Protocolos de Microbiologia Clínica Urocultura Parte 3 Carlos Henrique Pessôa de Menezes e Silva Doutor em Microbiologia Microbiologista do Centro Tecnológico de Análises (CETAN), Vila Velha-ES Consultor em Microbiologia do Laboratório Landsteiner, Vitória-ES : [email protected] Introdução A infecção sintomática do trato urinário (ITU) situa-se entre as mais freqüentes infecções bacterianas do ser humano, figurando como a segunda infecção mais comum na população em geral, predominando entre os adultos em pacientes do sexo feminino. Nas crianças, particularmente no primeiro ano de vida, a infecção urinária também é muito comum, predominando igualmente no sexo feminino; nesta população de pacientes pediátricos, predomina a pielonefrite, recorrente na maioria dos casos, devido à presença de refluxo vésico-ureteral, uni ou bilateral. Definição A infecção urinária pode comprometer somente o trato urinário baixo, o que especifica o diagnóstico de cistite, ou afetar simultaneamente o trato urinário inferior e o superior; neste caso, utilizase a terminologia infecção urinária alta, também denominada pielonefrite. A infecção urinária baixa ou cistite pode ser sintomática ou não. As infecções do trato urinário podem ser complicadas ou não complicadas, as primeiras tendo maior risco de falha terapêutica e sendo associadas a fatores que favorecem a ocorrência da infecção. A infecção urinária é complicada quando ocorre em um aparelho urinário com alterações estruturais ou funcionais. Habitualmente, as cistites são infecções não complicadas enquanto as pielonefrites, ao contrário, são mais freqüentemente complicadas, pois em geral resultam da ascensão de microrganismos do trato urinário inferior e estão freqüentemente associadas com a presença de cálculos renais. Tanto a infecção urinária baixa como a alta podem ser agudas ou crônicas e sua origem pode ser comunitária ou hospitalar. 132 Epidemiologia A maior suscetibilidade à infecção no sexo feminino é devida às condições anatômicas: uretra mais curta e sua maior proximidade com a vagina e ânus. Outros fatores que aumentam o risco de ITU nas mulheres incluem: episódios prévios de cistite, o ato sexual, o uso de certas geléias espermicidas, a gestação e o número de gestações, o diabetes (apenas no sexo feminino) e a higiene deficiente, mais freqüente em pacientes com piores condições socioeconômicas e obesas. No adulto do sexo masculino, favorecem a ITU a instrumentação das vias urinárias – incluindo-se o cateterismo vesical – e a hiperplasia prostática; nos idosos e em indivíduos hospitalizados, as taxas de ITU também são elevadas pelos fatores citados e por inúmeros outros, relacionados àquela faixa etária. As taxas de ITU são bem maiores nos homossexuais masculinos, estando relacionadas com a prática mais freqüente de sexo anal não protegido. A infecção do trato urinário baixo (cistite), quando sintomática, exteriorizase clinicamente pela presença habitual de disúria, urgência miccional, polaciúria, nictúria e dor supra-púbica. Febre, neste caso, não é comum. Na anamnese, a ocorrência prévia de quadros semelhantes, diagnosticados como cistite, deve ser valorizada. O aspecto da urina pode também trazer informações valiosas: urina turva (pela presença de piúria) e/ou avermelhada (pela presença de sangue), causada por cálculo e/ou pelo próprio processo inflamatório. A infecção do trato urinário alto (pielonefrite), que habitualmente se inicia como um quadro de cistite, é habitualmente acompanhada de febre (geralmente > 38oC), de calafrios e de dor lombar, uni ou bilateral. Esta tríade febre + calafrios + dor lombar está presente na maioria dos quadros de pielonefrite. A dor lombar pode se irradiar para o abdômen ou para o(s) flanco(s) e, mais raramente, para a virilha, situação que sugere mais fortemente a presença de cálculo, com ou sem infecção, na dependência da presença dos outros sintomas relacionados. Os sintomas gerais de um processo infeccioso agudo podem também estar presentes e sua intensidade é diretamente proporcional à gravidade da pielonefrite. A maioria dos pacientes com pielonefrite