UNIVERSIDADE PARANAENSE MESTRADO EM DIREITO PROCESSUAL E CIDADANIA ALISSON HENRIQUE DO PRADO FARINELLI A CRISE DO ACESSO À JUSTIÇA E A JUSTIÇA ITINERANTE COMO ALTERNATIVA UMUARAMA 2009 ALISSON HENRIQUE DO PRADO FARINELLI A CRISE DO ACESSO À JUSTIÇA E A JUSTIÇA ITINERANTE COMO ALTERNATIVA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora do Mestrado em Direito Processual e Cidadania da Universidade Paranaense - UNIPAR, como exigência parcial à obtenção do grau de Mestre, sob a orientação do Professor Doutor Eduardo Augusto Salomão Cambi. UMUARAMA 2009 3 FOLHA DE APROVAÇÃO ALISSON HENRIQUE DO PRADO FARINELLI A CRISE DO ACESSO À JUSTIÇA E A JUSTIÇA ITINERANTE COMO ALTERNATIVA Trabalho de conclusão aprovado como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito Processual e Cidadania da Universidade Paranaense – UNIPAR, pela seguinte banca examinadora: __________________________________________ Professor Doutor Eduardo Augusto Salomão Cambi Orientador __________________________________________ Professor Doutor José Aparecido Rigato __________________________________________ Professor Doutor Celso Hiroshi Iocohama Umuarama, 04 de novembro de 2009 4 Dedico à minha esposa Danielle, pelo apoio incondicional, pelo incentivo, e pelas sábias palavras proferidas nos momentos de desânimo. Obrigado pela disposição e por sempre entender a razão das inúmeras horas subtraídas do nosso convívio. Aos meus pais, que desde a infância me ensinaram o caminho que se deve andar. Agradeço pelos valores e princípios transmitidos e pelo incentivo dispensado nesta árdua jornada. 5 AGRADECIMENTOS A Deus: “Porque Dele, e por meio Dele, e para Ele são todas as cousas. A Ele, pois, a glória eternamente. Amém” (Romanos 11.36). Agradeço pela benção de poder trilhar o infinito caminho do saber e da ciência, e de conseguir cumprir esta etapa imensamente importante. A Paulo Roberto Nogueira e Edna Ferro Canavesi Nogueira, por gentilmente apoiarem e incentivarem este projeto. Ao meu orientador, Eduardo Augusto Salomão Cambi, jurista de escol, acessível e prestimoso, que muito contribuiu para o resultado final desta pesquisa, a quem admiro e devo gratidão eterna. Aos colegas mestrandos da oitiva Turma do Mestrado em Direito Processual e Cidadania da UNIPAR, em especial: Antonio Zeferino da Silva Junior e Ricardo Guilherme Silveira Corrêa Silva, parceiros de estrada, intelectuais do Direito: certeza de amizade perene. Aos colegas professores, demais funcionários do Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN, e aos meus diletos alunos, que me incentivam a buscar a qualificação, e que mantém aceso a chama pela busca do saber incessante. A Wilson do Prado, por me iniciar nas letras jurídicas e por incentivar a perseguir meus objetivos, dentre eles o de ser mestre em Direito. A Elisangela Duarte do Prado Castro, pela revisão ortográfica. A Suzane Ferro Nogueira de Castro e Rafael Medeiros de Castro, pela tradução do resumo. 6 “Direito positivo não sabido é direito inexistente. Quem dele não sabe, não reivindica; sem o seu conhecimento, não há seu exercício”. Cármem Lúcia Antunes Rocha. “Acredito que a luta do jurista não é mais a luta pela brevidade ou contra o formalismo do processo; hoje, o enfoque deve ser dirigido às raízes da problemática social, da miséria; a punição do criminoso que está no poder ou veraneia às suas margens. A luta é também pela educação do povo, através da participação nos atos da administração da justiça – quer como jurado, quer como conciliador – pelo acesso à justiça [...]”. Caetano Lagrasta Neto. 7 FARINELLI, Alisson Henrique do Prado. A crise do acesso à justiça e a Justiça Itinerante como alternativa. 174 p. 2009. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Paranaense, Umuarama. RESUMO O acesso à Justiça é chamado de direito dos direitos porque dele depende o exercício de todo os outros. Ocorre que sua efetividade/concretização tem encontrado obstáculos em fatores jurídicos, sociais, econômicos e culturais que o limitam. Pessoas pobres, desorientadas e desinformadas sobre seus direitos têm receio de buscar a tutela jurisdicional por questões psicológicas, de forma que, ou a ele renunciam, ou optam por fazê-lo valer através de vias extra-oficiais. Por tais fatores, é certo que o acesso à Justiça encontra-se em crise. A solução é aproximar o Poder Judiciário do cidadão. Para isso, descentralizar a prestação do serviço jurisdicional é medida que se impõe. A Justiça Itinerante é forma descentralizada de acesso à Justiça que tem apresentado resultados práticos positivos porque resolve os conflitos apresentados pelas partes através da conciliação. Trata-se de alternativa viável para desafogar o Poder Judiciário e reduzir a morosidade da Justiça. Palaras-chave: Acesso à Justiça. Crise da Justiça. Descentralização da Justiça. Justiça Itinerante. 8 FARINELLI, Alisson Henrique do Prado. The crisis of access to justice and Justice Itinerant instead. 174 p. 2009. Dissertation (Master in Law) – Universidade Paranaense, Umuarama. ABSTRACT The access to justice is called the right of the rights because the exercise of all other rights depends on it. It occurs that its effectiveness/realization has found obstacles in legal, social, economic and cultural factors that limit it. People that are poor, disorientated and uninformed about their rights have fear of looking for the jurisdictional custody by psychological issues, in such a way that, or they resign their rights, or they choose to stand up for their rights through unofficial ways. It is true that access to justice is in crisis. The solution is to approach the judiciary and the citizen. For this, it is required to decentralize the jurisdictional services rendered. The itinerant justice is a decentralized way of access to justice that has presented positive practical results because it solves the conflicts of interests through conciliation. This is a viable alternative to relieve the judiciary and reduce the slowness of the Justice. Keywords: Access to Justice. Crisis of Justice. Decentralization of Justice. Itinerant Justice. 9 SUMÁRIO DEDICATÓRIA AGRADECIMENTO EPÍGRAFE RESUMO ABSTRACT INTRODUÇÃO .............................................................Erro! Indicador não definido. 2 ACESSO À JUSTIÇA ................................................Erro! Indicador não definido. 2.1 Ponderações sobre o conceito de Justiça...........Erro! Indicador não definido. 2.2 Movimentos de acesso à Justiça nos diferentes períodos históricos .......... Erro! Indicador não definido. 2.2.1 Período Antigo ..............................................Erro! Indicador não definido. 2.2.2 Período Medieval ..........................................Erro! Indicador não definido. 2.2.3 Período Moderno ..........................................Erro! Indicador não definido. 2.2.4 Período Contemporâneo...............................Erro! Indicador não definido. 2.3 Acesso à Justiça: um direito natural e fundamental ............Erro! Indicador não definido. 2.4 Acesso à Justiça no plano dos direitos humanosErro! Indicador não definido. 2.5 Os diversos planos de estudo do acesso à Justiça.............Erro! Indicador não definido. 2.5.1 Acesso à Justiça numa perspectiva leiga .....Erro! Indicador não definido. 2.5.2 Acesso à Justiça numa perspectiva técnico-jurídica.....Erro! Indicador não definido. 3 A CRISE DO ACESSO À JUSTIÇA ..........................Erro! Indicador não definido. 10 3.1 Considerações preliminares................................Erro! Indicador não definido. 3.2 As limitações do acesso à Justiça.......................Erro! Indicador não definido. 3.2.1 O custo do processo .....................................Erro! Indicador não definido. 3.2.2 A duração do processo e a morosidade da Justiça ......Erro! Indicador não definido. 3.2.3 O problema cultural: o reconhecimento dos direitos .....Erro! Indicador não definido. 3.2.4 A questão psicológica ...................................Erro! Indicador não definido. 4 ALTERNATIVAS DE SUPERAÇÃO DA CRISE DE ACESSO À JUSTIÇA ....... Erro! Indicador não definido. 4.1 Considerações preliminares................................Erro! Indicador não definido. 4.2 A descentralização da Justiça.............................Erro! Indicador não definido. 4.3 Os Juizados de Pequenas Causas e os Juizados Especiais ..... Erro! Indicador não definido. 4.4 Os meios alternativos de solução dos conflitos ..Erro! Indicador não definido. 5 A JUSTIÇA ITINERANTE COMO ALTERNATIVA DE SUPERAÇÃO DA CRISE DE ACESSO À JUSTIÇA ...................................................Erro! Indicador não definido. 5.1 Considerações introdutórias: a participação popular na administração da Justiça.......................................................................Erro! Indicador não definido. 5.2 Aspectos gerais da Justiça Itinerante..................Erro! Indicador não definido. 5.3 Aspectos processuais da Justiça Itinerante ........Erro! Indicador não definido. 5.4 Algumas experiências de Justiça Itinerante no Brasil .........Erro! Indicador não definido. 6 CONCLUSÃO............................................................Erro! Indicador não definido. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................Erro! Indicador não definido. 11 INTRODUÇÃO O acesso à justiça é chamado de direito dos direitos porque dele depende o exercício de todos os outros. Entretanto, esbarra na questão da efetividade/concretização porque existem muito fatores que o limitam. Assim, embora muitos trabalhos doutrinários já tenham sido apresentados, é certo que continua a ser tema de inquietação dos juristas. No Brasil, o acesso à justiça encontra-se em crise porque pessoas pobres, desorientadas e desinformadas sobre seus direitos, receosas de buscar a tutela jurisdicional por questões psicológicas, simplesmente a ele renunciam, afastando-se do Poder Judiciário. A impressão do leigo sobre o sistema oficial de Justiça é a de que somente as pessoas mais abastadas e influentes podem acessá-la. Assim, está difundida na sociedade a ideia de que a Justiça é parcial e elitista, e, por vezes, destina-se a atender os interesses dos grandes proprietários. No entanto, tem-se buscado solucionar o problema, que se sabe ser não só jurídico, mas, social, cultural e econômico. Nessa senda, aproximar o Poder Judiciário do cidadão comum, de baixa renda, sem instrução escolar, é alternativa democrática para ampliação do acesso à justiça. A prova disso é a descentralização do serviço jurisdicional através dos Juizados Especiais e dos meios alternativos de solução dos conflitos. Dentro dessa ideia de descentralização da Justiça com objetivo de reduzir a distância entre o cidadão e a Justiça oficial, alguns Estados brasileiros instituíram a Justiça Itinerante, cuja finalidade é ir ao encontro das pessoas para solucionar seus conflitos. Diante desse quadro, o presente trabalho se propõe a investigar o acesso à justiça e sua crise, apresentando a Justiça Itinerante como uma alternativa viável de solução do problema. Para alcançar o objetivo proposto, o trabalho foi dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo será realizada uma abordagem histórica e conceitual do acesso à justiça, de maneira a situá-lo na história do direito processual e no plano dos direitos fundamentais e direitos humanos. No segundo capítulo, considerando a abordagem que se pretende, a ideia é esboçar as razões da crise do acesso à justiça, destacando limitações 12 exoprocessuais e endoprocessuais, que separam o cidadão da Justiça oficial. O terceiro capítulo apresenta alternativas de superação da crise, considerando ser essencial à descentralização do serviço jurisdicional para que haja a aclamada ampliação do acesso à justiça. Desta feita, aparecem os Juizados Especiais e os meios alternativos de solução dos conflitos como importantes instrumentos descentralizadores. Por fim, o quarto capítulo será reservado à análise da Justiça Itinerante como forma alternativa de acesso à justiça. O objetivo será definir seu campo de atuação, seus aspectos processuais, bem como pontuar algumas experiências no Brasil a fim de constatar sua efetividade na concretização de direito, utilizando precipuamente a técnica da conciliação. No que pertence à técnica de pesquisa, utilizou-se a de documentação indireta, nas modalidades bibliográfica e documental. O método de procedimento é o monográfico e o de abordagem é o hipotético-dedutivo. Nessa linha de pesquisa intentada, a preocupação não é esgotar o tema – e nem poderia ser – mas, contribuir para a ampliação do acesso à justiça no País, com vistas à consolidação de uma Justiça simples, informal, e, acima de tudo, democrática e cidadã. 13 2 ACESSO À JUSTIÇA 2.1 Ponderações sobre o conceito de Justiça Inviável adentrar ao estudo do acesso à justiça sem entender o significado e a relevância do conceito da acepção “justiça”. É que a procura pelo Poder Judiciário1 representa a mais cristalina certeza de que o direito previsto no ordenamento jurídico será aplicado com segurança e da forma mais justa. Aliás, Torres (2005, p. 21) afirmou que “o ideal de justiça é valorizado por quem procura o Poder Judiciário para resolver um problema e encontra a aplicação do direito com segurança e respeito”. E continua (Idem, p. 21): “A indagação sobre o significado de justiça tem levado os estudiosos a muitas reflexões”. Ainda, segundo o autor (Idem, p. 23), “a idéia de justiça está presente em todos os momentos, é motivo de reflexão em todos os povos, em todos os tempos, é um desejo marcado no sonho de cada pessoa. Encontrar esse ideal representa a mais legítima aspiração do ser humano [...]”. Nessa linha de raciocínio, Lima Filho (2003, p. 48) adverte que “na idéia de direito encontramos a idéia de justiça”. Conflui para o mesmo ponto a lição de Aguiar (1999, p. 19): “A relação da justiça com o direito é considerada tão importante que os órgãos que aplicam as normas legais são chamados de Justiça”. No entanto, a definição conceitual de Justiça constitui-se em intricada tarefa, como salientou Kelsen: Quando Jesus de Nazaré, no julgamento perante o pretor romano, admitiu ser, disse ele: “Nasci e vim a este mundo para dar testemunho da verdade”. Ao que Pilatos perguntou: “O que é a verdade?” Cético, o romano obviamente não esperava resposta a essa pergunta, e o Santo também não a deu. Dar testemunho da verdade não era o essencial em sua missão como rei messiânico. Ele nascera para dar testemunho da Justiça, aquela Justiça que Ele desejava concretizar no reino de Deus. E, por essa Justiça, morreu na cruz. Dessa forma, emerge da pergunta de Pilatos – o que é a verdade? -, através do sangue do crucificado, uma outra 1 Acesso à justiça, nessa fase introdutória do trabalho, corresponde, apenas, à procura do Poder Judiciário pelo interessado. 14 questão, bem mais veemente, a eterna questão da humanidade: o que é justiça? Nenhuma questão foi tão passionalmente discutida; por nenhuma outra foram derramadas tantas lágrimas amargas; [...]. E, no entanto, ela continua até hoje sem resposta. Talvez, por se tratar de uma dessas questões para as quais vale o resignado saber de quanto o homem nunca encontrará uma resposta definitiva; deverá apenas tentar perguntar melhor. (KELSEN, 2001, p. 1). A análise dos escritos sobre justiça demonstra tratar-se de valor almejado pela sociedade, fundamentado em outros valores como a felicidade, liberdade, a paz, a democracia e a tolerância. (KELSEN, op. cit. p. 02-25). Aguiar vislumbra a justiça como um valor e uma ideologia, consoante se observa: De um modo ou de outro, é preciso ressaltar que, racionalizando o interesse que for, a idéia de Justiça sempre se põe como um projeto de um mundo melhor, como um dever-ser das condutas, da produção e do relacionamento humano. Por isso, a idéia de Justiça é um valor e, mais ainda, é ideológica, na medida em que assentada sobre uma concepção de mundo que emerge das relações concretas e contraditórias do social. (AGUIAR, op. cit. p. 17). Entretanto, torna-se imperioso salientar que a ideia de justiça não se reduz a aplicação do direito pelo Poder Judiciário, nem mesmo aos valores erigidos por determinada sociedade em determinado lapso de tempo. Inquestionável, contudo, que o conceito de justiça é imprescindível à ciência jurídica, sendo desta elemento indissociável, considerando, que em alguns momentos, torna-se conceito uno. De acordo com os ensinamentos de Montoro (1999, p. 125), o conceito de justiça compreende duas significações: uma subjetiva e outra objetiva. A primeira está ligada a qualidade da pessoa, virtude ou perfeição subjetiva; a segunda, por sua vez, tem por escopo designar uma qualidade da ordem social. No primeiro caso diz-se: “Fulano é um homem justo” ou “o senso de Justiça é fundamental para o magistrado”; no segundo diz-se: “aquela lei é justa” ou “por vezes, o Poder Judiciário comete injustiças”. O conceito de justiça, numa concepção subjetiva, designa as qualidades ou virtudes da pessoa humana; numa concepção objetiva, designa a qualidade ou virtude de uma lei ou de uma instituição. 15 Aludido critério de conceituação e classificação se explica pela próxima relação do Direito com a Moral. Para os moralistas, estudiosos da conduta e do agir humano, a justiça é uma virtude ou qualidade do indivíduo; para os juristas, no entanto, a justiça é atributo da lei ou do Poder Judiciário. Nesse aspecto dito objetivo, a justiça é um princípio superior da ordem social. (MONTORO, op. cit. p. 125-126). Assim, a justiça se aplica aos princípios da ordem social, pois, esta será considerada justa quando garantir a cada um o que é seu, ou o seu direito segundo uma igualdade. Nessa linha, “a justiça não é o sentimento que cada um tem de seu próprio bem-estar ou felicidade [...]. Mas, pelo contrário, é o reconhecimento de que cada um deve respeitar o bem e a dignidade dos outros”. (MONTORO, Idem, p. 127). Reconhecer que a justiça está no respeito e na garantia da felicidade e dignidade do outro implica uma concepção metafísica, qual seja, a do valor absoluto da pessoa humana. Kelsen (op. cit. p. 11) afirma que as teorias da justiça se reduzem a dois tipos básicos: um metafísico-religioso e outro racionalista, ou pseudo-racionalista. Ainda segundo Kelsen (Idem, p. 12-13), Platão é o representante clássico do tipo metafísico. Aliás, o problema da justiça é o tema central da sua filosofia. Platão desenvolveu a chamada doutrina das ideias. A ideia significa uma substância transcendental, existente em outro mundo, numa esfera inteligível, inacessível ao homem perturbado pela sensorialidade. Em sua essência, constitui-se em valores absolutos que devem ser materializados para o mundo sensorial, mas, nem sempre o são. A ideia fundamental, a qual todas as outras estão ligadas, é a do bem absoluto. Nesta inclui-se a ideia de justiça. A pergunta sobre “o que é justiça?” é respondida na medida em que se obtém a resposta acerca do “bem” ou do que é “bom”. O bem absoluto se realiza através de uma vivência mística, o que torna a justiça um mistério divino. A doutrina platônica, nesse particular, se assemelha à pregação de Jesus Cristo, considerando que o ponto central do Cristianismo é a justiça. Jesus, após refutar a fórmula racionalista “olho por olho, dente por dente”, anuncia a verdadeira justiça, fundada no princípio do amor: o mal não é retribuído com mal, mas com o bem. O amor difundido por Jesus não é compreensível nem passível de ser praticado pelo ser humano, diferindo-se do amor dos homens. Aristóteles (1985, p. 92-111) apresenta sua teoria sobre justiça numa 16 perspectiva racionalista, embora desenvolvida num sistema filosófico que inclui a metafísica não desprovida de valores morais. Inicia o Livro V de “Ética a Nicômacos” indagando quais as ações se relacionam com a justiça, que espécie de meio termo é a justiça e entre qual extremo o ato justo é o meio termo. Sua concepção inicial de justiça é a seguinte: Os termos “justiça” e “injustiça” são ambíguos. Nesse sentido, injusta pode ser uma pessoa ambiciosa, iníqua ou que infrinja a lei; de outro lado, as pessoas cumpridoras da lei são consideradas justas. Considerando citada proposição, a lei permite ou proíbe a prática de certos atos ou ações, razão pela qual a justiça, neste sentido, se caracteriza como a excelência moral perfeita em relação a si e em relação ao próximo. A essência entre ambas é a mesma, contudo, a justiça é praticada em relação ao próximo enquanto a excelência moral é irrestrita, ou seja, é praticada com vistas ao bem comum. Aristóteles enxerga a justiça no plano da igualdade e da desigualdade, denominando-a de justiça em sentido estrito. Explica que a participação de uma pessoa no Governo, na distribuição de riquezas, ou nas coisas de interesse comum, pode se verificar de forma igual ou não a de outra. O meio termo entre o ato injusto e o homem injusto é a igualdade; o homem injusto que pratica ato injusto é desigual em relação ao homem justo que pratica ato justo, vez que a igualdade harmoniza a tensão entre dois pólos: justiça e injustiça. A igualdade guarda relação com pessoas e coisas, assim, se as pessoas não são iguais não terão participação igual nas coisas, fato que enseja as querelas e queixas. Daí a concepção aristotélica de justiça que “atribuiu a cada um segundo o seu mérito”. Em Aristóteles, verifica-se que o justo é espécie do qual o proporcional é gênero. A noção de proporcionalidade é explicada pela geometria, através da combinação de quatro elementos que conferem a cada indivíduo o seu quinhão. Pelo princípio da justiça distributiva, o justo é o meio termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é o meio termo entre o justo e o proporcional. A Justiça corretiva, na visão de Aristóteles, é o meio termo entre a perda e o ganho. Por esta razão que as partes recorrem ao juiz, considerado equidistante, e que tem a incumbência de restabelecer a igualdade outrora infringida da seguinte maneira: divide-se a igualdade como se fosse uma linha cortada pela metade. O que se encontra em maior desigualdade receberá do outro um quinhão que será acrescido ao seu de forma a recompor o estado de igualdade. Assim, as partes terão aquilo que lhes pertence. O igual é o meio termo entre a linha maior e a menor de acordo com a proporção aritmética. Esta é a origem da palavra díkaion (= 17 justo); ela quer dizer dikha (= dividida ao meio), como se se devesse entender esta última palavra no sentido de díkaion; e um dikastés (= juiz), é aquele que divide ao meio (dikhastés). Depois de definir o justo e o injusto, Aristóteles conceitua justiça: A justiça é a observância do meio termo, mas, não de maneira idêntica à observância de outras formas de excelência moral, e sim porque ela se relaciona com o meio termo, enquanto a injustiça se relaciona com os extremos. E a justiça é a qualidade que nos permite dizer que uma pessoa está predisposta a fazer, por sua própria escolha, aquilo que é justo, e, quando se trata de repartir alguma coisa entre si mesma e outra pessoa, ou entre duas outras pessoas, está disposta a não dar demais a si mesma e muito pouco à outra pessoa daquilo que é desejável, e muito pouco a si mesma e demais à outra pessoa do que é nocivo, e sim dar a cada pessoa o que é proporcionalmente igual, agindo de maneira idêntica em relação a duas outras pessoas. (Aristóteles, Idem, p. 101). Importante destacar o que se denominou de justiça política. Esta se apresenta a pessoas que vivem juntas com o objetivo de preservar convivência em grupo; trata-se de pessoas livres e proporcionalmente ou aritmeticamente iguais, cujas relações mútuas são regidas pela lei. Outro aspecto importante do pensamento de Aristóteles sobre justiça é a definição do agir justa ou injustamente. Os atos justos e injustos são voluntários; se o ato é involuntário, segundo Aristóteles, deve ser considerado acidental. Ato voluntário é “qualquer ação cuja prática depende do agente é que é pratica consciente, ou seja, sem que o agente ignore quem é a pessoa afetada por sua ação, qual é o instrumento usado e qual é o fim a ser atingido [...]”. Por fim, Aristóteles estabelece uma relação entre justiça e equidade. Segundo ele, ambas têm o mesmo significado, porém, a equidade é melhor, considerando que o justo corresponde aos ditames da lei e esta é omissa. A equidade sana a omissão da lei, de forma a definir o justo no caso de lacuna. Ainda numa perspectiva racionalista, Immanuel Kant refere-se à questão através da formulação do que denominou de imperativo categórico, resultado essencial da sua filosofia moral e das respostas sobre as indagações ao conceito de justiça (KELSEN, op. cit. p. 19). O imperativo categórico parte de uma interpretação, por um critério objetivo, da regra de ouro, isto é: aja de acordo com aquilo que se possa desejar como regra geral. Nessa perspectiva, o comportamento humano é 18 bom ou justo se for determinado por regras que o homem, ao agir, espera que sejam obrigatórias aos demais. O grande problema é que não sabe quais normas se deve esperar por genericamente obrigatórias, o que, nem a regra de ouro, nem o imperativo categórico respondem. Lima Filho apresenta uma noção inicial de justiça, pautada na igualdade e que culmina com a concepção de justiça distributiva: Se fizermos um apanhado de tudo que se escreveu e disse a respeito de justiça como critério ideal para o direito, iremos sempre nos deparar com a seguinte constatação: uma visita a todas as doutrinas sobre justiça põe de manifesto que elas apresentam uma identidade básica através das mais variadas escolas e de todos os pensadores: a idéia de justiça, como uma pauta de harmonia, de igualdade simples ou aritmética em alguns casos e igualdade proporcional em outros; um meio harmônico de compensar e distribuir entre os indivíduos e a coletividade. Ou outras nas tradicionais palavras: ‘dar a cada um o seu ou que se lhe deve’. (LIMA FILHO, op. cit. p. 48). Cichocki Neto (1998, p. 52-59) realiza interessante abordagem sobre o conceito de justiça. Para o autor, a história do pensamento humano tem considerado a Justiça como um valor supremo e universal do Direito2. Nesse viés, seu conceito é indispensável à ciência jurídica, cuja proposição fundamental é um “dever-ser”. O termo “justiça” possui duas acepções: a primeira, puramente ideal e eminentemente subjetiva, predominou na antiguidade clássica e na Filosofia da Idade Média, e vislumbrou a questão da Justiça como uma virtude universal, reguladora de toda a atividade individual e coletiva. Sob esse prisma, a justiça traduz-se como sentimento e como virtude moral, ou um princípio ou um critério de valor ideal, objeto de investigação filosófica. A segunda acepção do termo “justiça” adquire sentido objetivo e corresponde a uma ideia autônoma e independente do Direito. Na verdade, nesse sentido, o termo “justiça” norteia a interpretação e aplicação da lei ao caso concreto, sendo considerado um critério superior para aplicação do Direito. Para o Direito importa o segundo sentido, entretanto, inegável a importância do primeiro na fixação de condutas e padrões valorativos do homem enquanto ser 2 De acordo com CICHOCKI NETO (1998, p. 52): “PLATÃO considerou a Justiça uma virtude fundamental, pois constitui o princípio ordenador das demais virtudes. ARISTÓTELES qualificou-a como ‘virtude total’ ou perfeita. SANTO AGOSTINHO afirmou consistir no amor do sumo bem e de Deus ‘ordo amoris’. TOMAZ DE AQUINO ‘inter omnis virtutes morales praecellit’. LEIBNIZ, como a totalidade da perfeição ética”. 19 social. Do ponto de vista formal, praticamente todas as escolas jurídicas identificam o elemento lógico fundamental da noção de justiça nas ideias de igualdade, proporcionalidade, harmonia e equilíbrio. Aliás, Conforme Aguiar: A visão formal de Justiça é a visão dos vencedores, que têm de criar uma visão de mundo que mantenha a conquista e que evite a emergência de outros grupos que poderão ter outras visões, dado desenvolverem práticas sociais diferentes. Por isso, toda visão formal de Justiça, apesar de suas diferenças, tende a conceber o mundo, a sociedade e a história como um processo harmônico, onde o conflito é exceção, enquanto uma reflexão concreta sobre a Justiça há de conceber o mundo enquanto contradições e conflitos e a harmonia como exceção, pois ela não é uma atualidade, mas um produto final do próprio processo dialético. Não se atinge a harmonia pela harmonia, o conflito e a contradição são os caminhos para se tentar chegar a ela. (AGUIAR, 1999, p. 63). Tal enfoque, formal, não se presta a resolver o problema do Direito. Assim, o elemento material da Justiça, consubstanciado na fórmula sum cuique – ou seja, dar a cada um o que é seu – preenche o critério da igualdade nas relações humanas e faz estreita a relação entre Direito e Justiça por seu conteúdo ético: valores morais contidos na ideia de Justiça são pressupostos à existência do Direito. A partir dos princípios do Cristianismo, que apregoa a necessidade de uma organização social que possibilite e permita o desenvolvimento da pessoa humana, mediante a afirmação de sua personalidade, a Filosofia do Direito assentou o conteúdo da Justiça sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, a partir do pensamento de kant3 e Stamler4. Assim, aludido princípio acena como critério ideal e valor fundamental para o Direito. Essa dimensão conceitual de Justiça, pautada por princípios éticos decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana, transformou a maneira de se interpretar e aplicar o Direito. Considerando que o homem carece da convivência social, a realização de seus fins individuais é aspiração de toda sociedade, logo, a realização dos fins sociais deve ser compatibilizada com as necessidades individuais, adotando-se como paradigma, valores como a igualdade e a liberdade. Por ser o Poder Judiciário incumbido da consecução dos objetivos sócio3 4 “O homem constitui um fim em si mesmo”. Esboça uma ideia de “direito justo”. 20 político-jurídicos almejados pelos instrumentos de tutela dos direitos, compete ao juiz a aplicação da norma e a valoração dos fatos segundo as aspirações que emanam a dignidade individual de cada um. A concepção humanista de Justiça, portanto, reclama uma maior proteção dos direitos individuais ou subjetivos mediante mecanismos de tutela que assegurem a dignidade da pessoa humana, devendo a tutela jurisdicional constituir-se um bem comum de todos. Somente assim o Direito solucionará os conflitos sociais de forma justa. Nessa mesma ordem de raciocínio, qualquer limitação do acesso à Justiça somente se justifica na medida em que não constitui ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana. Do exposto, percebe-se que a concepção de Justiça oriunda das filosofias aristotélica e romana5, pela apresentação lógico-formal, assim como do positivismo jurídico, circunda-se a um universo normativo que esconde as reais contradições pelas quais atravessa a sociedade. Na verdade, por ser o ideal de todo o ordenamento jurídico, a Justiça consubstancia-se numa ilusão que acaba por legitimar os atos de mando. Assim, segundo Aguiar (op. cit. p. 58-61), duas espécies de Justiça podem ser verificadas na sociedade: uma, a Justiça conservadora; outra, a Justiça transformadora. Para compreender o significado de ambas, é preciso ter em mente que a ideia de Justiça vigente em dada sociedade emana de um longo e árduo processo histórico. Nessa linha, o processo de evolução histórica do Estado e da Sociedade sempre legitimou alguma situação de poder. A Justiça conservadora é concebida a partir de um mecanismo de alienação dos oprimidos que legitima ideologicamente determinada ordem social, e facilita a dominação. Conforme ensina Coelho (2003, p. 113), a sociedade constitui-se num grupo social dividido em macrossociedade e microssociedade. As relações estabelecidas no plano individual (microssociedade) e plano social (macrossociedade) são relações caracterizadas pelo poder de uma classe sobre outra. Assim, surge a ideia de dominação. Por outro lado, na perspectiva do dialeticismo jurídico, os mecanismos sociais de libertação opõem-se ao de dominação. O processo de libertação dos indivíduos desencadeia os movimentos sociais. A concepção de 5 “dar a cada um o que é seu”, “dar a cada um o que lhe é devido”, “dar a cada um segundo seus próprios méritos”, “dar a cada um segundo suas necessidades”. 21 ideologia assenta-se na “atitude de falsear e manipular uma imagem para incuti-la na opinião pública com finalidades políticas” (COELHO, op. cit. p. 118). Para chegar a essa conclusão, adota-se a filosofia marxiana como ponto de partida. Nessa concepção: Completa-se então o ciclo da teoria marxiana da ideologia, como estilo de pensar na filosofia, na teologia e na economia. Em todos os momentos revela-se a denúncia de um processo de inversão, pelo qual o homem cria idéias, conceitos e categoria, ou seja, representações da realidade, e em seguida considera que a realidade é que decorre dessas representações, e assim, afasta-se do real em suas cogitações para apegar-se às imagens ou aos mitos que o representam. Esta inversão é a primeira característica da ideologia e do seu sentido estrito. (COELHO, Idem, p. 123). A ideologia, nessa ótica, traduz-se na falsa concepção da realidade. Na esfera sociológica, a ideologia produz a alienação, já que a classe dominante incute na consciência da classe oprimida uma falsa ideia de que o direito, o poder e as leis vigentes são essenciais para o equilíbrio da sociedade. Tal ato confere ao poder dominante a legitimidade, que nada mais é que o consentimento adquirido mediante a alienação das classes oprimidas. Diante dessa assertiva, Ideologia é justamente a forma de pensamento que, correspondendo aos interessas da classe dominante, tende a manter a posição social de uma classe mediante a conservação do status quo. À ideologia opõe-se a utopia, forma de pensamento que corresponde aos interesses das classes subjugadas, tendo por objetivo não só justificar as pretensões desta classe, como também revelar e destruir as bases sociais em que se alicerça a ideologia. Assim, a ideologia é toda e qualquer concepção da vida social, que apresenta o caráter conservador que lhe denuncia as condições de ponto de vista da classe dominante e daquela fração intermediária da estrutura social, a classe média, que deposita seu interesse na conservação do atual estado das coisas, como meio de evitar os excessos da classe dirigente e os intentos revolucionários das classes desprovidas. (COELHO, Idem, p. 126). A alienação é o produto social da ideologia e consiste na substituição do real pelo imaginário. Acarreta a inconsciência coletiva (COELHO, Idem, p. 138). Através da ideologia dominante, a classe oprimida aceita falsas verdades disseminadas pelo Estado e as legitima por estar sob o véu da ignorância. Através da alienação, os 22 mecanismos de poder legal e legitimamente instituídos pelo Estado acabam por ser obedecidos mediante a ideologia da força estatal. À luz da teoria crítica do direito torna-se aceitável afirmar que o acesso à Justiça é resultado da manipulação ideológica da sociedade. É o instrumento ideológico do qual se vale o Estado para alienar o jurisdicionado. A existência de dispositivo constitucional que eleva aludido princípio a categoria de direito fundamental nada mais representa que a falsa percepção de que o Poder Judiciário é a solução para todos os conflitos sociais, bastando para tanto acessá-lo. A finalidade é a de manter o jurisdicionado sob estado de ignorância. Em verdade, a maioria dos indivíduos que bate às portas do Poder Judiciário não tem condições econômicas e culturais para litigar em Juízo. Como é possível exigir que o indivíduo tenha condições de arcar com uma Justiça cara, quando a maioria da população brasileira sequer tem o que comer? Além da questão econômica, o acesso à Justiça encontra empecilhos de ordem cultural já que os indivíduos não têm consciência plena de seus direitos. E constata-se que nem sempre o Estado tem interesse em informá-los, mantendo-os sob o véu da ignorância, da dominação e da alienação, o que apenas fortalece o poder dominante e oprime ainda mais os que já se encontram em estado de sujeição. Na medida em que o Estado fornece educação de qualidade e forma cidadãos conscientes, convictos de seus direitos, rompe-se o estado de alienação outrora existente; a desalienação produz a libertação e, por consectário, os libertos da opressão passam a se rebelar contra o poder instituído. É o processo de libertação respondendo dialeticamente a opressão da classe dominante. A ideia de que o Estado deve ser o único e exclusivo detentor do monopólio estatal não passa de questão ideológica preconizada pela classe dominante. A propósito, o Estado é uma instituição que abriga os interesses da elite; assim, enquanto detiver o monopólio da Jurisdição estatal, certamente atenderá ao interesse dos poderosos. A Justiça conservadora esconde as reais contradições sociais, obsta a transformação social e paralisa a história, já que a perenidade fortalecerá a opressão exercida pelos poderes. É oficial, não somente no sentido de ser estatal ou paraestatal, mas, sobretudo, no sentido de ser um conhecimento aceito e sistemático, propagado pelos detentores do poder de forma acrítica nas famílias, nas escolas e no Estado. Essa concepção de Justiça representa a ordem e o equilíbrio e apregoa a equidistância de modo a inverter a real situação, marca da representação 23 ideológica: os justos serão os opressores e os injustos os oprimidos. De outra banda, a Justiça transformadora é fruto de um saber crítico, que se opõe ao conhecimento instituído e que desvela o estado de ignorância e sujeição do indivíduo. Nesse viés, a Justiça transformadora revela as reais contradições do poder e não se respalda em uma hierarquia, em uma organização dissimuladora das dominações, mas, na clarificação do real estado das coisas através do saber. Por essa razão, a Justiça transformadora não será harmônica, pois, imersa nas contradições; não será equidistante porque comprometida com os mais fracos; não será legitimadora de uma ordem social ideologicamente comprometida com os interesses dos opressores, mas, contestadora e crítica. É uma Justiça emergente de uma reflexão sobre o desequilíbrio e sobre a dominação. Conforme Aguiar: Em termos mais concretos, o que significaria uma concepção de Justiça que se encaminharia nesse sentido? Essa concepção deveria estar imersa no mundo. Não mais um mundo da ordem e da hierarquia, ma um mundo onde a dominação e as contradições estão presentes como marcas nodais. Não mais uma idéia de Justiça que tivesse como respaldo petrificações meta históricas mas o próprio devir que se desvela na sucessão de contradições. Uma Justiça que tem de tomar como base as pequenas e grandes dominações que são exercidas no mundo, o que gera uma divisão clara e fecunda enquanto fenômeno: o viver dos opressores e o viver dos oprimidos, entendido esse viver como as relações concretas que se instauram a nível econômico, político e social que põem a nu não somente uma classe como contradição e morte da outra mas também a definitiva irredutibilidade da epistéme a serviço da dominação àquela que expressa a experiência dos oprimidos.Por isso a Justiça respaldada na experiência não há de ser neutra, mas comprometida, não há de ser expressão ideológica dos opressores, mas instrumento e bandeira da experiência e da esperança dos oprimidos. Essa idéia de Justiça transformadora que há de ser mais um veículo do amálgama das maiorias silenciadas, da estruturação de princípios que hão de ser alavancas de transformações sociais, econômicas e políticas no sentido do caminhar histórico. (AGUIAR, op. cit. p. 60-61). Ante o exposto, a abordagem a ser desenvolvida pretende defender o acesso a uma Justiça cujo ideal é a proteção e concretização do princípio da dignidade da pessoa humana; uma Justiça consciente das reais contradições sociais e do processo histórico e ideológico de dominação dos opressores; uma Justiça que não seja equidistante dos conflitos sociais, mas, que proteja os oprimidos; uma Justiça que não albergue interesse apenas dos grandes proprietários; uma Justiça 24 ainda distante de ser alcançada, mas, possível de ser realizada. 