Annelise Freisenbruch As Mulheres dos Césares Sexo, Poder e Política no Império Romano Tradução de Manuel Santos Marques Índice Lista de Ilustrações ................................................................... 9 Árvores Genealógicas .............................................................. 11 Introdução: Eu, Cláudia… ....................................................... 19 Capítulo I – Ulisses de Vestido Produção de uma Primeira-Dama Romana ......................... 31 Capítulo II – Primeira Família As Mulheres de Augusto .......................................................... 79 Capítulo III – Rixa Familiar A Princesa do Povo e as Mulheres do Reinado de Tibério .. 131 Capítulo IV – Feiticeiras do Tibre As Últimas Imperatrizes Julo-Claudianas ............................. 175 Capítulo V – A Pequena Cleópatra Uma Princesa Judia e as Primeiras-Damas da Dinastia Flaviana ...................................................................................... 225 Capítulo VI – Boas Imperatrizes As Primeiras-Damas do Século ii .......................................... 263 Capítulo VII – A Imperatriz Filósofa Júlia Domna e o «Matriarcado Sírio» .................................... 301 Capítulo VIII – A Primeira Imperatriz Cristã As Mulheres na Época de Constantino ................................. 341 Capítulo IX – Noivas de Cristo, Filhas de Eva As Primeiras-Damas da Última Dinastia .............................. 377 Epílogo ....................................................................................... 429 Agradecimentos ........................................................................ 433 Uma Nota de Convenções Usadas em Nomes de Datas ...... 436 Notas .......................................................................................... 438 Bibliografia Selecionada .......................................................... 482 Índice Remissivo ....................................................................... 501 Introdução Eu, Cláudia… A mulher de César deve ser irrepreensível. Plutarco, Vida de Júlio César, Sr.ª Landingham, The West Wing1 Pode perdoar-se aos visitantes do Museu de Arqueologia Clássica da Universidade de Cambridge pensarem ter ido parar à zona privada de um colecionador de arte em retiro. Passeie-se por esta extensa galeria reverberante, com a sua cobertura altaneira de vidro cruzada por vigas, um sussurrante fundo sonoro emitido pelo deslizar e arranhar dos lápis dos desenhadores, e é-se presenteado com uma parada de para lá de 400 das mais icónicas e imediatamente identificáveis imagens do mundo clássico. Estão lá os frisos e os frontões arrancados por lorde Elgin ao Pártenon; está lá o Apolo Belvedere, em tempos venerado como a mais bela estátua que da Antiguidade chegou até nós; vê-se a pungente escultura do Vaticano a representar o trágico Lacoonte e os seus filhos a serem arrastados para o seu túmulo aquático por duas serpentes constritoras, diante das muralhas condenadas de Tróia. Ao chegarmos à divisão final do circuito do museu, somos acolhidos por um salão de famosos romanos, uma sucessão alinhada das efígies dos homens que governaram Roma. Encontra-se aqui a maior parte dos grandes nomes, com as suas fisionomias de mármore a evocar as suas afamadas personalidaEFTIJTUØSJDBTVNBUBSSBDBEPFKPWFN/FSPVNFODBSRVJMIBEP e obstinado Vespasiano, um Adriano culto e de barba e um Cómodo atormentado e insatisfeito. Entalada na fila do fundo desta insigne galeria de cabeças grisalhas dos patrícios, insere-se 20 as mulheres dos césares com alguma incongruência o rosto pálido de uma mulher. Tem o nome impresso numa simples placa na parte inferior: Faustina Minor; nem mais, nem menos. Mostra-se como máscara velada e lívida de um rosto inexpressivo e indecifrável, com as ondulações EPTFVDBCFMPQFOUFBEPDVJEBEPTBNFOUFBKVTUBEBTFBTDØSOFBT dos seus olhos amendoados a fixarem cegamente algo que está por detrás de nós2. O que é que nos resta, neste eco branco como cal, do que em tempos foi esta mulher? É que se trata apenas de um eco, não somente por ser desprovido de vida, mas porque, como a maioria das outras coisas neste museu, não passa de uma cópia, uma reconstrução em gesso feita a partir do original há mais de um século, quando estavam especialmente em voga essas coleções moldadas e, na verdade, também o estudo da arte clássica. No empreendimento incerto de identificar os rostos do mundo antigo, nem sequer existe a certeza de se tratar realmente de Faustina Menor, um nome que dificilmente suscitará muitos MBNQFKPT EF SFDPOIFDJNFOUP BQFTBS EF UFS TJEP B NVMIFS EP muito admirado décimo sexto imperador de Roma, Marco Aurélio. Como poderemos imaginar a vida da mulher por detrás deste enigmático invólucro de gesso, que olhou para um império por DJNBEPPNCSPEPNBSJEPNBTEFDVKBFYJTUÐODJBQPVDPTJOEÓDJPTQFSEVSBNIPKF A tentação de fazer o papel de Pigmalião, de ressuscitar Faustina e as outras grandes mulheres da Roma imperial em consonância com a nossa fantasia, é extremamente sedutora, e conseguiu cativar muitos artistas e escritores. Talvez o mais JOGMVFOUFEFUPEPTPTSFUSBUPTNPEFSOPTTFKBPRVFGPJDSJBEP pelo escritor britânico Robert Graves que, em agosto de 1933, quando vivia exilado na sonolenta aldeia maiorquina de Deya, enviou o seu mais recente manuscrito aos editores em Londres, na esperança desconsolada