refere história prévia de cistite, geralmente detectada nos últimos seis meses. As infecções agudas em pacientes sem cateter são freqüentes, sobretudo, em mulheres e resultam em milhões de consultas e internações em todo o mundo. Estas infecções se apresentam em cerca de 1-3% dos jovens em idade escolar e depois sua incidência aumenta ao ser iniciada a atividade sexual na adolescência. A maioria das infecções sintomáticas agudas é observada em mulheres jovens e é, comparativamente, rara em idosos maiores de 50 anos. A bacteriúria assintomática é mais freqüente nos idosos acima de 65 anos, sejam homens ou mulheres. Os microrganismos mais freqüentemente envolvidos nas ITU incluem bactérias da família Enterobacteriaceae. O agente causal de ITU mais freqüente é a Escherichia coli, a qual está associada a aproximadamente 80% de todas as ITUs ambulatoriais e também é responsável por uma grande porcentagem de infecções urinárias em pacientes hospitalizados. Outros membros desta família que também são geralmente encontrados como agentes causais de ITU incluem Klebsiella, Proteus e Enterobacter. Enterococcus faecalis e NewsLab - edição 88 - 2008 Contagem (UFC/mL)1 Critério segundo a leucocitúria no sedimento (leucócitos/campo em aumento de 40x) >9 <9 BS BSp Mulheres > 105 10 a 10 BS NA 103 BS NEG BS BSp BS NEG 4 5 Homens > 105 10 a 10 3 4 cultivo monomicrobiano; BS: bacteriúria significativa (informar espécie e resultado do antibiograma); BSp: provável bacteriúria significativa (informar espécie, antibiograma e considerar, a título de observação, que chama a atenção a escassa reação inflamatória); NA: solicitar nova amostra; NEG: informar ausência de crescimento de microrganismos. 1 Pseudomonas aeruginosa também são geralmente associados a ITU. Staphylococcus saprophyticus é uma causa conhecida de ITU em mulheres, com contagens de colônias geralmente inferiores a 105 UFC/ mL de urina. No quadro acima, a correlação entre a contagem bacteriana e a presença de sintomas para a documentação de infecção urinária em adultos, assim como os critérios para a liberação de uma urocultura monomicrobiana em pacientes adultos. Bacteriúria Assintomática A bacteriúria assintomática (BA) é definida pela presença de uropatógenos com contagens de colônias iguais ou superiores a 105 UFC/mL de urina em mais de dois cultivos sucessivos em um indivíduo assintomático. Tem-se demonstrado que as complicações pósoperatórias (bacteremias) são reduzidas mediante o reconhecimento e tratamento da BA antes da cirurgia urológica e que as mulheres grávidas devem ser investigadas durante o primeiro trimestre e tratadas caso possuam bacteriúria, para diminuir o risco de pielonefrite aguda e de prematuridade. O antibiograma deve dirigir o tratamento. Novas uroculturas devem ser feitas pós-tratamento para que sejam detectadas possíveis bacteriúrias recorrentes. A BA ocorre em cerca de 40% de homens e mulheres idosos, porém, só uma pequena parcela destes pacientes desenvolve infecção sintomática. NewsLab - edição 88 - 2008 Relevância Clínica da Bacteriúria Assintomática Mulheres grávidas: Aproximadamente 30-40% das mulheres grávidas (identificadas no primeiro trimestre e sem tratamento prévio com antimicrobianos) desenvolvem pielonefrite mais tarde na gravidez; na maioria das vezes isto acontece ao término do segundo ou no início do terceiro trimestre. A pielonefrite durante a gravidez normalmente requer hospitalização. Como com qualquer enfermidade febril que ocorre durante a gravidez, a pielonefrite é também associada com trabalho de parto prematuro. A bacteriúria assintomática durante a gravidez na ausência de pielonefrite aguda também pode ser associada com retardamento de crescimento intra-uterino e ruptura prematura de membranas. No entanto, a bacteriúria pode ser apenas uma condição associada em vez de ser a causa destas gestações adversas. A mais eficiente triagem seria obter um espécime de urina para cultura ao término do primeiro ou no início do segundo trimestre (12 a 16 semanas de gravidez). Antes do tratamento, duas culturas de urina com contagem de colônias ≥ 105 