2.2 Movimentos de acesso à Justiça nos diferentes períodos históricos 2.2.1 Período Antigo Evidente que a questão do acesso à Justiça sofreu inúmeras evoluções até se chegar à dimensão dos tempos atuais. Para se chegar à concepção contemporânea é preciso investigar o tema nos diversos períodos históricos. No Período Antigo, o tema deve ser investigado com maior enfoque no direito grego e romano. Entretanto, outros períodos históricos devem ser destacados. Nos primórdios vigorava a autodefesa, ou seja, cada um defendia o seu direito através da força. Nas sociedades primitivas, o direito vigente era aplicado pelo detentor do poder (o rei, o pontífice, o chefe de família, o vitorioso na guerra, o dominador da tribo, etc.) que acumulava a função de julgador, legislador e executor de sentenças. São escritos importantes da época, a Bíblia, “Vespas” de Aristófanes (442 a.C.), o Código de Hamurabi (Babilônia), o Código de Manu, as Institutas de Gaio, as Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha (Século VII), as Institutas Oratórias de Quintiliano (PRATA, 1987, p. 16). Na Grécia Antiga, o acesso à Justiça foi marcado pelo que hoje se denomina de isonomia. Destaca-se o pensamento de Aristóteles, que explica as mais diversas variações do conceito de Justiça, tanto é que culminou no que atualmente se denomina “teoria da Justiça”. Aliás, foi Aristóteles quem afirmou pela primeira vez que o juiz deve adaptar a lei ao caso concreto (LIMA FILHO, op. cit. p. 106). Uma característica importante do direito grego é a de que as leis não são inspiradas nos deuses e a administração da Justiça é exercida pelos cidadãos e não pelo Estado; em Sólon é possível verificar que as leis são elaboradas por homens e inspiradas na razão humana, o que tende a cindir o direito da religião. Segundo Lopes (2000, p. 33), “a laicização do direito é a idéia de que as leis podem ser revogadas pelos mesmos homens que a fizeram”. 25 Na Grécia Antiga, a aristocracia é que detinha o monopólio da Justiça. Souza (2002, p. 61) informa que “a escrita surge como nova tecnologia, permitindo a codificação de leis e sua divulgação através de inscrições nos muros das cidades. Dessa forma, as instituições democráticas que passaram a contar com a participação do povo, os aristocratas perdem também o monopólio da administração da Justiça”. Importante destacar que considerando o modelo democrático adotado em algumas cidades-estados gregas, a função judicante não era exercida por cidadãos tecnicamente especializados. Os cidadãos se reuniam em uma assembléia, cabendo aos magistrados executar as ordens destas, o que caracteriza a magistratura como função auxiliar. Registra-se que a concepção de democracia dominante na Grécia Antiga não é a mesma consolidada nos dias de hoje, mais aprimorada. Tanto é verdade que em Atenas predominava a denominada “democracia escravagista”, tendo em vista que dos 300 mil habitantes, aproximadamente 30 ou 40 mil eram considerados cidadãos e em torno de 100 a 150 mil eram escravos (SOUZA, Idem, p. 63). Em Atenas existiam duas espécies de jurisdição: a penal e a civil. Conforme expõe Souza: Algo notável no direito grego era a clara distinção entre a lei substantiva e a lei processual. Enquanto a primeira é o próprio fim que a administração da Justiça busca, a lei processual trata dos meios e dos instrumentos pelos quais o fim deve ser atingido, regulando a conduta e as relações dos tribunais e dos litigantes com respeito à litigação em si, enquanto que a primeira determina a conduta e as relações com respeito aos assuntos litigados. (SOUZA, Idem, p. 76-77). Para crimes públicos, tais como homicídio premeditado ou voluntário, incêndio ou envenenamento, o julgamento era realizado por grandes tribunais de centenas ou dezenas de membros. A Assembléia de todos os cidadãos (ekklêsia), divididos em distritos territoriais (demos), elegia o grande conselho de supervisão (Areópago). Interessante anotar que, embora os gregos não realizassem explícita divisão dos ramos jurídicos (direito público, civil, penal, etc.), na seara processual uma importante distinção se visualizava no exercício do direito de ação. Havia duas 26 espécies: a ação privada (diké) e a ação pública (graphé). A primeira era um debate judiciário entre os litigantes, através da reivindicação de um direito ou da contestação de uma ação, sendo que somente as partes envolvidas é que poderiam provocar a atuação jurisdicional. Segundo Souza (op. cit. p. 78), “exemplos de ações privadas são (diké): assassinato (diké phonou), perjúrio (diké pseudomartyrion), propriedade (diké blabes); assalto (diké aikias); ação envolvendo violência sexual (diké biaion); ilegalidade (diké paranomon); roubo (dike klopes)”. A segunda poderia ser iniciada por qualquer cidadão que se considerasse prejudicado pelo Estado. De acordo com Souza: Exemplos de ações públicas (graphé): contra oficial que se recusa a prestar contas (graphé alogiou); por impiedade (graphé asebeias); contra oficial por aceitar suborno (graphé doron); contra estrangeiro pretendendo ser cidadão (graphé xenias); contra o que propôs um decreto ilegal (graphé paronomon); por registrar falsamente alguém como devedor do Estado (graphé pseudengraphes). (SOUZA, op. cit. p. 78). Ao lado do Areópago, um conselho (boulé) exercia o governo. O Areópago julgava os acusados de subverter a constituição. O julgamento de casos menos importantes incumbia aos juízes dos demos podendo haver apelo para a assembléia judicial propriamente dita (heliastas) que funcionava em grupos (dicastéria). (Lopes, op. cit. p. 37). Por influência do ideal democrático vivenciado nesse período, é possível asseverar que qualquer cidadão poderia acessar a Justiça de forma ampla e praticamente irrestrita. Embora amplo, à primeira vista, o acesso à Justiça na sociedade grega sofria restrições, como bem menciona Lopes: [...] considerava-se moralmente indigno receber dinheiro para a defesa. Assim os redatores de discursos mantinham-se oficialmente ocultos, ou apresentavam-se como não tendo recebido dinheiro. Julgava-se que quem precisava pagar não tinha uma boa causa. No entanto isto muito mais formal do que real, porque os logógrafos tornaram-se comuns. A idéia fundamental era que qualquer cidadão pudesse apresentar-se perante os tribunais, juízes e árbitros para defender seus interesses ou ponto de vista. Na prática, cresceu a atividade dos redatores de peças ‘judiciais’. O advogado (um encarregado de negócios alheios, sinégoros ou síndico) não 27 existia propriamente ainda, era visto como um cúmplice. Para conhecermos o advogado semelhante ao nosso contemporâneo será preciso esperar o direito canônico do século XIII. (LOPES, op. cit. p. 38). Talvez por esta razão, “o processo tornou-se uma praga em Atenas (como relata Aristófanes em suas obras), mas a liberdade de processar era inerente à democracia” (LOPES, Idem, p. 39). O poder de julgar era conferido ao cidadão, inexistindo, nesse período, o profissionalismo, ou seja, a carreira judicante como conhecida nos dias atuais. Souza pontua que: A heliaia foi a grande demonstração de que o povo era soberano em matéria judiciária, por ser um tribunal que permitia que a maior parte dos processos fosse julgada por grandes júris populares. Composta por seis mil heliastas escolhidos anualmente por sorteio dos arcontes, dentre os cidadãos com mais de 30 anos, era o grande tribunal ateniense onde a cidade se reunia para julgar. (SOUZA, op. cit. p. 89). Ulhoa Cintra (1970 apud Lima Filho, op. cit. p. 108) afirma que os juízes não eram considerados magistrados, não havendo para eles docimasia6 ou prestação de contas. A Justiça era posta em funcionamento pela ação de um cidadão; todo procedimento era acusatório, inclusive os processos criminais públicos, podendo, todo cidadão, iniciar um processo público. Em verdade, não existia na Grécia Antiga juiz que julgasse o processo ou ministério público que defendesse os interesses da sociedade; nem mesmo a defesa técnica era admitida no processo grego, embora, na prática, os logógrafos burlassem essa regra. Incumbia ao litigante interessado ou ao seu representante legal dar início ao processo, citar a parte contrária, tomar a palavra em audiência e exercer outros atos processuais necessários ao julgamento da questão posta. Em 403 a.C. instituíram-se recursos em matéria cível e comercial sempre que a causa excedesse o valor de 10 dracmas. Havia árbitros públicos e privados; não aceita a decisão por estes proferida, a parte poderia apelar para os heliastas. Perante os árbitros era possível o compromisso (LOPES, op. cit. p. 38). 6 Do grego dokimasia, significa exame moral prévio, como ocorria no processo de escolha dos cidadãos componentes do Conselho (boulê) pelos conselheiros antigos. 28 Em juízo, as partes produziam provas escritas; perante os árbitros, as provas eram informais. Os juízes podiam testemunhar sobre os fatos debatidos na lide, desde que deles conhecessem. Nesse período, a sentença não precisava se coadunar com as provas produzidas em juízo porque os juízes poderiam julgar conforme a sua própria consciência, de acordo com a sua íntima convicção. Anota Lopes: Aristóteles deixou-nos uma classificação das provas que fazia sentido neste sistema: elas eram naturais ou artificiais. Naturais eram a prova da existência da lei, testemunhas, contratos, juramentos. Em outras palavras, as provas naturais eram evidências empíricas. As artificiais são fornecidas por nossa invenção e descoberta, procedem de nosso raciocínio: são indícios e presunções pelos quais passamos daquilo que sabemos ou provavelmente sabemos para aquilo que não sabemos. A eloqüência fornece estas provas. (LOPES, Idem, p. 38). Em Atenas nasce a assistência judiciária gratuita, que abissal importância tem para a concretização e efetivação do acesso à Justiça. Nesse sentido, Lima Filho (op. cit. p. 110) expõe: “Foi a Grécia – em Atenas – o berço da assistência judiciária aos necessitados. Naquele tempo, anualmente, eram designados dez advogados para assistir juridicamente as pessoas consideradas carentes”. Influenciado pelo pensamento e pela cultura grega, o direito romano se estabelece como paradigma para todo sistema processual futuro, inclusive, o brasileiro. Embora o sistema judicial grego fosse avançado para a época, era calcado mais na retórica dos litigantes e na persuasão judicial do que na lei escrita, até mesmo porque as primeiras legislações gregas escritas e codificadas – insculpidas em pedras públicas – surgiram no século VIII a. C. Desta forma, é correto afirmar que o direito grego se consolidou tardiamente. A propósito, uma das principais características do direito romano é a positivação das normas de conduta regentes da vida social, consubstanciadas na lei das XII Tábuas ou nas Institutas, Digesto ou Código dos Imperadores7. 7 Ao conjunto das compilações das Institutas (manual escolar), Digesto (compilação dos iura), Código (compilação das Leges) e Novelas (reunião das constituições promulgadas após Justiniano) dá-se o nome de Corpus Iuris Civilis. 29 A situação social vivenciada influenciava negativamente a questão do acesso à Justiça. Vigorava o modelo de produção escravagista, conforme expõe Véras Neto: Essa interpretação dos modos de produção no tempo traz à tona a idéia de que o Império Romano e suas várias etapas históricas estariam fixados cronologicamente no modo de produção escravagista, em que o motor do desenvolvimento econômico estava nas grandes propriedades apropriadas pela aristocracia patrícia, que controlando os meios de produção, as terras e as ferramentas necessárias ao trabalho agrícola, dominavam as classes pobres e livres dos plebeus, clientes e a dos escravos, estes últimos como res (coisa), eram uma espécie de propriedade instrumental animada. (VERÁS NETO, 2002, p. 114). Assim, evidente a existência de desigualdade social. Basicamente, a sociedade romana era dividida pelas seguintes classes: a dos patrícios, a dos plebeus, a dos clientes e a dos escravos, como visto, tratados como mero objeto a serviço dos seus senhores. Véras Neto esclarece que: A sociedade desigual gerou uma série de instituições políticas e jurídicas sui generis, bem como um ambiente de conturbação e de conflitos de classe dos patrícios e a dos plebeus, esta situação se manifestou, por exemplo, na rebelião plebéia que gerou a elaboração da famosa Lei das XII Tábuas, atribuindo mais poder aos plebeus [...]. (VERÁS NETO, Idem, p. 114). Dessa forma, nota-se que o ideal almejado pela sociedade romana – situação que vem a refletir no direito romano vigente à época – é a busca pela igualdade. Véras Neto pontua: A Lei das XII Tábuas teria sido o reflexo da ameaça plebéia de abandonar a cidade de Roma, fundando uma nova cidade no Monte Sagrado, próximo a Roma, caso suas exigências não fossem atendidas pela classe dos patrícios. Como concessão para que as ameaças não se consumassem, os patrícios aceitaram um conjunto de leis escritas fosse elaborados a fim de garantir maior isonomia (igualdade) entre patrícios e plebeus. [...]. (VERÁS NETO, op. cit. p. 114). 30 Nesse passo, induvidoso que acessar a Justiça era um privilégio de alguns em detrimento de muitos, não um direito e uma garantia, tendo em vista que nem todos eram considerados cidadãos. Conforme Véras Neto, O universo cultural e a significação moral advindas desse mundo escravagista atribuíam ao direito civil romano a forma de direito material e instrumental sicofântico, ou seja, um direito baseado em ardis e fraudes, que por sua vez acabavam beneficiando os mais fortes em face da existência de uma sociedade extremamente desigual, em que o direito formal permitia usualmente apenas aos mais fortes beneficiar-se do sistema jurídico existente devido ao seu poder material alicerçado nos planos econômico e militar. (VERÁS NETO, op. cit. p. 117). No direito romano, o direito material e o direito processual obstavam o acesso à Justiça. O primeiro refletia a situação social e moral da sociedade romana, logo, por consectário, era formal, não real, de forma que o mais fraco nada tinha a ganhar processando os poderosos. O segundo era pouco eficaz e não garantia o cumprimento das decisões judiciais. Aliás, Não existiam a autoridade e a coerção públicas indispensáveis à implementação de decisões judiciais; e as violações mais cruéis possuíam apenas um caráter civil; não existia, portanto, coação pública capaz de impor a sanção penal, visando à proteção contra a violência que atingisse os bens jurídicos relevantes; as citações eram feitas pelas próprias partes, que dependiam muitas vezes do poder militar para obter êxito nesta iniciativa; não existia, pois, um poder público coativo e exterior, capaz de impor a sanção jurídica de forma organizada e centralizada (VÉRAS NETO, Idem, p. 118). Não é por outra razão que o sistema judicial, até o advento do principado, era privado, atuando no interesse da parte mais forte e poderosa. Como salientado alhures, nos primórdios vigorava a vingança privada, não havendo intervenção estatal na composição dos conflitos sociais. Denominada de “autotutela”, citada fase não contemplava a participação de terceiro imparcial na solução da lide, prevalecendo assim a lei do mais forte. O fortalecimento do Estado ensejou, ainda que gradativamente, sua participação ativa na solução dos conflitos eclodidos na sociedade. 31 O acesso à Justiça precisar ser situado na perspectiva do sistema processual civil romano, divididos em três grandes fases: a) legis actiones; b) per formulas; c) extraordinária cognitio. O primeiro período vigorou desde o princípio da fundação de Roma até o fim da República (754 a.C.). O segundo teria sido introduzido pela Lex Aebutia (149-126 a.C.) e oficializado definitivamente pela lex Julia privatorum, do ano 17 a.C., aplicado de modo esporádico até a época do Imperador Diocleciano (285-305 d.C.). Os dois primeiros compõem o período do ordo iudiciorum privatorum (juízo de ordem privada). O terceiro período, instituído com o advento do principado (27 a.C.), vigorou até os últimos dias do Império Romano do ocidente8 (AZEVEDO; TUCCI, 2001. p. 39). O período da legis actiones nasce em meio à fase arcaica do direito romano, onde Estado e Religião se confundiam. Pela ausência de normas que regulamentavam o sistema processual da época, os julgadores tomavam por base a lei das XII Tábuas e as Institutas de Gaio. Nesse período, não havia qualquer diferenciação entre direito material e direito processual, de sorte que se a situação apresentada no caso concreto correspondesse a uma actio prevista na lei, aquele que se sentia lesado poderia recorrer à via judicial para que um sacerdote examinasse e julgasse a questão posta. Assim, não se dizia que tinha um direito em relação ao outro, mas, sim que se tinha uma ação contra o outro. O procedimento judicial tinha natureza oral e era bipartido, ou seja, a parte apresentava a ação aos sacerdotes, que se pronunciavam para transformar a questão privada em lide processual. Se a situação fática se enquadrasse na ação correspondente, as partes se submetiam a um árbitro incumbido de decidir a questão, o qual buscava inspiração divina para aplicar o direito ao caso apresentado. Basicamente, a lei das XII Tábuas previa ações de conhecimento e ações de execução que poderiam ser manejadas pelos cidadãos romanos. Com a expansão do Império Romano, muitos estrangeiros se fixaram em Roma. A legis actiones só poderia ser manejada por cidadãos romanos nos casos previstos em lei; logo, os conflitos entre romanos e estrangeiros eram desprovidos 8 Em verdade, as datas de vigência de um e outro período encontram divergência na doutrina. Segundo Edson Prata (op. cit. p. 53), o período da legis actiones perdurou de 754 a 149 a.C. O período per formulas perdurou de 149 a.C. a 342 d.C. e, por derradeiro, o período da cognitio extraordinária desenvolveu-se de 342 d.C. em diante. 32 de previsão legal para solução. Criaram-se, então, as magistraturas públicas exercidas pelos pretores nas províncias do território, momento em que o processo adentra a fase clássica, chamada de período per formulas ou formulário. As principais fontes normativas processuais do período são as Institutas de Gaio e de Justiniano. Nesse período, o processo passa a ser escrito; não é mais preciso ser detentor de uma ação para postular em juízo. As partes se apresentavam perante o pretor; a fórmula9 era apresentada e assim fixavam-se os pontos da litiscontestatio, ou seja, os pontos controvertidos da demanda para apreciação e solução do litígio. O árbitro delegado pelo pretor decidia a lide nos limites propostos pelas partes, sem que houvesse qualquer participação do Estado na composição do litígio. O período da extraordinária cognitio surgiu com o início do principado de Otaviano Augusto em Roma. Nesse período, o poder estatal estava centrado nas mãos de uma só pessoa (o príncipe), havendo a unificação das fontes do direito. Ademais, o período da extraordinária cognitio trouxe consigo transformações no processo romano; aquele que demandava já não mais era submetido a um sistema jurisdicional bipartido, de modo que ao magistrado, por delegação do príncipe, cabia aplicar o direito aos litigantes, sendo a decisão por ele proferida dotada de natureza pública. Desse modo, o Estado passa a ser detentor exclusivo do poder de império e imposição sendo vedado às partes solucionar seus conflitos por outros meios, restando, tão somente, a via estatal. A Justiça privada é substituída pela Justiça pública, surgindo a primeira noção de Jurisdição10. Essa fase marca a consolidação do monopólio da jurisdição estatal, que se opera através do processo. É notório, assim como no direito grego, que no direito romano o acesso à Justiça continha limitações de natureza processual e social. Como ponderado em linhas anteriores, havia desmedida desigualdade entre os indivíduos. Assim, esse fator social influenciou de forma veemente o sistema judicial romano. 9 “Fórmula, diminutivo de forma, é a palavra grega que significa modelo. Fórmula, portanto, é um autêntico modelo abstrato pelo qual se propicia litigar por escrito, em conformidade com os esquemas jurisdicionais previstos pelo direito honorário, e no edito do pretor”. (AZEVEDO; TUCCI, op. cit. p. 7374). 10 Jurisdição, portanto, é uma face do poder estatal que impõe o cumprimento da lei visando manter a ordem e a paz social na sociedade; nota-se que o Estado substitui a vontade das partes que já não podem se valer da autotutela para resolver seus conflitos. 33 No período das ações da lei, a partes somente acessavam o tribunal se a lei previsse ação correspondente, deixando, certamente, inúmeras situações sociais sem qualquer espécie de tutela. Ademais, por ser o processo conduzido sob a influência de ritos místicos e religiosos, o acesso à Justiça era prejudicado pelo formalismo, dificultando a concretização do direito material das partes. Ponto positivo a ser destacado era a oralidade do processo; processo que prima o princípio da oralidade torna-se mais célere, e atende melhor ao interesse das partes litigantes; por outro lado, o ponto negativo que merece relevo é a bipartição do procedimento, causando um dispêndio maior de tempo para a dicção do direito controvertido nos autos. O procedimento no direito romano era dividido em duas fases: uma perante o magistrado ou pretor, e outra perante o juiz ou árbitro, a depender da ação intentada pela parte. A primeira fase, in jure, iniciava-se com a citação, feita diretamente pelo autor; a presença das partes era imprescindível, vez que ainda não se conhecia o instituto da revelia; se as partes transacionassem, a causa estava encerrada; o pretor ouvia a exposição do autor, feita oralmente; após, o réu tinha a oportunidade de se manifestar, confessando os fatos articulados pelo autor (confessio) ou contestando-os (infitiatio); se houvesse confissão, o réu deveria entregar o bem da vida perseguido pelo autor ou então pagar quantia correspondente; se houvesse contestação, e preenchidos os requisitos legais e costumeiros, o magistrado admitia a ação; posteriormente, as partes elegiam um juiz e apresentavam seus assistentes e testemunhas, formando a litiscontestatio. Assim, encerrava-se a primeira etapa, de modo que as partes procuravam o juiz escolhido para julgamento da causa (PRATA, op. cit. p. 66). Para o período formulário, as críticas não são outras. A ausência de participação do Estado na solução dos conflitos, nos dois primeiros períodos, certamente colocava o litigante mais fraco em desvantagem, sobretudo, se considerado que o litígio era resolvido única e exclusivamente com base no interesse das partes. Ademais, por ser a citação ato processual de natureza privada, era corriqueiro o réu não comparecer diante do magistrado ou pretor, fato que impedia a formação da litiscontestatio e reflexamente limitava o acesso à Justiça. De outro lado, o período da extraordinaria cognitio conferia a falsa ideia de que a intervenção do Estado na solução dos conflitos conferia ao indivíduo o amplo acesso à Justiça. No entanto, por haver interferência do príncipe na solução dos 34 conflitos, a imparcialidade dos julgamentos restava comprometida, de forma que a Justiça feita era aquele que interessava ao soberano. É certo que o Período Antigo foi marcado pela ávida busca do ideal de igualdade material nas relações sociais e jurídicas. Contudo, maior era a desigualdade entre os indivíduos e o sistema processual rígido, formalista e ineficaz, o que demonstra claramente que o acesso à Justiça não passava de mera retórica e muito tinha a evoluir. 2.2.2 Período Medieval O Período Medieval guarda acontecimentos históricos que refletem no movimento de acesso à Justiça. Estende-se do século IV e V até mais ou menos o advento do Renascimento, que ocorreu nos séculos XV e XVI. No contexto histórico, o Período Medieval se caracteriza pelas invasões praticadas pelos bárbaros no Império Romano, fato que determinou a queda deste. R. C. Van Caenegem explica que com a queda do Império Romano, três outras novas civilizações surgiram: O Império Romano fora a forma política da antiga civilização mediterrânea meridional e ocidental da Europa, da África do Norte e da Ásia Menor. Quando caiu, três novas civilizações surgiram: o Império Bizantino grego-cristão (no qual algo do antigo Império Romano sobrevivera); o mundo árabe-islâmico; e o ocidente latino-cristão, composto pela antiga população romana e pelos novos povos germânicos que acabavam de se estabelecer por ali. Na Europa ocidental, a autoridade imperial declinara no século V e o antigo Estado romano fora dividido em vários reinos tribais germânicos. Nos séculos que se seguiram, os reis francos da dinastia carolíngia, os reis germânicos da dinastia saxã e seus sucessores fizeram várias tentativas para restaurar a antiga autoridade supranacional de Roma. Mas todas, sem exceção, foram inúteis. (CAENEGEM, 2000, p. 23). Em razão das conquistas políticas e territoriais, os bárbaros romperam com a unicidade do ordenamento jurídico vigente para impor a aplicação de legislação conforme a etnia, considerando a inexistência de fusão entre os povos romanos e bárbaros. Conforme explica Martins: 35 [...] As populações passaram a viver de acordo com as próprias leis, a isto se denominou princípio da personalidade do direito, ou seja, o indivíduo vive segundo as regras jurídicas de seu povo, raça tribo ou nação, não importando o local onde esteja. A aplicação deste princípio permitiu a sobrevivência do direito romano no Ocidente ainda durante os primeiros séculos após a queda do Império. (MARTINS, 2002, p. 196). Desta maneira, o direito medieval se desenvolveu sob a égide de ordenamentos jurídicos paralelos, aplicáveis a pessoas distintas. Assim, A certa altura, no final do século V e inícios do século VI, a situação pode ser sumariada da seguinte maneira: os francos, sob a liderança de Clóvis, os ostrogodos, sob a liderança de Teodorico, e Grande, e os visigodos, sob a liderança de Eurico e depois Alarico, disputam o Ocidente. Os francos controlam o norte do que hoje é a França, os ostrogodos controlam a Itália setentrional a partir de Ravena, e os visigodos controlam o sul da França, ou Gália. Especialmente na Gália a divisão entre romanos e não-romanos é forte. Teodorico governa a Itália com conselheiros romanos que mantém de modo geral. Neste mundo dividido, duas ordens de direito se estabelecem: o direito dos bárbaros e o direito romano vulgarizado, ou direito romano bárbaro. (Lopes, op. cit. p. 67-68). A Idade Média é um período histórico cujas bases sociais são caóticas; a crise se instalou devido à quebra da estabilidade e garantia conferida pelo Império Romano. No campo religioso, houve regressão ao paganismo, algo contrário ao Cristianismo vigorante até a derrocada de Roma. O Direito dos bárbaros passou a viger concomitantemente ao Direito Romano, decorrendo de uma consolidação de costumes. O principal instrumento jurídico do período é a Lei Sálica. Em decorrência da divisão de classes que se operava na sociedade medieval, havia um sistema de Justiça feudal ou senhorial. A sociedade medieval, em que o sistema feudal vigora para as relações de detenção de terra, é uma sociedade de ordens e estamentos. Seu direito é um direito de ordens: os homens dividem-se em oratores, bellatores, laboratores, isto é, aquelas que oram (clérigos), aquelas que lutam (cavaleiros e senhores) e aquelas que trabalham (servos). [...] Havia dois sistemas de relações: uma propriamente feudal, relativa a vassalagem e tenência de terra, e outra senhorial, relativa à apropriação da renda da terra, relação senhorial entre servo e senhor. (Lopes, op. cit. p. 73). 36 É de se mencionar que Justiça não compreendia apenas o poder de dizer o direito; legislar e administrar são apenas outras duas formas de se fazê-la. A Igreja exercia grande participação no sistema político e jurídico através das Instituições Eclesiásticas, conforme expõe Lopes: O evento que marca um ponto de passagem na história do direito canônico é a transformação radical liderada por Gregório VII (para entre 1073 e 1085). Até então, a Igreja do Ocidente havia sido uma comunidade sacramental, espiritual, não jurídica e muito mais uma federação de Igrejas nacionais do que uma rígida monarquia centralizada em Roma. [...] A autoridade papal era mais tradicional e moral que jurídica, e muito menos eficaz politicamente do que normalmente se pensa. É com Gregório VII, neste reinício da expansão do Ocidente, que as coisas começam a mudar, e a mudança se reflete e é também constituída no campo do direito. [...] As leis canônicas não se distinguiam bem de liturgia e teologia. A lei era uma espécie de disciplina, de regra comum. [...]. (Lopes, Idem, p. 85). Desta maneira, os conflitos sociais eram julgados pelos tribunais senhoriais ou pelo bispado ou papado, caracterizando, portanto, a existência de duas jurisdições concorrentes, uma secular e outra eclesiástica: “Na Idade Média, a jurisdição eclesiástica era ampla abrangendo o direito de família, casamento, testamento, juramento, obrigações, etc., razão pela qual o direito canônico passou a exercer fortíssima influência na vida dos povos”. (PRATA, op. cit. p. 116). É nesse período, ainda, que se desenvolveu o direito canônico, importante para a reformulação das concepções de processo e jurisdição. Segundo Prata (op. cit. p. 111) “O direito canônico constitui-se no conjunto de leis da Igreja Católica [...]. Apóia-se sobretudo nos postulados consagrados pela Bíblia, livro fundamental do Cristianismo, bem como nos ensinamentos dos Santos Padres, os Papas, cuja doutrina é conhecida pelo nome de patrística”. Lopes anota as características do legado deixado pelo processo canônico: O processo canônico legou-nos algumas características especiais: 1) é um processo conduzido por profissionais em direito; em segundo lugar 2) reconhecia um sistema de recursos que permitia a uniformização, a concentração e a centralização do poder; em terceiro lugar 3) adquiriu uma perspectiva investigativa (inquisitorial) mais do que acusatória ou adversária (duelística); finalmente 4) impôs a escrita sobre a oralidade, constituiu o sistema cartorial. Este modelo processual liga-se a uma forma de poder política e a ela serve. [...]. (Lopes, op. cit. p. 100). 37 A reforma religiosa desencadeada por Gregório VII distinguiu a jurisdição do conselho sacramental por matéria de foro interno ou foro externo. As sanções penitenciais impostas pelo cometimento de pecados, ou por força da consciência do fiel, são questões de foro interno; a solução dos litígios, atividade comum ao jurista, é matéria de foro externo, nesse período, exercida pelos bispos e senhores, papas e reis ou imperadores. Dois critérios objetivos de distinção da jurisdição são apresentados pelo direito canônico, a saber: a) ex ratione personarum (em razão da pessoa) e; b) ex ratione materiae (em razão da matéria). A depender das pessoas envolvidas no litígio ou da matéria debatida no processo, a jurisdição eclesiástica atraía a competência. Santos (2002, p. 229) esclarece que “a jurisdição eclesiástica passou a ser competente, por exemplo, para julgar todos os casos relativos ao casamento e a maioria dos litígios envolvendo direito de família”. A formalização e racionalização do processo tinham influência direta na questão do acesso à Justiça. O procedimento passou a ser escrito, fato que ensejou o surgimento do notário, haja vista que o juiz passa a contar com redator oficial para redigir as fórmulas e atos judiciais (termos, autos) do litígio instaurado em juízo. É o que se verifica: No que diz respeito ao processo civil primeiramente, o processo canônico introduziu o escrito. Com ele, destaca-se em importância a figura dos notários. Além do juiz, é preciso contar com este redator oficial de fórmulas e atos judiciais, termos que são reduzidos a escrito como memória (termos, autos) do processo. O notário cada vez mais secretaria o juiz em íntima cooperação e ligação com o desenvolvimento da controvérsia. No processo canônico ele é um oficial da corte (tribunal) e não apenas um perito em escrever. (Lopes, op. cit. p. 102). Não se pode olvidar, ainda, que o procedimento tornou-se organizado através de fases distintas, divididas com clareza, entretanto, padecendo de morosidade e extrema complexidade ritualística. O autor ingressa com o libelo ao oficial da corte que chama a juízo o réu11, que toma conhecimento dos termos do 11 Diferentemente do sistema processual vigente no Império Romano, na Idade Média aquele que pleiteava certo direito em juízo não precisava “sair à caça” do réu, pois, a citação tornou-se ato estatal. 38 pedido. Este poderia apresentar exceções12 (o que atualmente se conhece por preliminares processuais e de mérito). Após, o réu apresenta a contestação, atacando diretamente o pedido do autor. Posteriormente colhem-se as provas (confissão, testemunha, documentos) e chega-se a sentença. Embora complexo e moroso, nota-se no processo canônico o mínimo de garantia do contraditório, ainda muito restrito se comparado aos moldes atuais. Ademais, processo canônico era norteado por princípios processuais éticos, decorrentes da ideologia cristã vigente naquele momento. Basicamente, eram estes: a) dever de dizer a verdade em juízo; b) equidade nos julgamentos; c) boa-fé, inclusive, os dois primeiros, incorporados pelo atual Código de Processo Civil, em seu artigo 1413. No Período Medieval vislumbra-se a presença da assistência judiciária gratuita, elemento relevante para garantir o efetivo acesso à Justiça. É o que pondera Lopes: Gozavam também do privilégio do foro eclesiástico os miseráveis (miserabiles personae): mendigos, pobres, órfãos, viúvas, que se multiplicavam nas cidades medievais e também nos campos, nos tempos de fome, guerra, secas, invernos rigorosos, epidemias, etc. No for eclesiástico eram atendidos pelos advogados dos pobres, nomeados pelo bispo, considerado (doutrinariamente, claro está) pai dos pobres por excelência. (LOPES, op. cit. p. 101). É que os pobres possuíam foro privilegiado, tendo suas controvérsias julgadas pela Igreja, que lhes providenciava advogado para defesa de seus interesses. Ademais, é na Idade Média que surge a figura do advogado, não como cúmplice ou sócio da parte, mas, como jurisperito (LOPES, Idem, p. 102). Evidentemente que a questão do acesso à Justiça merece críticas no período ora abordado. Notadamente na seara processual penal, o processo inquisitorial admitia a tortura como forma de obtenção da confissão, caracterizando um verdadeiro retrocesso. Assinala Naspolini que: 12 Classificavam-se as exceções em dilatórias ou peremptórias conforme destinavam-se a retardar o andamento do processo ou fulminá-lo por trata-se de vício processual insanável. 13 Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: I - expor os fatos em juízo conforme a verdade; II - proceder com lealdade e boa-fé; [...] 39 [...] sob a influência da Igreja, todo um sistema de direito penal (o acusatório) foi alterado, para que os crimes de heresia e bruxaria pudessem ser eficazmente combatidos. Novas regras para o processo, que lhe conferiam feição inquiritória, aliadas à reintrodução da tortura como meio de extrair a confissão, redundavam num processo da qual dificilmente o acusado escapava sem condenação. A ordem jurídica pluralista, segmentada por um direito emanado da Igreja e outro secular, acabou por gerar uma carência de ao indivíduo, que precisava superar mais de um poder jurisdicional para ver seu direito assegurado. Conforme explicita Lima Filho, [...] sendo o direito um verdadeiro instrumento de organização social, não pode descurar da influência da religião, influência esta que era tão marcante que chegou mesmo a criar uma esfera jurídica própria – direito canônico – conduzindo, pois, a uma ordem jurídica pluralista, ou seja, o cidadão tinha uma carência de acesso a diversas ordens para poder obter Justiça. (Lima Filho, op. cit. p. 115), Havia a concepção de que havendo distribuição de Justiça ampla, estaria assegurado o livre acesso ao julgamento, como salienta Lima Filho (Idem, p. 115). Ainda, as discussões filosóficas sobre a Justiça, travadas especialmente por Santo Agostinho14, Santo Isidoro de Sevilha e Santo Tomás de Aquino15, não foram 14 A filosofia agostiniana nasceu durante a era patrística e recebeu forte influência da Igreja e de seus dogmas. Embora discuta os problemas da Justiça com enfoque teológico, não passa despercebida a herança helênica, sobretudo, do pensamento platônico. Destaca-se, mormente, a obra “Cidade de Deus” onde Santo Agostinho distingue a lei divina (lex aeterna) e lei humana (lex temporalem), fundamentando suas idéias de Justiça sobre as mesmas. Eduardo Bittar e Guilherme Assis de Almeida (2002, p. 181) explicam com clareza as concepções de Justiça humana e divina, senão vejamos: “A Justiça humana é aquela que se realiza inter homines, ou seja, que se realiza como decisão humana em sociedade. A Justiça humana tem como fonte basilar a lei humana, aquela responsável por comandar o comportamento humano. Nesse sentido, o homem relaciona-se com outros homens e com o que o cerca; é no controle dessas relações que se lança a lei humana. Não é, portanto, sua tarefa comandar o que preexiste no comportamento social. Para que se possa pensar acerca do que preexiste, deve-se recorrer a idéia de Deus, que, como origem de tudo, como princípio unitário de todas as coisas, só pode ser o legislador maior do universo. A tarefa divina no controle do todo é, aos olhos humanos, irrealizável. É exatamente a ilimitação dos poderes de Deus que permite tudo conhecer, tudo saber, tudo coordenar. Pelo contrário, é a limitação humana que faz do homem um ser restrito ao que lhe está ao alcance mais imediato. A limitação humana torna o campo de abrangência das leis no tempo e no espaço igualmente restrito. A Justiça divina é aquela que a tudo governa, que a tudo preside dos altiplanos celestes. De sua existência brota a própria ordenação das coisas em todas as partes, ou seja, em todo universo. A Justiça divina baseia-se na lei divina, que é aquela exercida sem condições temporais para sua execução, não sujeita, portanto, ao relativismo sociocultural que marca as diferenças legislativas entre povos, civilizações e culturas diversas. Mais que isso, a lei divina, além de absoluta imutável, 40 suficientes para instituir uma prática judiciária institucional, uma vez que o direito é essencialmente pragmático. Assim, é possível inferir que os debates filosóficos sobre Justiça não alcançaram efeitos práticos e nada influenciaram o sistema judicial vigente na Idade Média, o que ensejou uma espécie de revisão do pensamento greco-romano, advindo então um novo movimento conhecido como “Renascimento”. 2.2.3 Período Moderno A teoria do direito denominada de “direito natural” ou jusnaturalismo é um marco importante do Período Moderno. Referido período se estende entre o século XVII e XVIII e possui eventos históricos importantes, e que a toda evidência, influenciam a questão do acesso à Justiça. Na seara filosófica, a Escola Clássica do Direito reconheceu a razão humana como fonte do direito natural; na seara econômica, o mercantilismo evoluiu, surgindo um primeiro estágio do capitalismo; na seara religiosa, tem-se o fim da cristandade; na seara política, o Estado Nacional se afirma através das Constituições promulgadas por imperativo das revoluções sociais. Por influência do jusnaturalismo moderno, que não se confunde com o jusnaturalismo clássico preconizado por Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, o perfeita e infalível, é infinitamente boa e justa. O verbum divino só pode ser a raiz última de formação do que é, e também do que não é. Quando, porém, se trata de falar sobre a Justiça divina, deve-se advertir de que se está a falar somente da Justiça de Deus como Justiça d’O Criador, mas também de uma Justiça que se desdobra na própria Justiça humana. Grife-se que a lei divina não é somente a lei d’Ele, mas também a que Ele produz nos homens; nesse sentido, e somente nesse sentido, a lei dos homens também é divina, à medida que é dada por Deus”. Ainda, Deus separa os bons dos maus e confere a estes o que merecem. Para citado filósofo, o Direito só pode ser Direito na medida em que seus mandamentos se concatenam com os princípios de Justiça. Santo Agostinho vislumbrou a Justiça como uma virtude de dar a cada um o que é seu (sum cuirque tribuere). 