1 O DIREITO DE PROPRIEDADE NOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Carlos Alberto da Silva1 RESUMO A finalidade desse artigo é analisar o direito de propriedade rural nos seguintes tratados internacionais de Direitos Humanos: Declaração Universal de Direitos Humanos e Convenção Americana de Direitos Humanos. O passo seguinte é verificar se tais convenções foram recepcionadas pela nossa Carta Magna de 1988. Além disso, tem-se como um dos eixos centrais deste trabalho a indagação se o direito de propriedade rural é absoluto ou relativo. Essa indagação nasce porque, a partir do século XX, alguns teóricos do direito passam a defender que o direito de propriedade está vinculado à função social. A relevância desse trabalho reside nas seguintes constatações: a) a dimensão do território brasileiro, a qual pode trazer algum benefício social, especialmente na atividade agrícola; b) os dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária – INCRA – demonstram que a titularidade da propriedade rural está concentrada nas mãos de poucas pessoas. O método utilizado neste estudo foi o dedutivo, por meio de pesquisa bibliográfica. A conclusão obtida é que o ordenamento brasileiro recepcionou os princípios contidos nos tratados internacionais de Direitos Humanos observados. Palavras-chave: Direitos Humanos1, Propriedade 2, Função Social 3. ABSTRACT La finalità di questo articolo è quella di analizzare il diritto della proprietà rurale nei seguenti trattati internazionali dei Diritti Umani: Dichiarazione Universale dei Diritti Umani e la Convenzione Americana dei Diritti Umani. Nel passo seguente è quello di analizzare se tali accordi sono stati ricevuti dalla nostra Carta Magna del 1988. Inoltre, avremo come uno degli elementi centrali di questo lavoro l’indagare se il diritto di proprietà rurale è assoluto o relativo. Questa indagazione nasce perché dal XX secolo alcuni teorici del diritto passarono a difendere che il diritto di proprietà è vincolatoalla funzione sociale. La rilevanza di questo lavoro risiede nelle seguenti constatazioni: a) La dimensione del territorio brasiliano, che nella sua maggioranza possono portare qualche beneficio sociale, specialmente nell’attività agricola. b) i dati forniti dall'Istituto Nazionale della Riforma Agraria - INCRA, dimostrano che la titolarità alla proprietà rurale si concentra nelle mani di poche persone . Il metodo utilizzato è stato il deduttivo, attraverso la ricerca bibliografica . La conclusione ottenuta è che la legge brasiliana ha accolto i principi contenuti in questi trattati internazionali dei Diritti Umani sopra elencati. Key words: Parole chiavi: 1 Diritti Umani 1, Proprietà 2, Funzione Sociale 3. Mestre, UNIOESTE - campus de Foz do Iguaçu, Foz do Iguaçu, [email protected]. 2 Introdução Este artigo tem a finalidade de analisar o direito de propriedade nos seguintes tratados internacionais de direitos humanos: Declaração Universal dos Direitos Humanos, redigida pela ONU em 1948 e ratificada pelo Brasil no mesmo ano; e a Convenção Americana dos Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, elaborada pela Organização dos Estados Americanos – OEA, redigida em 1969 e ratificada pelo Brasil somente em 1992. Após a apreciação destes instrumentos internacionais de defesa do ser humano, verificaremos como o ordenamento jurídico brasileiro, primeiramente a Carta Magna de 1988, e depois o Estatuto da Terra, lei 4.504, disciplinam o direito de propriedade rural. A importância deste trabalho decorre da transição iniciada no século XIX e intensificada no século passado, na qual o direito de propriedade, até então tida como absoluta, foi se enfraquecendo e a propriedade começou a estar vinculada a sua função social. Preliminarmente, devemos esclarecer o tipo propriedade a que estamos nos referindo. Como a expressão “direito à propriedade” tem um alcance muito amplo e pode ser aplicada às mais diversas espécies de titularidade, tanto para bens móveis como imóveis, quando mencionarmos o termo propriedade, estaremos nos referindo exclusivamente ao direito de titularidade do imóvel rural. 