UFC/mL do mesmo microrganismo indicariam a presença de uma bacteriúria assintomática. Porém, 1-2% das mulheres grávidas desenvolverão bacteriúria mais tarde durante o curso da gravidez. Culturas de urina devem ser feitas como triagem para bacteriúria na gravidez. Mulheres grávidas com bacteriúria microbiologicamente documentada de- veriam ser tratadas independentemente do grau de piúria. A duração da terapia não é totalmente estabelecida, mas geralmente são recomendados de três a sete dias de tratamento. A terapia deve ser selecionada com base na susceptibilidade antimicrobiana do microrganismo infectante. A seleção de um antimicrobiano apropriado está um pouco limitada pelos efeitos adversos potenciais para o feto. Amoxicilina, nitrofurantoína e cefalosporinas são seguros na gravidez, embora a nitrofurantoína deva ser evitada em mulheres que estão no final da gestação. Apesar de preocupações teóricas de teratogenicidade com trimetoprim, a associação sulfametoxazol + trimetoprim foi usada durante a gravidez em muitos estudos e não houve nenhuma evidência de resultados prejudiciais para o feto. Poderia ser considerada uma droga de segunda linha, embora antimicrobianos que contêm sulfa deveriam ser evitados em mulheres que estão no final da gestação. São contra-indicados quinolonas e macrolídeos durante a gravidez. Uroculturas pós-tratamento devem ser feitas para confirmar a cura. Novas uroculturas devem ser feitas regularmente após a gravidez, pois as mulheres com uma infecção anterior têm risco aumentado de infecção reincidente. A frequência de triagens subseqüentes não foi determinada e nenhuma recomendação definitiva pode ser feita, embora uroculturas mensais possam ser apropriadas. Mulheres não grávidas: Estudos longitudinais em populações diferentes de mulheres não informaram evidência de uma associação entre bacteriúria assintomática e resultados adversos como hipertensão, cicatrização ou falência renal. Portanto, os esquemas terapêuticos não são padronizados para estas pacientes. Diabéticos: Pela frequência aumentada de complicações severas de infecções urinárias, como pielonefrite enfisematosa, bacteremia e abscessos perinefríticos em pacientes diabéticos, foi recomendado mundialmente que a bacteriúria assintomática em diabéticos fosse tratada. Rotina Laboratorial Os procedimentos laboratoriais para a liberação de uroculturas devem ser padronizados pelo laboratório a fim de que 133 Protocolos de Microbiologia Clínica o clínico possa interpretar da forma mais clara possível os resultados obtidos. Sedimento O sedimento de urina, realizado com uma amostra corretamente coletada, é uma ferramenta fundamental para a interpretação da urocultura. Entretanto, a sensibilidade e a especificidade dependem de certos fatores, como o tipo de amostra, o tempo de retenção, o sexo e a idade do paciente, bem como a presença de outras patologias. Considera-se que um sedimento de urina é anormal quando uma gota do centrifugado de 10 mL da amostra contém mais de nove leucócitos por campo em aumento de 400 vezes. Coloração de Gram É bem conhecido que a presença de um ou mais microrganismos por campo de imersão (1000x) na coloração de Gram de uma gota de urina não centrifugada correlaciona-se com um cultivo de mais de 105 UFC/mL. Entretanto, este procedimento carece de sensibilidade, uma vez que estamos trabalhando no limite de detecção do microscópio ótico (1000x) e do método, já que a observação de uma só bactéria seja correlacionada com a presença de mais de 105 UFC/mL. Por outro lado, a presença de microrganismos contaminantes pode, muitas vezes, ser interpretada como um resultado falsopositivo. A coloração de Gram de uma gota de urina não centrifugada constitui, entretanto, um bom método para controle de qualidade do sedimento e da cultura (Figura 1). Além disso, na maioria dos casos, pode ser útil para a documentação de bacteriúria sintomática, com a orientação adicional sobre o tipo de microrganismo envolvido, principalmente quando se trata de amostras de pacien¬tes de alto risco e quando o médico assistente necessita adotar uma terapêutica