que uma rapariga criada na casa imperial poderá em temQPTUFSCSJODBEPPVVNBDBSUBFTDSJUBQPSVNKPWFNJNQFSBdor romano, a recordar longos serões de conversa com a mãe,
estando ela sentada aos pés da sua cama.
É em momentos como estes, associados à nossa vontade crescente de refletir sobre o papel vital desempenhado pelas mulheres no grande palco de Roma, que o busto pálido e de olhos
vazios do museu recomeça a voltar à vida.
Capítulo I
Ulisses de Vestido
Produção de uma Primeira-dama Romana
A característica da nação romana era a magnificência: as suas virtudes, os seus vícios, a sua prosperidade, os seus infortúnios, a sua
glória, a sua infâmia, a sua ascensão e queda, tudo foi igualmente grandioso. Até mesmo as mulheres, desprezando os limites que a barbárie e
a ignorância haviam consignado ao seu sexo noutras nações, imitaram
o heroísmo e a ousadia do homem.
Mary Hayes, Female Biography, vol. 2 (1801)
As labaredas pareciam ter irrompido do nada, surpreendendo
BRVFMFTRVFGPSBNBQBOIBEPTOBTVBUSBKFUØSJBFDFJGBOEPVN
rasgão através dos olivedos e pinhais de Esparta. Enquanto as
línguas de fogo se encrespavam no ar noturno, inundando-o com
o odor acre da seiva ardente, os ruídos secos dos ramos crepitantes entremeavam-se com gritos de pânico e um arfar pesado.
Um homem e uma mulher apressavam-se por entre uma floresta
incendiada. A marcha era perigosa: a dada altura, o cabelo da
mulher e a bainha roçagante do seu vestido ficaram chamuscados, mas não havia tempo para examinar os danos. As forças iniNJHBTFTUBWBNMIFTNFTNPOPFODBMÎPFKÈPTBTTFEJBWBNIBWJB
algum tempo. Semanas antes, o casal fugitivo e os seus companheiros de viagem quase haviam sido intercetados ao tentarem
embarcar secretamente num navio no porto de Nápoles, com o
pranto recalcitrante do seu bebé quase a deitar tudo a perder.
O nome do homem era Tibério Cláudio Nero, e ela era a sua
mulher de dezassete anos, Lívia Drusila2.
Estava-se no ano 41 antes de Cristo. Três anos antes, o assassínio do ditador Júlio César por dissidentes que tinham agido
32
as mulheres dos césares
em nome da liberdade mergulhara a república romana na
guerra civil, dividindo a elite das suas classes dominantes em
dois campos ferozmente opostos: os que apoiavam os assassinos
Bruto e Cássio e os que apoiavam os paladinos autonomeados
de César, nomeadamente o seu sobrinho-neto de dezoito anos,
agora designado herdeiro, Gaio Octávio, mais conhecido como
0DUBWJBOPFPTFVUFOFOUF.BSDP"OUØOJP&NDPOKVOUPDPNP
ex-cônsul Marco Lépido, estes autoproclamados mosqueteiros
haviam constituído um frágil acordo de partilha tripartida do
poder, conhecida como Triunvirato, e trataram de esmagar Bruto
e Cássio na batalha de Filipos em outubro de 42 a. C.
No entanto, Octaviano e António depressa entraram em desavença e a elite romana viu-se obrigada a declarar mais uma vez
a sua lealdade, desencadeando confrontos violentos entre as
fações adversárias em Itália um ano mais tarde, confrontos esses
que obrigaram o nobre Tibério Nero, que optara pelo partido de
"OUØOJPFBTVBKPWFNNVMIFS-ÓWJBBMBOÎBSFNTFOBTVBEFTFTperada fuga. Estava agora em curso uma contagem decrescente
de dez anos, com todos os partidos a convergirem na batalha de
Ácio, em 31 a. C., a grande batalha naval em que Marco António, financiado pela sua amante egípcia, Cleópatra, se defrontaria com Octaviano para decidir o destino do império romano de
uma vez por todas.