15 A base filosófica do pensamento de Santo Tomás de Aquino foi construída durante o período da Escolástica. Em linhas gerais, sua filosofia – assim como a de Santo Agostinho – é fundamentada na religião, mais precisamente no Cristianismo. A Justiça, segundo a ótica de Santo Tomás de Aquino também é uma virtude consubstanciada na ação de dar a cada um o que é devido. O direito é objeto da Justiça e só o é se for justo; não se reduz apenas a lei, pois, abrange o que está posto e algo mais, que pode advir da razão humana ou da razão natural. Em Suma Teológica, a principal obra do filósofo em comento, encontram-se três espécies de lei: a) lei eterna (lex aeterna); b) lei natural (lex naturalis); c) lei humana. A lei eterna é promulgada por Deus, que tudo ordena, que tudo rege e que está em tudo; a lei natural representa a participação racional na lei eterna; a lei, por sua vez, é fruto de uma convenção e representa a positivação da lei natural, entretanto, somente haverá violação a lei humana quando esta estiver em choque com a lei divina. 41 Período Moderno revive a reafirmação do individualismo humano, que une os indivíduos por meio do contrato social, razão pela qual Rousseau e seu pensamento têm grande importância no final do século XVIII. Hugo Grotius é outro filósofo jusnaturalista a ser lembrado, haja vista que a ele se atribui o desenvolvimento da visão racionalista do direito. Restou demonstrado que durante a Idade Média o absolutismo se consolidou como forma centralizadora de exercício do poder estatal e como meio de subordinação dos indivíduos ao poder real. Saldanha explica com precisão a transição do período medieval para o moderno: Por outro lado, cabe vincular à idéia das “origens” do Estado moderno dois processos paralelos, que ocorreram na transição para o mundo moderno, e a que nos reportamos de passagem linhas acima. De um lado, o processo de centralização: passou-se do poder disperso e local, comum na Idade Média, a um poder situado num foco axial. Os senhores feudais, que detinham o poder em cada uma de suas sede territoriais, perdem-no aos poucos para o monarca, que o exerce em um centro, unificando politicamente o reino. De outro lado, a concentração do poder nas mãos do monarca, que não só recebe o plus proveniente do que os terratenentes perdem, como também “enfeixa” em sua competência pessoal funções que antes estavam (ou poderiam estar) em mãos de parlamentos e tribunais. Com isso se consolida uma noção expressivamente unitária do Regnum: ele se fortalece como realidade ao suplantar o poder dos feudais e ao liberar-se da tutela do Imperador (e em alguns casos da do Papa); e se apresenta como corpo político específico, dotado de soberania – Jean Bodin anotará isto em 1576 – e entendido como um ente institucionalmente caracterizado. Retoma-se a noção de Res pública no sentido clássico. Passa-se a usar o termo Estado em novo sentido. Este sentido veiculado por Nicolau Maquiavel desde a frase com que abre O príncipe, supera as acepções medievais da palavra e adere à nova realidade política. O Estado aparece como ordem política soberana, e aparece com perfil histórico específico. (SALDANHA, 1987, p. 08-09). À Igreja Católica, sobretudo, incumbiu à difusão de que as funções de julgar, legislar e administrar deviam estar centradas nas mãos do monarca ou do Papa, que é sobrenaturalmente inspirado para governar a sociedade. Entretanto, o Período Moderno desmistifica essa visão para implantar a concepção de que o poder real tem origem divina, mas, precisa ser limitado na medida em que almeja a felicidade dos indivíduos. Nesse período, as pressões sofridas pela realeza tornam-se insustentáveis e a classe burguesa enrijece ainda mais a oposição contra os poderes do monarca, 42 tendo em vista que os direitos naturais já consagrados não eram respeitados, nem se encontravam reunidos numa Constituição. Ademais, a carga de tributos era demasiadamente elevada, pois, muito se exigia dos indivíduos para que as regalias do rei pudessem ser sustentadas. A classe burguesa se opunha ainda, contra privilégios conferidos a classe aristocrata. A Revolução Inglesa de 1688 delimita, no Estado Moderno, o início da reação social contra o absolutismo monárquico, tendo como ideologia política e filosófica oriunda da Escola Clássica do Direito Natural, a limitação ao poder real. A propósito: Não é possível fixar, precisamente, no tempo ou no espaço, o nascimento do chamado Estado Moderno, eis que ele é o resultado de uma longa e progressiva evolução. [...] Nessa abertura histórica, pode-se atribuir a MAQUIAVEL a primeira referência ao Estado sob um ângulo diferente e típico. A partir do Secretário da Chancelaria de Florença, a idéia de Estado como “Sociedade política organizada” adquire contorno mais definidos. A noção centralizadora e suprema que aparece em “O Príncipe” é, na verdade, a notícia concreta de que o Estado assume o seu caráter integralizador. O caminho das monarquias absolutas, máxime em decorrência da queda do feudalismo, conduz à unidade do Estado, centralizando o poder na pessoa do soberano. Esta unidade, assim reforçada pela intensificação do poder real, constitui, efetivamente, uma nova dimensão do Estado. Da mesma forma a conscientização progressiva dos indivíduos, no sentido do reconhecimento de direitos que lhes são próprios, modifica o quadro estatal. O relacionamento desta tomada de posição do indivíduo perante o Estado, com o absolutismo, parece-nos exato, na medida em que, normal e logicamente, o poder arbitrário cria resistência individual. A liberalização do Estado é conseqüência natural desta transformação concreta que se opera pela reação do indivíduo, já agora sob o prisma de pessoa, ao absolutismo monárquico. A conscientização do homem conduz, assim, a insurreição contra a onipotência do Estado. A autolimitação do Estado frente ao homem é, portanto, outro dado objetivo na caracterização do Estado Moderno [...]. Esta etapa divisória tem estreito relacionamento com a organização constitucional do Estado. Na verdade a estrutura do Estado, elaborada conforme uma Constituição, acompanha a afirmação do homem como sujeito de direitos próprios e que não podem ser violados pelo Estado. A idade de Constituição, como instrumento positivo e formal, não aparece vinculada à noção de Estado da antiguidade ou do período medievo. A Magna Carta de 1215, que muitos pretendem apontar como modelo originário de Constituição, foi apenas um convênio entre os barões e seu senhor. Em realidade, a “Carta Libertatum” ou “Carta Baronum”, ao espelhar uma limitação à supremacia feudal do Rei, considera como “homo líber” o barão e não o elemento humano do Estado, na sua totalidade. Somente com o “Bill of Rigths” de 1689 é que pode falar-se em determinações constitucionais [...]. (DIREITO, 1968, p. 79-80). 43 Os ideais da Revolução Inglesa, após alguns anos, influenciaram a libertação das treze colônias americanas em, e, posteriormente, a Revolução Francesa de 1789, esta, tomada doutrina de Rousseau e Montesquieu. Tais movimentos revolucionários mudaram o mundo, e toda forma de pensar o direito e a filosofia sofre profunda alteração. Lima Filho pontua que: A Revolução Francesa com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, traz em seu bojo a teoria da separação dos poderes e o princípio da legalidade, este com uma forte visão absolutista e acima de tudo individualista, máxime no que se refere à proteção da propriedade e da autonomia privada. Há assim, uma tendência para uma igualdade, que diria formal, com a exclusão do Estado nos assuntos que digam respeito à sociedade. (LIMA FILHO, op. cit. p. 118). A conseqüência dos acontecimentos históricos ocorridos no Período Moderno é uma forte reação contra o Poder Judiciário, fiel e subserviente aos interesses da Coroa. Em razão disso, os poderes conferidos aos juízes são mitigados, de modo que sua função resume-se a simples atuação a vontade concreta da lei, tornando-se verdadeiro autômato. Por via de conseqüência, conforme pondera Lima Filho: Tal desprezo para com o Judiciário evidencia que o Estado liberal não tinha qualquer preocupação com a idéia nem com a prática de acesso à Justiça. Surge, pois, uma situação inusitada: ao mesmo em que a Constituição do Estado assegura, ainda que formalmente, a igualdade entre as pessoas, o que também em tese deveria assegurar um igual acesso à Justiça, no plano prático a realidade era bem diversa. (LIMA FILHO, Idem, p. 119). Não se pode perder de vista, ainda, que no Período Moderno duas correntes de pensamento buscavam sua consolidação: de um lado tem-se o positivismo jurídico, guardando a idéia de que o Direito se reduz a lei, e que a aplicação desta deve desprender-se de fatores sociais, e valores ideológicos, morais, religiosos, etc. Com a fase da codificação, iniciada pelo Code Civil de 1804, é fato que o costume e a jurisprudência tornaram-se fontes secundárias. Acreditava-se que o 44 direito positivado em Códigos suprimiria a insegurança jurídica até então presente. Tem-se tal idéia como meia verdade, já que por outro lado, o juiz passou a declarar o conteúdo da lei. Interessante o que expressa Lima Filho, a esse respeito: Entendia-se que a sentença deve fundamentar exclusivamente no texto da lei, vale dizer: a interpretação se constitui no processo de mera exegese dos textos e sua finalidade, a descoberta da intenção psicológica do legislador. Essa doutrina ultralegalista proclama que a lei – ou mais precisamente, o Código de Napoleão – deveria ser a única fonte das decisões judiciais. Logo, toda decisão não passa de uma conclusão do silogismo lógico, em que a premissa maior é a lei e menor, o enunciado de um fato concreto. A função do aplicador não era senão a de subsumir os fatos concretos à determinação abstrata da lei, vale dizer: reinava a concepção mecânica da função judicial, entendida como um processo de dedução lógica, que supunha a existência para cada caso controvertido uma lei e que aquele caso fosse redutível a um expressão simples, livre de qualquer ambigüidade. A visão legalista era tão extremada que Laurant advertia que os códigos não deixariam margem ao arbítrio do intérprete, que outra função não teria senão interpretá-los exegeticamente. As conseqüências hermenêuticas desses princípios teóricos não são difíceis de serem antecipadas: se o objetivo do jurista é conhecer a intenção psicológica do legislador, então, a interpretação é mera exegese e o método que se terá de valer é o método gramatical ou literal. Se a lei é plena ela contém todo o direito (verba legis) e do seu espírito (mens legis) é suficiente, ou seja, se a lei continha todo o direito, se o processo de aplicação era um mero silogismo, e se podia ser superada, segundo alguns de seus partidários, a ausência de premissa maior – a lei – pelo procedimento integrativo da analogia, o direito seria certo e completo. (LIMA FILHO, op. cit. p. 119). A atuação do juiz é semelhante à relação entre o servo e seu senhor. O servo obedece; o juiz não passa de escravo da lei porque deve se submeter à literalidade dela, sendo-lhe vedado emitir juízos de valor em relação ao litígio apresentado pelas partes. Cabe a ele, como salientado anteriormente, apenas declarar o conteúdo da lei, mais nada. De outro lado, opondo-se ao positivismo jurídico, encontra-se a corrente jusnaturalista, que parte da premissa de que a validade da lei encontra fundamental no direito natural. É possível inferir que no Período Moderno o acesso à Justiça era formal, uma vez que a Jurisdição encontrava-se enfraquecida pela veemente limitação de poderes do juiz, que como dito, não passava de escravo da lei. Embora fosse direito assegurado, na prática ainda era privilégio de poucos. 45 No último estágio do Estado Liberal, as desigualdades sócio-econômicas predominam, uma vez que toda a riqueza se encontra enfeixada nas mãos da burguesia industrial, razão pela qual a proteção a direitos individuais já não é mais suficiente, surgindo discussões a respeito de questões sociais. 2.2.4 Período Contemporâneo Embora ainda não se tenha esboçado um conceito de acesso à Justiça, sua relevância já foi expressa por Cappelletti (1988, p. 12): “O acesso à Justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar o direito de todos”. Abreu (2008, p. 31) tece consideração semelhante: “O acesso à Justiça insere-se dentre as grandes preocupações da sociedade contemporânea. A par do enfoque jurídico, notadamente do processo civil como instrumento de resolução de conflitos, avulta a repercussão política e social do tema, essencial no esquema mais amplo da democracia e do Estado Social de Direito”. De fato, a temática do acesso à Justiça é o ponto nevrálgico da moderna processualística, conforme acentuou Cappelletti (Idem, p. 13). Assim, “tem-se por insuprimível a relação de conteúdo e funcionalidade, entre acesso à Justiça e o processo”. “Sob o ponto de vista da atividade jurisdicional, não há como referir-se ao acesso à Justiça sem se considerar o processo como instrumento de sua realização” (CICHOCKI NETO, 1998, p. 61). No Período Contemporâneo, o acesso à Justiça sofreu mutações em razão de sua evolução teórica, por conta da influência positiva decorrente da evolução histórica do Constitucionalismo e do próprio direito processual civil, antes centrado na lei, e agora nos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados16 17. 16 Estudioso do assunto, Eduardo Augusto Salomão Cambi (2007, p.) retrata com precisão aludida mutação, denominada de “neoprocessualismo”. Em linhas gerais, a partir da constitucionalização dos direitos infraconstitucionais, alterou-se radicalmente a exegese da norma jurídica. Antes, porém, a Constituição não passava de mera Carta Política destituída de força normativa, e os Códigos se colocavam no centro do ordenamento jurídico. A lei escrita e codificada se traduzia na expressão na vontade geral, como fruto da ideologia da classe burguesa e o juiz deveria agir como la bouche de la 46 A filosofia marxista surgida entre a metade do século XIX e início do século XX com a finalidade de harmonizar a tensão entre proletariado e detentores do capital, inevitavelmente vai refletir na questão do acesso à Justiça, mormente, no que tange a abertura para a conquista de uma nova classe de direitos. Nesse sentido, Lima Filho expõe que: Especialmente no campo do trabalho, as reivindicações do movimento marxista servira de marco histórico em vários países, passando, necessariamente, pela discussão do acesso à Justiça. Pode-se afirmar, com certeza, que no campo do Direito do Trabalho encontramos o ponto inicial do verdadeiro acesso à Justiça, especialmente no que se refere a direitos individuais. Isso dá-se pela facilidade do acesso em decorrência da prevalência da mediação e da conciliação nos conflitos trabalhistas e pela marcante índole protetiva do Direito Laboral, com maior ênfase no ônus da prova do trabalhador, e mais que isso, de uma visão da defesa e da coletivização do conflitos de ordem trabalhista. Há, por conseguinte, uma inevitável necessidade de uma maior e efetiva intervenção do Estado, para assegurar, com maior ênfase, no campo social, o que o livre jogo do mercado no Estado liberal não permitia. Estamos, portanto, em uma nova época, de intervenção do Estado visando assegurar a igualdade material e não apenas a formal pregada pelo liberalismo. Com isso permitiu-se que os menos favorecidos tivessem acesso à escola, à cultura, à saúde, à participação, a tudo aquilo que no passado se sustentava – a felicidade. Essa nova ordem resgata a dimensão social do Estado com maior veemência no que se refere à ordem jurídica. (LIMA FILHO, op. cit. p. 121). Na seara social, a Igreja contribui na luta pelas desigualdades sociais através do pensamento social cristão difundido pela Encíclica Rerun Novarum, idealizada pelo Papa Leão XIII no ano de 1891. Citada luta é complementada com novos documentos papais, como Quadragésimo Ano, em 1931, e Populorium Progressio do Papa Paulo VI, em 1967 (Lima Filho, op. cit. p. 121). Dentre alguns autores, MARINONI (1993, p. 16-26) situa o tema numa perspectiva constitucional, de forma a vislumbrar o processo como um instrumento de manutenção e garantia do Estado Democrático de Direito, e o acesso à Justiça como uma “ponte” entre o processo civil e a Justiça social. Entrementes, o enfoque constitucional nem sempre preponderou. loi (a boca da lei). Ocorre que a lei perdeu sua posição central diante da Constituição e os juízes, que até o início do século XX apenas atuavam a vontade concreta da lei, passaram a agir de acordo com a vontade constitucional. A propósito, o “neoprocessualismo” encontra alicerce teórico no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988. 17 BIDART (1983, p. 193-205) aborda, também, a incidência constitucional sobre o processo. 47 Evidente que o Estado Liberal18 pôs em relevo garantias individuais tais como a liberdade e igualdade19. No entanto, eram garantias meramente formais, de 18 O Estado Liberal e o Estado Social são considerados marcos de grande importância para o Constitucionalismo. Sobre o assunto, interessante trazer a baila o ensinamento de DALLARI (2000, p. 197-200). De acordo com o autor, o Constitucionalismo teve início no ano de 1215 quando o Rei João Sem Terra foi compelido pelos barões da Inglaterra a subscrever a Magna Carta, documento constitucional que limitava seus poderes, e impunha o dever de respeitar os direitos ali contidos. Posteriormente, no século XVII, fortaleceu-se com a afirmação do Parlamento inglês como órgão legislativo. Por fim, no século XVIII, três fatores marcaram profundamente o Constitucionalismo: a) a supremacia do indivíduo; b) a necessidade limitação do poder dos monarcas; c) a racionalização do poder, em virtude das crenças religiosas na razão humana. Evidente que o Estado Liberal pôs em relevo garantias individuais como a liberdade, a igualdade e a fraternidade. No entanto, não passavam estas de garantias meramente formais, de sorte que todos eram considerados “livres” e “iguais”, ainda que na realidade assim não fossem (MARINONI, 1993, p. 17). PAULA (2007, p. 503505), ao retratar o fim do Estado Liberal, esclarece: “O século XIX foi marcado por Estados regidos por governos liberais. É verdade que a expressão ‘liberalismo’ leva a algumas confusões, porque tanto pode significar liberdade econômica, como liberdade individual ou até mesmo liberdade jurídica. Mas inegavelmente, seja qual for a ideologia adotada e o regime político utilizado, a liberdade política é um pressuposto essencial do Estado moderno. Além disso, a imprecisão do significado da palavra “liberalismo” peca por não delimitar sua extensão ontológica em face do que seja conceitualmente ‘liberdade’: fazer porque não é vedado em lei (liberdade no sentido negativo) ou fazer porque está autorizado por lei (liberdade no sentido positivo). Essas confusões, obviamente, surgem a partir da interação entre Política e Direito. O Estado Liberal, o Estado Policial, o Estado laisez faire, são variações terminológicas de um Estado que tinha apenas o condão de limitar-se a atuar naquilo que lhe era essencial, como a segurança — interna e externa —, a legalidade, a segurança jurídica, a proteção da propriedade e a distribuição da Justiça dentro de um ambiente estritamente legal. Esse Estado, originário da Revolução Francesa, que instituiu o direito burguês, estipulou valores como a igualdade, a liberdade, a legalidade e a propriedade. Esses elementos contemplavam um sistema político que resultava na ordem jurídica tida como liberal. Qualquer tentativa de transformação social entre os membros desta sociedade dever-se-ia ocorrer no plano das conquistas econômicas, de acordo com as regras do liberalismo. Isso porque, basicamente, o sistema protetivo da propriedade, que impunha a legalidade e a igualdade, impedia qualquer transferência de domínio de um bem que não fosse de acordo com as regras da economia liberal, isto é, a transferência do domínio de bens se dá pela comutativa e inversa transferência econômica equivalente. No Estado Liberal o conceito de liberdade era essencialmente negativo, porque a liberdade consistia em fazer tudo aquilo que não era proibido por lei. Era o liberalismo puro, porque a atividade individual decorria de sua exclusiva iniciativa — impulso endógeno —, e não de um impulso exógeno. No entanto, o Estado Liberal passou a ser rediscutido por conta das doutrinas socialistas que surgiram no início do século XIX, e que representavam um rescaldo das idéias democráticas dos sans culottes e dos jacobinos da Revolução Francesa, acrescidos dos interesses de classes sociais específicas, como a dos proletários e dos camponeses. Nomes como Charles Fourier, Conde Claude-Henri de Saint-Simon, Pierre Leroux, Louis Blanc, Etienne Cabet, Joseph Proudhon, Johan Amadeu Fichte, Fernando Lassalle, bem se destacaram nesse período. Contudo, não há como negar a influência da doutrina marxista e o seu golpe final no Estado Liberal. Karl Marx, seja n’O Capital, seja no Manifesto do Partido Comunista e n’A Ideologia Alemã, estas em conjunto com Friederich Engels, pôde demonstrar o pensamento político-econômico que autorizava uma revolução de classes permanente, com a abolição da propriedade privada e, assim, propiciar a construção de uma sociedade de iguais — comunista —, que permitiria o desaparecimento do Estado e do Direito. A doutrina marxista, ao apontar por direitos ao proletariado, permitiu a difusão de partidos que contemplavam idéias socialistas e comunistas. A crescente difusão das doutrinas socialistas/comunistas pela Europa e continente americano, associada à Revolução Bolchevique de 1917 e pelas crises econômicas que antecederam e sucederam a Primeira Guerra Mundial, passou a exigir de governos uma nova postura política-jurídica para frear essa expansão ‘anti-liberal’. Assim, findava nas primeiras décadas do século XX o Estado Liberal, que tudo via e nada intervinha no âmbito sócio-econômico, até mesmo como forma de garantir a sobrevivência do establishment burguês que o sustentava. Deixou o Estado Liberal de ser passivo e inerte para ter uma conduta ativa e intervencionista”. 19 BOBBIO realizou estudo interessante sobre a igualdade e a liberdade. Considera ambos dois valores que se remetem um ao outro no pensamento político e na história. São inerentes ao homem 48 sorte a considerar todos “livres” e “iguais”, ainda que não fossem (MARINONI, op. cit. p. 17). Explica Cambi que: [...] A premissa da lei geral e abstrata, desenvolvida pelo Estado Liberal, propunha que todos os homens são livres e iguais, bem como são dotados das mesmas necessidades. Tal concepção, ao afirmar que todos são iguais perante a lei, pretendia acabar com os privilégios existentes no ancien regime e teve a sua importância histórica. Porém, não se sustenta, na medida em que ignora as diferenças entre as pessoas e, assim, assegura a liberdade somente àqueles que têm condições materiais mínimas de usufruir uma vida digna. [...]. (CAMBI, 2007, p. 23). Noticiado período assegurava o acesso à Justiça, também, meramente formal, assim como os demais direitos individuais. Consubstanciava-se no singelo direito de propor uma ação judicial. Conforme Cappelletti: Nos estados liberais “burgueses” dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para a solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista de direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado propor ou contestar uma ação. A teoria era de que o acesso à Justiça pudesse ser um “direito natural”, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do Estado para sua proteção. Esses direitos eram considerados anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros. O Estado, portanto, permanecia passivo, com relação a problemas tais como a aptidão de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defendê-los adequadamente, na prática. (CAPPELLETTI, op. cit. p. 9). Em face dessa situação, na prática, apenas quem detinha condição econômica levava a juízo sua pretensão, já que os “pobres” eram entregues a sua própria sorte. O acesso à Justiça formal correspondia à igualdade também numa perspectiva formal. Nessa ótica, cabia ao Estado proclamar o direito e assegurar a provocação da atividade jurisdicional. Imensas injustiças e discriminações eram cometidas em desfavor dos menos favorecidos, considerando a postura nãoenquanto pessoa. Enquanto a liberdade indica um estado, a igualdade indica uma relação. Assim, explica que “O homem como pessoa – ou para ser considerado como pessoa – deve ser, enquanto indivíduo em sua singularidade, livre; enquanto ser social, deve estar com os demais indivíduos numa relação de igualdade” (BOBBIO, 2002, p. 07). 49 intervencionista predominante no Estado Liberal. A crise do Estado Liberal ensejou uma nova preocupação com o social. Assim, sob o espectro da Justiça social20, a igualdade e a liberdade passam a ter outro valor21; o governo desenvolvido até então, em prol da liberdade, passa a ser desenvolvido com vistas ao bem-estar social. A liberdade real pressupõe o mínimo de condições materiais, passando o Estado a objetivar a realização dos chamados direitos sociais (MARINONI, op. cit. p. 18). A participação política – consubstanciada inicialmente na idéia de sufrágio universal – agrega-se ao conteúdo do Estado que prima pela Justiça social, uma vez constatada a necessidade de participação direta dos cidadãos no processo político. A Constituição Federal de 1988 evidencia, pela dicção do art. 1º22 e art. 3º, II23, a construção de uma sociedade participativa, por permitir a participação popular nas questões de maior relevância do Estado, e pluralista por abarcar as diversas idéias, culturas, etnias, equalizando os diversos interesses individuais ou de uma classe com o bem comum (MARINONI, op. cit. p. 19). Nesse particular, Marinoni, pontua: 20 A Justiça social não é questão hodierna. Desde Aristóteles – que a denominava de “Justiça geral” – o assunto vem sendo investigado pela doutrina especializada. A Justiça social é caracterizada pela virtude dar a outrem o que lhe é devido segundo uma igualdade, no entanto, com algumas peculiaridades. A alteridade, na Justiça social, se estabelece entre uma pluralidade de sujeitos, de um lado os particulares (devedores) e de outro a sociedade (credora). O devido, nesse caso, é a realização do bem comum, ou mais precisamente, a realização de uma parte por cada indivíduo, para que tal fim seja atingido. A igualdade, em se tratando de Justiça social, é a proporcional ou relativa. Em relação ao bem comum, São Tomás de Aquino estabelece que sua essência está relacionada a três espécies de bens: a vida humana digna, o mínimo de bens materiais e a paz social. (MONTORO, 2001, p. 211-222). 21 Conforme Bobbio (2002, p. 08), “Liberdade e igualdade são valores que servem de fundamento à democracia”. 22 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 23 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 50 A jurisdição e o tema do acesso à Justiça devem ser focalizados com base nas linhas do Estado Democrático de Direito. A jurisdição visando a realização dos fins do Estado; fins que tomam a liberdade e a igualdade em termos que diferem amplamente daqueles que diferenciaram as mais prestigiadas teorias sobre a jurisdição, teorias essas que ainda vicejam os manuais e tratados de direito processual. O acesso à Justiça objetivando a superação das desigualdades que impedem o acesso, bem como a participação através do processo mediante paridade de armas, inclusive a participação efetiva do cidadão na gestão do bem comum, ponto esse último, que também está entre os escopos da jurisdição. (MARINONI, Idem, p. 20). O conceito meramente formal de acesso à Justiça, concebido à luz da influência dos valores do Estado Liberal, transforma-se em um conceito influenciado pelos valores do Estado Democrático de Direito24, que almeja a promoção da Justiça social entre os indivíduos, com vistas ao alcance do bem comum. Desta maneira, o acesso à Justiça não se traduz, apenas, em acesso ao Poder Judiciário. O conceito de acesso à Justiça compreende o acesso à ordem jurídica justa, sendo dados elementares desse direito: 1) o direito à informação e perfeito conhecimento do direito substancial; 2) direito de acesso à Justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e 24 O Estado de direito, mais do que um conceito jurídico, é um conceito político que vem à tona no final do século XVIII, início do século XIX. Ele é fruto dos movimentos burgueses revolucionários, que àquele momento se opunham ao absolutismo, ao Estado de polícia. Surge como idéia-força de um movimento que tinha por objetivo subjugar os governantes à vontade legal, porém, não de qualquer lei. Como sabemos, os movimentos burgueses romperam com a estrutura feudal que dominava o continente europeu; assim os novos governos deveriam submeter-se também a novas leis, originadas de um processo novo onde a vontade da classe emergente estivesse consignada. Mas o fato de o Estado passar a se submeter à lei não era suficiente. Era necessário dar-lhe outra dimensão, outro aspecto. Assim, não passa o Estado a ter suas tarefas limitadas basicamente à manutenção da ordem, à proteção da liberdade e da propriedade individual. É a idéia de um Estado mínimo que de forma alguma interviesse na vida dos indivíduos, a não ser para o cumprimento de suas formações básicas; fora isso, deveriam viger regras do mercado assim como a livre contratação. Como não poderia deixar de ser, este Estado Formalista recebeu inúmeras críticas na medida em que permitiu quase que um absolutismo do contrato, da propriedade privada, da livre empresa. Era necessário redinamizar este Estado, lançar-lhes outros fins; não que se desconsiderassem aqueles alcançados, afinal eles significaram o fim do arbítrio, mas cumprir outras tarefas, principalmente sociais, era imprescindível. Desencadeia-se, então, um processo de democratização do Estado; os movimentos políticos do final do século XIX, início do século XX, transformaram o velho e formal Estado de direito num Estado democrático, onde além da mera submissão à lei deveria haver a submissão à vontade popular e aos fins propostos pelos cidadãos. Assim, o conceito de Estado democrático não é um conceito formal, técnico, onde se dispõe um conjunto de regras relativas à escolha dos dirigentes políticos. A democracia, pelo contrário, é algo dinâmico, em constante aperfeiçoamento, sendo válido dizer que nunca foi plenamente alcançada. Diferentemente do Estado de direito – que, no dizer de OTTO MAYER, é o direito administrativo bem ordenado -, no Estado democrático importa saber a que apenas o Estado é o próprio cidadão estão submetidos. Portanto, no entendimento de Estado democrático deve ser levado em conta o perseguir certos fins, guiando-se por certos valores, o que não ocorre de forma tão explícita no Estado de direito, que se resume em submeter-se às leis, sejam elas quais forem (BASTOS, 1997, p. 156-157). 51 comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; 3) direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; 4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso à Justiça com tais características (WATANABE, 1988, p. 135). Cambi repisa que: [...] a designação acesso à Justiça não se limita à mera admissão ao processo ou à possibilidade de ingresso em juízo, mas, ao contrário, essa expressão de ser interpretada extensivamente, compreendendo a noção ampla de acesso à ordem jurídica justa, que abrange: i) o ingresso em juízo; ii) a observância das garantias compreendidas na cláusula do devido processo legal; iii) a participação dialética na formação do convencimento do juiz, que irá julgar a causa (efetividade do contraditório); iv) a adequada e tempestiva análise, pelo juiz, natural e imparcial, das questões discutidas no processo (decisão justa e motivada); v) a construção de técnicas processuais adequadas à tutela dos direitos materiais (instrumentalidade do processo e efetividade dos direitos). (CAMBI, op. cit. p. 24-25). Nesse viés, o conceito de acesso à Justiça é mais amplo e abrange o acesso a um processo justo, ao devido processo legal e as demais garantias processuais (GRINOVER, 1984, p. 18-19). A propósito, a noção de processo justo é concebida sob uma ótica garantista, pois, abrange o fiel cumprimento de garantias processuais consubstanciadas em princípios consagrados na Constituição Federal, tais como: a) devido processo legal; b) contraditório e ampla defesa; c) igualdade processual; d) juiz natural; e) imparcialidade do juiz; f) motivação das decisões judiciais; g) publicidade dos atos processuais, dentre outras. O direito ao processo justo é sinônimo do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada. Evidente, nessa ótica, que a idéia de acesso à Justiça alterou a arcaica concepção chiovendiana de processo como instrumento de atuação da vontade concreta da lei25. Este se firma como um instrumento público de realização da Justiça social, que veicula princípios e valores de ordem pública, voltados à realização do bem comum. Assim, 25 Conforme CHIOVENDA (1965, p. 37), “O processo civil é o complexo dos atos coordenados ao objetivo da atuação da vontade concreta da lei (com respeito a um bem que se pretende garantido por ela), por parte dos órgãos da jurisdição ordinária”. 52 [...] os fins públicos buscados pelo processo, como instrumento democrático do poder jurisdicional, transcendem os interesses individuais das partes na solução do litígio. Esta visão publicística, imposta pela constitucionalização dos direitos e garantias processuais (neoprocessualismo) não se esgota na sujeição das partes ao processo. (CAMBI, op. cit. p. 26). O acesso à Justiça – compreendido como o acesso a ordem jurídica justa – numa perspectiva contemporânea, somente se concretiza se houver igualdade de oportunidades no acesso. Desta forma, “Ao visualizarmos o direito processual civil por meio da lente do acesso à Justiça temos que fazer aflorar toda uma problemática inserida num contexto social e econômico” (MARINONI, op. cit. p. 24). Aliás, o estudo do acesso à Justiça está concatenado a fatores externos ocorrentes na seara econômica e social, mas, que sobejamente interferem na seara jurídica. Segundo Santos (1985, p. 125), “O tema do acesso à Justiça é aquele que mais diretamente equaciona as relações entre processo civil e Justiça social, entre igualdade jurídico-formal e desigualdade sócio-econômica”. Ora, induvidosamente que a renda de um salário mínimo auferida mensalmente por um trabalhador influencia o acesso à Justiça; no mesmo passo, aquele que não pôde freqüentar a escola, não sendo sequer alfabetizado, terá dificuldades imensas em conhecer os seus próprios direitos. Daí porque não se pode conceber um acesso formal; daí porque não se pode mais admitir um juiz distante dos problemas econômicos e sociais; daí porque não se pode admitir que o Poder Judiciário aguarde pacienciosamente que o jurisdicionado “bata as suas portas”. Mas, além da igualdade de oportunidades, o acesso à Justiça está atrelado a cidadania. E não se trata de cidadania reduzida à mera participação política através de instrumentos criados pela democracia representativa e pela democracia direta, o que certamente traduz-se numa grande conquista dos indivíduos; a Constituição Federal de 1988 ampliou o conteúdo do termo, conferindo-lhe maior amplitude política e jurídica. Esta, para sua efetivação plena, sofre incursão nos princípios e garantias processuais do processo, conforme explica Baracho. Segundo o autor, o conceito de cidadania vem adquirindo particularidades. Para ser cidadão não basta participar politicamente das decisões mais importantes da sociedade. Em verdade, o conceito de cidadão está intimamente ligado ao 53 conceito de democracia, de modo que não há cidadãos sem democracia nem democracia sem cidadãos. (BARACHO, 1995, p. 1). Continua: A participação do cidadão no poder, como característica da democracia, configura-se pela tomada de posição concreta na gestão dos negócios da cidade, isto é, no poder. Essa participação é consagrada através das modalidades, procedimentos e técnicas diferentes. [...] Nessa fase de elaboração da teoria geral da cidadania, os sistemas de participação compreendem as formas de seu exercício, sendo que eles definem os meios diretos ou não de participação dos cidadãos no exercício do poder: democracia direta; democracia representativa (teoria da representação e mandato representativo); mandato imperativo (teoria da representação e mandato representativo); mandato imperativo; democracia semidireta; veto popular (o povo tem direito de se opor a uma lei votada pelo Parlamento); iniciativa popular, referendum (referendo constituinte, referendo legislativo, referendo obrigatório, referendo facultativo, referendo de ratificação, referendo de consulta e referendo de arbitragem). (BARACHO, Idem, p. 3). E segue: Mas, não é só. A plenitude da cidadania somente se aperfeiçoa se houver o aprimoramento da defesa de alguns núcleos centrais de direitos, como: o acesso à justiça; a interpretação correta das normas constitucionais e das leis processuais; o respeito aos princípios constitucionais; a atualização dos mecanismos das ações coletivas; uma nova concepção de Justiça, onde são temas essenciais a Justiça e o Estado; o juiz e a separação de poderes; o juiz como homem comum, para uma função extraordinária; recrutamento e formação; a transparência dos processos e procedimentos; a participação dos magistrados no desenvolvimento e aprimoramento da carreira; a independência dos magistrados; as responsabilidades dos juízes; a imparcialidade; o Estatuto da Magistratura; a função de julgar como poder ou não; o juiz perante as contestações da sociedade civil; o lugar da autoridade judiciária no sistema institucional; é preciso que o juiz seja consciente de seus poderes, mas igualmente de suas limitações; o ideal de Justiça; liberdade e responsabilidade do juiz; apesar de praticar várias funções, o juiz não deve perder a sua identidade; é conveniente a sindicalização da magistratura (permitirá maior discussão sobre ética do que sobre política); a Justiça está em crise; o poder de instrução do juiz e seus limites. (BARACHO, Idem, 1995, p. 25). Nessa ótica, “o acesso efetivo à Justiça, como instrumento garantidor da plenitude da soberania, é um direito social básico” (BARACHO, Idem, p. 25). Restou claro que o conceito de acesso à Justiça foi sendo construído com o 54 decurso do tempo, de acordo com o momento histórico vivenciado na sociedade. Após ser visualizado como direito meramente formal, por influência dos valores consagrados no Estado Liberal, o acesso à Justiça transformou-se no elo entre o processo civil e a Justiça social, uma vez que com o advento do Estado Democrático de Direito, passa-se a tutelar não somente direitos individuais, mas, direitos sociais. Nessa senda, o acesso à Justiça deve ser compreendido como acesso à ordem jurídica justa. Diante da análise realizada, é possível inferir que o acesso à Justiça é indispensável à concretização do disposto no artigo 3º, I, da Constituição Federal, quando estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa, solidária. De outro vértice, acesso à Justiça deve ser vislumbrado como um ideal de igualdade perseguido no plano das relações sociais. Ainda, não há se falar em cidadania sem efetivo acesso à Justiça. Os obstáculos ainda existentes dividem a sociedade brasileira em dois seguimentos: os cidadãos que acessam a Justiça e os não-cidadãos. Nessa linha, Rocha tece pertinentes comentários: A jurisdição é direitos de todos e dever do Estado, à maneira de outros serviços públicos que neste final de século se tornaram obrigação positiva de prestação afirmativa necessária da pessoa estatal. A sua negativa ou a sua oferta insuficiente quanto ao objeto da prestação ou ao tempo de seu desempenho é descumprimento do dever positivo de que não se pode escusar a pessoa estatal, acarretando sua responsabilidade integral. Mas o acesso aos órgãos prestadores da jurisdição por parte cidadão depende de um desempenho prévio do Estado, que se desdobra em dois comportamentos complementares: de um lado, impõe-se a facilitação do exercício do direito à jurisdição pela sua declaração normativa expressa (evidentemente, nos países que adotem o modelo jurídico-normativo formal escrito), e de outro, deve-se dar a saber ao povo deste como de todos os direitos fundamentais que lhe são assegurados. Estes comportamentos públicos são pressupostos imprescindíveis a serem cumpridos para que o direito à jurisdição não seja um mentira legal ou uma possibilidade oficial, somente exercida por aquelas pessoas que dispõem de condições econômicas bastantes para saber de seus direitos e poder pagar o preço de seu exercício. Sendo direito fundamental, a jurisdição não pode ser privilégio de uns e miragem oficial de muitos. Este, como todos os outros direitos – especialmente os direitos constitucionais tidos como fundamentais e inerentes ao indivíduo – não tem tido efetividade bastante e eficácia suficiente pela só dicção normativa sobre o seu reconhecimento.