1. A concepção de direito de propriedade na Declaração Universal de Direitos Humanos Para que possamos compreender o direito de propriedade, é importante preliminarmente apresentarmos uma questão que terá repercussão na compreensão do direito de propriedade. Referimo-nos à controvérsia filosófica acerca da gênese da titularidade da propriedade imóvel. Podemos trazer a lume esse problema filosófico com a seguinte indagação: o direito de propriedade é natural ou foi instituído? Não iremos enfrentar essa questão no presente artigo, mas não podemos deixar de destacar que duas correntes filosóficas se deparam com a questão, as liberais e as socialistas. Mesmo entre liberais há divergência. No entendimento de Hobbes2, trata-se de um direito natural, mas não absoluto, enquanto que, para John Loke3, é direito natural e absoluto. Em sentido contrário, (...) a doutrina contrária às Cidades é que cada um dos cidadãos tem propriedade ou domínio absoluto sobre os bens que possui, isto é, uma propriedade tal que não só exclui o direito de todos os demais concidadãos sobre os mesmos bens como o da mesma Cidade. (...) Antes de aceito por todos o jugo civil, ninguém tinha coisa alguma por direito próprio, tudo era comum a todos. Donde é que alguém obteve esta propriedade, se não da Cidade? E donde o direito da Cidade, senão que cada um dos cidadãos transferiu o seu para ela? Portanto, tu também cedeste teu direito à Cidade, e o teu domínio ou propriedade é tão grande e tanto dura quanto quer a Cidade; como numa família, os bens são duráveis quanto quer a Cidade como numa família, os bens são próprios de cada filho conforme e por quanto tem que o pai.” Thomas Hobbes, De Cive, Vozes, op. cit. Cap. XII § 7, p 160. 3 “Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada um é proprietário da sua própria pessoa, à qual tem direito exclusivo. Podemos dizer que o trabalho do seu corpo e das suas mãos é propriamente seu. A todas as coisas retiradas do estado em que a 3 tratados 4 Marx defende que não é natural, sendo institucionalizada. Os acima mencionados não fazem menção a este dilema. Anteriormente, definimos a que tipo de propriedade estamos nos referindo neste trabalho. Agora é inadiável passarmos às seguintes perguntas: o direito à propriedade rural é absoluto ou relativo nos tratados internacionais elencados? E em relação ao ordenamento jurídico brasileiro? Comecemos pela Declaração de 1948, a qual trata sobre o direito de propriedade em um único artigo, nos seguintes termos: Artigo XVII - “1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.”5 [sem grifo no original] Ao reconhecer o direito de propriedade, a Declaração admite a possibilidade da existência de duas modalidades de propriedades - “individual ou em sociedade”. Uma vez reconhecido tal direito na Declaração, outra questão a ser enfrentada é da seguinte natureza: na declaração, quem tem o direito à propriedade? Assim como a maioria dos outros artigos da Declaração, também o artigo que se refere ao direito de propriedade começa com a expressão “toda pessoa tem direito”. Mas a que tipo de propriedade a Declaração está fazendo menção? A Declaração não esclarece a que tipo de propriedade está se referindo, afirma tão somente de forma genérica que “todos” têm direito à propriedade. Para que a declaração alcance os valores ali contidos, o propósito dessa norma é assegurar o direito de propriedade daqueles bens vitais para uma vida digna de ser humano. Em outras palavras, a expressão “todo” refere-se àqueles bens essenciais ao ser humano para que o mesmo possa viver atendendo a todas as suas necessidades básicas. Assim sendo, existem certos bens imprescindíveis a todos os seres humanos como, por exemplo, alimentos, educação, trabalho, habitação, vestuário. Por outro lado, há certos bens que nem todas as pessoas têm a necessidade de possuir. A necessidade de as pessoas possuírem a titularidade de algum bem pode estar ligada à atividade profissional que a pessoa desenvolve. Por exemplo, nem todos necessitam ser proprietários de instrumentos agrícolas. Todavia, para os agricultores, isto é imprescindível. Feita esta distinção do “direito à propriedade” dos bens essenciais à vida digna e à atividade profissional, a questão para enfrentarmos no presente trabalho natureza as produziu e liberou, ele acrescenta o eu trabalho, dando-lhes algo que é próprio e, com isso, tornam-se sua propriedade.” John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo Civil, Vozes, op. cit. Cap. V §27, p. 98. 