de que lhe viesse a permitir pagar as quatro mil libras que devia pela sua casa. O livro era Eu, Cláudio, um relato da primeira dinastia imperial do império romano, contado na perspetiva do seu narrador epónimo e gago, Cláudio, Annelise Freisenbruch 21 o quarto imperador de Roma. Graves manifestou desdém pela obra, chamando-lhe «passe de ilusionismo literário»; todavia, tanto este livro como a sua sequela, Claúdio, o Deus, revelaram-se grandes êxitos comerciais e de crítica, e os romances acabaram por ser adaptados pelas televisões britânica e norte-americana em 1976. A saga de treze episódios, vendida sob o slogan j"GBNÓMJBDVKPOFHØDJPFSBHPWFSOBSPNVOEPxEFQSFTTBWFJP a ser Os SopranosEPTFVUFNQPHSBOKFBOEPFODØNJPTQFMPTFV elenco de estrelas britânicas e ocupando o topo das tabelas de audiências. Contudo, numa mudança de ênfase no foco da narrativa dos livros de Graves, as verdadeiras vedetas do espetáculo – aquelas que dominaram a maior parte das cenas, atraíram o HSPTTPEBBUFOÎÍPEPTDSÓUJDPTFDVKPTSPTUPTTFUPSOBSBNBJNBgem promocional definidora do programa – foram as mulheres na vida de Cláudio, em particular a sua avó Lívia, mulher do primeiro imperador de Roma, Augusto, e as terceira e quarta mulheres de Cláudio, Messalina e Agripina. Estas mulheres constituíram um trio perigoso: Lívia, a maquiavélica que eliminou todos os rivais do seu filho Tibério com uma indiferença impiedosa; Messalina, uma provocadora assassina que traiu e humiMIPVPTFVJEPTPNBSJEP"HSJQJOBVNBWJÞWBOFHSBDVKBNÍP esteve, em última análise, por detrás da morte de Cláudio3. "WBTUBTPNCSBQSPKFUBEBQPSEu, Cláudio ficou bem ilustrada na recente e popular série da HBO, Roma, que escolheu Átia, sobrinha de Júlio César, como a mais malévola e memorável das suas personagens. Apesar de quase não existirem quaisquer provas históricas da vida de Ácia, para lá da indicação de que foi uma mãe dedicada e orientadora moral do seu filho Octaviano, foi ali representada com brio de protagonista como uma sedutora astuciosa e amoral – uma óbvia ressaca cultural da série televisiva predecesTPSBEPTBOPT$POUVEPPQSØQSJPSFUSBUPOBEBMJTPOKFJSPUSBçado por Graves das principais mulheres de Roma não irrompeu TFNBKVEBEBTCSVNBTDSJBUJWBTEBJNBHJOBÎÍPEPBVUPS&MFPQUPV simplesmente e sobretudo, por cooperar com as descrições delas escritas pelos mais conhecidos e reverenciados comentadores da 22 as mulheres dos césares antiga Roma e, na verdade, fez até disso uma virtude. «Em parte alguma fui contra a história…», escreveu na sua defesa do tema dos livros, citando por exemplo os antigos historiadores romanos Tácito e Suetónio como corroborantes da sua representação das mulheres da primeira dinastia imperial de Roma4. Ao percorrer-se as antigas narrativas literárias em que Graves se inspirou, as caracterizações por ele feitas afiguram-se totalmente apropriadas. Para além de Lívia, Messalina e Agripina, uma amostra das biografias conservadas de mulheres da era JNQFSJBMSPNBOBJODMVJVNBGJMIBKPDPTBRVFEFTHSBÎPVPQBJ ao embriagar-se no fórum romano, entregando-se depois a atos sexuais com estranhos na plataforma dos oradores; uma frívola e bela amante que persuadiu o imperador a matar a mãe a fim de poder desposá-la; uma mulher que cometeu adultério com um ator antes de conspirar para o assassínio do marido; e uma madrasta que tentou seduzir o próprio enteado e congeminou depois a sua execução, antes de ela própria ter sido atirada para água a ferver como punição. Júlia, Popeia, Domícia e Fausta são BQFOBTBMHVNBTEBTNVMIFSFTDVKBTSFQVUBÎÜFTTÍPSFTQPOTÈWFJT pela reação histórica, em grande medida hostil, face às mulheres de Roma ao longo do tempo. Tão vilipendiadas têm sido que PTTFVTOPNFTGPSBNJOWPDBEPTQPSNVJUPTDPNPKVTUJGJDBÎÜFT para que, ao longo dos tempos, fosse negada a participação das mulheres no poder político, tendo os seus rostos sido exibidos – nalguns casos literalmente – como espectros universais e malignos da delinquência assassina, da promiscuidade e da criminalidade5. É que Graves não foi de modo algum o primeiro a exumar as mulheres antigas das páginas de Tácito e dos seus contemporâneos romanos. Longe disso. A imagem das mulheres imperiais SPNBOBTSFDFCFSBKÈBTTFWFSBTDSÓUJDBTEFTÏDVMPTEFQSPEVÎÍP cultural pós-clássica ocidental, através de um espectro caleidoscópico de peças de teatro, crónicas, romances, óperas, filmes, poemas, compêndios pornográficos, pinturas, estampas, esculturas, iluminuras de manuscritos e até ilustrações em baralhos Annelise Freisenbruch 23 de cartas e outras indiscretas novidades. Desde o século xiv, quando os primeiros catálogos biográficos das mulheres célebres da história principiaram a surgir, a começar pelo De claris mulieribus (Acerca de Mulheres Famosas) de Giovanni Boccaccio em 1374, as senhoras romanas apareceram regularmente nessas listas, apresentadas nalguns poucos casos isolados como modelos exemplares de estoicismo e patriotismo feminino, mas mais frequentemente angariadas para histórias admonitórias severamente fraseadas em volumes que gozaram de ampla divulgação no seu tempo, como o tomo Sermões às Jovens do clérigo escocês James Fordyce, em 1766. Na história e na literatura, os seus nomes foram reciclados com pseudónimos para outras mulheres famosas... e controversas: Catarina, a Grande, Ana Bolena, Maria, rainha dos Escoceses, Lucrécia Bórgia, Catarina de Médicis, Leonor de