É mister que todos saibam dos seus direitos, e este conhecimento passe a constituirse obrigação primária do Estado, uma vez que dele depende o exercício subseqüente de todos os outros direitos. Num país em que o povo não saiba dos direitos e o Poder Público não deseje este conhecimento, o direito 55 nunca passará de mera possibilidade legal a serviço dos poderosos de ocasião. Este saber, que flui naturalmente em países amadurecidos politicamente e nos quais o Estado legítimo e submetido ao direito é a única ou predominante experiência histórica, depende, em países que não têm tradição histórica e democrática permanente ou predominante, de uma atuação estatal específica e obrigatória neste sentido. Sem este saber do povo não se faz do direito um instrumento de realização da Justiça. E em países em que a educação e a cultura não se espraiam por toda sociedade, o direito legislado não chega a todas as camadas sociais. Direito positivo não sabido é direito inexistente. Quem dele não sabe, não reivindica; sem o seu conhecimento, não há seu exercício. (ROCHA, 1993, p. 34). De todos os direitos que objetivam conferir cidadania, o acesso à Justiça é o de maior significado. Aqueles que por algum motivo, ficam dele privado, estão excluídos, e acabam afastando do sistema oficial de entrega da prestação jurisdicional, agindo de maneira informal e instaurando uma nova forma de resolver seus conflitos. De acordo com Torres: O cidadão, não crendo na Justiça, afasta-se do sistema oficial somandose a milhares de pessoas que não mais procuram o Judiciário, sem falar em outro número infindável de cidadãos, distante das organizações judiciárias, agindo com outro sistema totalmente informal e descomprometido da realidade estatal, concebendo seus próprios caminhos e sua própria forma de resolver seus problemas. O Estado organizado deve voltar a atenção para essas situações, não só visando a uma prestação jurisdicional eficiente e rápida, mas ensejando à sociedade, em todos os seus campos, oportunidades para a solução dos conflitos. Justiça efetiva significa garantir o direito fundamental dos cidadãos. (TORRES, op. cit. p. 31). Dessa forma, o Poder Judiciário deve se aproximar do indivíduo, de forma a incluí-lo, fato que o torna, efetivamente, cidadão. Algumas iniciativas já foram experimentadas como o denominado projeto “Casa da Cidadania” no Estado de Santa Catarina26 e o projeto “Centro de Integração da Cidadania” no Estado de São Paulo27. No Estado de Mato Grosso do Sul, o projeto “Expedição de Cidadania”, visa 26 O objetivo geral da Casa da Cidadania é humanizar a Justiça, implementando ações que visem o pleno exercício da cidadania, gerando uma cultura de democracia participativa, como corolário de uma prática integrada com a comunidade. 27 Os Centros de Integração da Cidadania, coordenados pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, oferecem inúmeros serviços públicos, com a participação do Poder Judiciário, objetivando a resolução dos conflitos, de forma a atender os indivíduos em bairros e vilas, sob a forma Itinerante (Torres, 2005, p. 36). 56 levar Justiça e cidadania aos pantaneiros, ribeirinhos e fronteiriços residentes na região de Porto Murtinho e Caracol, através da prestação de serviços públicos básicos, mas, inacessíveis naqueles locais28. Outro meio de promover a Justiça social, a igualdade entre os indivíduos, e a inclusão social, é a Justiça Itinerante, haja vista tratar-se de forma descentralizada da prestação e entrega do serviço jurisdicional onde quer que estes se encontrem. É a Justiça indo de encontro aos que dela precisam e não sabem ou não tem condições culturais ou econômicas de acessá-la. 2.3 Acesso à Justiça: um direito natural e fundamental O acesso à Justiça, afirma Cappelletti (op. cit., p. 9), é um direito natural. Partindo desta assertiva, de todo correta, é preciso ponderar que no curso da história, os direitos naturais foram concebidos mediante duas formulações básicas, conforme esclarece Bezerra (2008, p. 113-126). A primeira indica tratar-se de direito 28 De acordo com notícia veiculada no sítio do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (disponível em www.tj.ms.jus.br. Acesso em 05 abril 2009), “O projeto ‘Expedição da Cidadania’, realizado em Porto Murtinho, Mato Grosso do Sul, é promovido pela Associação Nacional dos Juízes Federais do Brasil, em parceria com o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e outras instituições. A iniciativa visa atender os ribeirinhos, pantaneiros e fronteiriços, das cidades de Porto Murtinho e Caracol, com a promoção de Juizados Itinerantes, bem como prestar um conjunto de atividades, destinadas a garantir ao público alvo o direito à cidadania efetiva, tais como a emissão de certidão de nascimento, CPF, carteira de identidade, carteira de trabalho, título de eleitor e serviços previdenciários, entre outros serviços como a regularização de estrangeiros. Na avaliação do Dr. Giuliano Máximo Martins, juiz titular da comarca de Porto Murtinho, a ação obteve êxito no atendimento urbano, e está trilhando o mesmo caminho no atendimento da população ribeirinha, às margens do Rio Paraguai, proporcionando-lhes acesso à cidadania e, por conseqüência, promovendo a dignidade da população tão carente. Na primeira etapa de atendimentos, feita dos dias 9 a 13 de março de 2009, foram mobilizados 5 servidores da comarca para realizar os cerca de 200 atendimentos, com 107 ações ingressadas. Foram 52 de registro tardio, 15 de retificação de registro civil, 6 de alimentos, 1 revisional de alimentos, 1 negatória de paternidade, 2 divórcios litigiosos, 3 reconhecimentos de união estável, 4 obrigações de não fazer e 3 de cobrança. O Dr. Giuliano apontou a necessidade da nomeação de um Defensor Público para a Comarca de Porto Murtinho em função da crescente demanda. Atualmente, o defensor da Comarca de Bela Vista se desloca cerca de 360 quilômetros para atender àquela localidade. Na segunda etapa, iniciada no dia 25 de março, os integrantes da Expedição da Cidadania, embarcaram no Navio de Apoio Fluvial Potengi, fundado na Base Naval de Ladário. Até o dia 4 de abril, data prevista para a chegada da embarcação em Porto Murtinho, o navio visitará diversas comunidades ribeirinhas do rio Paraguai. A escrevente Andrelina Maldonado está na embarcação a fim de coletar documentos dos ribeirinhos para a defensoria ingressar com as ações, principalmente de registro tardio. Também participam do projeto a Prefeitura Municipal de Porto Murtinho, o Governo do Estado, o TRE/MS, a Polícia Federal, o Incra, a Anoreg, a CEF, o Banco do Brasil, o TRF da 3ª Região, o Juizado Especial Federal, a Receita Federal, o INSS e o Ministério das Telecomunicações”. 57 supranacional, a segunda indica direito oposto ao direito posto29. Bezerra (Idem, p. 113) salienta que o direito natural “no sentido de supradireito, ora é visto como base fundamental a todo o direito positivo, e, neste sentido, será um direito hierárquica e valorativamente superior, ora como princípio geral, que estaria a dirigir todo o ordenamento jurídico positivado, portanto, em relação de simbiose com este”. Segundo o autor, o direito natural, em oposição ao positivo, é que o que não foi criado pela lei, nem pelos juízes, ao suprirem as lacunas desta, nem pela sociedade, mas o que tem uma existência anterior e independente dos mesmos. (BEZERRA, Idem, p. 114). Aristóteles estabelece diferença entre direito natural e positivo. Para ele, a Justiça política é em parte natural e em parte legal. “[...] são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente”. Extrai-se da lição aristotélica que o direito natural possui caráter universal, independente do lugar (como, por exemplo, o fogo que queima na Grécia e na Pérsia). Segundo Bezerra: 29 De fato, Bobbio (1995, p. 22-23) chega a idêntica conclusão quando apresenta as distinções entre direito natural e direito positivo, a saber: “Podemos destacar seis critérios de distinção: a) o primeiro se baseia na antítese universalidade/particularidade e contrapõe o direito natural, que vale em toda parte, ao positivo, que vale apenas em alguns lugares (Aristóteles, Inst. – 1ª definição); b) o segundo se baseia na antítese imutabilidade/mutabilidade: o direito natural é imutável no tempo, o positivo muda (Inst. – 2ª definição –, Paulo); esta característica nem sempre foi reconhecida/ Aristóteles, por exemplo, sublinha a universalidade no espaço, mas não acolhe a imutabilidade no tempo, sustentando que também o direito natural pode mudar no tempo; c) o terceiro critério de distinção, um dos mais importantes, referem-se à fonte do direito e funda-se na antítese natura-potestas populus (Inst. – 1ª definição –, Grócio); d) o quarto critério se refere ao modo pelo qual o direito é conhecido, o modo pelo qual chega a nós (isto é, os destinatários), e lastreia-se na antítese ratio-voluntas (Glück): o direito natural é aquele que conhecemos através de nossa razão. (Este critério liga-se a uma concepção racionalista de ética, segundo a qual os deveres morais podem ser conhecidos racionalmente, e, de um modo mais geral, por uma concepção racionalista da filosofia.) O direito positivo, ao contrário, é conhecido através de uma declaração de vontade alheia (promulgação); e) o quinto critério concerne ao objeto dos dois direitos, isto é, aos comportamentos regulados por estes: os comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus por si mesmos, enquanto aqueles regulados pelo direito positivo são por si mesmos indiferentes e assumem uma certa qualificação apenas porque (e depois que) foram disciplinados de um certo modo pelo direito positivo (é justo aquilo que é ordenado, injusto o que é vetado) (Aristóteles, Grócio); f) a última distinção refere-se ao critério da valoração das ações e é enunciado por Paulo: o direito natural estabelece aquilo que é bom, o direito positivo estabelece aquilo que é útil”. 58 O direito natural tem, como características, a universalidade, manifesta na circunstância de que todas as normas regem todos os povos e todos os homens, como partícipes da natureza única em que se funda; a perpetuidade, no sentido do homem, em sua natureza, consciência de valores e suas aspirações aos mesmos, guiando-o a ordem social; a imutabilidade que embora não seja variável e mutável ontologicamente é inviolável às mudanças históricas que jamais poderão alterá-los e aos princípios que se baseiam. É, por fim, necessários, pois, inconcebível uma sociedade desenvolvida sem a observância de seus preceitos. (BEZERRA, op. cit. p. 115). Prossegue dizendo que com frequência as expressões “direitos naturais”, “direitos do homem”, “direitos do cidadão” e “direitos fundamentais” são confundidas e utilizadas como sinônimas. Embora guardem alguma homogeneidade, é verdade que existem distinções que devem ser ressaltadas (BEZERRA, op. cit, p. 116-117). Os “direitos naturais” são aqueles inerentes ao indivíduo e anteriores a qualquer contrato social, conferidos pela própria natureza do homem. Os “direitos do homem” refletem o caráter universal dos direitos naturais, portanto, válidos universalmente em todos os povos e em todos os lugares. Os “direitos do cidadão” são aqueles que os americanos30 e os franceses31 elevaram à categoria constitucional na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Os direitos do homem, pura e simplesmente, não atendiam mais. Era preciso estabelecer direitos do cidadão. Os primeiros pertencem ao homem enquanto tal; os segundos pertencem ao homem enquanto ser social, isto é, como indivíduo vivendo em sociedade. Os direitos fundamentais são direitos do homem jurídico, previstos objetivamente numa determinada ordem jurídica vigente e concreta. São, na verdade, direitos naturais, ou seja, inerentes ao indivíduo, do homem, isto é, universalmente válidos e aceitos, contemplados e positivados, sobretudo, pelas 30 “Todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes e têm direitos inerentes, dos quais, ao entrar num estado de sociedade, não podem, por nenhum acordo, privar-se ou despojar-se de sua posteridade; a saber, o gozo da vida e da liberdade, os meios de adquirir e possuir propriedade, e a busca da felicidade e segurança” (Seção 1 da Declaração de Direitos de Virgínia, de 12 de junho de 1776, Independência Americana). 31 “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem fundar-se em nada mais do que na utilidade comum. A finalidade de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência a opressão” (Artigos 1º e 2º da Declaração de Direitos dos Homem e do Cidadão, França, 1789). 59 Constituições modernas32. Para Miranda (1998, p. 7): Por direitos fundamentais entendemos os direitos ou as posições jurídicas subjetivas das pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição, seja na Constituição formal, seja na Constituição material – donde, direitos fundamentais em sentido formal e direitos fundamentais em sentido material. (MIRANDA,1998, p. 7). Segundo Mendes: Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais – tanto aqueloutros, concebidos como garantias individuais – formam a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito democrático. (MENDES, 1999, p. 36). Interessante mencionar que alguns autores vislumbram os direitos fundamentais apenas como direito positivo, o que a nosso ver, é um equívoco. Incontestável a influência do direito natural na formação dos direitos fundamentais, bastando verificar que as normas protetivas do direito à vida, liberdade, integridade física, indenização por perdas e danos, e outras mais, além de serem justas, são universalmente válidas e respeitadas, e de igual forma seriam ainda que sobre elas não 32 pesasse a força da positivação constitucional, pois, são dotadas, Historicamente, os direitos fundamentais derivam do direito natural, de forma a imbricar-se com aqueles direitos inatos à pessoa humana, como a liberdade, igualdade, a vida, dentre outros valores supremos. Segundo Miranda (Ibid., p. 14, 1998), os direitos fundamentais compreendem quatro períodos sucessivos. O primeiro distingue a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos, partindo da análise da pessoa no Estado Antigo, antes e depois do surgimento do Cristianismo. O segundo refere-se à tutela dos direitos da própria Idade Média e do Estado estamental e à tutela dos direitos própria do Estado Moderno. No Estado Medieval quase não havia proteção aos direitos da pessoa humana, considerando a monarquia absolutista prevalente em relação aos indivíduos. Por outro lado, no Estado Moderno, após a revolução inglesa (1688), americana (1787) e francesa (1791), os direitos fundamentais conquistados pelos indivíduos são positivados nas Constituições, de modo que a legalidade passa a limitar o poder do Estado em face do cidadão. A terceira dá-se entre direitos, liberdades e garantias e direitos sociais; a quarta prende-se na proteção interna e proteção internacional dos direitos do homem. 60 indiscutivelmente, de caráter coativo e cogente. Diante disto, verifica-se que ao lado dos preceitos formativos do direito positivo, nele inserido os direitos fundamentais, estão os princípios e regras constitutivos do direito natural. Os dois se somam formando uma unidade jurídica com função de regular a conduta do indivíduo e dos grupos que compõem a sociedade (BEZERRA, op. cit. p. 121). Posto isto, indaga-se: o que caracteriza determinado direito como fundamental? Para Martins Neto (2003, p. 77-79), a técnica constitucional previu direitos fundamentais e direitos não-fundamentais, a depender da presença ou não de fundamentalidade. Esta se caracteriza e decorre da supremacia da Constituição, gerando, como conseqüência lógica, os chamados limites a atuação do legislador ordinário, que constitui verdadeira imunidade ao poder de legislar. O autor pondera, ainda, que: [...] os direitos fundamentais revelam-se, em primeiro lugar, como direitos subjetivos indisponíveis ao legislador ordinário. A tanto equivale dizer que, no plano da legislação infraconstitucional, juridicamente imunes à abolição, deformação ou atentados de qualquer espécie, ressalvada a possibilidade, em termos que não os nulifiquem, de sua organização, limitação ou complementação por normas inferiores. (MARTINS NETO, op. cit. p. 81). Canotilho (1993, p. 499) aponta duas espécies de fundamentalidade: a primeira, denominada fundamentalidade formal, deriva da superioridade das normas positivadas na Constituição frente às demais normas, por estarem submetidas a limites formais (processo legislativo mais rígido) e materiais (cláusulas pétreas), vinculantes das entidades públicas e privadas. Por outro lado, a fundamentalidade material está intimamente concatenada ao fato de que os direitos materiais integram os elementos constitutivos do Estado, de forma a integrar a estrutura básica deste e da própria sociedade. Neste contexto, a fundamentalidade torna determinado direito subjetivo previsto na Constituição mais importante que os demais constitucionalmente assegurados, ou inseridos no plano infraconstitucional, o que lhe faz compor o denominado núcleo essencial da Constituição Federal. 61 Daniel Sarmento (1999, p. 60) afirma que: “Outro limite que a doutrina impõe à ponderação de bens é o respeito ao núcleo essencial dos direitos fundamentais. Considera-se que existe conteúdo mínimo destes direitos, que não pode ser amputado, seja pelo legislador, seja pelo aplicador do direito”. Vale salientar, ainda, que o ordenamento jurídico pátrio acolheu o princípio da não atipicidade ou das cláusulas abertas dos direitos fundamentais, disso decorrendo a possibilidade de se inscreverem outros direitos fundamentais não expressamente previstos, mas possíveis através do regime e princípios adotados pela Constituição ou pelos tratados internacionais que o Brasil for signatário (BEZERRA, op. cit. p. 123). Verifica-se que a Constituição Federal dotou de fundamentalidade alguns direitos, notadamente aqueles insertos em seu art. 5º, gravados, pois, com a cláusula de imutabilidade selada pelo artigo 60, § 4º, IV do mesmo diploma legal. Dentre tais direitos encontra-se o artigo 5º, XXXV, que consagra o princípio do acesso à Justiça ao estabelecer que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Conclui-se que o acesso à Justiça é um direito natural por excelência, pois, trata-se de um valor inerente a pessoa humana. Por outro lado, infere-se que o acesso à Justiça adquiriu status de direito fundamental, constitucionalmente assegurado, na medida em que a base ideológica da Constituição Federal de 1988 é a Justiça social, cujo ideal é proporcionar a todos a igualdade material de acesso, que não compreende apenas acesso ao processo ou a via judicial como expressamente assegurado pelo art. 5º, XXXV, da Carta Maior, mas, a ordem jurídica justa33. 33 “O acesso à Justiça não se resume ao acesso ao processo. De fato, a fundamentalidade formal e material do direito de acesso à Justiça, saltam de normas como as que garantem indenização pela violação à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, a necessidade dos pressupostos de flagrante delito e ordem judicial para prisão ou violação do lar, e as garantias do devido processo legal e da legítima defesa. Além desses dispositivos constitucionais, os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da República Federativa do Brasil, fixados no art. 1º, II e III e seus objetivos no art. 3º I a IV, a saber, construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, uma vez olvidados, provocam intensa injustiça social e obstruem o acesso à Justiça na perspectiva que estamos nos referindo. É, sem dúvida que, em não sendo mais permitida a vingança privada em sendo crime tipificado na legislação penal o exercício arbitrário das próprias razões, a efetiva proteção e concretização dos direitos só é possível pela via estatal – excetuando-se a autocomposição, a conciliação e outras formas de composição extrajudicial de conflitos –, de onde decorre um direito de acesso à essa Justiça formalmente constituída. Daí que o acesso à Justiça é 62 Contudo, os direitos fundamentais estão em crise34. É a crise da efetividade, da implementação desses direitos35. O direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação (LIMA FILHO, op. cit. p. 149). A questão, portanto, é a de não se reduzir o acesso à Justiça, direito fundamental do cidadão como visto, a letra morta de um catálogo de direitos. 2.4 Acesso à Justiça no plano dos direitos humanos O acesso à Justiça encontra fundamento, também, nos direitos humanos, ou seja, no ideal de preservação, elevação e valorização da liberdade, igualdade e, sobejamente, da dignidade da pessoa humana em face do Estado e dos demais indivíduos. Os direitos humanos possuem caráter universal, ilimitados no espaço e no tempo, tendo força cogente perante todos os povos. De acordo com Siqueira Jr. (2009, p. 20) “[...] direitos humanos são direitos fundamentais da pessoa humana. São aqueles direitos mínimos para que o homem um direito fundamental arraigado fortemente num direito natural. Como direito, o acesso à Justiça contém seu conteúdo de obrigatoriedade e exigibilidade”. 34 A atual crise dos direitos fundamentais situa-se no plano da eficácia. E eficácia distingue-se de vigência. Enquanto esta se atrela a existência e obrigatoriedade, aquela tem a ver com a produção de efeitos da norma jurídica. Indubitavelmente que vigência e eficácia caminham juntas, na medida em que norma eficaz será norma que atende ao pressuposto da vigência. Na seara constitucional, a noção de eficácia tem íntima conexão com a aplicabilidade das normas constitucionais (órbita jurídica) e efetividade (órbita social). Embora o artigo 5°, § 1° da Constituição Federal de 1988 estabeleça que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, os direitos e garantias fundamentais têm encontrado óbice invencível para efetiva aplicação. Como primeiro óbice pode-se apontar a existência de normas programáticas no texto constitucional acarreta a dificuldade de concretização destas, até mesmo porque o remédio previsto na Lei Maior – mandado de injunção – não tem sido eficaz para elidir a mazela apresentada. Como segundo impeditivo, aponta-se a ineficiência do Poder Público na efetivação dos direitos e garantias fundamentais, destacando-se as suas três esferas (Poder Executivo, Legislativo e Judiciário). Maior responsabilidade pesa sobre o Poder Judiciário, vez que a Constituição Federal incumbiu-lhe da tarefa de concretizar os direitos constitucionalmente assegurados, ainda que se trate de função precípua de algum dos outros Poderes. 35 “Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas, jurídico, e num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados”. (BOBBIO, 1992, p. 25). 63 viva em sociedade. Cada membro da sociedade possui tal direito subjetivo”. Câmara, por sua vez, afirma que: Chamam-se direitos humanos as instituições jurídicas de defesa da dignidade humana contra a violência, o aviltamento, a exploração e a miséria. São, assim, os direitos humanos instituições jurídicas destinadas a tutelar, de forma efetiva, a dignidade do ser humano. (CÂMARA, 2002, p. 1). Moraes ressalta: Os direitos humanos devem ser entendidos como aqueles direitos fundamentais da pessoa humana, considerada tanto em seu aspecto individual como comunitário, que correspondem a esta em razão de sua própria natureza (de essência ao mesmo tempo corpórea, espiritual, social) e que devem ser reconhecidos e respeitados por todo poder e autoridade, e relacionando-se diretamente com a consagração da dignidade humana. (MORAES, 2002, p. A3). Embora tratados por alguns autores de modo idêntico, a semelhança entre “direitos fundamentais” e “direitos humanos” é a positivação. A doutrina tem estabelecido uma distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais. Estes últimos são direitos humanos reconhecidos como tal pelas autoridades às quais se atribui a função de editar normas jurídicas, tanto no interior de um Estado, como no plano internacional. Direitos fundamentais são, assim, os direitos humanos positivados (CÂMARA, Idem, p. 1). Interessante distinção apresenta Siqueira Jr: Os direitos humanos são aquelas cláusulas básicas, superiores e supremas que todo o indivíduo deve possuir em face da sociedade em que está inserido. São oriundos das reivindicações morais e políticas que todo ser humano almeja perante a sociedade e o governo. Nesse prisma, esses direitos dão ensejo as denominados direitos subjetivos públicos, sendo em especial o conjunto de direitos subjetivos que em cada momento histórico concretiza as exigências de dignidade, igualdade e liberdade humanas. Essa categoria especial de direito subjetivo público (direito humanos) é reconhecida positivamente pelos sistemas jurídicos nos planos nacional e internacional. Os direitos humanos reconhecidos pelo Estado são denominados de direitos fundamentais, vez que via de regra são inseridos na norma fundamental do Estado, a Constituição. [...] Com intuito de limitar 64 o poder político estatal, os direitos humanos são incorporados nos textos constitucionais, apresentando-se como verdadeiras declarações de direitos do homem, que juntamente com outros direitos subjetivos públicos formam os chamados direitos fundamentais. Essa categoria de direito é na realidade uma limitação imposta aos poderes do Estado. Os direitos fundamentais são essenciais no Estado Democrático: formam a sua base, sendo inerentes aos direitos e liberdades individuais. (SIQUEIRA JR., op. cit. p. 22). Os direitos humanos sofreram, no decorrer da história, processo de internacionalização. Como resultado deste processo, algumas convenções internacionais consagraram o acesso à Justiça como direito humano fundamental, imprescindível à própria sobrevivência social do homem36. No cenário brasileiro, o artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, estabelece que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 36 Art. 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Resolução 217 A, de 10/12/1948): “Toda pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei”. No mesmo sentido: Art. 3º, “a”, “b”, e “c” do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos: “Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se: a) garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto tenham sido violados, possa dispor de um recurso efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetrada por pessoas que agiam no exercício de funções oficiais; b) garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu direito determinado pela competente autoridade judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento jurídico do Estado em questão; e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; c) garantir o cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer decisão que julgar procedente tal recurso”. Ainda: Artigo 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: “§1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. §2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas. §3. Direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal. §4. Comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada. §5. Concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa. §6. Direito ao acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor. §7. Direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei. §8. Direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos. §9. Direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada. §10. Direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. §11. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. §12. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos. §13. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da Justiça”. 65 Hodiernamente predomina o entendimento de que as normas internacionais de direitos humanos reconhecidas em tratados incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro não gozam de status constitucional, mas, estão acima das leis infraconstitucionais, ocupando plano intermediário denominado “supralegal”, conforme decisão proclamada pelo Supremo Tribunal Federal37. Logo, não paira dúvida a respeito da posição hierárquica no ordenamento jurídico pátrio, das normas internacionais que tutelam o acesso à Justiça no plano internacional. Do exposto extrai-se que o acesso à Justiça é um direito fundamental e humano ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, núcleo central de toda ordem jurídica nacional e internacional. Assim, o respeito aos direitos humanos fundamentais é pilastra mestra na construção de um verdadeiro Estado de Direito democrático e sua constitucionalização não significa mera enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, a partir dos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela ante o Poder Judiciário, para a concretização do Estado democrático de Direito. A previsão dos direitos humanos fundamentais direciona-se basicamente para a proteção à dignidade humana em seu sentido mais amplo, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar. 37 EMENTA: HABEAS CORPUS. SALVO-CONDUTO. PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO JUDICIAL. DÍVIDA DE CARÁTER NÃO ALIMENTAR. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou a orientação de que só é possível a prisão civil do "responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia" (inciso LXVII do art. 5º da CF/88). Precedentes: HCs 87.585 e 92.566, da relatoria do ministro Marco Aurélio. 2. A norma que se extrai do inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal é de eficácia restringível. Pelo que as duas exceções nela contidas podem ser aportadas por lei, quebrantando, assim, a força protetora da proibição, como regra geral, da prisão civil por dívida. 3. O Pacto de San José da Costa Rica (ratificado pelo Brasil - Decreto 678 de 6 de novembro de 1992), para valer como norma jurídica interna do Brasil, há de ter como fundamento de validade o § 2º do artigo 5º da Magna Carta. A se contrapor, então, a qualquer norma ordinária originariamente brasileira que preveja a prisão civil por dívida. Noutros termos: o Pacto de San José da Costa Rica, passando a ter como fundamento de validade o § 2º do art. 5º da CF/88, prevalece como norma supralegal em nossa ordem jurídica interna e, assim, proíbe a prisão civil por dívida. Não é norma constitucional -- à falta do rito exigido pelo § 3º do art. 5º --, mas a sua hierarquia intermediária de norma supralegal autoriza afastar regra ordinária brasileira que possibilite a prisão civil por dívida. 4. No caso, o paciente corre o risco de ver contra si expedido mandado prisional por se encontrar na situação de infiel depositário judicial. 5. Ordem concedida. (STF. Habeas-corpus nº. 94.013. Parte Litigante Ivete Daoud Maia, Relator Carlos Britto, 10 fev. 2009). (grifo nosso). 66 2.5 Os diversos planos de estudo do acesso à Justiça O estudo do acesso à Justiça comporta vários aspectos e perspectivas, a depender do ponto de vista do observador ou do estudioso do assunto. Se o estudo for realizado por um leigo, ou por um jurista dogmático, por um sociólogo, um filósofo ou um político, as impressões a respeito da temática sofrerão distintas percepções. A perspectiva mudará, na medida em que seja apreciado por um simples operário, por um rico empresário ou por um morador da favela dos grandes centros urbanos, por um trabalhador urbano ou um operário rural, por uma pessoa do sexo masculino ou por outra do sexo feminino, por uma pessoa culturalmente preparada ou outra não alfabetizada, etc. Tudo depende do ângulo de visão que tiver o observador (LIMA FILHO, op. cit. p. 150). Assim, o estudo do acesso à Justiça que se pretende desenvolver esbarra necessariamente em perspectivas distintas, a saber: a leiga e a técnico jurídico, isto é, sob o ponto de vista da realidade sociológica dos povos modernos. 2.5.1 Acesso à Justiça numa perspectiva leiga A par da existência dos significados técnico-jurídicos, filosóficos e sociológicos, existe também uma visão leiga de acesso à Justiça. Nessa perspectiva, acesso à Justiça corresponde às dificuldades de toda ordem (econômicas, culturais, sociais, dentre outras) encontradas para se demandar em juízo com o fito de fazer valer os direitos consagrados pelo ordenamento jurídico, razão pela qual se convencionou dizer que o acesso à Justiça é muito difícil ou impossível. Essa visão leiga de acesso à Justiça leva em consideração o simples fato de se conseguir a oportunidade de estar em juízo. Isso decorre do inconsciente coletivo, do estado de alienação, por viver numa realidade injusta em decorrência das forças econômicas e políticas que atuam e dominam os menos favorecidos e as camadas mais pobres da sociedade. Assim, os simples fato da distribuição de uma 67 ação judicial já se configura – nessa perspectiva – como uma concretização plena do acesso à Justiça. Nessa trilha: A visão leiga mira a mera oportunidade de estar perante o juiz. As forças do poder econômico e político subtraídas da maioria do povo, leva à essa visão estreita. Os ricos teriam um ‘acesso à Justiça’ negado aos menos favorecidos. Não que isso não seja uma realidade constatada largamente, Apenas esse ‘acesso à Justiça’, não constitui verdadeiro acesso nem verdadeira Justiça. É sem nenhuma margem de dúvida, essa visão distorcida do homem comum, do leigo, ao que se constitui o verdadeiro acesso à Justiça, que causa uma desilusão do litigante, ao constatar que longe está de si, um efetivo acesso à Justiça, por não conseguir ultrapassar o que Cappeletti chama de ‘obstáculos a serem transpostos’, como custas judiciais, tempo processual, recursos financeiros para os depósitos recursais, honorários advocatícios e periciais, e outros menos morais, que desenganadamente ocorrem, sem se falar na alienação a respeito do que é justo, do que sejam direitos. Nesse passo, a ilusão da Justiça desboca numa desilusão aterradora dos que pretendem o direito de acesso à Justiça, pois sequer conseguem um efetivo acesso formal ao processo. (BEZERRA, op. cit. p. 128). Mencionada situação, real e prática, aponta que o acesso formal à Justiça, distante, evidentemente, de ser o adequado e justo, ainda é oportunidade de poucos, ou seja, se não se confere nem acesso formal, de forma que o acesso à ordem jurídica justa é mera falácia e não passa de retórica. Até entre os juristas se defende o processo como a única via de solução dos conflitos e de acesso à Justiça, o que é um grande erro. É que entre os processualistas predomina uma infindável preocupação de aprimorar o sistema processual e proteger com escudo de ferro as garantias processuais insertas na Carta Maior de 1988. Não que isso seja despiciendo, mas por si só não é suficiente. Em verdade, não passa de ledo engano estudar, criar e desenvolver mecanismos processuais e garantias processuais achando que assim se obterá a tão sonhada efetividade do acesso à Justiça. É que o mero acesso ao processo não indica processo justo, nem sinaliza a realização daquilo que realmente necessita a parte a ingressar em juízo. 68 2.5.2 Acesso à Justiça numa perspectiva técnico-jurídica Nessa perspectiva, o acesso à Justiça encontra-se concatenado ao seu aspecto formal, motivo pela qual os doutrinadores entrelaçam a noção de efetividade do processo com efetividade de acesso à Justiça. A propósito, a lição de Lima Filho conflui para esse raciocínio: Sob essa perspectiva, o termo “acesso à Justiça” abarca conteúdo que parte da simples compreensão do ingresso do cidadão em juízo, passando por aquela que vê o processo como um instrumento para a realização dos direitos individuais, e, finalmente, aquela mais ampla que se encontra relacionada a uma das funções do próprio Estado a quem é acometida a missão não apenas de garantir a eficiência do ordenamento jurídico, mas, também, a de proporcionar a realização da Justiça aos cidadãos. A doutrina afirma que essas perspectivas do conceito de acesso à Justiça refletem ao mesmo tratamento conceitual despendido ao processo, ou seja, um de caráter eminentemente interno, como fim em si mesmo; outro, como instrumento da jurisdição; e, por último, como instrumento ético para realização da Justiça. (LIMA FILHO, op. cit. p. 153). Entretanto, não se pode olvidar que a mera admissão do processo não é suficiente para a efetividade e concretização do acesso à Justiça. O acesso à Justiça, nessa linha de pensamento, tem como esteio os princípios e as garantias processuais, previstos no ordenamento jurídico, todos convergentes para a consumação de uma verdadeira efetividade do processo. A junção desses fatores deve ser bastante para superação dos obstáculos a serem transpostos, a fim de propiciar ao indivíduo o acesso à ordem jurídica justa. Mas não é só: Já não basta, aos processualistas, dominarem os conceitos e categorias básicas do direito processual, como a ação, processo e a jurisdição, em seu estado de inércia. O processo, tem, sobretudo, função política no Estado Social. Deve ser organizado, entendido e aplicado, como instrumento de garantia constitucional, assegurando a todos pleno acesso à tutela jurisdicional e, como uma das vias de acesso à Justiça, que há de se manifestar sempre como atributo de uma tutela Justiça, socialmente justa, sem, contudo, esquecer das formas extraprocessuais de acesso, quiçá mais condizentes com a realidade social (BEZERRA, op. cit. p. 139). 