4 Quanto ao significado da palavra tratado e seus sinônimos, acompanhamos o ensinamento da profª. Flavia. “(...) Além do termo “tratado”, diversas outras denominações são usadas para se referir aos acordos internacionais. As mais comuns são Convenção, Pacto, Protocolo, Carta, Convênio, como também Tratado ou Acordo Internacional.” Flávia Piovesan. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, Max Limonad, op. cit. IV, p. 67. 5 Todos os artigos da Declaração, Pactos e da Convenção foram transcritos a partir do anexo do livro de Flávia Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Internacional Constitucional Internacional, Max Limonad, op. cit. Anexos. 4 é da seguinte natureza: E o direito de propriedade rural deve ser assegurado a todas as pessoas? A resposta será afirmativa desde que a atividade profissional da pessoa seja o de agricultor. Caso admitíssemos em sentido contrário, ou seja, que todas as pessoas, independentemente da sua atividade profissional, têm direito a serem proprietários rurais, estaríamos diante de problema de limites dos recursos naturais. Como compatibilizar a expectativa de todos os produtores rurais terem a titularidade de um bem, no caso deste trabalho, uma determinada extensão territorial rural, se esses recursos naturais são limitados? É possível conciliar tais expectativas, desde que sejam distribuídas com justiça entre os trabalhadores do campo o direito de serem proprietários rurais. E, no Brasil, é possível buscarmos o equilíbrio da distribuição da terra com o número de trabalhadores agrícolas? As dimensões do nosso território permitem responder afirmativamente que sim. Dados do Atlas Fundiário do INCRA mostram que os latifúndios, “que representam 2,8% dos imóveis, ocupam 56,7% da área total, enquanto os minifúndios, que representam 62,2% dos imóveis, ocupam 7,9% da área total”.6 O mesmo atlas ainda registra que o desperdício de terras são 185 milhões de hectares – 40% de área aproveitável – que tem proprietários, mas que não são aproveitados produtivamente; quase toda esta terra apropriada sob a forma de latifúndios.7 Essa concentração fundiária promoveu o êxodo rural e o inchaço das cidades, especialmente aquelas com grande concentração industrial, acarretando inúmeros problemas. Entre esses, destacamos falta de vagas nas escolas, déficit habitacional, emprego e violência. Com os dados da estrutura fundiária acima mencionados, é fácil concluir que é viável assegurar o direito de propriedade rural a um número muito maior de brasileiros. No início deste trabalho, quando expusemos o objeto deste estudo, uma das indagações era se o direito de propriedade é absoluto ou relativo. Podemos reformular essa indagação nos seguintes termos: uma vez demonstrada a titularidade do imóvel rural, através e tão somente da escritura e da matrícula no Registro no Cartório de Imóveis, é suficiente? Torna-se esse direito inviolável, intocável? A Declaração de 1948 parece responder afirmativamente às indagações feitas no parágrafo anterior. Essa afirmação procede da seguinte dedução: no item Um, do artigo da Declaração ora em estudo, na primeira parte, assegura o direito de propriedade a todas as pessoas. Na segunda parte, faculta às pessoas poderem ser titular deste direito, individualmente ou em sociedade. Diante do exposto, parece-nos que o direito à propriedade não está vinculado a nenhuma 6 7 INCRA - Atlas Fundiário, 1996. Idem. 5 outra exigência, a não ser o cumprimento de exigência do registro nos cartórios competentes. Essa conclusão é apressada e equivocada e contrária ao conjunto de artigos da Declaração. Caso venhamos a interpretar a declaração admitindo que o direito de propriedade é absoluto, isso proporcionará a grupos econômicos estocarem grande quantidade de terras, seja para fins especulativos ou reserva de capital, privando que outras pessoas tenham acesso às mesmas. Como consequência, teremos uma forte concentração de terra nas mãos de algumas empresas agrícolas, bancos e industriais. Será que a Declaração estaria legitimando a concentração de terra? E mais, como conciliar a concentração de terra, ou renda, com os demais direitos, sejam eles civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, previstos em outros tratados de direitos humanos? Ao analisarmos a relação dos diversos artigos da Declaração e, se quisermos garantir os diversos direitos ali elencados, a consecução dos mesmos só será possível com justa distribuição dos bens existentes no planeta Terra, e dentre esses bens está, principalmente, a terra. 