Aquitânia, Maria Antonieta e Josefina Bonaparte, para referir apenas algumas, todas foram ocasionalmente comparadas com congéneres femininas do império romano. A um nível mais contemporâneo, houve até uma «Messalina de Ilford», a Edith Thompson de vinte e nove anos que, em Janeiro de 1923, se tornou a primeira mulher enforcada na Grã-Bretanha ao fim de quinze anos por ter alegadamente participado no assassínio do marido. Desde então, muitos questionaram esse veredicto, mas os relatos da imprensa da época não hesitaram em citar o conteúdo erótico das cartas dirigidas por Thompson ao seu amante e cúmplice Frederick Bywaters como KVTUJGJDBÎÍPQBSBBBMDVOIBSDPNPOPNFEBOJOGPNBOÓBDBFDSJminosa terceira mulher de Cláudio6. No entanto, nem todas as apreciações das mulheres ligadas às casas imperiais romanas se mostraram negativas. Várias delas gozam de reputações relativamente favoráveis, tanto nas fontes literárias da Antiguidade como na lenda póstuma, incluindo Agripina Maior («Agripina, a Velha»), mãe da infame mãe do imperador Nero, Agripina Menor («Agripina, a Jovem»). Depois de ficar viúva no ano 19, na sequência da morte suspeita do seu QPQVMBSDÙOKVHF(FSNÉOJDPB"HSJQJOBNBJTWFMIBUPSOPVTF 24 as mulheres dos césares uma figura polarizadora da simpatia daqueles que pressentiram a mão cruel do imperador reinante, Tibério, e a da sua mãe, Lívia, no assassínio de Germânico. Cénis e Berenice, respetivamente amantes da equipa pai e filho Vespasiano e Tito, apareceram ambas na pele de heroínas de peças e romances populares, enquanto a Helena, mãe do primeiro imperador cristão do mundo romano, Constantino, foi até concedido um lugar de santidade. Foram, todavia e indubitavelmente, as suas congéneres mais célebres, libertinas e ditatoriais quem, com o auxílio da romantização popular das suas vidas, veio a dominar a conceção corrente daquilo que seriam realmente as mulheres imperiais de Roma, e até os exemplos santificados parecem ginóides* de papelão, o equivalente antigo das mulheres de Stepford**. Este livro reabre o processo de Lívia e das suas pares, as «primeiras-damas» romanas, tendo em vista revelar algo mais acerca delas para além do que possibilitam os seus estereótipos estáticos e caricaturais. Todavia, a pergunta sobre como falamos em sua defesa e acerca delas tem as suas próprias complicações. Roma era um mundo de homens, não há outra perspetiva nessa matéria. A identidade romana definiu-se exclusivamente em termos de realização nas esferas masculinas do militarismo e da política, das quais as cidadãs estavam excluídas. Até mesmo a palavra romana virtus, que significa «coragem», tinha por raiz a palavra que significava homem – vir. As mulheres não puderam ser detentoras de cargos políticos em momento algum da história romana. Não puderam comandar exércitos, não puderam WPUBSFNFMFJÎÜFTUJOIBNSFMBUJWBNFOUFQPVDPTEJSFJUPTKVSÓEJcos e desempenhavam, genericamente, um papel limitado e em grande medida determinado na vida pública romana, nomeadamente quando comparado com o dos seus maridos, irmãos, pais e filhos. Não obstante os indícios ocasionais de rebelião * Designação feminina correspondente a andróide. (N. do T.) As Mulheres de Stepford é um romance satírico de Ira Levin, publicado em 1972, no qual a protagonista começa a suspeitar que as dóceis donas de casa suas vizinhas poderão ser robôs criados pelos maridos. (N. do T.) ** Annelise Freisenbruch 25 GFNJOJOBDPOUSBMFJTJNQPQVMBSFTFEFEFCBUFFOUSFKVSJTUBTF filósofos acerca dos privilégios que deveriam ser concedidos às mulheres romanas nos domínios da edução e da transmissão por herança da propriedade, decerto que não houve nenhum movimento pelos direitos da mulher na Antiguidade. Muitas (embora não todas) das primeiras-damas romanas aqui tratadas nunca teriam merecido a atenção da história se não tivesse sido através dos homens com que casaram ou dos filhos que trouxeram ao mundo, e as suas biografias foram invariavelmente construídas na sombra e como reflexo das dos seus parentes masculinos. Um dos principais enigmas para o historiador atual das mulheres da Roma antiga é o facto de não ter sobrevivido no registo histórico um único escrito de autoria feminina, muito menos de uma mulher da família imperial, com exceção de trechos muito fragmentários de poesia, caligrafia e graffitis. Enquanto OPTEJBTEFIPKFBTNVMIFSFTQPMÓUJDBTQPEFNDPODFEFSFOUSFvistas ou redigir memórias para repor a verdade das suas vidas, a única autobiografia feminina conhecida da antiguidade, escrita pela mãe de Nero, Agripina Menor, tombou a dado momento EPTFVQFSDVSTPTPCBTHBSSBTDFOTØSJBTEBIJTUØSJBKVOUBNFOUF com eventuais outras obras de mulheres que podem ou não ter existido em tempos. Os homens da Antiguidade, tal como as mulheres, foram também vítimas de tais acidentes e sabotagens literárias – os escritos de Cláudio, por exemplo, não chegaram até nós, obras que poderão ter exercido uma influência inibidora no veredicto popular de que o quarto imperador de Roma foi uma figura incapaz e ridícula7. Contudo, a cortina de silêncio sistematicamente imposta às vozes das mulheres da história antiga reflete os preconceitos mais genéricos relativos às mulheres, e o valor ou a premência de saber delas em primeiro lugar. Em consequência, nunca conseguimos ver as mulheres da Antiguidade a não ser por intermédio dos olhos daqueles que muitas vezes