antimicrobiana precoce. Finalmente, há indicações claras para a realização de uma coloração de Gram da urina: - pacientes que estão recebendo terapia antimicrobiana - pacientes que apresentam sedimento patológico com culturas negativas, para verificar a presença de microrganismos exigentes. Neste sentido, deve-se também realizar uma coloração de Ziehl-Neelsen 134 Figura 2. Semeadura em “esteira” feita com alça calibrada Figura 1. Gram de gota de urina não centrifugada - pacientes com sepsis com ponto de partida urinário Interpretação Todas as amostras de urina encaminhadas ao laboratório de microbiologia devem ser examinadas imediatamente, ou colocadas em geladeira até poderem ser examinadas. Os procedimentos incluem o seguinte: quando não há pedido de E.A.S., deve-se (após a semeadura) centrifugar cerca de 10 mL de urina e examinar o sedimento para observação de leucócitos PMN e células bacterianas, ou então o exame do esfregaço de uma gota de urina (não centrifugada) corada pelo método de Gram deve ser feito. Duas ou mais células bacterianas por campo de imersão em óleo geralmente indicam a presença de infecção. A presença de um ou mais leucócitos PMN por campo de imersão é uma indicação a mais de ITU. Amostras de urina não infectadas evidenciarão normalmente nenhuma ou poucas bactérias ou leucócitos por lâmina. Em amostras de mulheres a presença de muitas células escamosas epiteliais, misturadas ou não a bactérias, é forte evidência de que a amostra está contaminada com microbiota vaginal e é necessário colher outra, a despeito do número de bactérias por campo. Semeadura de rotina Usa-se uma alça calibrada (de platina, níquel-cromo ou plástica) de 1 µL (0,001 mL) para inoculação na placa com meio sólido, preferencialmente através do método de “esteira” (Figura 2). A placa é incubada durante 18-24 horas e o número de colônias é contado. Este número é multiplicado por 1.000 para converter a unidade microlitro em mililitro. O valor obtido indica o número de colônias por mililitro de urina. Por exemplo, se a cultura de urina feita com uma alça calibrada de 1 µL de urina permitiu o crescimento de 145 colônias, a contagem de colônias será 145.000 ou 1,45 x 105 UFC/mL de urina. Para aqueles laboratórios que utilizam alças calibradas de 10 µL (0,01 mL), o resultado final deve ser obtido multiplicando-se por 100 o número de colônias crescidas. Várias combinações de meios de cultura são recomendadas. No entanto, o laboratório deve padronizar aqueles meios que melhor se adequem à sua rotina. Algumas sugestões são dadas a seguir: Ágar CLED (ou Brolacin) 60mm (placas de vidro ou plástico) Ou Ágar CLED (ou Brolacin) 60mm + Ágar Sangue 60mm (placas de vidro ou plástico) Ou Ágar CLED (ou Brolacin) + Ágar Sangue – Biplaca plástica (90mm) Ou Ágar CLED (ou Brolacin) + Ágar E.M.B. Levine (ou MacConkey) – Biplaca plástica (90mm) Ou Ágar Sangue + Ágar E.M.B. Levine (ou MacConkey) – Biplaca plástica (90mm) Ou Meios cromogênicos NewsLab - edição 88 - 2008 Não há uma obrigatoriedade de se usar esta ou aquela combinação de meios na rotina laboratorial de uroculturas. No entanto, deve-se levar em consideração aspectos importantes como: facilidade de aquisição dos meios, custo, tamanho da demanda para este tipo de exame, presença de postos de coleta remotos (há condições de semeadura no local?) etc.. Em nossa rotina, adotamos há vários anos, com bastante sucesso, a seguinte padronização: 1) uroculturas de pacientes hospitalizados: biplaca contendo ágar CLED + ágar MacConkey; 2) uroculturas de pacientes ambulatoriais: monoplaca (60mm plástica) contendo ágar CLED (utilizando alças calibradas de 1 µL). Não recomendamos o uso de biplacas ou placas de 60mm para aqueles laboratórios que utilizam alças calibradas de 10 µL, pois o inóculo é muito maior para um pequeno espaço, geralmente ocasionando crescimento confluente sem colônias adequadamente isoladas. Pode, ainda, ser interessante o emprego de laminocultivos (Figuras 3 e 4), comercialmente disponíveis no mercado com uma grande variedade de combinações, naqueles laboratórios que possuem Figura 3. Laminocultivo para