Brasil: de devedor a credor externo líquido

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Brasil: de devedor a credor externo líquido
Gilmar Mendes Lourenço*
As repercussões internacional e doméstica
bastante positivas acerca da constatação de o estoque
de reservas internacionais brasileiras em poder do
Banco Central ( BC), acrescido de outros ativos no
exterior (aplicações dos bancos comerciais e créditos),
ter alcançado marca superior ao montante da dívida
externa do País devem ser acolhidas com cautela e
acompanhadas de adequada interpretação técnica de
suas causas e efeitos.
De pronto, cumpre reconhecer as folgas propiciadas
à política econômica pela superação matemática da
vulnerabilidade externa que, recheada pelos incidentes
de decretação de moratória (dos encargos em 1987 e dos
juros em 1989) dos débitos e pela conseqüente imposição
de operações de socorro e de monitoramento macroeconômico pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), e na
ausência de uma moeda nacional conversível internacionalmente, condenou o Brasil a conviver com climas de
estagnação econômica e hiperinflação na década de 1980,
e de insuficiência de crescimento, em troca da estabilidade
de preços, dos anos 1990 em diante.
Para cotejar com o total da dívida externa de
US$ 196,2 bilhões em janeiro de 2008, sendo mais de
70,0% de médio e longo termo, o País dispunha de
US$ 203,2 bilhões, o que implicaria saldo líquido de
US$ 7,0 bilhões. Ficam excluídos do endividamento itens
classificados como passivos, como as operações de
transferências de recursos das matrizes das companhias
multinacionais para as subsidiárias brasileiras, considerados investimentos diretos, e a aquisição de papéis
públicos de emissão nacional por não residentes, hospedada como dívida interna. Raciocínio análogo valeria para
os ativos, no caso de inversões produtivas e compra de
títulos por organizações e/ou residentes brasileiros fora
das fronteiras geográficas da nação.
A virada do jogo começou com a melhoria da conta
de transações correntes, a partir de 2002, e passou por
uma agressiva estratégia de aquisição de moeda
estrangeira forte desde 2004, inclusive como forma de
evitar a agudização da tendência de sobreapreciação do
padrão monetário nacional: o real. Na prática, o Brasil
transformou-se em exportador de poupança e estaria
habilitado a liquidar a dívida externa (pública e privada),
conforme as conveniências de natureza macroeconômica,
e até a receber o selo de grau de investimento das agências
mundiais de classificação de crédito.
Porém, é interessante entender as raízes e os
efeitos dessa nova situação, à luz de algumas referências
pretéritas. De fato, a inversão do sinal negativo do balanço
em transações correntes do País aconteceu impulsionada
por um cenário de duas pronunciadas depreciações da
taxa de câmbio, verificadas em 1999 e 2002, reflexos da
alteração estrutural do regime em 1999 (de fixo para
flutuante) e de fatores circunstanciais e especulativos em
2002, associados ao risco de ruptura dos líquidos,
rentáveis e seguros mecanismos de rolagem da dívida
mobiliária (títulos da dívida interna), pela então provável
gestão Lula, impregnado nos mercados.
O realismo cambial oportunizou a intensificação
dos investimentos das organizações privadas brasileiras
na descoberta, na penetração, na consolidação e na
diversificação de mercados externos (de produtos e de
destino), aspectos maximizados pela forte recuperação
do crescimento da economia mundial, com a redução
dos juros, depois do estouro da bolha da Bolsa Nasdaq,
e a elevação do dispêndio público em construção e
defesa, logo após os atentados terroristas de 11 de
setembro de 2001.
A expansão da economia internacional, viabilizada
primordialmente pela sincronização entre os enormes
superávits comerciais dos asiáticos (especialmente da
China) e os déficits fiscais e em conta corrente dos Estados
Unidos (EUA), impulsionou as cotações das commodities
agrícolas, minerais e metálicas, favorecendo a conquista
de resultados externos positivos por parte das nações
emergentes, incluindo o Brasil. Trata-se do eixo comercial
de apreciação do real, embrião da política de acumulação
de reservas.
Ao mesmo tempo, a condição de abundância de
liquidez nos mercados mundiais, a premência de rolagem
da dívida pública interna e os temores, por vezes
exagerados, de retorno da espiral inflacionária no Brasil
pela via da demanda ensejaram a manutenção de uma
política monetária conservadora, calcada em apreciável
diferencial de juros internos vis-à-vis à média internacional.