escreveram acerca delas décadas, ou até mesmo séculos, após as suas mortes e que, em geral, estavam menos interessados nelas 26 as mulheres dos césares como indivíduos do que como atores secundários e de apoio nas narrativas das vidas dos seus parentes masculinos. É, contudo, possível, que o maior de todos os dilemas resida em traçar um rumo através do acidentado terreno literário de que dependemos para a grande maioria das nossas ideias acerca das mulheres imperiais de Roma. Como optar, por exemplo, entre as versões contrastantes de Lívia que coexistem nas descrições QPVDPMJTPOKFJSBTRVFEFMBTÍPGFJUBTDPNPSVGJBJOTVCNJTTBQFMP HSBOEFIJTUPSJBEPSSPNBOPoFDSÓUJDPGFSP[EPTKVMPDMBVEJBOPT – Tácito, a adulação manhosa que lhe dirige o poeta Ovídio, mostrando-a como uma matrona casta com a beleza de Vénus, e a apreciação da sua estoica força de espírito face ao luto pelo filósofo Séneca? As fontes antigas constituem muitas vezes um desconcertante e frustrante nó górdio de contradição, apostas múltiplas, intriga, insinuação e mudança de assunto. De resto, eles não partilham connosco as preocupações biográficas, como as relativas ao desenvolvimento do caráter e a motivação psicológica, algo que é particularmente verdadeiro no caso das suas descrições de personagens femininas. Em lugar disso, tendem a retratar as suas figuras em cores rudes, superficiais e primárias, classificando-as por «tipos» morais em que são arrumadas como em pombais – por exemplo, como madrastas conspiradoras (Lívia, Agripina Menor e, em certa medida, a mulher de 5SBKBOP 1MPUJOB QFSUFODFSJBN B FTUB DBUFHPSJB PV NVMIFSFT pérfidas (a irmã de Augusto, Octávia, ou a primeira mulher de Nero, Cláudia Octávia)8. Confrontados com tais dilemas, há a tentação de escolher que partes das histórias relativas às mulheres da Antiguidade soam mais plausíveis – usando normalmente como pedra de toque o facto de parecerem menos tétricas – e recorrer depois à psicanálise e à intuição para preencher o restante. Todavia, a tarefa de decidir definitivamente que elementos destes esboços crus de personagens são verdadeiros e quais são falsos é, na maioria dos casos, um empreendimento votado ao fracasso. Nenhum historiador dispõe de uma antena privilegiada para o passado e seria Annelise Freisenbruch 27 desonesto pretender que podemos servir de ventríloquos para estas mulheres, na ausência das suas próprias vozes e de outros elementos das suas vidas. Este livro não pretende fazê-lo, nem se assume como uma «biografia» dessas mulheres em nenhum dos sentidos convencionais – não consegue penetrar nas suas cabeças, não pode proporcionar-nos um guia alfabético completo das suas vidas9. Em lugar disso, é necessária uma abordagem agnóstica da vastidão eclética de opções narrativas e protótipos de primeira-dama romana com que nos confrontamos. E é precisamente a sensação de se estar a combater um distúrbio de personalidade múltipla histórico, quando se trata de determinar a verdadeira mulher romana por detrás das máscaras e caricaturas dos seus antigos retratos, que constitui efetivamente a chave para a nossa compreensão do seu lugar na sociedade romana. Defendo a tese de que as identidades das primeiras-damas romanas aparentam ser tão fluidas, contraditórias e contenciosas por terem sido ditadas pela agenda e reputação políticas do imperador com quem foram casadas ou de que eram parentes, bem como pela reação crítica ao seu reinado. Em geral, os imperadores pretendiam QSPKFUBSEFTJNFTNPTBJNBHFNEFIPNFOTGPSUFTEFGBNÓMJBF as suas parentes femininas seriam apresentadas como embaixadoras da boa vontade e modelos de decoro familiar, escorando essa imagem. É óbvio, porém, que nas mãos dos inimigos de um imperador ou de uma dinastia posterior empenhada em cortar laços e extinguir as memórias dos seus predecessores, a representação da sua mulher poderia ser radicalmente diferente. É por isso que a minha utilização da expressão «primeira-dama» no texto do livro parece apropriada. Trata-se em parte de pactuar com a descrição de Lívia, em mais de uma ocorrência na literatura da Antiguidade, como femina princeps – uma versão feminizada do título escolhido pelo seu marido Augusto, princeps, que significa «cidadão principal» ou «primeiro» –, que em tradução livre será «primeira-dama»10. Mas incita também a atentar nas similaridades inelutáveis, e por vezes desconcertantes, 28 as mulheres dos césares entre os papéis-chave desempenhados por essas mulheres da Roma antiga e as suas congéneres políticas atuais no «comércio» de uma imagem doméstica dos seus maridos – visto continuar a ser mais habitual tratar-se de maridos do que de mulheres – KVOUPEPTFVQÞCMJDPBPNFTNPUFNQPRVFDPOUSJCVFNQBSBB promoção da sua agenda política, como defendo que fizeram Lívia e as suas pares romanas. Veremos então, por exemplo, como as mulheres individuais dos imperadores romanos foram louvadas por posições como a de adotarem uma atitude acessível e aberta para com os seus TÞCEJUPTTBDSJGJDBOEPWFTUVÈSJPFCFOTQBSBBKVEBSFNBBOHBriar fundos para o exército romano e cultivando um estilo de vida frugal, tudo em prol da imagem do imperador reinante. Se tivermos em conta algumas das mulheres para as quais foi inicialmente cunhada a expressão «primeira-dama», veremos tais ações exemplares a ecoarem ao longo das eras exatamente com o mesmo propósito. Exemplificando: a primeira