No início do primeiro ato deste magnífico drama, Lívia
Drusila era apenas uma figurante na multidão, uma personagem invisível numa sociedade em que a poucas mulheres era
consentido adquirirem nome como figuras públicas. Porém,
PT BDPOUFDJNFOUPT EP TFHVOEP BUP FN RVF P IPNFN DVKBT
tropas a perseguiam por Esparta substituiu Tibério Nero como
seu marido, alcandoraram-na ao estatuto de atriz principal
e, na altura em que a peça alcançou o seu grandioso final,
Lívia estava prestes a tornar-se primeira-dama da era imperial
OBTDFOUFFBNÍFGVOEBEPSBEBEJOBTUJBKVMPDMBVEJBOBRVFB
inaugurou. Tendo sido provavelmente a mais poderosa, e sem
dúvida uma das mais controversas e formidáveis mulheres que
Annelise Freisenbruch
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alguma vez desempenharam aquele papel – o neto Calígula
veio depois a apodá-la de Ulixes stolatus (Ulisses de vestido),
uma referência híbrida ao guerreiro grego conhecido pela sua
astúcia e ao vestido stola usado pelas matronas romanas de
classe elevada –, Lívia foi o modelo pelo qual todas as subsequentes mulheres de imperadores romanos teriam de se
medir3. Nenhuma mulher viria a condensar melhor do que ela
as artimanhas e os paradoxos associados a ser-se uma mulher
romana na vida pública.
Ao contrário da sua congénere egípcia Cleópatra, relativamente a quem se viu forçada a aceitar um lugar de segundo
plano, tanto ao longo da década seguinte como na memória
histórica, Lívia Drusila não foi educada para o cargo de dinasta
imperial, mas também não era alheia à classe dirigente política
romana. Nascida a 30 de Janeiro de 58 a. C., na distinta família
patrícia dos Cláudios, que se gabavam de ser descendentes do
refugiado de guerra troiano Eneias, um dos fundadores míticos
da raça romana, Lívia tinha catorze anos quando o assassínio de
Júlio César a 15 de Março de 44 a. C. desencadeou uma guerra
civil entre a elite romana4. O clã claudiano, do qual descendia
pelo lado paterno – a mãe, Alfídia, era de uma família de classe
alta, mas menos aristocrática, natural da cidade costeira italiana
de Fundi –, fora uma presença de peso no panorama político
desde os primeiros dias da república romana, no século v a. C.,
alardeando nada menos do que vinte e oito consulados, cinco
ditaduras e seis triunfos (honras públicas atribuídas aos generais bem-sucedidos). Uma ligação adicional, através do pai, era
com a ilustre família liviana, de que um dos membros, Marco
Lívio Druso, fora um herói populista para comunidades italianas
que clamavam pela cidadania romana no começo do século i a.
C.56NBMJOIBHFNUÍPCSJMIBOUFNBSDPVBKPWFN-ÓWJBDPNP
um grande trunfo matrimonial para qualquer aspirante ao poder
político e, apropriadamente, apresentou-se um pretendente de
sucesso no ano 43 a. C.6.
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as mulheres dos césares
Tibério Claúdio Nero, ele próprio membro de um ramo um
pouco menos elevado do clã claudiano, era da mesma argamassa
política do abastado pai de Lívia, Marco Lívio Druso Cláudio,
que daria por si, um ano mais tarde, do lado derrotado de Filipos. Descrito numa carta pelo grande estadista romano Cícero
DPNPjVNKPWFNEFOBTDJNFOUPOPCSFUBMFOUPTPFDPNBVUPdomínio», Tibério Nero gozara de uma ascensão relativamente
auspiciosa pela escada romana do progresso ao longo dos anos
40, detendo primeiro a questura e depois a pretoria, um degrau
abaixo da mais elevada posição política possível, a de cônsul7.
Tendo gozado de algum favor durante o reinado de Júlio César,
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trocou ainda assim de alianças no rescaldo do assassínio de
César, optando, tal como o seu futuro sogro, por apoiar os assassinos Bruto e Cássio, mas transferindo posteriormente as suas
lealdades, uma vez mais, agora para Marco António.
A hierarquia política de Roma estava ainda desordenada na
sequência da morte de Júlio César quando Tibério Nero, frusUSBEP EF VN EFTFKP BOUFSJPS FN B $ EF EFTQPTBS B GJMIB
de Cícero, Túlia, optou antes pelo matrimónio com uma mulher
do seu clã, Lívia, que com quinze anos era provavelmente vinte
anos mais nova do que ele, uma diferença de idades habitual em
casais da sociedade romana8. O mais provável é que o casamento
tivesse sido combinado pelo pai de Lívia, embora as mães romaOBTQVEFTTFNDPNPÏFWJEFOUFUFSBMHVNWPUPOFTTFTBSSBOKPT
matrimoniais – a união da primeira escolha para noiva de Tibério Nero, Túlia com o seu terceiro marido Dolabela, por exemplo,
foi facilitada pela sua mãe, Terência, com a resignada aceitação
de Cícero9. No entanto, legalmente, quase todas as mulheres
romanas, com a exceção das seis sacerdotisas vestais virgens
RVFDVJEBWBNEPMBSEBEFVTB7FTUBFTUBWBNTVKFJUBTËBVUPSJdade total do pai, ou paterfamilias, enquanto ele fosse vivo e, do
século i a. C. em diante, a maioria permanecia ainda sob a autoridade paternal, mesmo após o casamento. Isto sucedia devido ao
aumento de casamentos sem manus (tendo aqui manus o sentido
Annelise Freisenbruch
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de possessão ou poder). Por outras palavras, tratava-se de casamentos em que uma mulher e, mais importante, o seu dote sob
BGPSNBEFEJOIFJSPFQSPQSJFEBEFQFSNBOFDJBTPCBKVSJTEJção legal do pai e não do marido. Tais disposições tornaram-se
OPSNBHSBÎBTBPEFTFKPEFDMÍTBCBTUBEPTDPNPPTEF-ÓWJBFN
conservarem as suas propriedades intactas e preservarem a integridade das suas famílias ao não permitirem que os seus membros passassem a ser controlados por outros paterfamilias10.