69 É cediço que dentro desse tratamento técnico-jurídico e dogmático do acesso à Justiça, algumas soluções têm sido implantadas na tentativa de conferirlhe efetividade. Como lembra Beneti: O acesso à Justiça se efetiva, de resultados concretos, não questão de retórica, mas prática. Passa pelos instrumentos e condições materiais de trabalho, mas tem muito que melhorar no aprimoramento dos procedimentos, na formação de juízes, na criação de novo tipo de bacharel em direito, diretamente comprometido com a preservação do acesso à Justiça, enfim, com novos profissionais de direito, que tenham horror à forma vazia, abominem trazer a prática a teoria sem efeito concreto; que seja livre para criar e desprendido para deixar novas formas de andamento das informações contidas nos autos, desapegado de interesses pessoais mesquinhos e de corporativos interesses de classe, para que possa se caracterizar o democrático acesso à Justiça como instrumento de adequada convivência social, ficando os desajustes da sociedade, inclusive na construção do sistema de Justiça, para correção nos outros foros de organização social. (BENETI, 1995, p. 377). A questão além de jurídica é também cultural, pois, já é momento de se quebrar o paradigma estabelecido na mente dos operadores do Direito de que o processo é eminentemente mercantil. É preciso analisar a viabilidade da ação, a fim de verificar se haverá ou não êxito, para evitar riscos financeiros desnecessários, além do abarrotamento da Justiça com demandas descabidas. É fato que alguns vislumbram no Poder Judiciário a única instância capaz a solução dos conflitos de interesses, em virtude do monopólio da Jurisdição estatal. Entretanto, trata-se de uma postura anacrônica e incompatível com a atual dinâmica das relações sociais. A crise do acesso à Justiça se vence com a ampliação e o fortalecimento dos mecanismos extrajudiciais de solução dos conflitos, ou então, com prestação do serviço jurisdicional “portas a fora” dos fóruns do País, indo alcançar aqueles que não têm, sequer, acesso à Justiça formal. A concentração do serviço jurisdicional engendra o afogamento da máquina estatal, que não se preparou adequadamente para essa “jurisdicionalização” abrupta e repentina dos conflitos. Isso leva a reformas processuais irracionais e a massificação de sentenças, produzidas a minuto, como se o direito fosse matemático, ou seja, o mesmo para cada caso análogo. Os mecanismos extrajudiciais de solução dos conflitos, e até mesmo a “descentralização” da prestação dos serviços jurisdicionais, são alternativas viáveis 70 e positivas ao regime democrático, pois encontram alicerce no pluralismo jurídico e democratizam o acesso à Justiça de modo a efetivá-lo, não apenas formalmente, mas, através da distribuição verdadeira e plena de Justiça. Como bem ressaltado por Lima Filho (op. cit. p. 157), o acesso à Justiça não se resume na existência de um ordenamento jurídico que seja capaz de regular as atividades individuais e sociais, mas, ao mesmo tempo, deve ter aptidão de distribuir legislativamente, de forma justa, os direitos e faculdades substanciais. E continua: Nessa ótica, o acesso à Justiça deve ser compreendido no sentido de toda atividade jurídica passando pela criação de normas, sua interpretação, integração e aplicação, com Justiça, isto é, o acesso deve ser compreendido num sentido abrangente que vai desde a criação das normas até sua concreta e justa aplicação. (LIMA FILHO, Idem, p. 157). 71 3 A CRISE DO ACESSO À JUSTIÇA 3.1 Considerações preliminares No Brasil, estima-se haver uma população de 165.371.49338. O rendimento mensal médio39 de 61% da população é de R$ 313,30. Segundo dados do IBGE, até o ano de 1996, a taxa de atividade atingiu 61,3%40. Por outro lado, no Brasil os valores da taxa de desocupação para os anos de 1992, 1993, 1995, 1996 foram, respectivamente, de 6,5%; 6,2%; 6,1% e 6,9%41. Mas não é só. Das pessoas ocupadas de 10 anos ou mais de idade, levando-se em conta os anos de estudo, verifica-se que no Brasil estudaram até os 3 anos, 28,7%; dos 4 aos 7 anos, 30,9%; dos 8 aos 10 anos, 14,9%; e, dos 11 anos acima, 24,9%42. Ainda, entre homens e mulheres de 15 ou mais de idade, 13,3% são analfabetos43. A média de estudo nacional, considerando-se as pessoas de 10 anos de idade ou mais, é de 5,7 anos, sendo que os homens estudam em média 5,6 anos e as mulheres 5,9 anos. Os brancos estudam em média 6,6 anos, enquanto os 38 Fonte: IBGE/DPE/Departamento de População e Indicadores Sociais. Divisão de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica. Projeto UNFPA/BRASIL (BRA/98/P08) - Sistema Integrado de Projeções e Estimativas Populacionais e Indicadores Sócio-demográficos. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Aspectos Demográficos: informações gerais. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 19 junho, 2009). 39 Fonte: Departamento de Contas Nacionais do IBGE. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Trabalho e Rendimento: Informações gerais, 1999. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 19 junho, 2009). 40 Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese de indicadores 1995. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 20 junho, 2009). 41 Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese de indicadores 1993; Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese de indicadores 1995; Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese 1996. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 20 junho, 2009). 42 Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999 [CD-ROM]. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Pessoas ocupadas de 10 anos ou mais de idade por anos de estudo – 1999. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 20 junho, 2009). 43 Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999 [CD-ROM]. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 20 junho, 2009). 72 pretos e pardos estudam apenas 4,6 anos44. Em relação ao Poder Judiciário, interessante analisar alguns dados fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça através do programa “Justiça em Números45”. Será analisada a litigiosidade referente aos anos de 2004 a 2008, no âmbito do Poder Judiciário Estadual,46 mais precisamente em primeiro grau de jurisdição. No Brasil, durante o ano de 2004 surgiram 9.607.571 casos novos na Justiça Estadual de primeiro grau47. Havia, no entanto, 24.249.064 de casos pendentes de julgamento48 para um total de 7.742 magistrados49. O saldo foi uma carga de Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999 [CD-ROM]. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Média de anos de estudo das pessoas de 10 anos ou mais de idade por sexo e cor - 1999. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 20 junho, 2009). 45 “Justiça em Números” é um sistema que visa a ampliação do processo de conhecimento do Poder Judiciário por meio da coleta e da sistematização de dados estatísticos e do cálculo de indicadores capazes de retratarem o desempenho dos tribunais. Os dados englobam as seguintes categorias gerais: a) Insumos, dotações e graus de utilização: levantam-se dados sobre despesas, pessoal, recolhimentos/receitas, informática e área física. b) Litigiosidade e carga de trabalho: calcula-se o quantitativo de casos novos, a carga de trabalho do magistrado, a taxa de congestionamento da Justiça, a taxa de recorribilidade externa e interna e a taxa de reforma da decisão. c) Acesso à Justiça: averigua-se a despesa com assistência judiciária gratuita e o quantitativo de pessoal atendido. d) Perfil das demandas: busca-se levantar a participação governamental nas demandas judiciais. As informações são fornecidas originariamente pelos Tribunais de Justiça dos Estados, Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunal Superior do Trabalho. Os dados apresentados são de responsabilidade exclusiva dos Tribunais que participam da pesquisa. A fim de evitar equívocos, os dados apresentados pelos Tribunais são submetidos à validação pelos órgãos respondentes. Seguindo os critérios estabelecidos na Resolução nº 15 de 2006, os dados são informados pelos tribunais semestralmente. O relatório “Justiça em Números” é publicado anualmente, além de ser enviado ao Congresso Nacional como parte do Relatório Anual do Conselho Nacional de Justiça. (Disponível em <http:// www.cnj.jus.br>). 46 Escolheram-se os dados da Justiça Estadual porque ela é responsável pelo julgamento de processos envolvendo matérias cíveis, de família, do consumidor, de sucessões, de falências e concordatas, da infância e juventude, além das matérias criminais. Algumas destas matérias podem ser processadas e julgadas pela Justiça Itinerante. 47 Consideram-se casos novos de 1º grau todos os processos que ingressaram ou foram protocolizados na Justiça Estadual de 1º grau no período-base (ano ou semestre), excluídas as cartas precatórias, de ordem e rogatórias recebidas, recursos internos, execuções de sentença e as execuções fiscais sobrestadas e suspensas, os precatórios judiciais e RPV’s (Requisições de Pequeno Valor) e outros procedimentos passíveis de solução por despacho de mero expediente. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 20 junho, 2009. 48 Consideram-se casos pendentes de julgamento no 1º grau o saldo residual de processos não sentenciados na Justiça Estadual de 1º grau no final do período anterior ao período-base (ano ou semestre), excluídas as cartas precatórias, de ordem e rogatórias recebidas, as execuções de sentença, os precatórios judiciais e RPV’s (Requisições de Pequeno Valor) e outros procedimentos passíveis de solução por despacho de mero expediente. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 20 junho, 2009. 44 73 trabalho de 4.609 processos por magistrado50. No total, os magistrados proferiram 6.650.840 sentenças51, com uma taxa de congestionamento de 80,7%52. Já no ano de 2005, os números do Poder Judiciário foram os seguintes: surgiram 9.434.832 casos novos, havendo 26.860.976 casos pendentes, e 8.002 magistrados. O resultado foi uma carga de trabalho de 4.657 processos para cada juiz. Foram prolatadas 7.258.452 sentenças, com uma taxa de congestionamento de 80,0%53. No ano de 2006, surgiram 10.462.176 casos novos, havendo saldo de 29.317.287 casos pendentes. Os 8.310 magistrados produziram um total de 7.882.254 sentenças. Como resultado, constatou-se uma carga de 4.787 processos, e uma taxa de congestionamento de 80,2%54. Em 2007, surgiram 11.476.577 casos novos, havendo, entretanto, 32.103.142 casos pendentes. Foram proferidas 8.516.057 sentenças por 8.541 magistrados. Como resultado, apresentou-se uma carga de trabalho de 5.102 processos e uma taxa de congestionamento de 80,5%55. Por derradeiro, no ano de 2008, o Conselho Nacional de Justiça apurou 12.250.758 casos novos, entretanto, havia 33.145.844 casos pendentes. Os 8.603 magistrados proferiram ao todo, 9.258.589 sentenças, mas, o acúmulo de carga de trabalho foi de 5.277 processos por juiz e a taxa de congestionamento foi fixada em 76,5%56. 49 O número de magistrados corresponde ao número total de cargos de magistrados de 1º grau providos até o final do período-base (ano ou semestre). CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 20 junho, 2009. 50 A carga de trabalho no 1º grau corresponde à quantidade de processos em andamento no período (casos pendentes de julgamento somados aos casos novos) por magistrado. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 20 junho, 2009. 51 São todas as sentenças proferidas no 1º grau no período-base (ano ou semestre). CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 20 junho, 2009. 52 Taxa de congestionamento é a quantidade de processos pendentes de sentença que extinguem o processo no 1º grau em relação aos em andamento no período (casos pendentes de julgamento somados aos casos novos). CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 20 junho, 2009. 53 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 20 junho, 2009. 54 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 20 junho, 2009. 55 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 20 junho, 2009. 56 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 21 junho, 2009. 74 Como visto, muitas são as causas a retardar a prestação jurisdicional, não podendo ser atribuída aos juízes ou ao Poder Judiciário, somente, a responsabilidade daí advinda. Os fatores de ordem econômica, social e cultural devem ser levados em conta quando se constata que o acesso à Justiça está em crise57. Além dos fatores mencionados, há, ainda, fatores históricos que remontam ao imperialismo, consoante expõe Galeano: A chuva que irrigou os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes – dominantes para dentro, dominadas para fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nocivos. Na alquimia colonial e neocolonial, o ouro se transformava em sucata e os alimentos se convertiam em veneno. E a brecha se amplia. Em meados do século passado o nível de vida dos países ricos do mundo excedia em 50% o nível dos países pobres. O desenvolvimento envolve a desigualdade, porque a força do conjunto do sistema imperialista descansa na necessária desigualdade das partes que o formam, e esta desigualdade assume magnitudes cada vez mais dramáticas, Os países opressores tornam-se cada vez mais ricos em termos absolutos, porém muito mais em termos relativos, pelo dinamismo da disparidade crescente. Cento e vinte milhões de crianças da América Latina se agitam no centro desta tormenta. A população da América Latina cresce como nenhuma outra; em meio século triplicou com sobras. Em cada minuto morre uma criança de doença ou de fome, mas no 2.000 haverá 650 milhões de latino-americanos e a metade terá menos de 15 anos de idade: uma bomba de tempo. Entre os 280 milhões de latino-americanos há, atualmente, 50 milhões de desempregados ou subempregados e cerca de cem milhões de analfabetos; a metade dos latino americanos vive apinhada em moradias insalubres. Os três maiores mercados da América Latina – Argentina, Brasil e México – não chegam a igualar, somados, a capacidade de consumo da França ou da Alemanha Ocidental, mesmo que a população reunida dos três grandes exceda de muito a qualquer país europeu. Novas fábricas se instalam nos pólos privilegiados de desenvolvimento – São Paulo, Buenos Aires e Cidade do México – porém reduz-se cada vez mais o número de mão-de-obra exigido. O sistema não previu esta pequena chateação. O que sobra é gente. As missões norte-americanas esterilizam maciçamente e semeiam pílulas, diafragmas, DIUs, preservativos e almanaques marcados, mas colhem crianças; obstinadamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, e reivindicando seu direito natural de obter um lugar ao sol, nestas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que a quase todos negam. (GALEANO, 1983, p. 14-15). 57 Recomenda-se a leitura da obra “A Jurisdição como elemento de Inclusão Social: Revitalizando as regras do jogo democrático”, de autoria do Professor Jônatas Luiz Moreira de Paula, onde se realizou estudo aprofundado repleto de dados estatísticos a respeito de fatores que implicam uma nova visão a respeito do conceito de jurisdição. Interessante a análise feita a respeito do perfil da sociedade brasileira (2002, p. 5-16). 75 Com relação à influência da história brasileira e seu reflexo na questão do acesso à Justiça, interessantíssimo o estudo realizado por Passos, intitulado de “O Problema do Acesso à Justiça no Brasil”, onde se conclui que: As perspectivas, a curto prazo, não são animadoras. Na verdade o país, agora, está mobilizado, todo ele, para vencer a grave crise econômica e financeira que o agride, superar o abismo que medeia entre os poucos ricos e os muitos miseráveis, e acima de tudo, tentar retomar para a sociedade civil a participação no poder que ela perdeu com graves danos para o Brasil e para os brasileiros. No bojo dessas lutas, a luta por melhor Justiça se faz presente, mas a luta maior, a grande luta é antes por um estado de coisas que possibilite a própria Justiça. Sem esta a outra é uma superfluidade, porque se resumirá sempre a mero instrumento custoso de solução das quizilas dos que podem tentar resolver seus desentendimentos de superfície, em meio ao grande conflito social ainda não solucionado. (PASSOS, 1985, p. 87). Diante dos dados apresentados, a crise da Justiça deve ser analisada numa perspectiva jurídica e não jurídica. Como salientado alhures, o acesso a ela não se resume a acesso ao processo ou ao Judiciário, já que constitui direito fundamental do cidadão intimamente concatenado ao princípio da dignidade da pessoa humana, este, núcleo essencial da Constituição Cidadã. O acesso à Justiça, nessa visão, é muito mais amplo e seu estudo não pode ser tão reducionista a ponto de vilipendiar fatores reais que assolam a sociedade brasileira. Nessa linha de raciocínio, o que se pretende é estabelecer mecanismos de superação, com esteio numa Justiça transformadora, que não esconde a realidade burguesa, elitista e desigual. Assim, quando se fala em acesso à Justiça, nessa ótica, se fala não só em acesso ao processo e a Jurisdição estatal, mas, numa perspectiva de Justiça social, se fala e se defende, também, o acesso à saúde, educação, lazer, cultura, moradia, alimentação e tantos outros direitos fundamentais que são verdadeiras liberdades positivas de um Estado que apregoa ser “Democrático” e de “Direito”. A propósito, a concretização de tais direitos nasce e é atingido através de um esforço conjunto dos Poderes da República. É que de nada adianta o Poder Judiciário buscar mecanismos de superação da crise, se Executivo e Legislativo, incumbidos de concretizar as políticas públicas, como educação, saúde, desenvolvimento econômico, dentre outros, não fizerem a sua parte. A propósito: 76 Não se engane cidadão brasileiro! É preciso re-pensar o sistema de política social a partir do ordenamento jurídico, posto que, os dois principais ‘poderes’ do Estado – Poder Executivo e Poder Legislativo – não estão conferindo a devida eficácia dos programas sociais, seja a curto, como a médio e longo prazo, além de cobrar uma fatura alta pela promessa da realização da política social. Para tanto, passa-se a especular uma atividade mais contundente do Poder Judiciário, a fim de conferir a desejada eficácia dos programas sociais e normas que têm esse cunho, mas que não implementadas por falta de uma melhor postura do Poder Executivo e do Poder Legislativo. (PAULA, 2002, p. XII-XIII). De acordo com a realidade nacional, e considerando-se as inúmeras iniciativas já adotadas nas últimas décadas a fim de se superar a crise do acesso à Justiça, não bastará fortalecer o sistema oficial. “Não só novos instrumentos jurídicos são importantes, mas também uma formação cultural voltada à descentralização dos serviços judiciários, com a aproximação do cidadão e uma consciente responsabilidade de enfrentar a tão reclamada morosidade e lentidão da Justiça” (TORRES, op. cit. p. 28). A crise do acesso à Justiça ocasiona a descrença nas instituições estatais, nesse caso, no Poder Judiciário, que detém a função constitucional de pacificar os conflitos sociais com Justiça. É preciso enxergar que o Estado não é capaz de distribuir Justiça a todos, da forma mais igualitária possível. Não se pode perder de vista o fato de que as relações sociais são dinâmicas, razão pela qual as leis postas não acompanham as novas situações eclodidas do seio social. É preciso descentralizar a prestação do serviço jurisdicional e reconhecer o pluralismo jurídico, fortalecendo-o em sua perspectiva institucionalizada e admitindoo em sua perspectiva não institucionalizada, e levar em consideração que a solução dos conflitos pode ocorrer entre os próprios contendores, sem a participação direta do Estado-juiz58. Somente assim a crise do acesso à Justiça poderá ser combatida, desde que haja participação plena e efetiva dos demais Poderes da República. 58 Wolkmer (1997, p. 256-280) expõe que uma das vertentes do pluralismo jurídico é a resolução de conflitos institucionalizada, através da conciliação, arbitragem e juizados de pequenas causas, hoje, juizados especiais. A outra vertente é a resolução dos conflitos por via não institucionalizada, de maneira informal, autêntica, flexível e descentralizada, através de processos de negociação, conciliação, mediação, arbitragem, juízo arbitral e tribunais populares. 77 3.2 As limitações do acesso à Justiça 3.2.1 O custo do processo O custo do processo ainda constitui fator de limitação do acesso à Justiça. Não se trata de problema recente, mas que certamente perdurará por tempos. Na verdade, a ausência de recursos econômicos para suportar as custas e despesas processuais desemboca na seara processual, mas, tem como causa questões alheias a ela. Aos fatores externos capazes de limitar o acesso à Justiça, Cichocki Neto denominou de “limitações exoprocessuais”, situadas nas áreas política, social, econômica e cultural. No que toca ao custo do processo, três situações merecem destaque: a) a condição econômica da população brasileira; b) a elevação do custo do processo consoante à diminuição do valor da causa; c) a necessidade de advogados e de pagamento do honorários advocatícios. Já demonstrou-se anteriormente (item 3.1) que a condição econômica atual da população brasileira é caótica. Milhares de brasileiros vivem no limite ou abaixo da linha da miséria e não têm acesso a bens materiais essenciais à sobrevivência digna, como alimentação, moradia e vestuário. Essa situação atinge as camadas mais pobres, de baixa renda, que em nosso país inegavelmente constituem a grande maioria. Em face disso, aliado a fatores sociais e culturais, os indivíduos são desestimulados a buscar o Poder Judiciário para solução de seus conflitos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, até o ano de 2007, das pessoas com mais de 10 anos de idade, ocupadas, 8,4% recebiam até ½ salário mínimo; mais de ½ a 1 salário mínimo, 19,2%; mais de 1 a 2 salários mínimos, 30,8%; mais de 2 a 3 salários mínimos, 11,7%; mais de 3 a 5 salários mínimos, 8,4%; mais de 5 a 10 salários mínimos, 6,3%; mais de 20 salários mínimos, 2,3%; mais de 20 salários mínimos, 0,8%; sem rendimento, 10,4%59. 59 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Fonte: Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2007. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 26 junho, 2009. 78 Há mais: A taxa de desocupação/desemprego medida no ano de 2007 atingiu 9,3%, sendo que 7,4% entre homens e 11,6% entre mulheres60. A esses dados podem somar-se outros, como: a) grande parte da população é desnutrida ou subnutrida, ingerindo menos alimentos do que o necessário; b) a taxa de mortalidade infantil e de crianças vivendo na rua e fora das escolas é alarmante; c) há uma enorme concentração de terras nas mãos de poucos, enquanto milhões de famílias de pequenos agricultores estão desabrigadas. (RODRIGUES, op. cit. p. 252). Embora seja um direito fundamental assegurado pela Constituição Federal de 1988, o acesso formal à Justiça é financeiramente oneroso para os mais pobres. Assim, se esses indivíduos não percebem o suficiente para viver dignamente, como custearão um processo judicial? “Esse é por certo, o mais grave entrave ao efetivo direito de acesso à Justiça. Agrava-o, ainda mais, o fato do princípio constitucional da igualdade ser aplicado diretamente entre as partes em leitura meramente formal, não se levando em conta as diferenças sociais, econômicas e culturais existentes” (RODRIGUES, 2008, p. 252). Nessa linha de pensamento, jurisdição paga é jurisdição aristocrática. É que se a jurisdição é um direito-garantia fundamental, o pagamento de seu exercício nega o princípio democrático que nele se deve conter e que a isonomia lhe impõe, o que somente pela ausência de encargos como condição preliminar necessária pode permitir. Assim, se a jurisdição é direito de todos, e o princípio da igualdade é um dos pilares fundamentais da construção jurídica positivada, assume o Estado o encargo irrecusável de prestá-la sem qualquer ônus. É que o ônus pode constituir embaraço intransponível ao exercício daquele direito. Está-se a conferir o direito à jurisdição de uma parte, e a subtrair o seu exercício de outro. (ROCHA, op. cit. p. 35). De nada adiante garantir ao indivíduo a liberdade, se a condição econômica para usufruir desta não é alcançada. Em verdade, o ser humano somente se considera livre na medida em que vive de forma digna. Rodrigues (1994, p. 35) ressalta que: 60 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. FONTE: Pesquisa Mensal de Emprego. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 26 junho, 2009. 79 É necessário levar-se em conta que não basta ao ser humano o atributo da liberdade. Há um imperativo maior: a própria condição sócio-econômicacultural capaz de admiti-lo como pessoa humana. O discurso jurídico liberallegal, em diversos momentos, cala essa premissa fundamental. O acesso à Justiça somente alcançará o plano de igualdade nas relações sociais quando o problema da pobreza, da desigualdade econômica for, ao menos, amenizado. Enquanto isso não acontecer, o direito de “bater às portas” do Judiciário e ajuizar ação não passará de utopia para muitos. Assiste razão a Cichocki Neto quando assevera que: [...] a condição de igualdade não se coaduna com as diferenças de oportunidades de acesso aos indivíduos. Se as necessidades de tutela jurisdicional forem idênticas para os pobres e para os ricos, a discriminação na abertura dos canais de acesso atentará, adversamente, ao princípio da igualdade. Por outro lado, a dignidade da pessoa humana é condição que se reveste tanto aos economicamente carentes quanto aos afortunados; por isso, a Administração da Justiça deve atribuir-lhes oportunidades idênticas de acesso. E é ao Estado, através de sua função jurisdicional, que compete o poder-dever de recepcionar todos os litígios que ocorrem na ordem social, independentemente das qualidades ou condições pessoais dos litigantes; a existência de focos de desassistidos no seio social, jurídica e jurisprudencialmente, em virtude de carência econômica, erige-se em fator que obsta o acesso à Justiça. (CICHOCKI NETO, op. cit. p. 112). Outra situação, ainda ligada ao custo do processo, é a seguinte: em estudo sociológico realizado por Santos, constatou-se que em determinados países o custo do processo aumentava à medida que baixava o valor da causa. Na Inglaterra, por exemplo, verificou-se que em cerca de um terço das causas em que houve contestação os custos globais foram superiores aos do valor da causa. Na Itália, os custos da litigação podem atingir 8,4% do valor da causa nas ações com valor elevado, enquanto que nas de valor diminuto essa percentagem pode elevar a 170%. Estes estudos revelam que a Justiça civil é cara para os cidadãos em geral, mas revelam, sobretudo, que a Justiça civil é proporcionalmente mais cara para os cidadãos economicamente mais débeis. É que são eles fundamentalmente os protagonistas e os interessados nas ações de menor valor e é nessas ações que a Justiça é proporcionalmente mais cara, o que configura um fenômeno de dupla vitimização das classes populares face à administração da Justiça (SANTOS, op. cit. 80 p. 126). As despesas com provas necessárias à comprovação dos fatos, por vezes, assumem grandes proporções econômicas para pessoas de baixa renda. É o que ocorre no caso do exame de DNA, hábil à comprovação do estado de filiação em ação de investigação de paternidade. Para a maioria da população brasileira, referida perícia é inacessível. Por outro lado, é cediço que a Lei nº. 1.060/50, em seu artigo 3º, VI, estabelece que o custeio da despesa com a realização do DNA. Entretanto, o direito da parte beneficiária da assistência judiciária gratuita esbarra, por vezes, na ineficiência do Executivo e do Legislativo, que nem sempre destinam recursos no orçamento público para esse custeio. A alternativa para solucionar o problema é compelir o Estado, por meio de requisição efetuada pelo magistrado ao Órgão Fazendário Estadual, a arcar com a perícia como já se decidiu no STF. Por fim, a terceira situação que restringe o acesso à Justiça é a necessidade de advogado. Nesse ponto, três ponderações devem ser feitas. A primeira está ligada ao custeio dos honorários de advogado particular. Nem sempre o indivíduo consegue atendimento jurídico pela Defensoria Pública, que recebeu a incumbência constitucional de prestar assistência judiciária gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos61. Por vezes, os Núcleos Jurídicos das escolas de Direito também se encontram abarrotados de atendimentos, restando ao indivíduo buscar auxílio de um advogado particular. Os honorários advocatícios fixados em tabela própria pela OAB, infelizmente não são condizentes com o nível econômico da população mais pobre e torna o acesso à assistência jurídica particular uma grande ilusão para muitos. Apenas para exemplificar: uma ação de alimentos ou de separação judicial custara à parte contratante, no mínimo, R$ 1.000,00 (Um mil reais). Se levados em conta os dados do IBGE citados anteriormente, será possível coligir que a contratação de advogado particular torna-se inviável para as pessoas financeiramente mais carentes. A segunda tem relação com a qualidade dos profissionais disponíveis no mercado. O efetivo acesso à Justiça passa necessariamente pelo assessoramento de um bom advogado, entretanto, o ensino jurídico no Brasil tem sido alvo de veementes críticas, mormente, pela baixa qualidade dos bacharéis e pelos baixos 61 Art. 5º, LXXIV – “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. 81 índices de aprovação no exame da OAB. Correta a afirmativa de Rodrigues: Ao lado da ampliação da quantidade de cursos e de vagas nas faculdades e universidades, o que elevou grandemente o número de alunos sem que houvesse meios materiais e corpo docente qualificado para fazer frente à demanda, há também a constante mutação existente na realidade social, cultural, política, econômica e científica nacional. Essa mudança constante exige do advogado a cada dia uma visão mais ampla e interdisciplinar, para que ele possa assessorar corretamente a sua clientela. Modificaram-se as exigências com relação à prática profissional, mas o ensino de Direito não vem acompanhando essa transformação. (RODRIGUES, op. cit. p. 260). Mas não é só. Não bastasse o custo da assistência judiciária particular, há ainda a questão da sucumbência62. Conforme lembra Cappelletti (op. cit. p. 16-18), nos Estados Unidos, por exemplo, o indivíduo somente ingressa em juízo com uma demanda se tiver plena convicção de que obterá uma sentença favorável. Na GrãBretanha a situação é ainda mais penosa, pois, os honorários advocatícios podem variar muito. No Brasil, embora exista critério objetivo para fixação de honorários advocatícios de sucumbência63, o que teoricamente elimina surpresa do vencido, induvidosamente que o indivíduo integrante das classes mais baixas não terá 62 “2. Verbas de sucumbência. O vencido deverá pagar todas as custas e despesas do processo, incluídas aqui a que a parte vencedora antecipou (CPC 19), as mencionadas no CPC 20 § 2º, bem como honorários de advogado. Os honorários fixados pelo juiz pertencem ao advogado (EOAB 23)” (NERY JUNIOR, 2006, p. 191). 63 Art. 20. A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Esta verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria. § 1º O juiz, ao decidir qualquer incidente ou recurso, condenará nas despesas o vencido. § 2º As despesas abrangem não só as custas dos atos do processo, como também a indenização de viagem, diária de testemunha e remuneração do assistente técnico. § 3º Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez por cento (10%) e o máximo de vinte por cento (20%) sobre o valor da condenação, atendidos: a) o grau de zelo do profissional; b) o lugar de prestação do serviço; c) a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço. § 4o Nas causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, naquelas em que não houver condenação ou for vencida a Fazenda Pública, e nas execuções, embargadas ou não, os honorários serão fixados consoante apreciação equitativa do juiz, atendidas as normas das alíneas a, b e c do parágrafo anterior. § 5o Nas ações de indenização por ato ilícito contra pessoa, o valor da condenação será a soma das prestações vencidas com o capital necessário a produzir a renda correspondente às prestações vincendas (art. 602), podendo estas ser pagas, também mensalmente, na forma do § 2o do referido art. 602, inclusive em consignação na folha de pagamentos do devedor. 82 condições de pagá-los. Ademais, a contratação de advogado particular implica o pagamento de honorários advocatícios contratados. Assim, aquele que perde a demanda normalmente arca com os honorários advocatícios de seu advogado mais a sucumbência destinada e pertencente ao advogado da outra parte. É necessário a cada dia o fortalecimento das Defensorias Públicas, já que a Constituição Federal de 1988 pontuou que o advogado é indispensável à administração da Justiça, o que se constitui em verdade absoluta64. Logo, é impossível haver “paridade de armas” entre as partes litigantes se uma delas não estiver regularmente assistida; a ausência de advogado inviabiliza a existência de processo justo e democrático. 3.2.2 A duração do processo e a morosidade da Justiça Não menos importante que o problema do custo do processo é o problema da duração deste. Infelizmente uma das características marcantes do Poder Judiciário, quer seja na opinião do operador do direito, ou, principalmente, na opinião do leigo, é a “morosidade da Justiça”. A duração do processo deve ser alvo de preocupação dos juristas e dos Poderes instituídos, pois, a entrega da prestação jurisdicional tardia acarreta a descrença nas instituições estatais e gera insegurança na sociedade. Não é problema brasileiro, apenas. Silva (1993, p. 255-256) em estudo sobre a crise da Justiça, apresenta dados interessantes. Segundo o autor, nos Estados Unidos, o sistema judiciário se encontra saturado, uma vez que as Cortes Distritais (District Courts) julgam em média 600 mil casos. Na Espanha a duração média do processo era de 5 anos e 3 meses e, na Bélgica, 2,33 anos. Na Alemanha, a questão não é diferente. Em 10 anos, o número de processos na primeira instância aumentou em 250.000 (1971 a 1981). Na Justiça do Trabalho brasileira, o processo que chega ao Tribunal Superior do Trabalho dificilmente dura menos de 4 anos (SILVA, Idem, p. 256). Assim, a duração do processo é uma questão que demanda grandes 64 “Art. 133. O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. 83 preocupações. Sobre o tema, inúmeros trabalhos doutrinários já foram publicados; pesquisas com intuito de resolver ou minorar o problema já foram realizadas; reformas processuais fizeram diversas alterações legislativas; no entanto, a “morosidade”, seja por questões velhas ou novas, ainda assola os tribunais do País e incute na mente da população a ideia de que a Justiça tarda. Deste modo, incumbe pontuar algumas causas relativas à duração do processo e a morosidade da Justiça65. A primeira causa a ser apontada é constante mutação social. A sociedade tem evoluído rapidamente. A cada dia novos conflitos surgem, muitos sem solução prevista no ordenamento jurídico. Assim, a falta de dinamismo do legislador acarreta o abarrotamento do Poder Judiciário, compelindo o juiz a atuar como verdadeiro legislador, de modo a decidir questões ainda não positivadas. Ademais, com a afirmação de direitos e garantias individuais na Constituição Federal de 1988, hodiernamente os indivíduos estão mais informados a respeito dos seus direitos, inclusive, exigindo do Estado que os proteja ou os concretize. Por óbvio, na medida em que se informa, é preciso preparar o Poder Judiciário para receber uma quantidade maior de demandas, superior ao normal. Ocorre que a estrutura judiciária foi pouco alterada no que se refere à quantidade de juízes, escreventes, oficiais de Justiça, etc., e o número de demandas aumentou demasiadamente. A conseqüência, logicamente, é o emperramento da máquina judiciária estatal. Lima tece ponderação pertinente a respeito da morosidade da Justiça: É dizer, portanto, que o conceito de prestação jurisdicional qualificada e adequada, constantemente vem se modificando ao longo dos tempos, em atenção às exigências da própria sociedade, cuja existência o direito sempre busca proteger e tutelar, ocorrendo agora verdadeira e inconteste ‘perversão do Estado de direito em Estado judicial’, quando se descobre que o Judiciário existe, e seu uso é extensível a toda população, a qual, com o tempo, maior acesso à informação, e em consonância com o grau de evolução alcançado, dia-a-dia, passa a conhecer cada vez mais suas prerrogativas e pugnar, bem assim, pela sua observância. Destarte, o maior conhecimento do teor de leis e diplomas diversos, somado ao fato de a população passar a exigir-lhes aplicação, como jamais se tinha tido notícia (de maneira inopinada e muito rapidamente), acabou por contribuir como não poderia ser diferente, para assoberbar e atravancar ainda mais o nosso 65 Alguns dados foram anotados no item 3.1, ao qual recomendamos leitura. 84 judiciário, que não estava e ainda está longe de estar preparado estruturalmente para tamanha demanda e influxo de novos processos, de cidadãos que passam a exigir respeito aos seus direitos e acabam descobrindo, conseguintemente, um sistema arcaico, excessivamente burocrático e arraigado em premissas e formalismo incompassíveis com o hodierno ideal de Justiça. (LIMA, 2007, p. 312). Outra causa da morosidade está relacionada à precária instalação dos fóruns e à falta de equipamentos eletrônicos aliadas à pequena quantidade de juízes66 e de serventuários da Justiça, além do crescimento do número de ações. A depender da postura adotada, o modus operandi67 do juiz pode ensejar a morosidade da Justiça. É que alguns, por vezes, apegam-se a formalismos exagerados, rigorismos desnecessários e destituídos de qualquer propósito, o que, por consectário, ceifa o acesso ao Judiciário (LIMA, op. cit. p. 313). Os juízes possuem poderes imensuráveis nas mãos; se mal utilizado, o poder que lhe fora conferido com o objetivo de proporcionar aos cidadãos a justa aplicação da lei causa prejuízos irreparáveis. Não se trata de exigir dos juízes a perfeição, afinal de contas, são seres humanos passíveis de falha, entretanto, é comum que os equívocos cometidos no exercício da função judicante, cuja culpa é sempre colocada na carga de trabalho, em verdade, por vezes, decorrem da negligência e prepotência de alguns. Posturas inflexíveis, insensíveis às reais necessidades das partes e demasiadamente dogmáticas, apegadas ao rigorismo científico e legal, certamente ensejarão um número maior de recursos e incidentes processuais, o que alonga ainda mais o deslinde da controvérsia. 66 Em 2008, segundo dados estatísticos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a média de juízes – na Justiça estadual – para cada 100.000 habitantes era de 5,9%. No total, eram 11.108 magistrados para uma população de 189.600.000. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 06 julho, 2009. 67 Moreira destaca que as deficiências técnicas na aplicação da norma tornam-se fonte de desgraça. Destaca que os juízes não manejam com destreza, dispositivos previstos no Código de Processo Civil, como, por exemplo, o que estabelece o indeferimento da petição inicial (art. 295 do CPC) ou a extinção do processo no estado em que se encontra (art. 329 do CPC), e que podem tornar o procedimento mais célere e efetivo. Comenta que a competência é outra causa obstativa da efetividade do processo. É que as incertezas sobre competência traduzem-se em conflitos positivos e negativos ou exceções rituais, atrasando um processo por anos. O despreparo dos julgadores em matéria de ônus da prova pode acarretar as partes litigantes, danos processuais irreparáveis. Há, ainda, a confusão entre preliminar de mérito, seja no julgamento da causa ou no julgamento do recurso. “Neste ensejo, todavia, o que acima de tudo importa é denunciar a falsa idéia de oposição entre o empenho da efetividade e convivência com a boa técnica. Os exemplo figurados que poderiam se multiplicar ad infinitum, demonstram que efetividade e técnica não são valores contrastantes ou incompatíveis, que dêem origem a preocupações reciprocamente excludentes, senão, ao contrário, valores complementares, ambos os quais reclamam a nossa mais cuidadosa atenção. Demonstram também que técnica bem aplicada pode constituir instrumento precioso a serviço da própria efetividade” (MOREIRA, 2004, p. 28). 