Lula surfa na supereconomia Giuliano Guandalini e Otávio Cabral Em troca do reconhecimento de sua independência, VEJA TAMBÉM dois séculos atrás, o Brasil foi obrigado a absorver reportagem toda a dívida que Portugal tinha com bancos ingleses: Nesta • Quadro: O motor da uma fortuna, para o período, de 2 milhões de libras popularidade esterlinas. Foi a única dívida que o país herdou e a primeira de muitas gestadas por aqui mesmo. As crises mais dramáticas enfrentadas pelo Brasil ao longo de sua história deveram-se à falta de dólares ou de vergonha na cara para honrar compromissos internacionais assumidos pelo governo e por suas empresas. Desprovidos de qualquer base teórica sólida, governos sucessivos defenderam, sem enrubescer, a tese de que o atraso do país se devia à dependência financeira externa, uma espécie de pecado original. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu PT perderam três eleições presidenciais (em 1989, 1994 e 1998) tendo como bandeira o calote da dívida externa. A ruptura de Lula com as idéias anacrônicas foi marcada pela divulgação da Carta ao Povo Brasileiro, em junho de 2002, em meio à turbulência financeira irradiada pela então provável ascensão do PT ao poder. No documento, o petista afirmava que, se eleito, honraria o pagamento da dívida. Fez mais do que isso. Na semana passada, o Banco Central anunciou que, em janeiro, pela primeira vez na história, o Brasil passou de devedor a credor externo. Na ponta do lápis, os créditos em moeda estrangeira do governo e das empresas brasileiras (reservas internacionais, depósitos bancários no exterior e empréstimos concedidos lá fora) superam a dívida externa em 4 bilhões de dólares. O que foi eliminado é a chamada dívida externa líquida, na qual se calcula o total de débitos (198 bilhões de dólares) menos o total de créditos (188 bilhões de reservas internacionais do Banco Central e 14 bilhões de dólares de empresas e bancos aplicados lá fora). Na prática, se todos os países fizessem uma espécie de encontro de contas financeiras, o Brasil teria mais a receber do que a pagar. Nesse indicador, não estão somados os investimentos diretos brasileiros no exterior nem os investimentos estrangeiros no país (por esse outro critério, que não representa a robustez dos países, o Brasil ainda teria um passivo). Carlos Namba Figueiredo (acima) acerta detalhes de um acordo com o FMI, em 1983; abaixo, protesto contra a dívida externa, em 1989: cenas do passado José Luiz Faria Com o feito, o Brasil soluciona o fantasma da dívida externa pela porta da frente, sem calote, e fica ainda mais próximo do chamado grau de investimento (investment grade), o selo de qualidade concedido às nações que têm baixíssimo risco de dar um calote na sua dívida. Não se pode desprezar o simbolismo do fato. A primeira renegociação da dívida externa ocorreu ainda no Império, em 1829. Ao longo de sua história, o Brasil deixou de honrar seus compromissos externos outras seis vezes. A última delas – espera-se – foi em 1987, no governo de José Sarney, depois do fracasso do Plano Cruzado. Medidas extremas desse tipo são sempre traumáticas porque seus efeitos não se restringem ao mercado financeiro. Isolam as empresas e estigmatizam o país por longos períodos. É desse ciclo perverso, que afligiu o Brasil constantemente nas três últimas décadas, que o país se vê livre. A importância dessa virada pode ser avaliada pelo fato de que, em meio à crise internacional provocada pelo estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos, a economia brasileira segue incólume. A cotação do dólar, em queda, rompeu a barreira de 1,70 real, algo que seria inimaginável em períodos de turbulências anteriores. Diz o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega: "O Brasil comprova solidez mesmo diante do cenário internacional de incertezas. Nunca havia ocorrido uma valorização cambial em meio a uma crise financeira dessa magnitude". Antes, qualquer espirro em outro país era motivo para o Brasil pegar uma pneumonia. "Hoje, ao contrário, uma crise internacional pode impactar num crescimento econômico ligeiramente menor", diz o economista Luiz Fernando Figueiredo, exdiretor do Banco Central. Na avaliação do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, mais importante que a foto do momento é o filme que vem se desenrolando há cerca de duas décadas: "O Brasil, gradualmente, caminha na direção de se transformar em um país normal, isto é, mais previsível e confiável, tendo deixado de lado as tentativas de reinventar a roda". O feito inédito premia o presidente Lula, que se desviou do populismo esquerdóide para derrubar a inflação e aprofundar a estabilização iniciada em 1994, com o Plano Real. Na campanha de 2002, o comando do PT afastou-se de ideólogos históricos do partido, como os economistas Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares, e decidiu aceitar o óbvio: um calote apenas desestabilizaria as finanças e retardaria o desenvolvimento do país. O partido enterrava ali uma de suas