2. O direito de propriedade na Convenção Americana de Direitos Humanos Até agora tratamos o direito de propriedade rural na órbita das Nações Unidas, portanto, na esfera global. A seguir, é necessário adentrar a esfera regional, ou seja, a Convenção Americana dos Direitos Humanos. Retomemos as duas principais perguntas feitas no início deste trabalho, agora no âmbito da OEA: o direito de propriedade é reconhecido na Convenção Americana de Direitos Humanos? Se positivo, atribui-se ao mesmo conotação absoluta ou relativa? A Convenção mencionada no parágrafo anterior foi adotada e aberta em 22 de novembro de 1969. O Brasil firmou a sua ratificação em 25 de setembro de 1992. O direito de propriedade é reconhecido e normatizado no tratado americano no artigo 21, nos seguintes termos: Direito à propriedade privada 1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social.8 [sem grifo no original] 2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social, e nos casos e na forma estabelecidos pela lei. (...). Quanto à segunda indagação, o direito de propriedade na Convenção é relativo. Isso fica muito evidente quando, no item 1 do artigo transcrito, autoriza o 8 A Convenção Americana usa da expressão “interesse social”, enquanto que o ordenamento jurídico brasileiro, como veremos adiante, usa o termo “função social”. Trata-se de manifestações significativas sinônimas. 6 ordenamento jurídico nacional a “subordinar esse uso e gozo ao interesse social”. Trata-se de uma limitação do direito de propriedade ao interesse social. Façamos um breve cotejamento entre os artigos XVII da Declaração de 1948 e o artigo acima mencionado. É fácil constatar que a Convenção Americana é muito mais minuciosa e vai afastar de imediato qualquer possibilidade de interpretação de o direito de propriedade ser absoluto. A Convenção Americana, no início do artigo citado, reproduz o parcialmente o texto da Declaração, garantindo o direito de propriedade para, em seguida, condicionar tal direito “ao interesse social”. Mesmo que a Convenção transfira a responsabilidade, em fixar o interesse social, para a legislação de cada país, de pronto a Convenção está afastando a possibilidade de o direito de propriedade ser absoluto. Entre a elaboração da Declaração e da Convenção passaram-se 22 anos, possibilitando que esta tivesse uma redação mais pormenorizada, fruto da experiência que foi se acumulando ao longo do tempo. Portanto, a principal distinção entre a Declaração e a Convenção reside no fato de que esta condiciona o direito de propriedade ao interesse social. Aquela não faz qualquer menção a esse requisito. É verdade que a Convenção está facultando que cada país, como já dito no parágrafo anterior, deverá determinar através de sua própria legislação o que é de interesse social. Todavia, destaquese que o fato de fixar-se no artigo que o direito de propriedade não é absoluto já é um grande avanço. Muito melhor teria sido se a própria Convenção tivesse apresentado quais são as características integrantes do interesse social. 3. O Direito de propriedade rural no Ordenamento Jurídico brasileiro Para que os direitos contidos na Declaração sejam implementados nas relações sociais, é de fundamental importância que os mesmos sejam inseridos no conjunto normativo de cada Estado. Neste tópico, vamos analisar como o ordenamento jurídico brasileiro recepcionou os tratados internacionais de direitos humanos, no que se refere ao direito de propriedade rural. A importância da inserção desses tratados internacionais de direitos humanos na legislação nacional é tão grande que Virginia Leary leciona nos seguintes termos: “(...) A eficácia desses tratados depende essencialmente da incorporação de suas previsões no ordenamento jurídico interno”9. Antes de analisarmos como foi recepcionado na nossa lei maior o direito de propriedade rural, é imprescindível destacar primeiramente que a lei 4.504 de 1964, mais conhecida como Estatuto da Terra, no seu art. 2º, já condicionava o reconhecimento do direito de propriedade ao cumprimento da sua função social. Em 1989, quando foi proclamada a nossa atual Constituição, no artigo 5, XXII, estabelece-se que “é garantido o direito de propriedade”. Entretanto, para que seja reconhecido esse direito, o inciso seguinte coloca como condição que “a propriedade atenderá a sua função social”. Logo, podemos de pronto afastar a possibilidade de o direito de propriedade ser de cunho absoluto. A que tipo de propriedade o artigo da nossa Carta acima está fazendo menção? 