85 Sobre a postura do juiz e o acesso à Justiça, Nalini aduz que: [...] Ainda vigora o postulado axiomático de que o Judiciário é órgão inerte, servil à lei, cuja elaboração não deve participar, para não usurpar funções e de que contrariá-la importa em desestruturação da segurança jurídica. Resignar-se o magistrado com essa orientação ortodoxa pode equivaler a converte-se em agente significativo de deterioração do Poder Judiciário. Depois de investir considerável montante de recursos na formação de juiz, remunerando-o de forma que considera mais condigna, lícito à nacionalidade nutrir expectativa de comportamento mais dinâmico: não o inerte observador da realidade, mas agente de sua transformação. E transformar o mundo tem início na transformação da consciência individual. É no mundo minúsculo em que atua cada julgador que pode começar a gigantesca revolução do verdadeiro acesso à Justiça. Ainda não obtenha o juiz ressonância concreta às suas propostas de reformulação legislativa, pode ele deflagrar saudável processo inovador, na busca de atender maior número de pessoas que precisam da Justiça, a partir de um ajuste de rumos na sua atuação individual (NALINI, 1994, p. 52). Deste modo, o juiz pode ser agente fundamental no combate à morosidade da Justiça se adotar posturas arrojadas e fundadas, sempre, na tutela dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988. Como lembra Nalini: O juiz integra uma carreira e exerce uma função. Ao ser nomeado integrante do Poder Judiciário, assume certos deveres indeclináveis, dos quais os principais estão contidos em normatividade constitucional e infraconstitucional. Dentre os deveres funcionais do magistrado, alguns concernem diretamente à garantia do acesso à Justiça. Resulta que da mera observância de sua disciplina judiciária, assegurará o juiz a certeza do ingresso à ordem jurisdicional justa, desnecessária nesse ponto qualquer reforma legislativa. (NALINI, Idem, p. 66) As leis de péssima qualidade, no aspecto semântico ou no aspecto ético introduzidas no ordenamento jurídico, causam a morosidade da Justiça. Um fator que justifica essa situação é a heterogeneidade de classes e segmentos da sociedade no Congresso Nacional, que, de regra, não estão juridicamente capacitados para legislar. Demais disso, há leis que são elaboradas em total descompasso com os anseios da sociedade e veiculam obrigações e deveres injustos, fazendo com que o Poder Judiciário atue para distribuir Justiça de modo 86 adequado. Destaca-se, também, a omissão do Legislativo na regulamentação de matérias relevantes e de crucial interesse para a sociedade, ensejando um volume demasiado de demandas no Poder Judiciário ou um número abusivo de medidas provisórias editadas pelo Poder Executivo. Com razão quando diz que: [...] se o legislador cumpre o seu papel fazendo a lei e faz em conformidade com os anseios do substrato social que representa, além de se permitir com mais facilidade o acesso à ordem jurídica justa, economizase a atividade legisladora residual do executivo e a interpretação nem sempre suficiente do juiz, para o atendimento das necessidades sociais, sobretudo em um país como o Brasil em que os tribunais, especialmente os tribunais superiores, são larga maioria, compostos de magistrados de postura dogmática sempre prontos a interceptar qualquer interpretação mais arrojada e mais sociológica. (LIMA FILHO, op. cit. p. 309-310). O Poder Executivo, assim como o Legislativo, contribui para que o Judiciário seja moroso. Segundo pesquisa realizada pelo Superior Tribunal de Justiça, grande parte das demandas judiciais em trâmite tem como parte a União Federal, suas autarquias, fundações e empresas públicas68. O excesso de demandas ajuizadas em face da União se explica por fatores como: “[...] edição de leis inconstitucionais, 68 “A União é a campeã no ranking das 20 mais processadas no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Um levantamento inédito produzido pela Seção de Sistema Processantes revelou que, num período de 15 anos, ou seja, desde a criação do STJ, chegaram a este Tribunal 202.676 processos tendo como ré a União. Se levarmos em conta que as 20, empresas privadas ou instituições, respondem por 401.079 ações, a participação da União nesse bolo corresponde a 50,53%. Na outra lista deste balanço, que retrata as instituições ou empresas que mais demandaram junto ao STJ, a liderança fica por conta da Caixa Econômica Federal (CEF). Em igual período, a Caixa propôs 346.799 ações, o que representa 45,55% dos 761.273 processos que aportaram no STJ. O ranking das 20 empresas ou instituições que mereceram processos é composto de bancos, governos estaduais, tribunais de Justiça, ministério público. O mesmo ocorre na relação dos 20 maiores demandantes. De acordo com as informações obtidas junto à base de dados do STJ, em uma década e meia de atividade, chegaram ao Tribunal 1.487.000 ações. A soma desses dois rankings atinge 1.162.404 processos. Ou seja, 78,17% das demandas estão concentradas em 23 empresas e instituições que na lista podem estar com rés ou como autoras das ações. Para se ter uma idéia do tamanho desse gargalo, o banco de informações contempla 1,2 milhão de partes. Segundo informações técnicas, é possível que esse cadastro de autores de ações seja menor, já que não se descarta a repetição dos autores com grafias diferentes. Há estimativa de que esse número seja reduzido para cerca de 400 mil demandantes. Se a União e a Caixa são as campeãs de processos, o INSS aparece em segunda colocação nas duas listas desse ranking. A Previdência Social responde por 56.098 ações e propôs 169.851 processos. A Brasil Telecom, operadora de telefonia fixa, figura em 11º no ranking das que tiveram maior quantidade de processos. A empresa responde a 5.025 ações. O balanço foi divulgado por determinação do presidente do STJ, ministro Edson Vidigal. Os técnicos do setor que produziu esse balanço alertam para o fato de que muitas dessas ações podem ter sido concluídas. Isso se deve ao fato de que o levantamento tratou de uma base que vai desde a instalação do STJ até os dias atuais [...]”. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. União lidera ranking das 20 mais processadas no STJ. Disponível em http://www.stj.jus.br. Acesso em: 11 julho, 2009). 87 sucessivos planos econômicos e medidas fiscais, crise econômica e política, medidas lesivas aos interesses dos cidadãos e crise geral do sistema processual69”. Lembra-se, ainda, dos privilégios processuais, como prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer, dentre outros, que acabam por atravancar a marcha processual, além dos precatórios, que configuram nítido calote público. A advocacia deve ser lembrada quando o assunto é a duração do processo. Eis outra causa da morosidade da Justiça: a postura dos advogados em relação ao processo e ao sistema processual. Embora sejam críticos ferrenhos da magistratura e do modus operandi dos juízes, os advogados esquecem que praticam atos processuais aptos a agravar a demora na prestação jurisdicional. Algumas posturas devem ser pontuadas: a interposição de recursos desnecessários, protelatórios, desarrazoados; incidentes processuais incabíveis; produção de provas que em nada contribuem para o deslinde da controvérsia, são algumas das várias condutas processuais que obstam a prestação da tutela jurisdicional em tempo razoável. Como ressalta Lima: Outro fato digno de relato, e que inegavelmente também contribui com a crise do judiciário, e que os causídicos, no exercício de seu ofício, nem sempre resistem a tentação de usar todos os meios ao seu alcance, lícitos ou antijurídicos que sejam, para procrastinar o desfecho do processo. Entre eles, sem grande esforço, é possível enumerar alguns: os autos retirados de cartório deixam de voltar a cartório no prazo legal; criam-se incidentes processuais infundados; apresentam-se documentos fora da oportunidade própria; interpõem-se recursos, cabíveis ou incabíveis, contra todas as decisões desfavoráveis, por menos razão que se tenha para impugná-las; e assim por diante. (LIMA, op. cit. p. 319). Ademais, verifica-se que os cursos jurídicos formam advogados razoavelmente aptos a litigar em juízo, quase desconhecendo meios alternativos de solução dos conflitos porque ainda hoje se difunde a idéia de que os conflitos de interesse devem ser resolvidos pelo Estado, rechaçando por completo a forma alternativa e plural de solução. Nesse ponto, a Ordem dos Advogados do Brasil exerce papel fundamental de conscientização dos profissionais, uma vez que o 69 PORTAL DA JUSTIÇA FEDERAL. A visão interna da Justiça Federal. <Disponível em: http://www.justicafederal.jus.br>. Acesso em: 11 julho, 2009. 88 advogado pode perceber remuneração a título de honorários participando de atividades ligadas a arbitragem, mediação e conciliação. Por fim, embora outras causas pudessem ser destacadas, é preciso tecer comentário ao sistema processual civil brasileiro. Críticas austeras, mas, pertinentes, têm sido formuladas quando se trata de analisar o sistema processual à luz da duração do processo. Por todas, a de Rocha merece atenção: Não basta, contudo, que assegure o acesso aos órgãos prestadores da jurisdição para que se tenha por certo que haverá estabelecimento da situação de Justiça na hipótese concretamente posta a exame. Para tanto, é necessário que a jurisdição seja prestada – como os demais serviços públicos – com a presteza que a situação impõe. Afinal, às vezes, a Justiça que tarde, falha. E falha exatamente porque tarda. Não se quer Justiça do amanhã. Quer-se Justiça hoje. Logo, a presteza da resposta jurisdicional pleiteada contém-se no próprio conceito do direito-garantia que a jurisdição representa. A liberdade não pode esperar, porque, enquanto a jurisdição não é prestada, ela pode estar sendo afrontada de maneira irreversível; a vida não pode esperar porque a agressão ao direito à vida pode fazê-la perder-se; a igualdade não pode aguardar porque a ofensa a este princípio pode garantir a discriminação e o preconceito; a segurança não espera, pois a tardia garantia que lhe seja prestada pelo Estado terá concretizado o risco por vezes com a só ameaça que torna incerto todos os direitos. Esta é a primeira abordagem que se faz presente quando se tecem observações sobre a eficiência da prestação jurisdicional: a melancólica lentidão que a tem marcado. A morosidade da prestação jurisdicional tem frustrado direitos, desacreditado o Poder Público, especialmente o Poder Judiciário, e afrontado indivíduos (ROCHA, op. cit. p. 37). A questão é a de conciliar dois pólos distintos: segurança versus celeridade, como pondera Gama: O processo, como é evidente, não pode ser instantâneo, devendo contar com um prazo razoável para a produção das provas, as quais vão formar o convencimento do juiz. A problemática toda está no fato de o prazo passar do razoável, assumindo dimensões absurdas e, por conseqüência, oferecer uma solução não funcional. As mudanças estão tomando corpo e tentando reestruturar o sistema processual brasileiro, contudo, em nome da segurança da decisão, muitos empecilhos estão difíceis de serem superados. O conceito de segurança forma-se em torno do acerto da decisão firmada em bases probatórias sólidas. Não se trata aqui da segurança jurídica no sentido de estabilidade social, mas no de infalibilidade da decisão. A segurança opõe-se frontalmente à efetividade. Enquanto esta tem por fim um processo apto a resolver litígios, a segurança está voltada a indefectibilidade. De um lado, a efetividade autoriza a adoção de determinada tutela diferenciada e, de outro, a segurança a reprova. Na tutela antecipada do modelo nacional, a exigência da reversibilidade 89 constitui um resquício de segurança e a medida, em si considerada, decorre da tentativa de tornar o processo mais efetivo. Com o retardamento, o processo, que deveria servir como meio assecuratório do direito ameaçado ou lesado, passa a ser uma arma nas mãos do réu. Aliás, contra o titular do direito, a arma predileta decorre do próprio processo em favor do réu, que deveria submeter-se a vontade daquele. Como a largueza do prazo de duração do processo não é boa para reparar a lesão ou evitar que ela ocorra, a brevidade do processo também não o é. Todos se deram conta da necessidade de encontrar um meio-termo, o qual possibilite a combinação da efetividade com a segurança em doses conciliáveis. (GAMA, 2002, p. 2324). É que o processo é uma experiência que se inicia com a propositura da demanda e que deve atingir suas finalidades, de declaração ou satisfação do direito, no menor espaço de tempo possível. Entretanto, o fenômeno da produção da prestação jurisdicional se constitui numa atividade que demanda tempo. A produção de provas exige designação de audiências, convocação de testemunhas e das partes; a complexidade para a produção da prova pericial dilata a história do processo. Por outro lado, deve se reservar oportunidade às partes de produzirem e sustentarem, também, os fundamentos de direito sobre os quais assentam suas pretensões (CICHOCKI NETO, op. cit. p. 166). É certo que as reformas processuais realizadas ao longo dos anos contribuíram para tornar o processo mais justo e mais efetivo, embora, a nosso ver, a edição de novas leis ou a reformulação das já existentes não é a via mais adequada para se resolver o problema da morosidade e do acesso à Justiça. Os reclamos pela efetividade do processo ensejaram a positivação do princípio da razoável duração do processo70, acrescido à Constituição pela EC n. 45/200471, na tentativa de impedir que a Justiça tardia não se converta em injustiça (BULOS, 2005, p. 397). Em verdade, aludido princípio não precisaria estar expresso, pois, decorria da interpretação implícita de outros princípios já estabelecidos na Carta Maior, como o do devido processo legal e do acesso à Justiça. 70 Rodrigues (op. cit. p. 266-267) comenta que o princípio da razoável duração do processo vale no âmbito judicial e administrativo e contém duas normas: a) proporcionar a razoável duração do processo; b) proporcionar meios que garantam a celeridade processual. Ambas possuem duplo direcionamento: a) estabelecer direitos fundamentais que podem ser exigidos por qualquer cidadão; b) estabelecer uma ordem dirigida ao Poder Público para que garanta o direito à prestação jurisdicional em um prazo razoável e crie meios necessários para que isso efetivamente ocorra. 71 Art. 5º, LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. 90 Citado princípio objetiva frisar que a tutela jurisdicional para ser efetiva, adequada e eficaz deve ser prestada em tempo razoável, consoante expõe Abreu: Para assegurar a efetividade do processo, tal princípio tem por objetivo uma economia de custo e tempo, buscando a obtenção de um melhor resultado. A finalidade é proporcionar uma Justiça rápida e econômica, tanto para as partes como para o Estado, atendendo aos valores constitucionais em uma perspectiva concreta e não apenas formal, oferecendo soluções justas, efetivas e tempestivas. (ABREU, 2008, p. 88). No entanto, o conceito de “tempo razoável” é vago e aberto, e, na verdade, depende muito das peculiaridades do caso concreto. Significa o tempo previsto pela lei para a prática de determinado ato processual, e o tempo médio despendido para cada espécie de processo em concreto. Conclui-se que a soma dos fatores aduzidos acarreta demandas que se estendem por anos a fio, e torna o processo um fim em si mesmo já que quando a sentença de mérito é proferida o direito das partes, por vezes, já sucumbiu ao tempo. Tais causas obstam a plenitude do acesso à ordem jurídica justa e devem ser alvos de políticas públicas do Poder Judiciário aptas a combater o dilema da morosidade da Justiça. Não basta, apenas, reformar a legislação; é preciso que o legislador formule leis em consonância com as reais necessidades e anseios da sociedade, sempre tendo em vista o dinamismo das relações sociais, e que a omissão legislativa acarreta a morosidade processual. Ademais, é preciso uma profunda e séria mudança de postura do Executivo, cliente quase absoluto do Poder Judiciário, que infla ainda mais os fóruns federais e estaduais com demandas desnecessárias. Os advogados, eternos inconformados com o modus operandi dos juízes, precisam continuar a questionar a postura destes frente aos processos que atuam, mas, também é preciso concentrar o foco de suas críticas na omissão da Ordem dos Advogados do Brasil, órgão dotado de força suficiente para proporcionar mudanças positivas na atual conjuntura do Poder Judiciário. A OAB, por sua vez, deve deixar de ser “trampolim” para o quinto constitucional e deve atuar de forma a compelir os Poderes instituídos a obedecer a Constituição Federal e as leis deste País. Ademais, 91 incumbe ao advogado adotar atitudes no processo que contribuam para a razoável duração deste. Certamente, se deixar de suscitar incidentes processuais infundados ou de interpor recursos descabidos sentirá abissal diferença no lapso temporal entre a propositura da ação até a sentença. A excessiva duração do processo ofende a igualdade, pois prejudica a parte mais fraca da relação processual, tornando-se fonte de injustiça e exclusão social. O acesso à ordem jurídica justa somente será concretizado na medida em que o problema da duração do processo restar vencido. Atento a questão da morosidade da Justiça, Cappelletti observou: Apenas es del caso reafirmar que la duración excesiva del proceso es naturalmente un fenômeno que causa factores de desigualdad y que no es considerada solamente desde un punto de vista de eficiencia (o ineficiencia) funcional y organizativa. La duración excesiva es fuente de injusticia social, porque el grado de resistência del pobre es menor que el grado de resistência del rico; este último, y no el primero, puede normalmente esperar sin daño grave una justicia lenta, o recurrir a costosos arbitrajes (tal vez en el extranjero). Un proceso de larga duración favorece, em suma, en general, a la parte rica en desmedro de la parte pobre. (CAPPELLETTI, 1974, p. 135). A morosidade estrangula direitos fundamentais do cidadão. E o pior é que, em muitas vezes, é opção dos próprios detentores do poder. Realmente a efetividade do processo caminha na razão proporcional inversa ao uso arbitrário do poder. Falta, na verdade, vontade política para redução da demora processual. Ela é fator extremamente estimulante para a descrença do povo na Justiça. Não são raras as vezes em que o cidadão comum se vê desestimulado a recorrer ao Poder Judiciário por conhecer a sua lentidão. 3.2.3 O problema cultural: o reconhecimento dos direitos Não são apenas as questões econômicas ou sociais que limitam o acesso à Justiça. A questão cultural também é fator de limitação já que grande parte dos cidadãos não reconhece seus direitos assegurados pelo ordenamento jurídico 92 vigente. Aliás: É intuitivo que, em um país pobre como o Brasil, pouca gente conheça seus direitos, e menos ainda como exercê-los. A democratização da Justiça, na verdade, deve passar pela democratização do ensino e da cultura, e mesmo pela democratização da própria linguagem, como instrumento de intercâmbio de idéias e informações. (MARINONI, op. cit. p. 48). Em primeiro lugar, não se pode olvidar as diferenças regionais existentes neste imenso Brasil. Algumas regiões, como Sul e Sudeste, são extremamente desenvolvidas e sua população tem maior acesso à educação. Não é assim, no entanto, nas regiões Norte e, notadamente, Nordeste, onde é sabido que a população tem pouco acesso a bens primários como saneamento e energia elétrica72. O subdesenvolvimento com as suas sequelas, como o analfabetismo, ignorância, entre outras, campeia com maior ou menos intensidade nos variados quadrantes do Brasil. Assim, o acesso à Justiça não chega a ser reclamado por desconhecimento de direitos (MARINONI, Idem, 36). Em segundo lugar, é sabido que os cidadãos desconhecem seus direitos mais elementares, ignorando, por óbvio, os instrumentos processuais aptos à tutela e proteção de direitos. A propósito: A complexidade da nossa sociedade faz com que mesmo as pessoas dotadas de maiores recursos tenham dificuldades em entender as normas jurídicas. As legislações sucedem-se de forma rápida e tornam-se a cada dia mais herméticas. Esse hermetismo pode ser fruto de uma intenção de 72 Segundo dados do IBGE, no ano de 1999, na região Norte apenas 57,5% das pessoas de cor preta e parda possuíam água canalizada e rede geral de distribuição, enquanto apenas 12,7% possuíam sistema de esgoto e fossa séptica. Na mesma região, entre os brancos, 68,6% possuíam água canalizada e rede geral de distribuição, enquanto 19,2% possuíam esgoto e fossa séptica. Na região Nordeste, entre os pretos e pardos, 55,1% possuíam água canalizada e rege geral de distribuição, enquanto apenas 19,8% possuíam esgoto e fossa séptica. Na mesma região, entre os brancos, 66,7% possuíam água canalizada e rede geral de tratamento, enquanto 28,7% possuíam esgoto e fossa séptica. Em cotejo com a região Sudeste, verifica-se então que há grande disparate: nesta, 90% dos brancos e 82,5% dos pretos e pardos possuíam água canalizada e rede geral de distribuição, enquanto 83,9% dos brancos e 71% dos pretos e pardos possuíam esgoto e fossa séptica. (Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999 [CD-ROM]. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Domicílios por condição de saneamento segundo a cor da pessoa de referência - 1999. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 14 julho, 2009). 93 impedir que muitos tenham acesso crítico à legislação, o que faz com que as normas fiquem muitas vezes distantes da realidade social. A verdade, contudo, é que as pessoas de baixa renda são as mais violentadas pela questão que ora nos ocupa. Muitas estas pessoas percebem a existência de problemas, intuindo uma agressão, mas não conseguem configurá-los como de natureza jurídica. Algumas vezes, por supor uma morosidade excessiva da Justiça, o cidadão pobre deixa de recorrer ao Poder Judiciário visando a proteção ao seu direito. Em outras ocasiões, pela mesma razão ou ainda por não supor que seu direito pode ser reparado, o pobre deixa de exigir a reparação a que tem direito. (MARINONI, op. cit. p. 36). O problema do reconhecimento de direitos transita pela crise do acesso à informação, de acordo com Morello: El acceso cierto a la información constituye la verdadera entrada a la posición o emplazamiento de casa uno. Es la guía de los derechos com que se cuenta y, fundamentalmente, de sus limites. De lo que puede usarse y ejercerse, o reclamarse de aquello outro que, por ser abusivo o disfuncional, deja de merecer la sombrilla protectora del Derecho. Y lamentablemente de cuanto, por ignorancia e desconocimiento, no se ejerce, reclama ni proteje. (MORELLO, 1988, p. 166). Sem conhecer seus direitos, o indivíduo fica privado de participar dos assuntos mais relevantes da vida em sociedade, tendo por mitigado o direito à livre expressão. De fato, como menciona Marinoni: A questão que deve ser colocada, em verdade, é a de que o pobre, para ser cidadão, ou melhor, para ser cidadão participante no mundo em que vive, agente da história e responsável pela mesma, deve ser efetivamente orientado e informado sobre os seus direitos. O cidadão, em uma sociedade verdadeiramente democrática, deve conhecer e poder exercer os seus direitos independentemente de óbices de ordem econômica. Na realidade, o direito à informação é corolário do direito à livre expressão. E o direito de acesso á Justiça pressupõe o direito à informação a respeito da existência de direitos. O acesso à Justiça, pois, num enfoque mais amplo, representa exercício da liberdade de expressão, passando o processo a constituir verdadeira via de participação democrática, que obtém realce nos casos de legitimação para a ação popular e para a tutela dos interesses supraindividuais. (MARINONI, Idem, p. 37). Nessa linha, a ausência de informação a respeito de direitos viola o acesso à ordem jurídica justa, pois não se pode acessar o que não se conhece e nem se pede 94 proteção sem a consciência de poder ser protegido. Os meios de imprensa exercem papel importante quando se trata de informar os cidadãos sobre seus direitos (MORELLO, op. cit. p. 170). Entretanto, a par desse enfoque, é necessário delimitar que o acesso à informação somente restará concretizado quando dois pontos distintos, embora convergentes, forem solucionados. O primeiro se refere ao direito de informação. Este é considerado direito fundamental, universal, inviolável e inalienável do homem moderno, conforme lembra Morello (Idem, p. 172). Assim, cada cidadão pode – e deve – exigir do Estado informações de seus direitos e de como exercê-los em uma situação particular. Nesse sentido: Cada ciudadano dentro del espectro, continuamente ensanchado, de las prerrogativas que con efectividad enuncia y reconece la sociedad de nuestro dias, es titular – o lo que es lo mismo, está legitimado con relación al mismo Estado – para exigir el acceso al grupo general de aquella información que le permite situarse respecto a cuáles son sus derechos em uma situación convivenvial particular y en la que está enclavado por soportarse en ella, derecho y obligationes que los otros – el próprio Estado, lãs corporaciones e entidades intermédias y no solo, econômicas, los terceros directa o reflejamente vinculados em la dinâmica de tráfico – deben respetar aún por relaciones de hecho o que se llevan a cabo por simple adhesión o, al fin, además, por la razón de formar parte de um grupo, categoria o sector social. (MORELLO, Idem, 170-171). Por outro lado, o segundo ponto refere-se exatamente ao dever do Estado de informá-los de maneira adequada sobre os direitos que a lei lhes confere, independentemente de sua condição econômica, social e cultural. Nas palavras de Morello: II) El deber de información. Está a cargo del Estado, el que, dentro del mecanismo funcional em la República moderna, de bases democráticas, há de abastecer em forma adecuada, permanente, puntual, según la diversificaciones socioeconômicas y culturales. (MORELLO, Idem, p. 174). No âmbito do direito à informação, Rodrigues (op. cit. p. 254-255) aponta três elementos merecedores de destaque: a) o sistema educacional; b) os meios de comunicação; c) a quase inexistência de instituições responsáveis pela prestação de 95 orientação para direitos (assistência jurídica preventiva e extrajudicial). A educação é essencial para a formação política e intelectual de cidadãos, pois através desta o indivíduo é conscientizado a respeito de seus direitos e deveres. Aquele que não tem acesso ao ensino fundamental, médio ou superior é violado em sua cidadania plena73. Mazzuoli, em interessante obra sobre direitos humanos e cidadania, assinala que somente a educação política propulsiona a prática da reivindicação de direitos e, consequentemente, a consolidação da cidadania (2002, p. 119-120). E segue: “A tarefa de implementar direitos humanos através da educação é, assim, dever de todos – cidadãos e governo”. (MAZZUOLI, Idem, p. 122). A educação brasileira encontra-se falida e passa por uma crise de dimensões profundas. Os aviltantes salários pagos aos professores, principalmente do ensino fundamental, são vexatórios e indignos se levada em consideração a importância de seu papel na sociedade. Além disso, os investimentos destinados ao setor educacional pelo Poder Público não são suficientes para atender a demanda; pouco se investe na pesquisa e extensão. Ademais, as estruturas física e humana das escolas e universidades da rede pública são lastimáveis. Não bastasse, milhares de crianças estão nas ruas, submetidas ao trabalho escravo, à prostituição e às drogas, quando deveriam estar na escola. No Brasil, como já dito anteriormente, estima-se que 13,3% da população composta por homens e mulheres com mais 15 anos ou mais de idade seja analfabeta74, o que delimita a problemática em que deve atuar o Estado a fim de solucionar a questão do acesso à Justiça. O sistema educacional, numa sociedade complexa e difusa como se apresenta a sociedade contemporânea, tem duplo papel no que se refere ao acesso à Justiça. Em primeiro lugar, identifica e divulga quais são os direitos fundamentais dos indivíduos e quais instrumentos processuais servem para tutelá-lo; por outro lado, é responsável pela formação cidadã. 73 Art. 205, CF/88: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. 74 Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999 [CD-ROM]. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade. <Disponível em: http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 14 julho, 2009). 96 A educação para a cidadania passa pelo conhecimento dos direitos individuais e pela consciência dos direitos dos outros, cuja violação desencadeará o uso de mecanismos estatais de solução de conflitos, incluindo a força legítima. Apesar dos avanços e preocupações com o sistema educacional nos últimos anos, ainda se está muito longe de atingir esses objetivos (RODRIGUES, 2008, op.cit. p. 254-255). No que se refere aos meios de comunicação, a televisão destaca-se como o instrumento mais ágil e eficaz para atingir a maioria da população, embora não exclua outros como jornais, revistas e internet. A propósito, é de se ponderar que os meios de comunicação não têm atuado de maneira adequada, ou seja, de modo a contribuir para o aprimoramento da informação e da educação no País. Basta verificar a qualidade e nível dos programas transmitidos em canais abertos, normalmente com forte apelo sensual ou sensacionalista, e que em nada acrescentam, servindo apenas para enriquecer os detentores das grandes empresas exploradoras do ramo. Por fim, a terceira questão referente ao acesso à informação é a da inexistência ou insuficiência das instituições oficiais responsáveis pela orientação para os direitos75. O acesso à Justiça pressupõe o conhecimento por parte do cidadão dos seus direitos. Sem a existência de instituições que possam ser consultadas pela população, ou que tenham condições estruturais de atender a todos de que dela necessitarem sempre que houver dúvidas jurídicas sobre determinadas situações de fato, a possibilidade de plena efetividade do Direito se torna acanhada (RODRIGUES, 2008, Idem, p. 255). É de se reputar o desconhecimento de direitos como uma das limitações mais graves do acesso à Justiça. Aquele que não conhece seus direitos encontra-se excluído; é “não-cidadão”, pois a educação é pressuposto da cidadania. O indivíduo que não os conhece é facilmente manipulado e mantido em erro pelos detentores do poder. Assim, nunca haverá condições de se romper o jugo desigual das relações jurídicas em que sempre prevalece os interesses dos mais poderosos, normalmente juridicamente bem assessorados. Embora os juristas e o Poder Judiciário envidem esforços para solucionar o 75 A atribuição de orientar as pessoas necessitadas é da Defensoria Pública, conforme estabelece o art. 134, caput, da Constituição Federal: “A Defensoria Pública é instituição essencial á função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”. 97 problema, pouco adiantará se ausente a vontade política do Executivo e Legislativo. A educação, no Brasil, somente entrará nos eixos quando se tornar uma política pública prioritária dos governantes e não apenas plataforma política, promessa eleitoreira, morta e enterrada após as eleições. Desse modo, considerando que acesso à Justiça, educação e cidadania caminham juntas, é certo que as limitações não são de índole meramente jurídica como já salientado anteriormente, e a solução certamente amadurecerá daqui a muitos anos. Nessa linha, a regra jurídica de que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” deve ser mitigada e aplicada de acordo com a condição social e econômica das partes, sob pena de se cometer injustiça flagrante. 3.2.4 A questão psicológica O cidadão pobre, mais humilde, sente-se intimidado em procurar a Justiça por medo, desconfiança, ignorância, falta de condições econômicas, etc. Encontra dificuldades de toda sorte para contratar advogado, pois tem a falsa concepção de que referido profissional está à disposição apenas dos ricos. Não bastasse, precisa esperar anos a fio para obter um pronunciamento jurisdicional. Alguns fatores psicológicos, inibidores do acesso à Justiça, podem ser elencados. Vejamos. É fato: a imagem do Poder Judiciário perante o cidadão brasileiro encontrase deveras desgastada e o descrédito enseja o distanciamento desse cidadão, que passa a solucionar seus conflitos através de métodos não-jurisdicionais. Por esta razão, Rocha ponderou o seguinte: Os cidadãos que não exercem o direito à jurisdição, por dele não saberem, ou nele não acreditarem como faculdade indisponível, têm criado, contudo, neste final de século, um direito extra-oficial, que não depende da jurisdição estatal, mas que é uma ‘jurisdição paraestatal’, significando o retorno à fase bárbara da Justiça pelas próprias mãos [...]. Têm-se criado, assim, ‘sistemas paralelos extra-oficiais de direito’ nos quais os conflitos são resolvidos pelas pessoas em seus próprios grupos não-institucionalizados em sem qualquer ingerência das instituições estatais. À parte a circunstância de haver uma tendência social atual para que os conflitos 98 sejam solucionados de forma mais leve e concertada entre os próprios grupos sociais interessados sob a condução do Estado, despojando-se a pessoa pública das formalidades e dos rigorismos absolutos anteriormente adotados, é certo que arrisca-se a ver surgir, neste momento, ‘uma jurisdição extra-oficial e paraestatal’, representando a criação de ‘sistemas também extra-oficiais de direito’, que podem conduzir a um embate entre o Estado e os grupos que se estabeleceram com estas ‘ordens normativas autônomas’ com graves conseqüências para a sociedade estatal. O suicídio das civilizações – já o disse antes – começa pelo descrédito da sociedade na idéia de Justiça que nela predomina e na crença na possibilidade de sua prestação, conforme juridicamente previsto, pela pessoa política estatal. (ROCHA, op. cit. p. 35). Prometendo ao cidadão tomar conhecimento de sua queixa, o Estado se compromete a lhe prestar Justiça, ou seja, ouvir e decidir o que foi pedido, dando resposta através de seus órgãos à controvérsia ou dúvida formulada, cuja solução foi subtraída à lei do mais forte e à Justiça pelas próprias mãos (SILVA, op. cit. p. 256). Na medida em que falha na tutela dos direitos ameaçados ou lesionados por outrem, o Estado corrobora a opinião maciça da população de que o acesso à Justiça é ainda para muitos uma utopia. Compreende-se, por isso, a importância da jurisdição no Estado contemporâneo: ela é o instrumento de afirmação do ordenamento jurídico, ou seja, das normas de conduta que o Estado julgou importantes e imprescindíveis para organizar a vida social, erigindo-as em atos normativos de cumprimento obrigatório. Por outro lado, é o instrumento de reivindicação pelo qual, com base neste ordenamento, o indivíduo pleiteia os direitos que lhe são garantidos. Se estas normas não são cumpridas e se o Estado, que prometera a prestação jurisdicional, não as faz cumprir, há um colapso, embora parcial, de incidência do ordenamento jurídico (SILVA, Idem, p. 256). Outra falsa idéia incutida na mente dos cidadãos, principalmente dos menos favorecidos, é a de que os juízes são pessoas intocáveis, inacessíveis, não pertencentes a sua realidade. Infelizmente há um fundo de verdade neste pensamento, pois, alguns magistrados adotam atitudes repreensíveis e que contribuem para o distanciamento do cidadão na busca pelo acesso à Justiça76. 76 “No dia 13 de junho de 2007, o juiz Bento Luiz de Azambuja Moreira, da 3ª Vara do Trabalho em Cascavel, interior do Paraná, recebeu para uma audiência o trabalhador rural Joanir Pereira e o representante da empresa onde ele era empregado para conduzir um acordo em uma ação trabalhista. Quando notou que o trabalhador calçava chinelo, o magistrado suspendeu a sessão. O motivo foi cravado na ata do fórum: ‘o juízo deixa registrado que não irá realizar esta audiência, tendo em vista que o reclamante compareceu em juízo trajando chinelo de dedos, calçado incompatível 99 Conforme Marinoni (op. cit. p. 37), os mais humildes temem represálias quando pensam em recorrer à Justiça. Temem sanções até mesmo da parte adversária. O sentimento de impotência face às contínuas violações dos direitos humanos, até mesmo pelo poder estatal e policial, a quem caberia a proteção aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, da segurança e ordem social e da paz, somente faz aumentar o medo e o receio da gente simples na Justiça. Afinal, o que esperar de um Estado muitas vezes mais comprometido com questões corporativas e sistemas de corrupção e nepotismo do que com a efetivação de sua função social (RODRIGUES, 2008, op. cit. p. 256). A imprensa, nacional ou estrangeira, também não contribui para afastar esse fantasma. Muitos dos fatos amplamente noticiados referem-se à imposição da força pelo mais forte, ao uso da violência indiscriminada por quem deveria conduzir a bandeira da paz, ao desrespeito à democracia e aos direitos humanos, e à coação e repressão generalizada aos discordantes, descontentes, ou apenas críticos da ideologia dominante (RODRIGUES, 2008, Idem, p. 256). Nesse contexto, falar em Justiça ao pobre analfabeto, mas que, vez ou outra vê televisão e conhece a realidade da favela onde mora, muitas vezes composta por regras e códigos de conduta outros e paraestatais, pode ser utópico (RODRIGUES, 2008, Idem, p. 256). com a dignidade do Poder Judiciário’. O caso foi parar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que faz o controle externo do Judiciário. O colegiado deverá decidir, em breve, se o juiz será punido por falha disciplinar. No dia 4 de julho, o trabalhador voltou ao fórum para uma nova audiência. Desta vez, trajando sua melhor roupa: camisa azul e calça jeans. Nos pés, um par de sapatos emprestado pelo sogro. Houve acordo entre as partes. O trabalhador queria receber da empresa R$ 3 mil, mas aceitou os R$ 1,8 mil oferecidos. Na sessão, o juiz reconheceu o erro cometido no mês anterior e pediu desculpas ao trabalhador. Alegou que, como havia atuado em Curitiba por dez anos, não estava acostumado com pessoas de chinelo em ambientes formais. Admitiu que precisaria ‘refazer seus conceitos’. Para selar as pazes, o magistrado ainda tentou presentear Pereira com um par de sapatos novo, mas ele recusou. Logo após a audiência ter sido suspensa, o advogado do trabalhador, Olímpio Marcelo Picoli, formalizou a queixa contra o magistrado ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT) do Paraná. A corregedoria regional apurou os fatos e concluiu tratar-se de ‘prática repetidamente adotada pelo juiz’. O colegiado propôs ao tribunal a abertura de um processo administrativo disciplinar contra o magistrado. No mês passado, em julgamento, o TRT negou o pedido para instaurar o processo. No entanto, o caso chamou a atenção do corregedor-geral da Justiça do Trabalho, ministro João Oreste Dalazen, para quem o episódio ‘reveste-se de extrema gravidade’. Dalazen acredita que, a primeira vista, a conduta do juiz foi uma forma de ‘violação a direitos humanos fundamentais da cidadania, elevados à dignidade constitucional’. O pedido de abertura de procedimento disciplinar já chegou ao CNJ e foi encaminhado à corregedoria. Agora caberá ao corregedor nacional de Justiça, ministro Cesar Asfor Rocha, avaliar se o caso deve ser levado adiante. A decisão de Asfor Rocha precisará ser submetida ao crivo do plenário do conselho antes de ser efetivada. Se a investigação for aberta, o juiz paranaense poderá ser punido com medidas que variam de uma mera advertência, podendo chegar à aposentadoria compulsória.” (BRÍGIDO, C. CNJ vai analisar caso de juiz que suspendeu audiência porque trabalhador usava chinelos. O Globo, São Paulo, 19 mai. 2008. Disponível em: http://www.oglobo.globo.com. Acesso em: 16 jul. 2009). 100 A Justiça que essas pessoas conhecem vem das ruas, do chefe do narcotráfico, da polícia de choque, daquele que impunha uma arma. E desmistificar essa realidade implicaria em construir outra, onde o Estado realmente fosse capaz de fazer Justiça (RODRIGUES, op. cit. p. 256). Onde o “Estado oficial” não atua, prevalece o “Estado paralelo”, no qual os conflitos são resolvidos da maneira como aprouver aos indivíduos. 