urocultura (face verde: ágar CLED; face vermelha: ágar MacConkey) Figura 4. Laminocultivo para urocultura (1: > 107 UFC/mL; 2: 106 UFC/mL; 3: 105 UFC/ mL; 4: 104 UFC/mL) NewsLab - edição 88 - 2008 postos de coleta remotos (em clínicas e hospitais), pois trata-se de procedimento com maior praticidade, diminuindo consideravelmente a perda de meios de cultura em placa por contaminações e dessecamento. No entanto, devemos salientar que não se aconselha usar este recurso em substituição à metodologia tradicional de semeadura em placas naqueles serviços que não possuem outras unidades a não ser a própria matriz do laboratório. Em primeira vista pode parecer uma boa diminuição de custos, mas devemos sempre lembrar que este recurso é uma adequação da metodologia tradicional e a correlação de sensibilidade e especificidade das duas metodologias ainda não está completamente determinada, haja vista a escassez de publicações científicas a respeito na literatura mundial. A utilização de meios combinados permite uma melhor distinção dos possíveis uropatógenos e também dos contaminantes. Por exemplo, o isolamento de cocos Gram-positivos é claramente evidente quando utilizamos a combinação de um meio não seletivo (como o ágar CLED) em conjunto com um meio seletivo para bacilos Gram-negativos (como o ágar E.M.B. Levine) (Figura 5), do mesmo modo que a identificação do uropatógeno mais frequente em infecções urinárias, a Escherichia coli, é enormemente facilitada com a utilização desta mesma combinação de meios (Figura 6). No entanto, a substituição do ágar CLED pelo ágar sangue nas combinações em biplaca (Figura 7) trata-se de um assunto meramente particular, ou seja, cada microbiologista tem as suas preferências e utiliza o que lhe for mais conveniente. Alguns, no entanto, declaram que, pelo fato do ágar sangue ser mais rico que o ágar CLED, aquele teria preferência para o isolamento de uropatógenos mais exigentes nutricionalmente. Questionados sobre quais seriam estes uropatógenos, muitos, equivocadamente, respondem Enterococcus, Streptococcus agalactiae, S. pyogenes e até Gardnerella vaginalis. Mas sabe-se que os dois primeiros crescem (e muito bem) em ágar CLED e que os dois últimos sequer fazem parte da lista de uropatógenos humanos, talvez sendo responsáveis por menos de 0,1% de todos os episódios de infecção urinária. Figura 5. Biplaca com ágar CLED (1) e ágar E.M.B. Levine (2). Crescimento de um coco Gram-positivo somente no ágar CLED Figura 6. Biplaca com ágar CLED (1) e ágar E.M.B. Levine (2). Crescimento de E. coli em ambos os meios (com brilho metálico no ágar E.M.B. Levine) Figura 7. Biplaca com ágar sangue (1) e ágar E.M.B. Levine (2). Crescimento de E. coli em ambos os meios (com brilho metálico no ágar E.M.B. Levine) Os meios de cultura cromogênicos para o isolamento de uropatógenos, no mercado mundial desde 1989, são excelentes alternativas para se fazer uma adequada urocultura. Em geral estes meios utilizam substratos cromogênicos combinados, sobre uma base nutricionalmente rica, favorecendo a multiplicação dos principais uropatógenos e, ainda, possibilitando o reconhecimento precoce de vários grupos e espécies. Várias formulações diferentes encontram-se no mercado, mas o princípio bioquímico das reações envolvidas quase sempre é 135 Protocolos de Microbiologia Clínica o mesmo: liberação de radicais cromogênicos (coloridos) após a clivagem do seu sal (incolor) por via enzimática. As enzimas bacterianas mais comumente exploradas são: beta-galactosidase (grupo Klebsiella-Enterobacter-Serratia, Enterococcus, E. coli), beta-glicuronidase (E. coli), beta-glicosidase (Enterococcus, grupo Klebsiella-Enterobacter-Serratia) e triptofano-desaminase (grupo Proteus-Providencia-Morganella) (Figura 8). Apesar do avanço tecnológico, o microbiologista prudente não deve negligenciar a metodologia tradicional (e gold-standard), confirmando bioquimicamente a identificação presuntiva dada pelo meio cromogênico. Caso contrário, corre-se um grande risco de liberação incorreta da identificação do uropatógeno. Além disso, o custo-benefício também sempre