bandeiras fundamentais desde a sua fundação, em 1980. Apenas dois anos antes, em 2000, os petistas apoiaram o plebiscito sobre a necessidade de pagamento da dívida promovido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). E, ainda em 2001, o Encontro Nacional do PT concluíra que havia a necessidade de um "processo de auditoria e renegociação da dívida externa". Uma vez no poder, os petistas felizmente cumpriram a promessa eleitoral de honrar os compromissos internacionais. E ganharam com isso. A economia vive agora os seus melhores dias desde o milagre econômico dos anos 70, e a popularidade do presidente segue forte. Segundo a última pesquisa do instituto Sensus, 66,8% dos entrevistados aprovam o desempenho de Lula, e 52,7% avaliam positivamente o governo. São os melhores índices alcançados na série histórica de 22 pesquisas que teve início em fevereiro de 2004. O interessante é que o presidente consegue essa impressionante aprovação mesmo em meio à barulhenta crise dos cartões corporativos. (Segundo a mesma pesquisa, os brasileiros acham o episódio reprovável e defendem uma punição exemplar aos envolvidos.) Em tese, o caso dos cartões seria um forte ingrediente para minar a imagem de Lula e de seu governo. Na prática, os dois índices seguem sem correlação. "A situação econômica próspera faz com que as pessoas sejam mais condescendentes com as questões éticas", avalia o cientista político Jairo Nicolau, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. "A leitura cínica de que todo governo tem corrupção, de que político é tudo igual, ganha força em administrações economicamente eficientes, beneficiando o presidente." Não se pode esquecer também que a moeda forte aumenta o poder de compra da população, que passa a olhar para o futuro com mais otimismo – e com mais carinho para o presidente. Divulgação/CVRD Terminal de exploração de minério de ferro e pregão da Bolsa de Mercadorias & Futuros: cotidiano do Brasil que deu certo Mauricio Lima/AFP É de reconhecer, no entanto, que a virada histórica se deve, em primeiro lugar, à implementação de políticas econômicas sensatas pelo governo anterior. O governo atual acertou ao mantê-las. Em especial, o tripé que dá estabilidade à economia, composto pelo regime de metas de inflação, pelos superávits primários das contas públicas e pelo câmbio flutuante. São esses os três elementos que asseguram previsibilidade e confiabilidade à economia. Graças a eles, projetos de investimentos foram desengavetados e o país passou a crescer mais rapidamente. Ao mesmo tempo, o Brasil contou com uma mãozinha da conjuntura internacional. O forte crescimento mundial impulsionou o comércio, favorecendo o preço de produtos básicos (ou commodities) exportados pelo país. Tome-se o exemplo do minério de ferro vendido pela Vale. Na semana passada, a empresa anunciou que conseguiu reajustar o preço do produto em até 71%. Só esse aumento propiciará uma injeção adicional de cerca de 10 bilhões de dólares no país. Nos três últimos anos, o Brasil acumulou um superávit superior a 120 bilhões de dólares na sua balança comercial. Somem-se a isso os investimentos feitos pelos estrangeiros, no mercado financeiro e no setor produtivo, e chega-se a uma montanha de 150 bilhões de dólares que aqui ingressaram entre 2003 e 2007. Foi essa enxurrada inédita de moeda forte que possibilitou o acúmulo de reservas internacionais pelo Banco Central. Essas reservas, que funcionam como uma poupança em bancos internacionais, subiram de 16,3 bilhões de dólares, no fim de 2002, para mais de 188 bilhões de dólares hoje. Esses recursos, somados ao dinheiro do setor privado depositado no exterior, permitiram ao país anunciar o fim da dívida externa. Falta resolver outro problema. Equacionada sua histórica vulnerabilidade externa, o Brasil precisa agora atacar com mais afinco as suas fragilidades internas. A primeira delas, o excesso de gastança pública, manifestada na farra dos cartões corporativos e no déficit da Previdência Social, que draga 40 bilhões de reais ao ano da economia brasileira. Sem que o governo contenha seus dispêndios, será impossível reduzir a dívida interna, em reais, que, ao contrário da externa, segue crescendo. A dívida interna atingiu 1,2 trilhão de reais, num avanço de 20% em relação ao mesmo período do ano passado. O país precisa defrontar com esses desequilíbrios para reduzir o peso dos tributos, estimulando o aumento de produtividade. Disso dependerá a manutenção do ciclo virtuoso daqui para a frente. Pena que ainda falte ao país consenso mínimo para fazer andar essas e outras reformas essenciais. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, comemorou na sexta-feira (22 de fevereiro) a notícia de o Brasil ter se tornado credor externo, mas afirmou que "temos de aproveitar este momento e começar a nos endividar para gastar com infra-estrutura". Felizmente, os maiores méritos do presidente estão em suas ações, e não em sua curiosa retórica. Fotos Mario Tama/AFP, Darcio Tutak, Eduardo Pozella e Marcelo Kura