101 4 ALTERNATIVAS DE SUPERAÇÃO DA CRISE DE ACESSO À JUSTIÇA 4.1 Considerações preliminares A noção de que Jurisdição deve ser prestada única e exclusivamente de forma centralizada pelo Estado ainda é difundida entre os juristas. Da jurisdição, [...], podemos dizer que é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito, para imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com Justiça. Essa pacificação é feita mediante a atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresentado em concreto para ser solucionado; e o Estado desempenha essa função sempre mediante o processo, seja expressando imperativamente o preceito (através de uma sentença de mérito), seja realizando no mundo das coisas o que o preceito estabelece (através da execução forçada). Que ela é uma função do Estado e mesmo monopólio estatal, já foi dito [...]. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO; 2006. p.145). Isto se deve a uma forte tradição monista de forte influxo kelseniano, ordenada num sistema lógico-formal de raiz liberal burguesa, cuja produção transforma o Direito e a Justiça em manifestações estatais exclusivas (WOLKMER, op. cit. p. 86). Incutiu-se na mente dos indivíduos o falso pensamento de que o Estado deve ser, a qualquer custo, o detentor do monopólio da jurisdição estatal, ou seja, somente a ele incumbe a tarefa de proclamar o direito aplicável ao litígio apresentado pelos contendores. As razões disso são apontadas por Wolkmer: a estrutura legal tem procurado historicamente minimizar e desqualificar toda e qualquer manifestação normativa que não emane do Estado, bem como todo e qualquer mecanismo alternativo de resolução dos conflitos que não seja de origem estatal ou institucionalizada (WOLKMER, op. cit. p. 87). O modelo jurídico dominante é ineficiente para equacionar os conflitos coletivos. O Poder Judiciário e a legislação processual vigente refletem interesses político-ideológicos de uma estrutura de poder consolidada no início do século, no 102 contexto de uma sociedade burguesa agrário-mercantil, defensora de uma ordenação positivista e de um saber jurídico inserido na tradição liberal-individualista (WOLKMER, Idem, p. 87). Por esta razão óbvia, o Judiciário encontra-se abarrotado de ações, boa parte delas descabidas ou desnecessárias, fato que engendra o emperramento da máquina judiciária, e por via de consequência, o descrédito do jurisdicionado em relação ao sistema judicial oficial. Para Torres: Mudar atitudes e rotinas de serviços, modificar a mentalidade e forma de agir do Judiciário com efetiva democratização das relações entre a sociedade e os atores da prestação jurisdicional, é uma meta a ser alcançada tanto na Justiça de primeiro grau quanto nos Tribunais Superiores, visando a maior acesso à Justiça e rapidez nas soluções dos conflitos, utilizando-se de meios tecnológicos disponíveis e que facilitam a vida dos usuários dos serviços judiciários. A idéia é a tramitação mais célere dos processos, diminuição das fases processuais e do número de recursos perante os Tribunais, eliminando formalismos de atos desnecessários. Ora, a sociedade reclama, incessantemente, por uma solução rápida dos conflitos e uma pronta entrega da jurisdição; entretanto, constata-se que os processos aumentam no Poder Judiciário cada vez mais. Por um lado, esse fato é prova de confiabilidade no sistema judicial, porque é procurado mesmo sabendo das dificuldades existentes. Por outro lado, evitar a lide, a discussão numa demanda contenciosa, com os problemas que dela exsurgem, parece ser uma missão para a Justiça consensual, não só pela paz social que representa, mas porque contribui decisivamente para diminuir o número de processos na Justiça tradicional. Ajudando a combater essa morosidade é preciso, portanto, que as medidas racionalizadoras sejam efetivamente colocadas em prática no dia-a-dia forense, numa caminhada democratizadora das atividades forenses. (TORRES, op. cit. p. 78-79). Por conta dessa concepção monopolizadora da jurisdição, os indivíduos, de maneira geral, recalcitram a utilizar meios alternativos de solução dos conflitos, pois, têm como dogma o paternalismo estatal e o Estado-juiz como fonte única de dicção do direito. Nessa linha, as demandas judiciais aumentam dia a dia e o Judiciário se vê compelido a primar celeridade em detrimento da segurança e Justiça das decisões77. 77 O sítio do TJ/MS divulgou no dia 16/06/2009 a notícia “TJMS julgou quase 5.000 processos em maio” cuja integra segue: “Conforme o Relatório das Atividades dos Desembargadores, disponibilizado pela Secretaria Judiciária do TJMS, o total de processos distribuídos aos magistrados de 2º grau, no mês de maio, foi de 5.019. O acumulado do ano atinge a marca de 22.252 novos feitos. Quanto aos julgados, em maio foram 4.994 processos que somados aos meses de janeiro a 103 Por consectário, os indivíduos têm se contentado com um acesso à Justiça formal, quando na verdade, deveria ser-lhes proporcionado acesso à ordem jurídica justa, conforme lembra Watanabe: A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa. (WATANABE, 1988, p. 131). Assim, a via estatal não pode ser eleita como a única a solucionar os conflitos sociais, sob pena de constante e infindável colapso, como comenta Wolkmer: A crise vivenciada pela Justiça oficial, refletida na sua inoperacionalidade, lentidão, ritualização burocrática, comprometimento com os ‘donos do poder’ e a falta de materiais humanos, não deixa de ser sintoma indiscutível de um fenômeno mais abrangente, que é a falência da própria ordem jurídica estatal. [...] O certo é que nos horizontes da cultura jurídica positivista e dogmática, predominante nas instituições políticas brasileiras, o Poder Judiciário, historicamente, não tem sido a instância marcada por uma postura independente, criativa e avançada, em relação aos graves problemas de ordem política e social. Pelo contrário, trata-se de um órgão elitista que, quase sempre, ocultado pelo ‘pseudoneutralismo’ e pelo formalismo pomposo, age com demasiada submissão aos ditames da ordem dominante e move-se através de mecanismos burocráticoprocedimentais onerosos, inviabilizando, pelos seus custos, o acesso à imensa maioria da população de baixa renda. (WOLKMER, op. cit. p. 8990). abril alcançam um total de 21.362 julgamentos em 2009. Sobre a distribuição entre os órgãos julgadores, as cinco Turmas Cíveis existentes no Tribunal receberam 3.084 feitos juntas, o que representa 61,44% do total de processos distribuídos em maio. Já para as duas Turmas Criminais, foram distribuídos 481 novos processos. Para o Gabinete da Vice-Presidência, foram distribuídos 1257 feitos no mês de maio. Deste total, foram 98 precatórios, 6 pedidos de intervenção estadual em precatórios, 2 agravos regimentais em precatórios, além de 676 recursos especiais e 165 recursos extraordinários, entre outros. Do total geral de processos por desembargadores, não contabilizando os três magistrados de cargos administrativos, a média de processos distribuídos em maio para cada magistrado foi em torno de 193 novos feitos, ou ainda, na média de janeiro a maio, cada desembargador recebeu cerca de 855 novos feitos, somente neste período de 2009. Quanto aos julgamentos, nestes cinco primeiros meses do ano, cada desembargador julgou uma média de 821 processos, o que significa que em maio cada um dos 26 desembargadores que compõem o TJ julgou 192 processos. Os referidos desembargadores atuam exclusivamente nos julgamentos, de modo que a média não contabilizou os 3 membros que trabalham hoje em cargos administrativos do Tribunal”. 104 É que se o Estado Brasileiro tem por fundamento a cidadania, o pluralismo político e jurídico e por objetivo fundamental a promoção do bem de todos e não de uma minoria ou classe, evidentemente que a distribuição igualitária de Justiça restará prejudicada no plano das relações sociais. Não se quer aqui defender a supressão total da jurisdição estatal, até porque haveria visceral afronta à Constituição Federal. Trata-se de refletir a respeito de um dogma a ser repensado, de modo a ceder espaço a outros meios de solução dos conflitos que certamente propiciarão satisfação aos indivíduos e fortalecerão o Estado Democrático de Direito. É notória a nova postura adotada pelos juízes e pelo Poder Judiciário após o advento da Constituição Federal de 1988. Aludida postura decorre da atribuição constitucional de proteger e efetivar direitos fundamentais, individuais e coletivos, ali assegurados. Com a expansão da Jurisdição Constitucional, difundiu-se na sociedade, de modo geral, a informação e conscientização sobre os direitos dos cidadãos, de modo que os indivíduos passaram a exigi-los em juízo. Ampliou-se o acesso à Justiça estatal e oficial. Como via de mão dupla, ampliou-se também a litigiosidade. Abriram-se as “portas” dos tribunais, no entanto, o saldo desta abertura deixou também aspectos negativos. É preciso lembrar que a jurisdição atua por meio do processo. Deste modo, quanto mais litígios desembocarem na via estatal, maior será a morosidade na entrega da prestação jurisdicional, motivo pelo qual o princípio da razoável duração do processo será apenas letra fria e morta da lei. Nessa ótica, ainda, há aqueles que sequer têm oportunidade de acessar a via jurisdicional estatal, como recorda Torres: O povo, sabendo que o Poder Judiciário não consegue atender convenientemente a demanda de processos, reclama por outras soluções. É de se pensar, então, que a administração da Justiça precisa estar em condições de atender às necessidades e exigências das comunidades, para resolver os conflitos onde eles ocorrem, para que haja paz social e segurança. Caso o Judiciário fraqueje, não atendas às demandas postas em juízo, nem seja possível ir até ao encontro dos cidadãos, logicamente que a chama Justiça Privada, aquela que se efetiva fora do controle direto ou mesmo próximo do Judiciário, se fará presente. Isto ocorrendo, outras formas alternativas e de autotutela são buscadas para a solução de conflitos, e é compreensível, uma vez que a Justiça tradicional não está 105 atendendo, suficientemente, aos interesses do cidadão [...]. (TORRES, op. cit. p. 92). O Brasil é um país repleto de contradições econômicas, sociais, políticas e culturais. Tudo isso é fruto da nossa história enquanto colônia. Noutras palavras, o acesso à Justiça e ao processo, visto sob uma ótica meramente formal, ainda é ilusão para muitos, sobejamente os mais pobres e os menos favorecidos. Imprescindível considerar que a tutela jurisdicional a ser prestada no processo deve ser adequada, tempestiva e eficaz. Por outro lado, a lacuna ou ineficiência estatal impulsiona a atuação social, extra-oficial e informal, na resolução dos conflitos. Por este motivo, os mais variados setores sociais se organizam e aplicam a lei, estatal ou não, por meio de processos que tramitam em verdadeiras “Jurisdições paralelas” e que funcionam a mercê do Estado, por inoperância deste78. Por isto: O cidadão, não crendo na Justiça, afasta-se do sistema oficial, somandose a milhares de pessoas que não mais procuram o Judiciário, sem falar em outro número infindável de cidadãos, distante das organizações judiciárias, agindo com outro sistema totalmente informal e descomprometido com a realidade estatal, concebendo seus próprios caminhos e sua própria fora de resolver seus problemas. (TORRES, Idem, p. 30-31). Em verdade, a superação da crise do acesso à Justiça passa por dois enfoques, conforme já havia advertido Carneiro (1982, p. 1-2). Segundo ele, o primeiro enfoque, denominado de “interno”, se ocupa das causas e da eliminação do congestionamento do aparelho judiciário, a partir da conveniência e das necessidades da sua própria estrutura administrativa e de seus integrantes - juízes, membros do Ministério Público, advogados e serventuários. As propostas nesse sentido visam, basicamente, ao melhor aparelhamento humano e material do Judiciário e ao desestímulo ao litígio desnecessário que atravanca a Justiça, principalmente de primeira instância. O outro enfoque, denominado “externo”, ocupa- 78 Inoperância porque se o Estado avocou e concentrou em si a função de dizer o direito, deve envidar todos os meios para atender a todos que precisem do serviço jurisdicional. 106 se primordialmente da ampliação do acesso à Justiça, dando ênfase, portanto, às necessidades e conveniências da clientela do Judiciário. Destarte, torna-se opção viável a descentralização da prestação do serviço jurisdicional para que o acesso à Justiça seja efetivamente igual para todos. É forçoso reconhecer e atribuir força aos meios alternativos de solução dos conflitos como “válvula de escape” para o abissal contingente de demandas diárias que assoberbam magistrados e tribunais do país. A Justiça Itinerante torna-se indispensável para a revitalização dos valores democráticos como a cidadania e igualdade, pois, a pacificação dos conflitos é um dos maiores anseios num Estado Democrático de Direito. Na medida em que o Poder Judiciário vai até o jurisdicionado, evita o ajuizamento de demandas de menor importância, passíveis de solução através da conciliação. 4.2 A descentralização da Justiça A solução dos conflitos pode ser judicial ou extrajudicial. Pela via judicial, já se constatou que a crise do acesso à Justiça encontra-se instalada por conta de fatores exoprocessuais e endoprocessuais. Pela via extrajudicial, a finalidade é evitar que o conflito de interesses instaurado entre as partes seja levado ao Judiciário, pois, o processo é moroso, caro e ocasiona desgastes imensuráveis às partes litigantes. A via extrajudicial de solução dos conflitos valoriza os interesses dos indivíduos envolvidos e permite a eles que participem direta e ativamente na resolução deste. Fato inconteste é que o Poder Judiciário não tem condições de atender a todos indistintamente e cumprir uma de suas principais atribuições: distribuir com igualdade a Justiça no plano das relações sociais, pacificando os conflitos e restabelecendo a paz e o equilíbrio entre os indivíduos. Reformas processuais, simplificação dos procedimentos, mudança de postura dos juízes, informação e conscientização dos cidadãos e reestruturação do Poder Judiciário são medidas interessantes, mas não suficientes para combater o problema. É o que pensa Torres: 107 A solução de conflitos pode ter um caminho judicial ou mesmo extrajudicial. O primeiro, como já visto, tem despertado preocupação quanto ao excessivo número de processos e a morosidade na entrega jurisdicional. Por isso, nesse campo, as reformas processuais com a simplificação dos procedimentos, a reestruturação do Poder Judiciário, visando à aproximação dos cidadãos aos serviços prestados, com intuito de melhorar o acesso à Justiça. Nessa linha de pensamento, está o de propiciar meios para audiências preliminares à composição mais rápida do litígio, assim como a extensão e a descentralização dos serviços da Justiça, com efetiva presença em locais determinados por uma pauta de atendimento, seja no âmbito urbano, seja rural. (TORRES, op. cit. p. 155). Grinover (1990, p. 179) explica que a resposta dada pelos processualistas brasileiros à crise da Justiça desenvolveu-se através de duas grandes vertentes: a jurisdicional e a extrajudicial. Na seara jurisdicional, a deformalização, através de técnicas processuais adequadas, permite alcançar um processo mais célere, simples, econômico, de fácil acesso, direto, apto a solucionar com eficiência tipos particulares de conflitos. Por outro lado, na seara extrajudicial, a deformalização das controvérsias alternativas encontra alicerce ao processo, nos capaz de equivalentes evitá-lo, jurisdicionais, para como solucioná-las vias mediante instrumentos institucionalizados de mediação. Acerca dos equivalentes jurisdicionais, Didier Jr. Tece o seguinte comentário: [...] equivalentes jurisdicionais são as formas não-jurisdicionais de solução de conflitos. São chamados de equivalentes exatamente porque, não sendo jurisdição, funcionam como técnica de tutela de direitos, resolvendo conflitos ou certificando situações jurídicas. A autotutela, autocomposição e mediação são essas formas referidas pelo autor. A primeira caracteriza-se pela solução dos conflitos mediante uso da força, através da vingança privada; na segunda, uma ou ambas as partes abrem mão de seu interesse ou de parte dele. Três são as formas de autocomposição: a) desistência, b) submissão; c) transação. Esta última, que se assemelha à conciliação, é marcada pela presença de um terceiro, particular, para solucionar os conflitos apresentados pelas partes. (DIDIER JR, 2009, p. 76). Wolkmer (op. cit. p. 91-92) apresenta duas alternativas de superação da crise do acesso à Justiça, a saber: a primeira tem a ver com a ampliação qualitativa dos canais institucionalizados de acesso à Justiça, de forma a propiciar uma aproximação mais efetiva e democrática dos cidadãos ao aparato legal-estatal, 108 consolidando o direito como mecanismo de controle social por meio da atuação da lei; a segunda, tem a ver com o incentivo de instâncias normativas informais, ambas capazes de substituir com vantagens o anacrônico e pouco eficaz órgão convencional de Jurisdição estatal. A idéia de Justiça Itinerante passa necessariamente por essa segunda concepção informal e ampla, mas estatal, de acesso à Justiça. A descentralização consiste no reconhecimento de soluções alternativas aos conflitos, passíveis de romper com a forma tradicional de prestação do serviço jurisdicional e de distribuição de Justiça. Significa a ruptura com o princípio da inércia da jurisdição, estabelecido no art. 2º do Código de Processo Civil79, bem como com o princípio do impulso oficial previsto no art. 262 do Código de Processo Civil80. A descentralização induz a uma adaptação da forma de se fazer solucionar conflitos de interesses ante os novos tempos e novos direitos. Esta Justiça é conciliadora e sai dos gabinetes dos fóruns indo de encontro ao cidadão, buscando solucionar seus problemas sem que ele precise, formalmente, provocar a manifestação do Poder Judiciário para prestar a tutela jurisdicional (TORRES, op. cit. p. 95). A descentralização da Justiça resgata a imagem do Poder Judiciário e a solidifica junto ao povo, pelo trabalho itinerante que realiza. Essa prática deve ser defendida por todos aqueles que pretender ver o acesso à Justiça ampliado, além de uma Justiça aberta e próxima da população. Isto pode ser feito por métodos estatais ou através da participação popular na administração da Justiça. Hess (2004, p. 193) afirmou corretamente que: “A descentralização da jurisdição terá crescente impacto na distribuição dos conflitos de interesses para serem solucionados em órgãos públicos e privados, com o conseqüente desafogamento do Poder Judiciário”. O objetivo da descentralização é ampliar o acesso à Justiça e instituir uma Justiça mais simplificada, acessível, pronta para a solução dos conflitos e notadamente, adaptada à realidade brasileira. Algumas medidas podem ser adotadas para o fim de tornar prática essa 79 o “Art. 2 Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais”. 80 “Art. 262. O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial”. 109 ideia. A prestação da Justiça nas universidades públicas e privadas é o primeiro passo para a mudança de mentalidade do estudante de Direito para aceitar a descentralização da jurisdição através dos meios alternativos e de cooperação da sociedade civil (HESS, Idem, p. 193). Aludida autora propõe, também, a implantação de uma visão crítica e o incentivo à pesquisa e ao aperfeiçoamento do ensino jurídico para adaptação aos novos tempos e direitos. Para ela, a grade curricular das Faculdades de Direito deveria ser ampliada para o estudo de casos concretos em seminários, maior pesquisa de jurisprudência e novas formas alternativas de solução de conflitos. Ademais, a conciliação, mediação e arbitragem, nos moldes da participação dos estudantes em Juizados Especiais, poderiam ser parte da prática jurídica (HESS, Idem, p. 198). É preciso também modificar o método de ensino do Direito. Normalmente, as aulas expositivas ministradas pelos professores servem apenas para (in)formação do acadêmico sobre a doutrina e a legislação codificada. É preocupante que o estudante de direito obtenha titulação sem ter noção efetiva da realidade social que vai enfrentar durante o exercício da profissão. Não basta que as Faculdades de Direito formem técnicos, bons conhecedores da práxis forense; é preciso formar profissionais que tenham conhecimento de ciências afins como filosofia, sociologia, ética, etc., e que saibam lidar com os conflitos sociais não positivados. Ademais, indispensável operar mudanças na mente dos operadores do Direito para que cada vez mais utilizem os instrumentos judiciais e extrajudiciais de solução dos conflitos. Dentre as medidas de descentralização, merecem relevo duas: o Sistema dos Juizados Especiais, pois, constitui-se em alternativa descentralizada de solução dos conflitos eficiente e eficaz e os meios alternativos de solução dos conflitos, por permitirem o desafogamento do Judiciário e resolverem de forma rápida, simples e econômica os conflitos apresentados pelos indivíduos, permitindo a eles uma participação efetiva na solução. 110 4.3 Os Juizados de Pequenas Causas e os Juizados Especiais A crise da Justiça não é algo novo, recente. Na década de oitenta, nesse particular, problemas graves que clamavam soluções imediatas já se apresentavam, e dentre eles estavam à questão do acesso à Justiça. Enquanto parte dos conflitos eram levados ao Poder Judiciário, outros tantos ficavam a margem deste, sem qualquer tipo de solução estatal. Normalmente as questões litigiosas de pequena relevância, complexidade e valor econômico acabavam sendo objeto de renúncia pelo titular do direito subjetivo, gerando um perigoso fenômeno ao qual Watanabe (1985, p. 2) denominou de “litigiosidade contida”. Em igual sentido, Dinamarco assinala: A lei federal n. 7.244, de 7 de novembro de 1984, ‘dispõe sobre a criação e funcionamento do Juizado Especial de Pequenas Causas’, é, na realidade, portadora de uma proposta revolucionária muito mais profunda do que a de mera instituição de novo órgão no contexto do Poder Judiciário e traçado dos parâmetros do procedimento que ele observará. A Lei de Pequenas Causas pretende ser o marco legislativo inicial de um movimento muito ambicioso e consciente no sentido de rever integralmente velhos conceitos de direito processual e abalar pela estrutura antigos hábitos enraizados na mentalidade dos profissionais, práticas irracionais incompatíveis com a moderna concepção democrática de exercícios do poder através da jurisdição. Dos escopos desta, o drama da vida contemporânea em sociedade põe em patético realce a pacificação social, eliminação de conflitos através do processo e das medidas imperativas a que ele conduz (escopo social da jurisdição). A angústia da via cara e complicada de acesso aos órgãos do Poder Judiciário, mais as prolongadas esperas pelo produto acabado dos demorados processos que este celebra formalmente, constituem fatores que, se não os agravam, impedem que o Estado possa eficazmente eliminar os conflitos que, no convívio social, conduzem a infelicidade pessoa de cada um e a atitude de perigosa desconfiança em face das instituições estatais e descrença dos valores da sociedade. É preciso uma verdadeira cruzada contra a litigiosidade contida. (DINAMARCO, 1986, p. 1). De acordo com a jurista, a litigiosidade contida nasce dos inúmeros conflitos sociais não resolvidos satisfatoriamente, seja porque o indivíduo não encontra no Poder Judiciário a resposta eficaz, seja porque os conflitos sequer chegam ao conhecimento deste, pela renúncia total do direito pelo prejudicado. Este último ponto estaria relacionado com a crença de que a Justiça é lenta, cara e complicada e, por isso, além de difícil, inútil ir ao Judiciário em busca da tutela do direito 111 (WATANABE, 1985, Idem, p. 2). Como visto no capítulo anterior, é o cidadão menos favorecido que encontra dificuldades para vencer os obstáculos do acesso à Justiça. Desse modo, não há dúvidas de que foi a ampliação do acesso à Justiça que moveu o legislador brasileiro a instituir os Juizados de Pequenas Causas, de acordo com Cunha: [...] a criação dos Juizados de Pequenas Causas no ano de 1984 teve duas fontes de inspiração: de um lado, a experiência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul com o Conselho de Conciliação e Arbitragem; de outro, a iniciativa do Ministério da Desburocratização, órgão do governo federal. Estas duas fontes teriam, de alguma forma, se completado e dado origem ao sistema por meio da Lei 7.244/84, que criou os juizados de pequenas causas. (CUNHA, 2008, p. 15). Por meio desta experiência, de origem norte-americana, encampada por uma comissão de nobres juristas81, e refletida na edição da Lei nº. 7.244/84, instituiu-se um processo informal, desburocratizado, célere e democrático, pois, está ao alcance das pessoas mais carentes e necessitadas. Aliás, Dinamarco, em obra dedicada ao assunto, ponderou que “as duas proposições centrais da Lei de Pequenas Causas, postas essas premissas sociais e políticas em que tem apoio, são a de facilitar o acesso ao Poder Judiciário e tornar mais célere e ágil o processo destinado a pacificar os conflitos que define” (DINAMARCO, 1986, p. 2). Conflui para o mesmo entendimento, as palavras proferidas por Watanabe: A grande preocupação (da lei que criou os juizados de pequenas causas) foi remover aquela idéia negativa de que não vale à pena ir à Justiça [...]. O objetivo perseguido, [...] é o de canalizar para o Judiciário todos os conflitos de interesses, mesmo os de pequena expressão, uma vez que é aí o locus próprio para a sua solução. (WATANABE, 1985, op. cit. p. 4). Em que pese o argumento de autoridade, é de se manifestar parcial discordância em relação ao pensamento do abalizado doutrinador. De fato, é inegável o abalo do Poder Judiciário perante aqueles que o procuram. Por outro 81 Participaram da comissão formada pelo Ministério da Desburocratização no ano de 1981, com objetivo de discutir a criação dos juizados de pequenas causas, os seguintes juristas: João Piquet Carneiro (presidente), Kazuo Watanabe, Cândido Rangel Dinamarco, Caetano Lagrasta Neto, Ada Pellegrini Grinover e Paulo Salvador Frontini (integrantes). 112 lado, ainda nos dias hodiernos, a população guarda uma “ideia negativa” da Justiça. Contudo, data venia, canalizar “todos” os conflitos de interesses para o Poder Judiciário já se mostrou, no curso dos anos, experiência impossível de ser praticada, e que não mais se sustenta. Como insistentemente defendido, é preciso descentralizar a prestação do serviço jurisdicional e reconhecer que mecanismos alternativos de solução de conflitos podem ser colocados à disposição do cidadão para que resolva seus problemas. A descentralização da Justiça é medida salutar e encontra assento na democracia social, tendo em vista que contribui para a efetivação de valores constitucionais como a cidadania e a dignidade da pessoa humana, com vistas à construção de uma sociedade justa e solidária, de modo a promover o bem de todos indistintamente. Pondera, ainda, Watanabe: A proposta de criação do JEPC pretende, fundamentalmente, reverter essa mentalidade, resgatando ao Judiciário a credibilidade popular de que ele é merecedor e fazendo renascer no povo, principalmente nas camadas média e pobre, vale dizer, do cidadão comum, a confiança na Justiça e o sentimento de que o direito, qualquer que seja ele, de pequena ou de grande expressão, sempre deve ser defendido. Da defesa que cada um faça de seu direito pela via normal, depende a vitalidade da ordem jurídica nacional (WATANABE, 1985, Idem, p. 3). Na exposição de motivos da Lei 7.244/84 são destacados problemas que estariam a prejudicar o desenvolvimento e o desempenho pleno do Poder Judiciário no âmbito da Jurisdição Civil: a) inadequação da atual estrutura do Poder Judiciário para a solução dos litígios que a ela já afluem, na sua concepção clássica de conflitos individuais; b) tratamento legislativo insuficiente, tanto no plano material como no processual, dos conflitos coletivos e difusos que, por enquanto, não dispõem de tutela jurisdicional específica; c) tratamento processual inadequado das causas de reduzido valor econômico e conseqüente inaptidão do Judiciário atual para a solução barata e rápida desta espécie de controvérsia. (ABREU, op. cit. p. 107). A ideia de “pequenas causas” induz a pensar em critério econômico para 113 delimitação do âmbito de atuação dos Juizados. De fato, abrange o contexto econômico e, também, social da parte litigante, até mesmo porque os Juizados foram criados com o objetivo de dirimir conflitos que, normalmente, envolvem em suas extremidades pessoas pobres. Mas, a pequena causa nem sempre se traduz na ideia de litígio de menor potencial econômico ou menor complexidade, embora o objetivo seja o de assegurar ao cidadão integrante das classes menos favorecidas, que detém uma causa assim considerada “menor”, o direito de exigir do Poder Judiciário a prestação da tutela jurisdicional e, por conseqüência, obter o bem da vida almejado. Para Dinamarco: [...] existe, mesmo, uma impulsão natural a pensar nas pequenas causas como sendo aquelas de reduzido valor econômico, até mesmo pela própria razão que levou à idéia de criar os Juizados de Pequenas Causas. O objetivo de abrir o Poder Judiciário a elas corresponde e enquadra-se no contexto da ‘prioridade aos pequenos’ [...] sendo natural e até intuitivo que os litígios em que envolvida a gente pobre sejam litígios de menor expressão econômica. É claro que essa suposição não tem valor absoluto, vendo-se casos de pobres com pretensões de alto valor, ao lado de pedidos de pouca expressão econômica, aforados por pessoas abonadas. Ordinariamente, porém, é lícito esperar que prepondere aquela correspondência, de modo que, com a adoção do critério valorativo, os maiores e mais numerosos beneficiados sejam realmente os mais pobres. (DINAMARCO, 1986, op. cit. p. 16). É acertado o critério econômico para definição do significado jurídico de pequenas causas, bem como para identificação dos maiores detentores desta, pois, trata-se de Justiça direcionada a pessoas carentes, identificáveis através da renda auferida e da casta social que compõe. Deste modo, não se pode enxergar tal critério elitista; trata-se de envidar esforços para possibilitar aos menos favorecidos o acesso à Justiça, conferido pela Constituição Federal a ricos e pobres indistintamente. O enfoque de atuação dos Juizados de Pequenas Causas concentra-se em litígios cíveis de menor potencial econômico e complexidade, emanados notadamente das classes sociais e econômicas menos favorecidas. Nessa linha, é certo que a filosofia da Lei de Pequenas Causas objetivou incluir conflitos que ficavam à margem da Justiça. 114 Os Juizados de Pequenas Causas enquadram-se na “terceira onda” renovatória de acesso à Justiça. Na “primeira onda” renovatória, o enfoque foi a incrementação da assistência judiciária gratuita; na “segunda onda” renovatória, o objetivo foi proteger uma nova categoria de direitos, os chamados “direitos da massa”, ou seja, direitos difusos e supra-individuais. Segundo Cappelletti, A “terceira onda” renovatória [...] encoraja a exploração de uma ampla variedade reformas, incluindo alterações nas formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes, quando como defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios. (CAPPELLETTI, 1988, op. cit. p. 71). 2 Os Juizados de Pequenas Causas, portanto, participaram da disseminação da democratização do acesso à Justiça através da construção de uma Justiça cidadã. Embora a Lei das Pequenas Causas tenha inovado ao se pautar em processo e procedimento mais simplificado e objetivo, em momento algum eximiu-se de observar as garantias processuais das partes litigantes. É preciso olvidar que as relações processuais travadas entre as partes são dinâmicas, pois, constituem-se num complexo de situações jurídicas que envolve todos os sujeitos do processo, quais sejam, as partes litigantes e o juiz. Nessa senda, a sistemática processual dos Juizados de Pequenas Causas permite e garante a efetiva participação das partes em contraditório, além de salientar o compromisso do juiz com a Justiça e efetividade das decisões, que se tornam legítimas na medida em que as partes dela participam ativamente. Assim, “liberdade, igualdade das partes e participação em contraditório – a trilogia inspiradora do moderno processo de feições e compromissos democráticos – estão presentes no processo que perante os Juizados das Pequenas Causas terá lugar” (DINAMARCO, 1986, op. cit. p. 3). Na Lei das Pequenas Causas, a conciliação ganhou relevo, pois, constitui-se em poderosíssima arma de pacificação social, dada a natural tendência das pessoas a aceitar e cumprir soluções que elas próprias elaboraram ou cujo preparo aceitaram voluntariamente (DINAMARCO, 1986, Idem, p. 3). 115 A lei que instituiu os Juizados de Pequenas Causas adaptou o procedimento processual comum a sua necessidade e finalidade, deixando-o mais simples e abreviado. Aludido procedimento encontra supedâneo em princípios processuais, como o da simplicidade, oralidade, economia processual, gratuidade e celeridade. Grinover explana a respeito da criação dos Juizados de Pequenas Causas no Brasil, consoante se verifica: Mas o que de mais significativo e alentador existe no Brasil, no momento, é a instituição dos denominados ‘Juizados Especiais de Pequenas Causas’, para a chamada ‘Justiça menor’, pela Lei Federal nº. 7.244, de 8 de novembro de 1984. Na se trata, aqui, da mera formulação de um novo tipo de procedimento, mas sim de um conjunto de inovações que vão desde uma nova estratégia no tratamento de certos conflitos de interesses até técnicas de abreviação e simplificação processuais. E não se trata propriamente de diversos princípios processuais, mas, sim de critérios que, informando o novo processo, assegurem sua fidelidade aos princípios clássicos, revolucionando-os em suas formas e em sua dinâmica. Isso porque simplicidade é expressão dos princípios da liberdade das formas processuais e da sua instrumentalidade; a oralidade é diretriz tradicional do processo brasileiro, agora levada aos extremos do diálogo entre o juiz e as partes; a economia processual e a gratuidade em primeiro grau de jurisdição respondem à promessa constitucional do acesso às vias jurisdicionais; a celeridade vem a reboque de um procedimento extremamente concentrado, sem oportunidade para dilações e incidentes que protelem o julgamento de mérito; e a conciliação, incessantemente buscada em todo o processo, como sua verdadeira mola-mestra, também se insere no rico filão de incentivo a autocomposição das partes, atendendo às mais caras tradições do processo brasileiro e de suas alternativas. Sem falar na possibilidade de acesso direto aos juizados, independentemente de advogado; sem descurar o importante papel da informação e orientação jurídicas, primeiro passo para a conscientização das classes menos favorecidas e para a participação popular pelo processo; e sem olvidar o importante aporte do corpo social na administração da Justiça, pela conciliação e arbitragem: diretrizes todas que muito bem se coadunam com os esforços rumo à construção da democracia participativa, que empenham o Brasil de hoje. (GRINOVER, op. cit. p. 182-183). A propósito, o art. 2º da Lei 7.244/84 rezava que: “O processo, perante o Juizado Especial de Pequenas Causas, orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando sempre que possível a conciliação das partes”. Conforme lembra Torres (op. cit. p. 91), os Juizados constituem-se, sem dúvida, no maior centro irradiador de ideais que o mundo jurídico ultimamente recebeu, experiência pioneira, influindo na simplificação dos procedimentos e na busca da eliminação de práticas viciosas, excessivas e protelatórias na marcha 116 processual. Como se vê, propostas de desburocratização das práticas judiciárias são necessárias e, cada vez mais, no sentido de descomplicar o processo e colocálo como instrumento para efetivação da Justiça e solução rápida dos litígios. A implantação dos Juizados de Pequenas Causas, por meio da Lei 7.244/84 representou imenso avanço no plano da realização dos direitos e tornou a Justiça mais próxima do cidadão. Contudo, a ampliação do acesso à Justiça, um dos objetivos da criação e implantação dos Juizados, não foi alcançada em sua plenitude, tendo em vista que até o ano de 1988 os Juizados funcionaram precariamente porque nem todos os Estados o aderiram, como menciona Cunha: Sem impor a obrigatoriedade da criação dos juizados especiais aos Estados, nem apresentar regras sobre a organização judiciária, o anteprojeto trazia princípios gerais que norteariam o funcionamento dos juizados (CUNHA, 2008, Ibid., p. 39). [...] A implantação dos juizados especiais de pequenas causas nos Estados brasileiros adquiriu ritmo e características diferentes, como previa a lei. Entre 1984 e a Constituição Federal de 1988, poucos foram os Estados que colocaram em funcionamento, com alguma estrutura física e material, os juizados de pequenas causas (CUNHA, 2008, Idem, p. 51). Considerando que a criação dos Juizados de Pequenas Causas redundou em benefícios, embora carecesse de aperfeiçoamento, e percebendo sua importância para a democratização do acesso à Justiça, a Constituição Federal de 1988 conferiu status constitucional a esta jurisdição especial82. Nessa perspectiva, a instalação dos Juizados Especiais no âmbito estadual, intitulados pela doutrina de “microssistema” de natureza instrumental e de instituição constitucionalmente obrigatória83, prevendo a Carta Maior a possibilidade dos Estados legislarem concorrentemente com a União a respeito de procedimentos em matéria 82 Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; 83 Lei nº. 9.099/95: Art. 95. Os Estados, Distrito Federal e Territórios criarão e instalarão os Juizados Especiais no prazo de seis meses, a contar da vigência desta Lei. 117 processual84. Figueira Júnior tece o seguinte comentário a despeito dos Juizados Especiais: Com a entrada em vigor da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995 (DOU de 27.09.95, p. 15.034-15.037), que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, introduziu-se no mundo jurídico um novo sistema, ou, ainda melhor, um microssistema de natureza instrumental e de instituição constitucionalmente obrigatória (o que não se confunde com a competência relativa e a opção procedimental), nos termos do preconizado no art. 98, I, da Constituição Federal, destinada à rápida e efetiva atuação do direito. (FIGUEIRA JÚNIOR, 2006, p. 23). Em termos de inovação da Lei 7.244/84, a Constituição Federal previu a criação dos Juizados Especiais na União; o provimento de cargos por juízes togados, ou togados e leigos; previu a extensão da competência dos juizados para executar as causas de sua responsabilidade; a expressão “pequenas causas” foi substituída por “causas de menor complexidade”; as infrações penais de menor potencial ofensivo tornaram-se causas de competência dos Juizados Especiais e os recursos julgados por turma de juízes de primeiro grau. Menciona-se ainda que a Constituição Federal denominou o que antes se chamava “Juizados de Pequenas Causas” de “Juizados Especiais” (ABREU, op. cit. p. 206). Entre 1988 a 1995, ano em que os Juizados Especiais foram regulamentados pela Lei 9.099 no âmbito estadual, significativo foi o crescimento do número de juizados atuantes em todo o País. Antes da citada lei, porém, alguns Estados se anteciparam e o regulamentaram por leis estaduais85. A Lei nº. 9.099/95 revogou86 a Lei nº. 7.244/84 e introduziu as seguintes modificações: o valor de alçada, de 20 para 40 salários mínimos87 84 88 ; possibilidade Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas; 85 É o caso dos seguintes Estados: Mato Grosso do Sul (Lei nº. 1.071/90), Santa Catarina (Lei n. 1.143/93), Paraíba (Lei nº. 5.466/91). 