9 Apud Flávia Piovezan. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Pág. 75. 7 O constituinte não teve a preocupação de, naquele momento, especificar a que tipo de propriedade estava se referindo, mas o faria em outros capítulos. O importante é destacar que a nossa constituição, além de fixar função social para a propriedade rural, estabelece igualmente essa exigência no plano urbano, no art. 182 §2. Não adentraremos na questão urbana, porque não é o objeto deste trabalho. Dispõe a nossa Carta no art. 186: A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos; I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. É possível, sinteticamente, com base nos incisos acima, classificar em três as características da função social da propriedade, quais sejam: a produtividade, conservar a natureza e respeitar os direitos trabalhistas dos funcionários que laboram na fazenda. Quanto ao primeiro item, levando em consideração a região e a qualidade do solo, segundo critérios técnicos, será fixado qual a produção que cada propriedade deverá ter. Havendo atividade agrícola na área, deverá produzir uma determinada quantidade de produtos agrícolas. Sendo pecuária, deverá ter determinado número de cabeças de gado. Esse critério tem a finalidade de fazer com que as pessoas deixem de comprar a terra para fins especulativos. O outro critério é o da preservação da natureza. É do interesse da coletividade a preservação da mesma, pois, à medida que degradamos o meio ambiente, estamos comprometendo a saúde de toda a população. E a última exigência trata-se dos direitos dos trabalhadores rurais assalariados, que laboram nas áreas rurais, de terem respeitados os seus direitos trabalhistas, previstos na Consolidação das Leis do Trabalho. Quanto à legislação infraconstitucional, encontramos em nosso ordenamento a lei 4.504 de 1964. Ainda que seja precedente à nossa atual Constituição, mesmo assim essa lei se coaduna, neste critério da função social da propriedade rural, com a nossa Constituição. Assim dispõe o artigo 18 da citada lei: A desapropriação por interesse social tem por fim: a) condicionar o uso da terra à sua função social; b) promover uma justa e adequada distribuição da propriedade; c) ) obrigar a exploração racional da terra; [...] h) facultar a criação de áreas de proteção à fauna, à flora ou a outros recursos naturais, a fim de preservá-los de atividades predatórias. 8 Muito brevemente, verifiquemos que a função social da propriedade tem história desde a primeira metade do século passado.10 A Lex Fundamentalis de 1934 garantiu, no art. 113, o direito de propriedade, mas inseriu no mesmo artigo que esse direito “não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo [...]”. A Constituição de 1937 fala em “desapropriação por necessidade ou utilidade pública”. A Constituição de 1946 em nada inova em relação à Carta anterior. A Carta de 1967, como as anteriores, continua garantindo o direito de propriedade, mas insere, no artigo que trata da propriedade, a possibilidade de ela ser desapropriada para fins de “utilidade pública ou por interesse social”. Porém a grande inovação é no artigo 160, III, em que atribui o dever de a propriedade garantir a sua “função social”. Interessante ressaltar que, antes mesmo da Convenção Americana fazer uso da expressão “interesse social”, a Carta de 1967 já insere no corpo o dever de a propriedade cumprir a “função social”. Portanto, a legislação brasileira, no que tange ao direito de propriedade e à sua função social, está em perfeita harmonia com o artigo XVII da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Essa conclusão é possível, desde que