mulher presidencial dos Estados Unidos, Martha Washington, iniciou a tradição muito imitada de abrir a residência oficial a visitantes em certos dias, um gesto adequado da parte da mulher de um dos pais fundadores e republicanos da América; Edith Wilson leiloou a lã de um rebanho de ovelhas de Shropshire e doou o produto das vendas para o esforço da I Guerra Mundial durante a presidência do marido, Woodrow; e Michelle Obama seguiu as eficazes pisadas da filha de Andrew Johnson, Martha Johnson Patterson, e de Lucy, mulher de Rutherford B. Hayes – a primeira das quais fez pastar vacas leiteiras no relvado da Casa Branca e a segunda conservou os recibos do seu vestuário para serem inspecionados oBPQMBOUBSVNBIPSUBVNBQFSTQJDB[KPHBEBQPMÓUJDBOPTUFNpos de consciência ecológica e economicamente perigosos em que o marido foi empossado. Reciprocamente, tal como certas imperatrizes romanas foram arrasadas como perdulárias ou acusadas de interferirem na política pelos adversários dos maridos, críticas análogas assediaram muitas das primeiras-damas modernas. Mary Lincoln e Nancy Annelise Freisenbruch 29 Reagan acabaram ambas numa situação difícil devido ao seu pródigo despesismo – a primeira pelas contas de vestuário por pagar, numa altura em que as famílias choravam os parentes perdidos na Guerra Civil americana; a segunda quando foi anunciada, logo no princípio do primeiro mandato do marido, a aquisição de novos serviços de porcelana para a Casa Branca num valor superior a 200 mil dólares, na véspera de a administração anunciar uma redução nos padrões nutricionais dos programas das cantinas escolares. Numa ilustração de como estereótipos positivos e negativos podem ser associados à mesma primeira-dama, Michelle Obama é apenas a mais recente numa longa sucessão de mulheres de presidentes que fizeram pôr cabelos em pé por expressarem estridentes opiniões políticas pessoais, conduzindo, no seu caso, ao culto do lado mais suave de «Mamã-suprema», a fim de não criar o risco de alienar os eleitores de tendência conservadora11. Muito embora as consortes políticas antigas e NPEFSOBT TFKBN JORVFTUJPOBWFMNFOUF NVOEPT TFQBSBEPT FN termos das oportunidades políticas e sociais que lhes estão abertas, os modelos de feminilidade que foram transmitidos ao longo das épocas permanecem em muitos aspetos imutáveis. Este livro inicia-se na véspera da era imperial, precisamente quando o marido de Lívia, Augusto, estava prestes a tornar-se o primeiro imperador de Roma e ela a sua primeira imperatriz, e prossegue na senda de uma seleção de mulheres que sucederam a Lívia nesse papel desde o século i ao v, culminando na morte de uma das últimas imperatrizes de Roma, Gala Placídia. Nem todas as mulheres imperiais desse longo período histórico podem aqui ser incluídas, mas optei por me concentrar naquelas relativamente ËTRVBJTTPCSFWJWFVVNBUSBEJÎÍPNBJTSJDBFDVKBTCJPHSBGJBTTÍP mais importantes no desenrolar narrativo da história de Roma. As mulheres imperiais constituem o ponto fulcral da maioria dos capítulos, mas, em muitos casos, as filhas, irmãs, mães e outros membros femininos da família dos imperadores desempenham um papel analogamente destacado – tal como de facto desempenharam no decurso da história das primeiras-damas americanas, 30 as mulheres dos césares nomeadamente no século xix, quando as sobrinhas, irmãs e noras de um presidente eram muitas vezes chamadas a atuar como consortes substitutas e anfitriãs na Casa Branca, devido à relutância da própria mulher do presidente em fazê-lo12. Olhar retrospetivamente para o passado pode muitas vezes ser como espreitar através de uma vidraça coberta de gelo, para lá da qual formas e cores indistintas se deslocam num movimento arrastado. Tal é, em grande medida, a experiência de tentar vislumbrar o mundo das mulheres de Roma. No entanto, por vezes as imagens e as formas aproximam-se mais da vidraça, entram no campo de focagem, levam-nos a esforçar mais a vista OPOPTTPEFTFKPEFBTQFSDFDJPOBSDPNDMBSF[B5PEPTUFNPTPT nossos anseios para satisfazer neste olhar, um sentimento de necessidade de estabelecer contacto com o passado, de nos colocarmos onde em tempos alguém esteve, de tocar algo que ela ou ele certa vez tocaram. Nunca poderemos saber exatamente quem eram as «verdadeiras» Lívia, Messalina, Agripina e companhia, o que pensavam, o que sentiam, se eram realmente tão sinistras ou santas quanto as pintaram. Isto, porém, nunca pode abafar o arrepio que sentimos nos momentos de descoberta que parecem aproximar-nos delas um torturante passo mais: os restos mortais cremados de alguns dos escravos que em tempos dobraram as vestes de Lívia e lhe serviram o cálice do seu vinho tinto favorito; a casa ricamente decorada em que Júlia, a desgraçada filha de Augusto, viveu em tempos; a boneca articulada de marfim com que uma rapariga criada na casa imperial poderá em temQPTUFSCSJODBEPPVVNBDBSUBFTDSJUBQPSVNKPWFNJNQFSBdor romano, a recordar longos serões de conversa com a mãe, estando ela sentada aos pés da sua cama. É em momentos como estes, associados à nossa vontade crescente de refletir sobre o papel vital desempenhado pelas mulheres no grande palco de Roma, que o busto pálido e de olhos vazios do museu recomeça a voltar à vida. Capítulo I Ulisses de Vestido Produção de uma Primeira-dama Romana A característica da nação romana era a magnificência: as suas virtudes, os seus vícios, a sua prosperidade, os seus infortúnios, a sua glória, a sua infâmia, a sua ascensão e queda, tudo foi igualmente grandioso. Até mesmo as mulheres, desprezando os limites que a barbárie e a ignorância haviam consignado ao seu sexo noutras nações, imitaram o heroísmo e a ousadia do homem. Mary Hayes, Female Biography, vol. 2 (1801) As labaredas pareciam ter irrompido do nada, surpreendendo BRVFMFTRVFGPSBNBQBOIBEPTOBTVBUSBKFUØSJBFDFJGBOEPVN rasgão através dos olivedos e pinhais de Esparta. Enquanto as línguas de fogo se encrespavam no ar noturno, inundando-o com o odor acre da seiva ardente, os ruídos secos dos ramos crepitantes entremeavam-se com gritos de pânico e um arfar pesado. Um homem e uma mulher apressavam-se por entre uma floresta incendiada. A marcha era perigosa: a dada altura, o cabelo da mulher e a bainha roçagante do seu vestido ficaram chamuscados, mas não havia tempo para examinar os danos. As forças iniNJHBTFTUBWBNMIFTNFTNPOPFODBMÎPFKÈPTBTTFEJBWBNIBWJB algum tempo. Semanas antes, o casal fugitivo e os seus companheiros de viagem quase haviam sido intercetados ao tentarem embarcar secretamente num navio no porto de Nápoles, com o pranto recalcitrante do seu bebé quase a deitar tudo a perder. O nome do homem era Tibério Cláudio Nero, e ela era a sua mulher de dezassete anos, Lívia Drusila2. Estava-se no ano 41 antes de Cristo. Três anos antes, o assassínio do ditador Júlio César por dissidentes que tinham agido 32 as mulheres dos césares em nome da liberdade mergulhara a república romana na guerra civil, dividindo a elite das suas classes dominantes em dois campos ferozmente opostos: os que apoiavam os assassinos Bruto e Cássio e os que apoiavam os paladinos autonomeados de César, nomeadamente o seu sobrinho-neto de dezoito anos, agora designado herdeiro, Gaio Octávio, mais conhecido como 0DUBWJBOPFPTFVUFOFOUF.BSDP"OUØOJP&NDPOKVOUPDPNP ex-cônsul Marco Lépido, estes autoproclamados mosqueteiros haviam constituído um frágil acordo de partilha tripartida do poder, conhecida como Triunvirato, e trataram de esmagar Bruto e Cássio na batalha de Filipos em outubro de 42 a. C. No entanto, Octaviano e António depressa entraram em desavença e a elite romana viu-se obrigada a declarar mais uma vez a sua lealdade, desencadeando confrontos violentos entre as fações adversárias em Itália um ano mais tarde, confrontos esses que obrigaram o nobre Tibério Nero, que optara pelo partido de "OUØOJPFBTVBKPWFNNVMIFS-ÓWJBBMBOÎBSFNTFOBTVBEFTFTperada fuga. Estava agora em curso uma contagem decrescente de dez anos, com todos os partidos a convergirem na batalha de Ácio, em 31 a. C., a grande batalha naval em que Marco António, financiado pela sua amante egípcia, Cleópatra, se defrontaria com Octaviano para decidir o destino do império romano de uma vez por todas. No início do primeiro ato deste magnífico drama, Lívia Drusila era apenas uma figurante na multidão, uma personagem invisível numa sociedade em que a poucas mulheres era consentido adquirirem nome como figuras públicas. Porém, PT BDPOUFDJNFOUPT EP TFHVOEP BUP FN RVF P IPNFN DVKBT tropas a perseguiam por Esparta substituiu Tibério Nero como seu marido, alcandoraram-na ao estatuto de atriz principal e, na altura em que a peça alcançou o seu grandioso final, Lívia estava prestes a tornar-se primeira-dama da era imperial OBTDFOUFFBNÍFGVOEBEPSBEBEJOBTUJBKVMPDMBVEJBOBRVFB inaugurou. Tendo sido provavelmente a mais poderosa, e sem dúvida uma das mais controversas e formidáveis mulheres que Annelise Freisenbruch 33 alguma vez desempenharam aquele papel – o neto Calígula veio depois a apodá-la de Ulixes stolatus (Ulisses de vestido), uma referência híbrida ao guerreiro grego conhecido pela sua astúcia e ao vestido stola usado pelas matronas romanas de classe elevada –, Lívia foi o modelo pelo qual todas as subsequentes mulheres de imperadores romanos teriam de se medir3. Nenhuma mulher viria a condensar melhor do que ela as artimanhas e os paradoxos associados a ser-se uma mulher romana na vida pública. Ao contrário da sua congénere egípcia Cleópatra, relativamente a quem se viu forçada a aceitar um lugar de segundo plano, tanto ao longo da década seguinte como na memória histórica, Lívia Drusila não foi educada para o cargo de dinasta imperial, mas também não era alheia à classe dirigente política romana. Nascida a 30 de Janeiro de 58 a. C., na distinta família patrícia dos Cláudios, que se gabavam de ser descendentes do refugiado de guerra troiano Eneias, um dos fundadores míticos da raça romana, Lívia tinha catorze anos quando o assassínio de Júlio César a 15 de Março de 44 a. C. desencadeou uma guerra civil entre a elite romana4. O clã claudiano, do qual descendia pelo lado paterno – a mãe, Alfídia, era de uma família de classe alta, mas menos aristocrática, natural da cidade costeira italiana de Fundi –, fora uma presença de peso no panorama político desde os primeiros dias da república romana, no século v a. C., alardeando nada menos do que vinte e oito consulados, cinco ditaduras e seis triunfos (honras públicas atribuídas aos generais bem-sucedidos). Uma ligação adicional, através do pai, era com a ilustre família liviana, de que um dos membros, Marco Lívio Druso, fora um herói populista para comunidades italianas que clamavam pela cidadania romana no começo do século i a. C.56NBMJOIBHFNUÍPCSJMIBOUFNBSDPVBKPWFN-ÓWJBDPNP um grande trunfo matrimonial para qualquer aspirante ao poder político e, apropriadamente, apresentou-se um pretendente de sucesso no ano 43 a. C.6. 