Essa é a veia financeira de entrada do capital volátil
no País, descoberta também por empresas nacionais, que
* Economista, técnico da equipe permanente desta
publicação, coordenador do Curso de Ciências Econômicas
da UNIFAE – Centro Universitário – FAE Business School.
ANÁLISE CONJUNTURAL, v.30, n.01-02, p.3, jan./fev. 2008
passaram a perseguir os ganhos de arbitragem na
garimpagem de capitais externos, por meio da contratação
de empréstimos ou até da proliferação do uso da
modalidade de adiantamento de contratos de câmbio.
A faceta nociva do vetor financeiro pode ser
evidenciada pelo preço do crédito doméstico. Para uma
inflação no varejo ao redor de 5,0% ao ano, os juros médios
cobrados na ponta chegaram, em janeiro de 2008, a 34,0%
ao ano, sendo 25,0% a.a. para as pessoas jurídicas, 29,0%
a.a. para a modalidade em consignação, 38,0% a.a. para
desconto de duplicatas, 49,0% a.a. para pessoas físicas,
52,0% a.a. para desconto de promissórias, 53,0% a.a. para
crédito pessoal, 56,% a.a. para a aquisição de veículos e
145,0% para o cheque especial.
A verdadeira inundação de dólares resultante das
correntes comerciais e financeiras constituiu o estopim da
deflagração de atitudes de agressivas compras de reservas
estrangeiras pelo BC, no afã de neutralizar a rota cadente
do dólar e formar uma retaguarda de dólares para enfrentamento de momentos de instabilidade externa. Como
esperado, a intransigente estratégia monetarista logrou
êxito na multiplicação dos níveis de reservas, ainda que
ao custo da elevação do endividamento interno.
A superação da dívida externa pelo
estoque de reservas cambiais tem
como contrapartida a não-compressão
do passivo público interno
No fundo, essa é a questão crucial. A superação
contábil da dívida externa pela acumulação expressiva
de dólares no caixa do BC tem como contrapartida a
não-compressão do passivo público interno, o que, em
um quadro de falta de investimentos na correção dos
estrangulamentos da esmagadora maioria dos itens de
infra-estrutura, impede que a transformação da atual
fase de reativação da economia em um ciclo sustentado
de crescimento.
De modo antagônico, os estágios de endividamento externo passados exibiam, além de objetivos de
ANÁLISE CONJUNTURAL, v.30, n.01-02, p.4, jan./fev. 2008
cobertura dos desequilíbrios das transações correntes
advindos da deterioração crônica dos termos de
intercâmbio ou de choques exógenos (petróleo e juros,
fundamentalmente), endereço tangível, como o Plano de
Metas do Governo Juscelino Kubitschek (JK), entre 19561960, a composição de patamares elevados de reservas
para sustentação do Milagre (1968-1973) e as inversões
em complementação da II Revolução Industrial no Brasil,
contempladas nos projetos do II Plano Nacional de
Desenvolvimento (PND) do então Presidente Geisel, no
lapso de tempo compreendido entre 1974 e 1978.
O mais gritante, no entanto, é o efeito colateral
que a defasagem cambial pode executar na competitividade das exportações e dos programas microeconômicos
de substituição de importações, especialmente em um
ambiente de redução da velocidade de incremento do
comércio mundial, determinado pelo colapso imobiliário
nos EUA. Até porque, com a possibilidade de a companhia
Vale levantar no exterior os US$ 50,0 bilhões necessários
à integralização do valor de oferta pela Xstrata e os
resultados negativos na conta corrente de janeiro, o Brasil
deve resgatar o rótulo de devedor internacional ou
importador de poupança, o que parece compatível com a
característica de nação em desenvolvimento.
As contas externas nacionais expressaram déficit
de US$ 4,2 bilhões em janeiro de 2008, o que representou o pior desempenho desde outubro de 1998,
influenciado em grande medida pela elevação das
importações e das remessas de lucros e dividendos,
reproduzindo, em simultâneo, o começo da conta da
intransigente estratégia de valorização cambial depois
de 2003, via hiato de juros, e a continuidade da modernização do parque industrial e da internacionalização
produtiva e financeira da economia brasileira.
Por fim, é prudente registrar os custos fiscais
diretos nada desprezíveis da acumulação de reservas.
O BC amargou perdas de R$ 47,5 bilhões em 2007,
254,0% superiores a 2006, por conta das operações
envolvendo os diferenciais de juros em reais e em dólares
acrescidos da apreciação da moeda nacional, o que
corresponde a aproximadamente cinco vezes os valores
alocados por ano para o Programa Bolsa Família.
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