levemos em consideração a totalidade dos artigos e não isoladamente o artigo que trata sobre o direito de propriedade. A mesma constatação feita no parágrafo anterior pode ser estendida também à Convenção Americana dos Direitos Humanos – Pacto San José da Costa Rica – que, usando a expressão “interesse social”, recomenda que o ordenamento nacional dos países signatários fixe este atributo ao direito de propriedade. Este tema, o direito de propriedade e a sua função social, é tão candente que, além dos tratados de direitos humanos, também encíclicas papais discorrem sobre esse assunto. Defendem que o direito de propriedade não é absoluto e que não deve comprometer o bem comum. Quer dizer que a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário. Numa palavra, o direito de propriedade nunca deve exercer-se em detrimento do bem comum, segundo a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos11. Nesta mesma linha de pensamento, Paulo Torminn Borges escreve: “o importante é fazer a terra produzir bem. A propriedade não se justifica por si. O que justifica a titularidade, quando se trata de terra agricultável, é o uso correto que dela se faz, segundo sua destinação natural”.12 Face a este quadro, é necessário que os defensores dos direitos humanos, especialmente os operadores do Direito, tenham condições de reconstruir a perspectiva normativa das questões agrárias, a partir da própria realidade social e 10 SILVA, Volney Zamenhof de Oliveira. Propriedade em Face da Ordem Constitucional Brasileira. Revistas dos Tribunais: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. Ano 6, nº 25 out./dez. 1998. Nesse artigo, o autor faz uma breve, mas interessante, retrospectiva histórica sobre a função social da propriedade desde a Constituição de 1824. 11 Papa Paulo VI, Populorum Progressio, 12º edição, São Paulo, Paulinas, 1990, pág. 23. 12 BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos de Direito Agrário. Pág. 67, São Paulo: Saraiva, 1993. 9 econômica do meio rural, vinculando ao direito de propriedade a sua função social e, acima de tais direitos, devemos estabelecer a primazia da vida. Conclusões A nova concepção teórica do direito de propriedade rural, elaborada no século XIX, trouxe outra exigência que antes era inexistente, ou seja, o direito de propriedade continua a existir, mas deixou de ser um direito absoluto e deve cumprir a função social. Essas inovações teóricas contagiaram e exerceram influência nos redatores que elaboraram tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos como a Convenção Americana de Direitos Humanos. Também o ordenamento jurídico nacional, ao longo do século XX, sofreu influência dessa concepção teórica. Gradativamente, a ordem jurídica nacional foi reconhecendo que o direito de propriedade não podia mais ser reconhecido como um direito absoluto. Isso ficou patente na redação do Estatuto da Terra e também na Carta Magna de 1988. Em ambos os diplomas legais, no direito de propriedade rural, é reconhecida a sua existência, todavia está condicionada ao cumprimento da sua função social. Em relação especificadamente à propriedade rural, isso é verificado quando ela cumpre os índices de produtividade, conserva a natureza, respeita os direitos dos trabalhadores que laboram na propriedade e proporciona o bem estar aos seus proprietários e funcionários. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução por Maria Celeste Cordeiro Leite Santos. 10 ed., Brasília, Ed. UNB, 1999. BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos de Direito Agrário. Pág. 67, São Paulo: Saraiva, 1993 HOBBES, Thomas. De Cive – Clássicos do Pensamento Político. Ed. Vozes, 1993. LOCKE, John. Segundo Tratado dobre o governo civil – Clássicos do Pensamento Político, Vozes, 1994. MOLINA, Mônica Castagna. (organizadora) Introdução Crítica ao Direito Agrário. Brasília, Editora UNB e Imprensa Oficial SP, 2002. PAPA Paulo VI. Populorum Progressio – Carta Encíclica Sobre o Desenvolvimento dos Povos. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo, ed. Max Mimonad, 2002. SILVA, Volney Zamenhof de Oliveira. Propriedade em Face da Ordem Constitucional Brasileira. Revistas dos Tribunais: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. Ano 6, nº 25 out./dez. 1998.