Uma rapariga na posição de Lívia teria sido tecnicamente
livre para recusar o casamento, mas só se tivesse podido provar
que a escolha do seu pai para noivo era um homem de mau caráter, uma opção que provavelmente poucas raparigas se sentiam
capazes ou propensas a aproveitar. O casamento era a única ocupação respeitável para uma mulher romana livre, mas era tamCÏNPVOUPFBDPMBEBIJFSBSRVJBQPMÓUJDBEF3PNB6NBKPWFN
aristocrata como Lívia, que dispunha de poucas oportunidades
de travar conhecimento com homens ou mulheres fora do seu
restrito círculo familiar, podia esperar casar-se mais do que uma
vez durante a sua vida, numa cultura de elite em que o matrimónio não era tanto uma união romântica como um facilitador de
alianças sociais e políticas entre famílias ambiciosas, alianças que
bem podiam assentar em areias movediças11.
Na véspera do seu sumptuoso casamento de alta sociedade,
-ÓWJBUFSJBTJEPTVCNFUJEBBPQSJNFJSPEFVNDPOKVOUPEFQSPcedimentos cerimoniais que simbolizavam a sua graduação da
infância para a idade adulta e a sua transição da casa do pai para
a do marido. Uma noiva romana punha de lado as suas coisas infantis – os brinquedos e a toga em miniatura que usara
BPMPOHPEBJOGÉODJBoFUSBKBWBVNWFTUJEPEJSFJUPEFMÍCSBODB
(tunica recta) que ela própria tecera num tear especial. No dia
seguinte, esta simples túnica branca nupcial era cingida à cintura
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por ser desfeito pelo marido. Os seus longos cabelos, que teriam
sido confinados durante a noite numa rede amarela, eram penteados num estilo austero que implicava a peculiar utilização de
36
as mulheres dos césares
um dardo afiado para separar o cabelo em seis tranças bem apertadas antes de serem fixas com fitas de lã12.
O noivo e os convidados chegavam tipicamente a casa do
pai da noiva durante a tarde. Apesar de os casamentos romanos não serem de formato religioso, tinham lugar vários gestos
cerimoniais durante o dia, incluindo o sacrifício de um porco
para garantir bons presságios para a união. Eram trocadas palavras de consentimento entre o casal e o casamento ficava selado
quando uma convidada casada, ou pronuba, pegava nas mãos
direitas da noiva e do noivo e as unia. Poderia ser testemunhado
e assinado um contrato e o casal era brindado com a saudação Feliciter («Boa sorte»); um banquete matrimonial precedia
então a escolta final da noiva até ao seu novo lar, para onde
PNBSJEPKÈTFFODBNJOIBSBBGJNEFMÈBBHVBSEBS1PEFNPT
imaginar a cena enquanto os sons distantes de canções ecoavam
pela cidade, escutando-se logo acima do tráfego pedestre do
entardecer e do palrar dos negociantes que encerravam as suas
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aromatizado com tochas de resina de pinheiro a arder, flautistas
tocavam enquanto a multidão rouca, bem estimulada pelo banquete de casamento que acabara de deixar, avançava trôpega em
grande euforia, a entoar os refrães nupciais de «Hymen Hymenae!» e «Talasio!» e atirando punhados de nozes para as crianças
em correria e residentes locais curiosos que haviam vindo ver a
procissão passar.