34 as mulheres dos césares Tibério Claúdio Nero, ele próprio membro de um ramo um pouco menos elevado do clã claudiano, era da mesma argamassa política do abastado pai de Lívia, Marco Lívio Druso Cláudio, que daria por si, um ano mais tarde, do lado derrotado de Filipos. Descrito numa carta pelo grande estadista romano Cícero DPNPjVNKPWFNEFOBTDJNFOUPOPCSFUBMFOUPTPFDPNBVUPdomínio», Tibério Nero gozara de uma ascensão relativamente auspiciosa pela escada romana do progresso ao longo dos anos 40, detendo primeiro a questura e depois a pretoria, um degrau abaixo da mais elevada posição política possível, a de cônsul7. Tendo gozado de algum favor durante o reinado de Júlio César, DVKBGSPUBDPNBOEPVDPNÐYJUPEVSBOUFB(VFSSB"MFYBOESJOB trocou ainda assim de alianças no rescaldo do assassínio de César, optando, tal como o seu futuro sogro, por apoiar os assassinos Bruto e Cássio, mas transferindo posteriormente as suas lealdades, uma vez mais, agora para Marco António. A hierarquia política de Roma estava ainda desordenada na sequência da morte de Júlio César quando Tibério Nero, frusUSBEP EF VN EFTFKP BOUFSJPS FN B $ EF EFTQPTBS B GJMIB de Cícero, Túlia, optou antes pelo matrimónio com uma mulher do seu clã, Lívia, que com quinze anos era provavelmente vinte anos mais nova do que ele, uma diferença de idades habitual em casais da sociedade romana8. O mais provável é que o casamento tivesse sido combinado pelo pai de Lívia, embora as mães romaOBTQVEFTTFNDPNPÏFWJEFOUFUFSBMHVNWPUPOFTTFTBSSBOKPT matrimoniais – a união da primeira escolha para noiva de Tibério Nero, Túlia com o seu terceiro marido Dolabela, por exemplo, foi facilitada pela sua mãe, Terência, com a resignada aceitação de Cícero9. No entanto, legalmente, quase todas as mulheres romanas, com a exceção das seis sacerdotisas vestais virgens RVFDVJEBWBNEPMBSEBEFVTB7FTUBFTUBWBNTVKFJUBTËBVUPSJdade total do pai, ou paterfamilias, enquanto ele fosse vivo e, do século i a. C. em diante, a maioria permanecia ainda sob a autoridade paternal, mesmo após o casamento. Isto sucedia devido ao aumento de casamentos sem manus (tendo aqui manus o sentido Annelise Freisenbruch 35 de possessão ou poder). Por outras palavras, tratava-se de casamentos em que uma mulher e, mais importante, o seu dote sob BGPSNBEFEJOIFJSPFQSPQSJFEBEFQFSNBOFDJBTPCBKVSJTEJção legal do pai e não do marido. Tais disposições tornaram-se OPSNBHSBÎBTBPEFTFKPEFDMÍTBCBTUBEPTDPNPPTEF-ÓWJBFN conservarem as suas propriedades intactas e preservarem a integridade das suas famílias ao não permitirem que os seus membros passassem a ser controlados por outros paterfamilias10. Uma rapariga na posição de Lívia teria sido tecnicamente livre para recusar o casamento, mas só se tivesse podido provar que a escolha do seu pai para noivo era um homem de mau caráter, uma opção que provavelmente poucas raparigas se sentiam capazes ou propensas a aproveitar. O casamento era a única ocupação respeitável para uma mulher romana livre, mas era tamCÏNPVOUPFBDPMBEBIJFSBSRVJBQPMÓUJDBEF3PNB6NBKPWFN aristocrata como Lívia, que dispunha de poucas oportunidades de travar conhecimento com homens ou mulheres fora do seu restrito círculo familiar, podia esperar casar-se mais do que uma vez durante a sua vida, numa cultura de elite em que o matrimónio não era tanto uma união romântica como um facilitador de alianças sociais e políticas entre famílias ambiciosas, alianças que bem podiam assentar em areias movediças11. Na véspera do seu sumptuoso casamento de alta sociedade, -ÓWJBUFSJBTJEPTVCNFUJEBBPQSJNFJSPEFVNDPOKVOUPEFQSPcedimentos cerimoniais que simbolizavam a sua graduação da infância para a idade adulta e a sua transição da casa do pai para a do marido. Uma noiva romana punha de lado as suas coisas infantis – os brinquedos e a toga em miniatura que usara BPMPOHPEBJOGÉODJBoFUSBKBWBVNWFTUJEPEJSFJUPEFMÍCSBODB (tunica recta) que ela própria tecera num tear especial. No dia seguinte, esta simples túnica branca nupcial era cingida à cintura DPNVNDPSEÍPEFMÍDVKPDPNQMJDBEPOØIFSDVMBOPBDBCBSJB por ser desfeito pelo marido. Os seus longos cabelos, que teriam sido confinados durante a noite numa rede amarela, eram penteados num estilo austero que implicava a peculiar utilização de 36 as mulheres dos césares um dardo afiado para separar o cabelo em seis tranças bem apertadas antes de serem fixas com fitas de lã12. O noivo e os convidados chegavam tipicamente a casa do pai da noiva durante a tarde. Apesar de os casamentos romanos não serem de formato religioso, tinham lugar vários gestos cerimoniais durante o dia, incluindo o sacrifício de um porco para garantir bons presságios para a união. Eram trocadas palavras de consentimento entre o casal e o casamento ficava selado quando uma convidada casada, ou pronuba, pegava nas mãos direitas da noiva e do noivo e as unia. Poderia ser testemunhado e assinado um contrato e o casal era brindado com a saudação Feliciter («Boa sorte»); um banquete matrimonial precedia então a escolta final da noiva até ao seu novo lar, para onde PNBSJEPKÈTFFODBNJOIBSBBGJNEFMÈBBHVBSEBS1PEFNPT imaginar a cena enquanto os sons distantes de canções