deve ser levado em consideração, uma vez que a média de positividade em uroculturas geralmente não ultrapassa 40% e as placas de culturas negativas não podem ser reaproveitadas (nestes casos, o custo de uma urocultura negativa é muito superior ao de uma mesma cultura negativa usando-se meios convencionais). Interpretação Toda interpretação deve ser feita em conjunto com outros dados importantes do paciente, tais como: idade, sexo, presença de sintomas clínicos, presença de fatores predisponentes, infecções urinárias anteriores e medicação atual ou prévia (principalmente antibióticos). Há mais de 50 anos, Kass definiu que uma contagem de colônias igual ou superior a 100.000 (105) UFC/mL de urina a partir de amostra colhida assepticamente de pacientes sintomáticos ou assintomáticos era representativa da ocorrência de um quadro de ITU. Entretanto, isso não quer dizer que espécimes contendo menos de 105 UFC/mL de urina não representem uma bacteriúria verdadeira. Alguns pacientes sintomáticos realmente apresentam uroculturas com contagem de colônias inferior a 105 UFC/mL, sendo portanto crítica a liberação da contagem de colônias em todas as uroculturas realizadas pelo laboratório de microbiologia. Até mesmo quando as uroculturas não apresentam crescimento bacteriano, o resultado final deve indicar o que foi 136 Figura 8. Meio cromogênico para urocultura (colônia azul = grupo KES – KlebsiellaEnterobacter-Serratia; colônia pink = E. coli; colônia verde pequena = Enterococcus; colônia amarelada = grupo Proteus-Providencia-Morganella) detectado (por exemplo: urocultura negativa OU ausência de crescimento bacteriano OU contagem de colônias inferior a 1.000 UFC/mL). De uma maneira geral, utiliza-se a seguinte convenção: - acima de 100.000 UFC/mL = indício de infecção - de 10.000 a 90.000 UFC/mL = suspeita de infecção - de zero a 9.000 UFC/mL = sem significado clínico Deve-se mencionar que qualquer isolamento de bacilos Gram-negativos a partir de punção suprapúbica é significativo. Para os cocos Gram-positivos, especialmente estafilococos, somente contagens > 10 3 UFC/mL devem ser consideradas significativas, uma vez que estes microrganismos poderiam ser contaminantes adquiridos da pele durante o procedimento de punção. No caso de pacientes pediátricos, torna-se fundamental estabelecer os critérios de interpretação com base no tipo de amostra e sexo do paciente. Com respeito à punção suprapúbica, sugere-se o mesmo critério utilizado para os pacientes adultos. Outra situação de extrema importância no laboratório de microbiologia é a observação das placas com cultivos mono e polimicrobianos, a saber: • Cultivo monomicrobiano: microbiota única ou predomínio de 90% de um microrganismo em um cultivo misto • Cultivo polimicrobiano: faz-se referência à presença de dois ou mais tipos de germes, com contagens ≥ 105 UFC/mL e em proporções similares. O predomínio de um germe em uma amostra em uma proporção de 90% deve ser assumido como cultivo monomicrobiano. A ITU mista, produzida por dois ou mais germes, é extremamente infreqüente (< 0,3%) em pacientes ambulatoriais não sondados. Por outro lado, este tipo de infecção é mais freqüente nos pacientes sondados internados e em alguns pacientes com determinadas patologias que afetam o trato urinário. Toda ITU polimicrobiana deve ser documentada com, pelo menos, duas amostras, de onde são isolados dois ou mais tipos de microrganismos com contagens ≥ 10 5 UFC/mL de cada. A ausência de reação inflamatória sempre deve despertar a suspeita de uma provável contaminação. Recomendações para o andamento de uroculturas Urinas coletadas por jato médio Quando estas urinas são submetidas à cultura sem informação clínica específica, sugere-se que contagens de colônias < 105 UFC/mL possam também causar infecção somente se um único microrganismo e potencial patógeno for isolado. Prováveis contaminantes são: Streptococcus do grupo viridans, lactobacilos e estafilococos coagulase negativa outros que não sejam identificados como Staphylococcus saprophyticus. a) Contagem de colônias > 105 UFC/mL: Um provável patógeno > 105 UFC/mL: • Identificar quanto à espécie • Realizar o antibiograma • No caso de paciente assintomático solicitar nova amostra, pois pode tratar-se de provável bacteriúria assintomática Um provável contaminante com contagem > 105 UFC/mL (Streptococcus do grupo viridans, lactobacilos e estafilococos coagulase-negativa outros que não sejam Staphylococcus saprophyticus): • Realizar uma identificação limitada. Exemplo: distinguir entre S. saprophyticus de outros estafilococos coagulase negativa ou Streptococcus agalactiae (grupo B) de Streptococcus viridans. Não fazer antibiograma e sugerir nova coleta. • É raro, mas não impossível, ocorrer infecção urinária por bactérias da microbiota da NewsLab - edição 88 - 2008 uretra ou vagina. Para caracterizar infecção do trato urinário há a necessidade de confirmar o achado com nova urocultura e que esteja associada a sintomas. Sintomas e leucocitúria tornam muito provável o diagnóstico. Sem sintomas pode-se tratar de bacteriúria assintomática ou erro de coleta, transporte ou armazenamento da amostra. Dois prováveis patógenos com contagem > 105 UFC/mL com um diagnóstico infecção do trato urinário crônica ou recorrente: • Identificar quanto à espécie • Realizar o antibiograma Dois prováveis patógenos com contagem > 105 UFC/mL com sintomas de infecção do trato urinário: • Identificar quanto à espécie • Realizar o antibiograma • Solicitar nova amostra para confirmação Mais que dois microrganismos com contagem > 105 UFC/mL: • Reportar: “Múltiplos microrganismos presentes; provável contaminação, sugerimos repetir a cultura” b) Contagem de colônias ≤ 105 UFC/mL: Um provável patógeno com contagem 105 UFC/mL: • Para pacientes sob antibioticoterapia, grávidas, recém-nascidos e infecção urinária de repetição, realizar identificação e antibiograma Um potencial patógeno presente com contagem > 102 UFC/mL em mulheres sintomáticas: • Fazer identificação e antibiograma Um potencial patógeno presente com contagem > 10 3 UFC/mL em homens sintomáticos: • Fazer identificação e antibiograma Sem informação clínica: • Descreva o microrganismo presente entre 104 e 105 UFC/mL, com base na morfologia • Entre em contato com o paciente e/ou médico. Solicite informações e/ou a coleta de nova amostra • Caso o contato não seja possível, mantenha a cultura a temperatura ambiente por três dias para possível retomada de identificação, se requerido pelo médico do paciente Um provável contaminante com contagem 105 UFC/mL: • Leucócitos normais: descritivamente NewsLab - edição 88 - 2008 identifique o isolado, comentando que pode se tratar de microrganismo pertencente à microbiota normal; Não realizar o antibiograma • Leucócitos aumentados: solicite nova amostra Dois ou mais microrganismos presentes em < 104 UFC/mL: • Relatar: “Múltiplos microrganismos presentes; provável contaminação, sugerimos repetir a cultura” Urinas coletadas por punção suprapúbica a) Um microrganismo presente: • Fazer identificação e antibiograma b) Três ou mais microrganismos presentes: • Identifique quanto à espécie • Entre em contato com o paciente e/ou médico. Solicite informações e/ou a coleta de nova amostra • Caso o contato não seja possível, mantenha a cultura a temperatura ambiente por três dias para possível retomada de identificação, se requerido pelo médico do paciente c) Sem crescimento (para semeadura de 10 µL): • Examine em até 48 horas de incubação • Reporte “Sem crescimento após 48 h. Teste com sensibilidade de > 102 UFC/mL” Referências Bibliográficas 1. Barnes RC, Daifuku R, Roddy RE, Stamm WE. Urinary-tract infection in sexually active homosexual men. Lancet 1986; 1:171-3. 2. Canbaz S, Peksen Y, Sunter AT. Antibiotic prescribing and urinary tract infection. Int J Antimicrob Agents 2002; 20: 407–11. 3. Carroll KC, Hale DC, Von Boerum DH. Laboratory evaluation of urinary tract infection in an ambulatory clinic. Am J Clin Pathol 1994; 101:100-103. 4. Ewing WH. Edwards and Ewing’s Identification of Enterobacteriaceae. 4ª ed. Elsevier Science Publishing Co., New York, 1986. 5. Fihn SD. Clinical practice. 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