No meio da amálgama, o vistoso véu nupcial de Lívia, ou
flammeum, cor de gema de ovo, resplandecia como um farol na
FTDVSJEÍPEJTQPTUPTPCSFVNBDPSPBEFWFSCFOBFNBOKFSPOB
Pantufas (socci) amarelas a condizer, talvez bordadas com pérolas, a aparecerem e a desaparecerem por debaixo da sua túnica
cintada enquanto era arrastada por dois rapazinhos que lhe
pegavam nas mãos, escolhidos entre a prole de amigos casados
da família como mensageiros de esperança das crianças que ela
traria um dia ao mundo. Um terceiro rapaz caminhava à frente
com uma tocha e, em lugar de um bouquet, eram levados por
Annelise Freisenbruch
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ela através do caminho um fuso e uma roca, símbolo dos seus
novos deveres domésticos. Não obstante a presença destes símbolos inócuos da vida respeitável de casados, a atmosfera abundava em humor irreverente, mas bem-intencionado, e tinha de
se aguentar o desafio das brincadeiras maliciosas e das canções
carregadas de insinuações até a noiva conseguir chegar à casa
marital. Quando finalmente a escolta ruidosa de Lívia a entregou na porta de Tibério Nero, ela encontrou-a engrinaldada de
flores colocadas pelo noivo que a aguardava. Conforme de si se
esperava, untou cerimoniosamente as ombreiras da porta com
gordura animal e fixou nela meadas de lã por cardar, rituais que
visavam garantir abastança e prosperidade para si e para o seu
novo marido. Por fim, foi cuidadosamente levantada por sobre
BTPMFJSBQFMPTTFVTKPWFOTBVYJMJBSFTNBTDVMJOPT&SBOFDFTTÈria cautela, pois uma noiva tropeçar ao ser admitida através da
entrada na casa do seu novo marido era considerado um mau
presságio. Uma vez lá dentro, depois de ser presenteada com
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marido, a simbolizar a sua responsabilidade de mulher em cozinhar, limpar e supervisionar os assuntos domésticos, era levada
por outra mulher casada para o seu novo aposento, antes de aí
admitir o noivo para que se desse a consumação13.
O estatuto de Lívia como noiva adolescente era completamente normal. As raparigas de classe alta na república romana
tardia tinham tipicamente o seu primeiro casamento nos primeiros anos da adolescência, por vezes logo aos doze. Tirava-se assim partido dos seus anos mais férteis, numa era em que
a taxa de mortalidade infantil era elevada. Ter filhos, o ativo
pelo qual as mulheres romanas eram publicamente mais valorizadas, era um imperativo para uma mulher na posição de
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mulher e nunca ao marido, podia constituir fundamento para o
divórcio. Não é de surpreender que 16 de novembro de 42 a. C.
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romana, com a documentação oficial relativa ao nascimento
38
as mulheres dos césares
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tarde, quase denunciaram os pais quando se evadiam através
da cidade-estado grega de Esparta e que viria um dia a tornar-se imperador de Roma14.
O nascimento de Tibério teve lugar em casa, no monte Palatino, o bairro residencial mais exclusivo de Roma. Graças ao seu
acesso imediato ao fórum romano, o centro da cidade, e às suas
associações sagradas com momentos-chave do passado mítico
de Roma, como o nascimento dos gémeos fundadores da cidade,
Rómulo e Remo, o Palatino era o domicílio ideal para um político ambicioso como Tibério Nero. Um verdadeiro Quem é
Quem entre os reformadores e agitadores republicanos tardios,
tinham-no também escolhido como sua base, desde Cícero a
Octaviano e Marco António, e é provável que a própria Lívia ali
tivesse crescido na casa do seu pai15.
A maternidade era algo escrutinado de perto nas mulheres
do mundo romano. Desde o momento da conceção até à amamentação e estádios de desmame, era oferecida às futuras mães
uma torrente de conselhos, alguns baseados nas teorias de médicos respeitados, outros enraizados na charlatanice supersticiosa.
Disse-se que, antes da chegada do bebé Tibério, a própria Lívia
terá empregue várias técnicas antigas das mulheres para tentar
garantir o nascimento de um rapaz, incluindo a incubação de um
ovo de galinha entre as mãos, conservando-o quente nas pregas
do vestido, onde acabaria por chocar um galito de crista orgulhosa, em hipotética premonição de um bebé do sexo masculino16. Os conselhos mais pragmáticos, embora igualmente não
científicos, de peritos médicos como Sorano, que os escreveu
alguns anos depois, no século ii, recomendavam que a melhor
altura para a conceção era perto do final da menstruação e depois
de uma refeição ligeira e de uma massagem.
Os partos em casa eram a única variedade praticada, e as parturientes abastadas, como Lívia, eram assistidas num aposento
cheio de mulheres, incluindo várias parteiras, mantidas entre
o pessoal permanente das casas mais ricas. Os maridos não
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