ecoavam pela cidade, escutando-se logo acima do tráfego pedestre do entardecer e do palrar dos negociantes que encerravam as suas MPKBTBPBOPJUFDFS"TFSQFOUFBSQPSVNDBNJOIPEFOTBNFOUF aromatizado com tochas de resina de pinheiro a arder, flautistas tocavam enquanto a multidão rouca, bem estimulada pelo banquete de casamento que acabara de deixar, avançava trôpega em grande euforia, a entoar os refrães nupciais de «Hymen Hymenae!» e «Talasio!» e atirando punhados de nozes para as crianças em correria e residentes locais curiosos que haviam vindo ver a procissão passar. No meio da amálgama, o vistoso véu nupcial de Lívia, ou flammeum, cor de gema de ovo, resplandecia como um farol na FTDVSJEÍPEJTQPTUPTPCSFVNBDPSPBEFWFSCFOBFNBOKFSPOB Pantufas (socci) amarelas a condizer, talvez bordadas com pérolas, a aparecerem e a desaparecerem por debaixo da sua túnica cintada enquanto era arrastada por dois rapazinhos que lhe pegavam nas mãos, escolhidos entre a prole de amigos casados da família como mensageiros de esperança das crianças que ela traria um dia ao mundo. Um terceiro rapaz caminhava à frente com uma tocha e, em lugar de um bouquet, eram levados por Annelise Freisenbruch 37 ela através do caminho um fuso e uma roca, símbolo dos seus novos deveres domésticos. Não obstante a presença destes símbolos inócuos da vida respeitável de casados, a atmosfera abundava em humor irreverente, mas bem-intencionado, e tinha de se aguentar o desafio das brincadeiras maliciosas e das canções carregadas de insinuações até a noiva conseguir chegar à casa marital. Quando finalmente a escolta ruidosa de Lívia a entregou na porta de Tibério Nero, ela encontrou-a engrinaldada de flores colocadas pelo noivo que a aguardava. Conforme de si se esperava, untou cerimoniosamente as ombreiras da porta com gordura animal e fixou nela meadas de lã por cardar, rituais que visavam garantir abastança e prosperidade para si e para o seu novo marido. Por fim, foi cuidadosamente levantada por sobre BTPMFJSBQFMPTTFVTKPWFOTBVYJMJBSFTNBTDVMJOPT&SBOFDFTTÈria cautela, pois uma noiva tropeçar ao ser admitida através da entrada na casa do seu novo marido era considerado um mau presságio. Uma vez lá dentro, depois de ser presenteada com PGFSUBTEFGPHPVNBUPDIB FÈHVBOVNKBSSPPVCBDJB QFMP marido, a simbolizar a sua responsabilidade de mulher em cozinhar, limpar e supervisionar os assuntos domésticos, era levada por outra mulher casada para o seu novo aposento, antes de aí admitir o noivo para que se desse a consumação13. O estatuto de Lívia como noiva adolescente era completamente normal. As raparigas de classe alta na república romana tardia tinham tipicamente o seu primeiro casamento nos primeiros anos da adolescência, por vezes logo aos doze. Tirava-se assim partido dos seus anos mais férteis, numa era em que a taxa de mortalidade infantil era elevada. Ter filhos, o ativo pelo qual as mulheres romanas eram publicamente mais valorizadas, era um imperativo para uma mulher na posição de -ÓWJB"FTUFSJMJEBEFDVKBDVMQBFSBJOWBSJBWFMNFOUFBUSJCVÓEBË mulher e nunca ao marido, podia constituir fundamento para o divórcio. Não é de surpreender que 16 de novembro de 42 a. C. TFKBBEBUBEPQSJNFJSPBQBSFDJNFOUPEF-ÓWJBOBDSPOPMPHJB romana, com a documentação oficial relativa ao nascimento 38 as mulheres dos césares EP TFV GJMIP NBJT WFMIP 5JCÏSJP P SBQB[ DVKPT HSJUPT NBJT tarde, quase denunciaram os pais quando se evadiam através da cidade-estado grega de Esparta e que viria um dia a tornar-se imperador de Roma14. O nascimento de Tibério teve lugar em casa, no monte Palatino, o bairro residencial mais exclusivo de Roma. Graças ao seu acesso imediato ao fórum romano, o centro da cidade, e às suas associações sagradas com momentos-chave do passado mítico de Roma, como o nascimento dos gémeos fundadores da cidade, Rómulo e Remo, o Palatino era o domicílio ideal para um político ambicioso como Tibério Nero. Um verdadeiro Quem é Quem entre os reformadores e agitadores republicanos tardios, tinham-no também escolhido como sua base, desde Cícero a Octaviano e Marco António, e é provável que a própria Lívia ali tivesse crescido na casa do seu pai15. A maternidade era algo escrutinado de perto nas mulheres do mundo romano. Desde o momento da conceção até à amamentação e estádios de desmame, era oferecida às futuras mães uma torrente de conselhos, alguns baseados nas teorias de médicos respeitados, outros enraizados na charlatanice supersticiosa. Disse-se que, antes da chegada do bebé Tibério, a própria Lívia terá empregue várias técnicas antigas das mulheres para tentar garantir o nascimento de um rapaz, incluindo a incubação de um ovo de galinha entre as mãos, conservando-o quente nas pregas do vestido, onde acabaria por chocar um galito de crista orgulhosa, em hipotética premonição de um bebé do sexo masculino16. Os conselhos mais pragmáticos, embora igualmente não científicos, de peritos médicos como Sorano, que os escreveu alguns anos depois, no século ii, recomendavam que a melhor altura para a conceção era perto do final da menstruação e depois de uma refeição ligeira e de uma massagem. Os partos em casa eram a única variedade praticada, e as parturientes abastadas, como Lívia, eram assistidas num aposento cheio de mulheres, incluindo várias parteiras, mantidas entre o pessoal permanente das casas mais ricas. Os maridos não