86 Art. 97. Ficam revogadas a Lei nº 4.611, de 2 de abril de 1965 e a Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984. 87 Art. 3º - Consideram-se causas de reduzido valor econômico as que versem sobre direitos patrimoniais e decorram de pedido que, à data do ajuizamento, não exceda a 20 (vinte) vezes o salário mínimo vigente no País [...]. 88 Art. 3º O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas: 118 de execução sem processo de conhecimento, de título executivo extrajudicial até o valor permitido89; obrigatoriedade da presença de advogado nas causas entre 20 e 40 salários mínimos90; execução de seus próprios julgados91, que pelo antigo regime processava-se no Juízo Cível comum passou a ser executada no próprio juizado especial92. Questões processuais que ensejaram candentes debates após o advento da Lei dos Juizados Especiais foram as seguintes, segundo Cunha (op. cit. p. 54): competência absoluta ou relativa nas causas elencadas no art. 3º da Lei nº. 9.099/9593; possibilidade de os condomínios, enquanto pessoas jurídicas, acionarem os juizados; a questão da sucumbência nas causas entre 20 e 40 salários mínimos, as quais deveriam contar com a presença de advogado; e, por fim, as decisões dos juizados e de títulos executivos extrajudiciais no próprio sistema de juizados. A Lei nº. 9.099/95 primou pela solução dos conflitos através da conciliação, não se afastando fundamento axiológico já difundido anteriormente pela Lei nº. 7.244/84. Nesse sentido, Torres menciona que: I - as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo; 89 Art. 3º [...] § 1º Compete ao Juizado Especial promover a execução: [...] II - dos títulos executivos extrajudiciais, no valor de até quarenta vezes o salário mínimo, observado o disposto no § 1º do art. 8º desta Lei. 90 Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória. 91 Art. 3º [...] § 1º [...] I - dos seus julgados; 92 Art. 40. A execução da sentença será processada no juízo competente para o processo do conhecimento, aplicando-se as normas do Código de Processo Civil. 93 Art. 3º O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas: I - as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo; II - as enumeradas no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil; III - a ação de despejo para uso próprio; IV - as ações possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente ao fixado no inciso I deste artigo. § 1º Compete ao Juizado Especial promover a execução: I - dos seus julgados; II - dos títulos executivos extrajudiciais, no valor de até quarenta vezes o salário mínimo, observado o disposto no § 1º do art. 8º desta Lei. § 2º Ficam excluídas da competência do Juizado Especial as causas de natureza alimentar, falimentar, fiscal e de interesse da Fazenda Pública, e também as relativas a acidentes de trabalho, a resíduos e ao estado e capacidade das pessoas, ainda que de cunho patrimonial. § 3º A opção pelo procedimento previsto nesta Lei importará em renúncia ao crédito excedente ao limite estabelecido neste artigo, excetuada a hipótese de conciliação. 119 Essa nova visão de Justiça conciliatória passa a marcar a linha divisória na vida jurídica brasileira, colocando, em primeiro lugar, a solução do conflito através do convencimento de que o acordo pacifica e é bom para as partes envolvidas, retirando a idéia de instrução do processo e da sentença como objetivo de resolver a causa. A conciliação ou a transação representa um ideal de Justiça preconizado pelo art. 2º da mesma lei, e que é defendido pelo microssistema dos Juizados Especiais, no sentido de resolver, extrajudicialmente, as dúvidas e desavenças sobre o direito disponível com posterior homologação pela instituição do Poder Judiciário. (TORRES, op. cit. p. 104). Nota-se ainda, pela leitura da Lei nº. 9.099/95, duas questões importantes: o art. 2º da Lei estabelece os princípios informativos94 dos Juizados Especiais e o art. 5º95 e 6º96 estabelecem a ampliação dos poderes do juiz, que deixa de ser mero coadjuvante do processo e passa a ser ator principal assim como as partes litigantes. Sobre o assunto, Sadek comenta que: E, no que se refere aos atores, a mudança introduzida é igualmente radical. O juiz transforma-se em uma figura mais atuante, com mais liberdade de ação e dotada de mais poder, uma vez que preside acordos, atuando principalmente como um apaziguador, estimulando o contato entre e com as partes. Sua margem de liberdade é ampliada, já que sua decisão o não precisa ficar restrita aos parâmetros legais. Os artigos 4º e 5 , na lei de 1984, e os 5º e 6º na de 1995, são explícitos na direção de um estímulo a uma atuação mais livre, prescrevendo que ‘o juiz dirigirá o processo com ampla liberdade para determinar as provas a serem produzidas, para apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica’. E mais: pode adotar ‘em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum. (SADEK, op. cit. p. 6). Na esfera federal, a Lei nº. 10.259, de 12 de julho de 2001, disciplinou a criação e o funcionamento dos Juizados Especiais Federais. Nos termos do art. 2º97 94 Art. 2º O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. 95 Art. 5º O Juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, para apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica. 96 Art. 6º O Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum. 97 o Art. 2 Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrente da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis. 120 e 3º98 sua competência está adstrita a causas penais de menor potencial ofensivo e causas cíveis, de competência da Justiça Federal. De acordo com o escólio de Figueira Júnior (op. cit. p. 26), dentre as inovações previstas por aludida lei estão: a) restrições aos recursos e à proibição de reexame necessário; b) redução de demandas nas varas de competência comum e nos tribunais regionais federais; c) igualdade formal absoluta entre as partes; d) supressão dos privilégios dos entes públicos, além da efetivação dos julgados e satisfação dos pleitos com maior rapidez. Na prática, todavia, os Juizados Especiais têm encontrado inúmeras dificuldades. A rigor, pode-se afirmar que as condições materiais e aquelas relacionadas à filosofia e à mentalidade estão ainda bastante distantes do que fariam supor os princípios inspiradores e os textos legais (SADEK, op. cit. p. 8). Para começar, ressalte-se que os Juizados Especiais Cíveis estão presentes em apenas 31% dos municípios brasileiros. Com efeito, dados do IBGE indicam que dos 5.500 municípios existentes no País no ano de 2004, somente 1.732 contavam com Juizados Especiais Cíveis. Esta deficiência é proporcionalmente maior nos municípios com menor número de habitantes. Há Juizados Especiais Cíveis instalados em apenas 4,4% dos municípios classificados com até 5.000 habitantes; em somente 2,6% daqueles com população entre 5.001 e 20.000 habitantes; em 5,8% dos municípios que possuem população entre 20.001 e 100.000 habitantes. Os municípios que concentram um maior número de habitantes, de 100.001 até 500.000, apresentam situação mais favorável, com Juizados Especiais em 91,8% dentre eles. Juizados Especiais estão presentes na totalidade dos 34 municípios 98 o Art. 3 Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças. o § 1 Não se incluem na competência do Juizado Especial Cível as causas: I - referidas no art. 109, incisos II, III e XI, da Constituição Federal, as ações de mandado de segurança, de desapropriação, de divisão e demarcação, populares, execuções fiscais e por improbidade administrativa e as demandas sobre direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos; II - sobre bens imóveis da União, autarquias e fundações públicas federais; III - para a anulação ou cancelamento de ato administrativo federal, salvo o de natureza previdenciária e o de lançamento fiscal; IV - que tenham como objeto a impugnação da pena de demissão imposta a servidores públicos civis ou de sanções disciplinares aplicadas a militares. o § 2 Quando a pretensão versar sobre obrigações vincendas, para fins de competência do Juizado o Especial, a soma de doze parcelas não poderá exceder o valor referido no art. 3 , caput. o § 3 No foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua competência é absoluta. 121 com mais de 500.000 habitantes, contando esses grandes centros com mais de um Juizado Especial Cível por município. (SADEK, Idem, p. 8). O exame da distribuição de Juizados Especiais Cíveis nas diferentes regiões geográficas evidencia dois aspectos: de um lado, a diversidade da situação nacional e, por outro, que as regiões que apresentam as condições sócio-econômicas mais precárias também são aquelas que concentram a menor proporção de Juizados Especiais Cíveis. De fato, na região centro-oeste 42,5% de seus municípios possuem Juizados Especiais Cíveis; na sudeste, 38,3%; na região sul, 35,9%; na norte, 25,8%; e, em última posição, está a região nordeste, com apenas 18,5% (SADEK, Idem, p. 9). No que se refere à sua distribuição pelas unidades da federação, o contraste é igualmente gritante: enquanto existem Juizados Especiais Cíveis em 82,6% dos municípios do estado do Rio de Janeiro − proporção bastante superior à média nacional − este percentual cai para 6,8% no Piauí (um dos estados com o mais baixo índice de IDH do País) (SADEK, Idem, p. 9). Estes dados podem ser mais bem apreciados a partir de uma comparação com o juízo comum (a Justiça tradicional), com dados referentes ao ano de 2003. Nela, encontra-se o número de juízes, o volume de processos entrados por 100.000 habitantes, a relação de entrados por magistrado e o índice de congestionamento nas duas Justiças (SADEK, Idem, p. 10). Nota-se, imediatamente, que o número de juízes alocados nos Juizados Especiais é extremamente baixo. Há apenas 751 magistrados desempenhando suas atribuições exclusivamente nos Juizados Especiais, enquanto o Juízo Comum conta com 7.609. Para que houvesse a mesma proporção de magistrados por processo entrado nas duas Justiças, deveria haver 3.244 magistrados nos Juizados Especiais. Trata-se, é claro, de raciocínio meramente hipotético, uma vez que um número (desconhecido) de juízes exerce atividades nas duas Justiças (SADEK, Idem, p. 11). Ainda que as informações estejam incompletas e mesmo com viés, o total de entrados por 100 mil habitantes no juízo comum (4.676,72) é 2,34 vezes maior que o de entrados nos Juizado Especial Cível (1.993,86), enquanto o número de magistrados alocados exclusivamente nos Juizados Especiais Cíveis é 10 vezes menor (SADEK, Idem, p. 11). Ademais, há estados em que o volume de entrados nos Juizados Especiais Cíveis já é maior do que o do juízo comum: Acre e Amapá. Em decorrência do baixo 122 número de magistrados em todas as unidades da federação a relação de entrados por magistrado é sempre mais alta nos Juizados Especiais Cíveis (SADEK, 2007, Idem, p. 11). Acrescente-se também que o índice de congestionamento dos Juizados Especiais Cíveis é expressivo. A média nacional é de 48,84%, ultrapassando a casa dos 80% no Ceará e no Pará. Com percentuais significativamente abaixo da média nacional estão Mato Grosso do Sul, com apenas 2,3%, e Pernambuco com 14%. O grau de congestionamento não possui, contudo, relação com o número de entrados por habitante, nem com o número de entrados por magistrado (SADEK, Idem, p. 11). Os dados apresentados até aqui permitem inferir que: a) o número de Juizados Especiais instalados no país ainda é muito inferior ao número de municípios; b) a distribuição geográfica e por tamanho de município é heterogênea e desequilibrada; c) o número de juízes exclusivos está muito abaixo do volume de entrados; d) os Juizados Especiais Cíveis sofrem, ainda que em menor proporção, do mesmo mal que tem marcado o juízo comum: o congestionamento; d) o montante de demandas é significativo (SADEK, Idem, p. 12-13). Tais conclusões permitem supor que os Juizados Especiais Cíveis não têm desfrutado de uma situação minimamente adequada. A única indicação favorável refere-se ao volume de demandas, sugerindo uma ampliação do acesso à Justiça (SADEK, 2007, Idem, p. 13). Por todo o exposto, é possível afirmar que os Juizados Especiais são um marco e um divisor entre a Justiça clássica e a contemporânea e se transformaram na porta principal de inclusão social e cidadã, principalmente para as classes menos abastadas e excluídas da Jurisdição. 4.4 Os meios alternativos de solução dos conflitos Além da descentralização da Jurisdição, a conciliação, a mediação e a arbitragem se apresentam como alternativas viáveis e demasiadamente relevantes para a superação da crise de acesso à Justiça. A Justiça Itinerante é uma Justiça conciliativa, exercida com esteio nos meios alternativos de solução dos conflitos, possíveis tanto para a via judicial quanto para a via extrajudicial. 123 Já foi dito alhures que a solução dos conflitos é oferecida pelo Direito através de dois mecanismos, a saber, o extrajudicial e o judicial. Na via extrajudicial, através da autocomposição, “uma das partes em conflito, ou ambas, abrem mão do interesse ou de parte dele”, por meio da desistência99, submissão100 ou transação101 (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, op. cit. p. 27). A marca da autocomposição é a parcialidade, no sentido de a solução do conflito depender da vontade de uma ou ambas as partes envolvidas, não havendo adversários nem litígio. Grinover menciona que: [...] a autocomposição, que abrange uma multiplicidade de instrumentos, constitui técnica que leva os detentores de conflitos a buscarem solução conciliativa do litígio, funcionando o terceiro apenas como intermediário que ajuda as partes a se comporem. Por isso, os instrumentos que buscam a autocomposição não seguem a técnica adversarial. (GRINOVER, 2008, p. 71). Não pode, sob hipótese alguma, ser compreendida como um retrocesso à vingança privada, vez que tutelada pelo ordenamento jurídico. Bezerra lembra que o ordenamento jurídico brasileiro tutela a autocomposição como meio alternativo de solução dos conflitos e cita alguns exemplos: a) oposição e mesmo resistência contra as imposições não resultantes da lei, que permitem resistir contra ordens ou exigências ilegais, ou não fundadas na lei, que provenham de autoridade pública ou particular. É garantia constitucional que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei; b) a legítima defesa pelo titular de seus bens e direitos; c) atos de defesa inerentes ao exercício regular de direitos; d) atos praticados em estado de necessidade; e) desforço imediato para repelir turbação ou esbulho de posse, etc., são meios de proteção de direitos, por atos positivos ou negativos, diretos ou indiretos, exercidos por seus titulares e permitidos pela lei e estas vias não se confundem com a coerção praticada por meio administrativo ou judicial, nem com as vias repressivas das sanções ou combinações. (BEZERRA, op. cit. p. 56). A via judicial encontra na sentença o ato de materialização do poder estatal, 99 É a renúncia à pretensão. É a aceitação da pretensão da outra parte sem resistência. 101 É a concessão recíproca para uma solução que atenda aos interesses de ambas as partes. 100 124 pois, aquele que dá início ao processo manifesta a intenção de ver, por meio deste, a manifestação impositiva da tutela estatal. A pacificação social que se busca no processo judicial tem sido repensada pelos estudiosos. Aliás, disse Bidart que: No es exclusiva, pues se da, em rigor, em todas las actividades humanas, pero si recurrente, la contradiccíon entre la exaltacíon del proceso como sintoma del funcionamiento del Estado de Derecho y médio culturalmente avazado para lograr su vigência doquiera se plantee um conflicto, - por uma parte. Y, por outra, la no menos frecuente afirmacíon de que debe evitarse el proceso y, si plantea, procurar ponerle rápidamente fin. Tal vez la primera afirmacíon pertenezca a la doctrina, a la teoria y la segunda a la realidad concreta, a la práctica vivida por quienes ‘sufren’ el proceso. (BIDART, 1988, p. 253). A mentalidade de que a solução do conflito ajustada entre as partes é uma via extremamente salutar para solução da crise do acesso à Justiça está consolidada entre aqueles que o defendem ardorosamente sem qualquer barreira e restrição. Isto ocorre por duas razões clarividentes: de um lado, a crise da Justiça reflete a crise do seu principal instrumento de atuação, o processo. Assim, A crise do processo é instrumental porque é o principal instrumento de atuação da Jurisdição. A propósito: ‘O processo é indispensável à função jurisdicional exercida com vistas ao objetivo de eliminar conflitos e fazer Justiça mediante a atuação da vontade concreta da lei. É, por definição, instrumento através do qual a Jurisdição opera (instrumento para a positivação do poder)’. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, op. cit. p. 295). Demonstra que o Poder Judiciário não está em condições de monopolizar a Jurisdição, sob pena de majorar ainda mais o descrédito já existente e predominante no seio social. A propósito, Marinoni ressalta que: O estreitamento do canal de acesso à ordem jurídica justa, além de produzir o indesejável descrédito do povo nas instituições jurídicas, produz o agravamento da litigiosidade latente, ponto que tem preocupado de forma muito significativa, pelas profundas repercussões de ordem social que pode acarretar. (MARINONI, op. cit. p. 41). 125 De outra banda, a expansão da autotutela privada, com o recrudescimento da violência, e o surgimento dos chamados “justiceiros”, que fazem a “Justiça” que reflete o empobrecimento do espírito solidarista da população, são expressões magnas deste problema (MARINONI, op. cit. p. 41). Por esta razão, tem se difundido a importância da pacificação dos conflitos a qualquer custo, por obra do Estado ou por outros meios não estatais. Nesse sentido: Vai ganhando corpo a consciência de que, se o que importa é pacificar, torna-se irrelevante que a pacificação venha por obra do Estado ou por outros meios, desde que eficientes. Por outro lado, cresce também a percepção de que o Estado tem falhado muito na sua missão pacificadora, que ele tenta realizar mediante o exercício da jurisdição e através das formas de processo civil, penal ou trabalhista (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, op. cit. p. 31-32). Segundo Caetano Lagrasta Neto (1989, p. 22), os meios alternativos de solução de conflitos são propostas de acesso à Justiça, dispensados, principalmente, às pessoas mais carentes, pertencentes a qualquer espécie de minoria. Por isso, conforme lembra Carlos Alberto Carmona (1989, p. 91-99), “[...] ganha terreno a afirmação no sentido de que a distribuição de Justiça pode ser propiciada não só através do Estado com sua direta intervenção, mas também pelas vias conciliativa e arbitral, ambas incluídas no conceito amplo de jurisdição”. Os meios alternativos de solução dos conflitos têm sido utilizados e aplicados em vários países, com vistas a dirimir conflitos de menor complexidade e valor econômico, principalmente em causas relacionadas a direito de família, vizinhança, inquilinato, entre outras. A conciliação é meio de solução dos conflitos extremamente importante, não só para a superação da crise de acesso à Justiça, como também para a pacificação social. Grinover insere a conciliação no quadro da Justiça Conciliativa, e a seu respeito pondera: Todavia, a Justiça conciliativa não atende apenas a reclamos de funcionalidade e eficiência do aparelho jurisdicional. E, na verdade, parece impróprio falar-se em racionalização da Justiça, pela diminuição da sobrecarga dos tribunais, se o que se pretende, por meio dos equivalentes jurisdicionais, é também e primordialmente levar à solução controvérsias 126 que freqüentemente não chegam a ser apreciadas pela Justiça tradicional. Assim, como a jurisdição não tem apenas escopo jurídico (o de atuação do direito objetivo), mas também escopos sociais (como a pacificação) e políticos (como participação), assim também outros fundamentos podem ser vistos na adoção das vias conciliativa, alternativas ao processo: até porque a mediação e a conciliação, como visto, inserem-se no plano da política judiciária e podem ser enquadradas numa acepção mais ampla de jurisdição, vista numa perspectiva funcional e teleológica. Releva, assim, o fundamento social das vias conciliativas, consistente na sua função de pacificação social. Esta, via de regra, não é alcançada pela sentença, que se limita a aditar autoritativamente a regra para o caso concreto e que, na grande maioria dos casos, não é aceita de bom grado pelo vencido, o qual contra ela costuma insurgir-se com todos os meios na execução e que, de qualquer modo, se limita a solucionar a parcela de lide levada a juízo, sem possibilidade de pacificar a lide sociológica, em geral mais ampla, da qual aquela emergiu, como simples ponta do iceberg. Por isso mesmo, foi salientado que a Justiça tradicional se volta para o passado, enquanto a Justiça informal se dirige ao futuro. A primeira julga e sentencia; a segunda compõe, concilia, previne situações de tensões e rupturas, exatamente onde a coexistência é um relevante elemento valorativo. (GRINOVER, 2008, op. cit. p. 73-74). Através dela, mediante concessões mútuas, os interessados estabelecem entre si a solução que melhor atenda a ambos, sem que haja total renúncia ou submissão de uma parte a outra. Desta maneira, a conciliação guarda característica essencial à concretude plena do acesso à Justiça: a participação dos contendores. Nessa linha de entendimento, é certo que a conciliação se consubstancia em poderoso instrumento de participação popular na administração da Justiça, sendo capítulo amplo do tema da democracia participativa, conforme afirmou Grinover (1988, p. 284). Esclarece a autora que a crise do Estado Moderno Liberal, que centralizou na autoridade estatal a ordenação da sociedade, passou, num estágio posterior, a submetê-la ao controle popular (GRINOVER, 1988, Idem, p. 284). Nasceu o princípio participativo, cujo núcleo se desdobra em dois momentos principais: o primeiro consistente na intervenção na hora da decisão; o segundo, atinente ao controle sobre o exercício do poder (GRINOVER, 1988, Idem, p. 284). Assim: [...] o princípio manifesta-se, na verdade, numa imensa variedade de formas, desde a simples informação e tomada de consciência, passando pela reivindicação, as consultas, a co-gestão, a realização dos serviços, até chegar à intervenção nas decisões e ao controle, como caracterizar graus mais ou menos intensos de participação. Por outro lado, sendo finalidade última de participação a integração da pessoa humana, por intermédio da responsabilidade e do consenso, e tendo 127 ela como motivo de inspiração o princípio da solidariedade social, é evidente que a democracia participativa favorece a até privilegia a participação dos grupos, dada também a ineficiência das formas meramente individualistas de participação (GRINOVER, 1988, Idem, p. 284-285). A conciliação é instrumento alternativo de solução dos conflitos que pode ser praticada no âmbito judicial e extrajudicial, a depender da instauração ou não de processo. No âmbito judicial, algumas experiências positivadas devem ser destacadas. No processo civil, a audiência preliminar prevista no artigo 331102 do CPC tem como fundamento a possibilidade de conciliação das partes, sem, contudo, privar o juiz de nova tentativa em outras fases do procedimento, como previsto, por exemplo, nos artigos 447 a 449103 do mesmo diploma legislativo104. 102 Art. 331. Se não ocorrer qualquer das hipóteses previstas nas seções precedentes, e versar a causa sobre direitos que admitam transação, o juiz designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de 30 (trinta) dias, para a qual serão as partes intimadas a comparecer, podendo fazer-se representar por procurador ou preposto, com poderes para transigir. o § 1 Obtida a conciliação, será reduzida a termo e homologada por sentença. o § 2 Se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário. o § 3 Se o direito em litígio não admitir transação, ou se as circunstâncias da causa evidenciarem ser improvável sua obtenção, o juiz poderá, desde logo, sanear o processo e ordenar a produção da o prova, nos termos do § 2 . 103 Art. 447. Quando o litígio versar sobre direitos patrimoniais de caráter privado, o juiz, de ofício, determinará o comparecimento das partes ao início da audiência de instrução e julgamento. Parágrafo único. Em causas relativas à família, terá lugar igualmente a conciliação, nos casos e para os fins em que a lei consente a transação. Art. 448. Antes de iniciar a instrução, o juiz tentará conciliar as partes. Chegando a acordo, o juiz mandará tomá-lo por termo. Art. 449. O termo de conciliação, assinado pelas partes e homologado pelo juiz, terá valor de sentença. 104 Quando a Lei nº. 8.952/94 dispôs a respeito da audiência preliminar, muito se discutiu a respeito da obrigatoriedade desta. A nosso ver, não faz sentido ser facultativa, exceto quando o litígio não comporta transação ou quando as circunstâncias da causa evidenciam sua improbabilidade (art. 331, § 3º do CPC). É que a conciliação deve ser tentada pelo juiz como meio de evitar a litigiosidade latente entre as partes, através de sua persuasão e técnicas de negociação. Um bom juiz, nos moldes das novas exigências atuais, deve ser, antes de tudo, um exímio conciliador e negociador. A respeito da obrigatoriedade da audiência do artigo 331 do CPC, comenta Nelson Nery Junior (2006, Ibid., p. 524 – nota 4): “O sistema processual civil brasileiro sofreu significativa reformulação com a L 8952/94. Antes o juiz saneava o feito em cartório; hoje, isto deverá ser feito na audiência preliminar. É a nova regra do jogo. Não pode o juiz consultar as partes, indagando se tem interesse na realização da audiência que a lei impõe seja realizada. As normas do processo civil são, em regra, de ordem pública, de sorte que as partes não podem abrir mão de direito que não lhes pertence. Mesmo que as partes não queiram comparecer à audiência, mesmo que não queiram submeter-se à tentativa de conciliação, o juiz deverá praticar os demais atos previstos pela norma ora analisada, no momento processual adequado para tanto: na audiência preliminar. Consultando as partes e deixando de designar a audiência, para sanear o feito em cartório, significa, em última análise, aplicar o revogado CPC de 1973, ao invés do vigente CPC de 1994”. 128 Em verdade, a conciliação judicial ou processual é dever do juiz e deve ser praticada a qualquer tempo, conforme prevê o artigo 125, IV, do CPC105. Esta mesma cultura de conciliação se faz presente nos Juizados Especiais Cíveis106, norteando suas atividades com objetivo de solucionar os conflitos sem desgaste para as partes, com celeridade, eficiência e sem custo para o jurisdicionado. Torres tece considerações a respeito da conciliação no processo civil e sua influência nos Juizados Especiais: Como referência, o art. 448 do Código de Processo Civil, que anteriormente se constituía no momento propício para a conciliação das partes, agora se constitui em mais uma oportunidade para conciliação, tanto que deve ter uma interpretação com o art. 331, que primeiramente teve uma nova redação pela Lei nº. 8.952, de 13 de dezembro de 1994, ensejando uma audiência conciliatória no saneamento do processo, em fase anterior à audiência de instrução e julgamento. Essa afirmativa é porque a solução do litígio pela transação com a audiência preliminar, procura evitar a litigiosidade processual e agora, mais uma vez, se mostra o espírito norteador para a solução do litígio, na recente Lei nº. 10.444, de 7 de maio de 2002, alterando, mais uma vez, o referido art. 331 do Código de Processo Civil. É a idéia de conciliação que está presente, oxigenando um novo conceito de processo, tendo no sistema dos Juizados de Pequenas Causas a fonte inspiradora. (TORRES, op. cit. p. 107-108). A conciliação processual é aceita pelo cidadão e tornou-se prática salutar levada a efeito pelo Poder Judiciário através do movimento “Conciliar é legal”, desde o ano de 2006, através da “Semana Nacional da Conciliação”, quando inúmeros litigantes põem termo ao seu processo por meio da transação com a parte contrária. Nesse caso, a efetividade de soluções é medida extremamente positiva, que desafoga o Judiciário, sem dizer que produz o sentimento de satisfação e contentamento das partes. A título de informação, no ano de 2008, das 398.012 audiências marcadas durante a Semana Nacional de Conciliação, 305.591 audiências foram realizadas; destas, 135.337 acordos foram feitos, o que totaliza 105 Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de tratamento; II - velar pela rápida solução do litígio; III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça; IV - tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes. 106 O artigo 2º da Lei nº. 9.099/95 dispõe: “O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível a conciliação ou a transação”. 129 44,3% de soluções de conflitos107. Nessa mesma semana, foram atendidas 633.631 pessoas, por magistrados, juízes leigos, conciliadores e colaboradores108. Assim: Uma Justiça mais acessível, efetiva, simples e informal é o que deseja a população brasileira. A adoção da conciliação tem se revelado fórmula hábil para atender a esse anseio, como revelam os exemplos acima. É indispensável divulgar a existência de uma maneira nova de resolver as querelas. Sentar para conversar, antes ou depois de proposta uma ação judicial, pode fazer toda a diferença. (NORTHFLEET, 2007, p. 2). A conciliação judicial não exclui a conciliação extrajudicial, tendo como principal objetivo evitar o processo, sendo ao jurisdicional uma alternativa viável. Ada Pellegrini Grinover denomina a conciliação extrajudicial de “conciliação préprocessual” e apresenta formas de exercício desta109. Em alguns países, a conciliação pré-processual é realizada por juízes de paz, que são órgãos jurisdicionais, e tem a função de pacificar os conflitos ainda não transformados em processo judicial. Trata-se de fase obrigatória, e que precede ao exercício do direito de ação (GRINOVER, 1990, op. cit. p. 209). A Justiça de paz é criação francesa ou espanhola, no entanto, é praticada em outros países como na Itália e no Uruguai. No Brasil, relata a autora que os juízes de paz foram investidos de função conciliatória prévia, sendo a Justiça de paz uma condição obrigatória para o início de qualquer processo, segundo a Constituição Imperial de 1824 (arts. 161 e 162). Ocorre que a instituição perdeu força e foi transformada em órgão incumbido de habilitar e celebrar casamentos (GRINOVER, 1990, Idem, p. 210). Outra maneira de exercício da conciliação pré-processual se deu no Estado do Rio Grande do Sul, no ano de 1982, através dos Conselhos de Conciliação. Sua finalidade foi a de dar solução extrajudicial a pequenas causas envolvendo direitos disponíveis. Nele, os conciliadores e árbitros não recebiam qualquer remuneração, exercendo suas funções em horário noturno e somente quando solicitados pelos 107 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Semana Nacional da Conciliação: De 01 a 05 de Dezembro de 2008. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 24 agosto, 2009. 108 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Semana Nacional da Conciliação: De 01 a 05 de Dezembro de 2008. <Disponível em: http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 24 agosto, 2009. 109 Mais uma vez socorremo-nos das lições da ilustre jurista, considerando ser uma das maiores conhecedoras e propagadoras do assunto no Brasil. Nesse sentido, destaca-se o artigo “Conciliação e Juizados de Pequenas Causas” (1990, op. cit. p. 205-215). 130 interessados. Promovia-se, num primeiro momento, a tentativa de composição amigável, e, não sendo possível, propunha-se o arbitramento, restando como última alternativa a via jurisdicional (GRINOVER, 1990, Idem, p. 213). O ponto forte dos Conselhos de Conciliação, sem dúvida, era o de solucionar conflitos de menor valor, de modo simples, rápido e efetivo, pois, havia incessante participação dos envolvidos no conflito. Hodiernamente, no Brasil, existe a possibilidade de conciliação e mediação prévias nos Juizados Especiais de Conciliação (JIC) e Juizados Especiais Civis (JEPEC), com a participação ativa de bacharel em direito, advogado, estagiário, ou leigos das áreas de Assistência Social, Psicologia, entre outras (HESS, op. cit. p. 171). Além disso, existem os projetos do CIC (Centro de Integração da Cidadania), nas periferias da cidade de São Paulo, nos quais funcionam os serviços de conciliação e mediação em questões de família, locação e moradia, cobrança de pequenas dívidas, direitos do consumidor, direitos da criança e do adolescente, direitos trabalhistas por meio de operadores do direito, assistentes sociais, psicólogos, que orientam e conciliam as partes (HESS, op. cit. p. 171). Estes Juizados de Conciliação e Mediação têm se apresentado como instrumento de grande relevância para a superação da crise de acesso à Justiça, pois elegem como foco a conciliação e, desta forma, priorizam que as partes resolvam o conflito sem que sejam necessários o processo e sentença judicial. De todo o exposto, verifica-se que a conciliação implica em discussão franca e aberta entre as partes, podendo acontecer antes de instaurado o processo ou após sua instauração, sendo salutar alternativa de aproximação e participação dos envolvidos na solução do conflito e na pacificação destes com Justiça. A conciliação proporciona um efetivo acesso à Justiça, pois nela predomina o tratamento igualitário entre os contendores que decidem, em conjunto e da melhor forma, como por cobro à situação conflituosa, de modo que ambas se satisfazem. Conciliar é uma das vias mais interessantes para se vencer a crise da Justiça. Com efeito, Grinover se pronuncia: O correto enfoque das funções e da estrutura da conciliação extrajudicial permite, assim, olhar para ela, no mais amplo quadro de acesso à Justiça, como a um poderoso instrumento de solução de certos conflitos, alternativo ao processo, mas não excludente deste. E permite afirmar, sem temor de erro, que responde ela não apenas à busca de maior racionalização e 131 eficiência na administração da Justiça, como também aos objetivos preponderantes de pacificação social, compondo e prevenindo situações de tensões e rupturas mais amplas e profundas do que as lides levadas à Justiça tradicional e solucionadas pelo processo. Configura, ainda, significativo meio de participação do corpo social na administração da Justiça, pela via da mediação institucionalizada, capaz de levar à autocomposição, além de propiciar a informação, a tomada de consciência e a politização que decorrem da orientação jurídica. Tudo obedecendo aos escopos jurídico, sociais, e políticos da jurisdição que, em sua acepção mais ampla, também compreende a atividade conciliativa extrajudicial. (GRINOVER, 1988, op. cit. p. 293). A crítica que se faz à conciliação, mais precisamente à conciliação judicial, é por todos, exteriorizada por Grinover: Critica-se, ainda, a atribuição da função de conciliador ao próprio juiz da causa, em razão da dificuldade de desvincular o papel mais ativo do juiz, na obra de convicção das partes, de um verdadeiro pré-julgamento. Mesmo assim, deve-se reconhecer que o êxito da tentativa de conciliação depende, em grande parte da habilidade pessoal do juiz, de seu poder de persuasão e da forma como a conduz, devendo evitar pressões descabidas sem deixar de empenhar-se a fundo no convencimento das partes. Por isso alguns juízes conseguem elevado número de acordos, enquanto outros são menos felizes em suas tentativas. (GRINOVER, 1990, op. cit. p. 207). O fato é que a conciliação judicial em muitos casos não é alcançada porque a litigiosidade já se encontra estabelecida entre as partes. Estas, por sua vez, pelo fato de ter ajuizado e contestado a demanda, preferem a solução do conflito via sentença. Resistem porque até a fase de conciliação arcaram com custas, despesas processuais e honorários advocatícios e não querem pôr tudo a “perder” por conta de uma composição amigável. Os advogados, neste caso, não a recomendam, tendo em vista a suplantação do interesse em perceber honorários de sucumbência, impostos ao vencido na sentença, sem contar o desperdício do trabalho já executado. Não bastasse isso, nessa fase procedimental – mediante o cotejo da inicial e da resposta do réu – o juiz já formou em seu íntimo a convicção acerca do direito controvertido e já esquematizou mentalmente a sentença, sendo quase impossível conduzir de maneira parcial as partes a um acordo. Mas não é só. Não é incomum a prática de excessos judicantes no momento da conciliação. É comum a “imposição” de acordos que prejudicam legítimos direitos do autor ou punem imoderadamente o réu, como se a transação posta “goela a 132 baixo” fosse satisfatória no plano da resolução dos conflitos. O fato é que a conciliação, nesses termos, torna-se ilegítima, visto que não agrada os contendores. Carmona observa o seguinte: Ocorrem então fenômenos quase sempre patológicos, ousamos afirmar, como aquilo que se tem visto na Justiça Trabalhista: à fúria de conciliar, muitos vogais e alguns juízes presidentes de juntas de conciliação e julgamento acabam por impor certos acordos que prejudicam os legítimos direitos do obreiro ou aniquilam a perspectiva do empregador honesto – sempre intimidado perante a Justiça federal especializada, que tende a tratar com maior benevolência o hipossuficiente – de obter uma sentença justa. Onde está, então, a harmonização das desavenças? Que tipo de equilíbrio social pode trazer um acordo que não convence os contendores? (CARMONA, op. cit. p. 93). A conciliação, seja judicial ou extrajudicial, jamais pode ser tida como abafador ideológico do verdadeiro anseio de Justiça, e em hipótese alguma deve surgir como substitutivo à indeclinável responsabilidade do Estado de proteção ao cidadão e seus direitos (LAGRASTA NETO, op. cit. p. 30). Outro meio alternativo de solução dos conflitos é a mediação. Trata-se de método consensual e informal, onde o mediador auxilia os interessados a buscar solução justa e adequada ao caso submetido à apreciação. Sem interferir diretamente, mas, atuando de modo a facilitar a compreensão do problema, a mediação confere aos participantes um ponto de equilíbrio. Segundo Moreira e Sales: [...] a mediação pode ser definida como um procedimento consensual de solução de conflitos por meio do qual uma terceira pessoa imparcial – escolhida ou aceita pelas partes – age no sentido de encorajar e facilitar a resolução de uma divergência, ou seja, é uma técnica não adversarial de solução de conflitos, onde um terceiro (imparcial), atua como facilitador do diálogo, estimulando as próprias partes envolvidas no conflito a encontrarem, consensualmente, a solução mais satisfatória para ambas. (MOREIRA; SALES, 2008, p. 349). Interessante registrar que, ao contrário das autoras citadas, Bezerra assevera que o mediador é um terceiro interventor neutro e faz distinção entre imparcialidade e neutralidade: 133 É um processo informal, voluntário, onde um terceiro interventor, neutro, assiste aos disputantes na solução de suas questões. [...] Portanto, na mediação, ao contrário dos demais mecanismos, o papel do interventor não é revestido somente de imparcialidade e, sim, avançando, porta-se com neutralidade. Imparcial é quem se envolve no conflito, decidindo e fazendo substituir a vontade dos querelantes, pela sua (decisão que prevalecerá). Neutro, em sentido amplo, é quem, diante de um conflito em andamento, adota uma atitude de não-participação e de eqüidistância com relação as partes em luta. (BEZERRA, op. cit. p. 80). Nos Estados Unidos, a mediação é um importante mecanismo de resolução de conflitos extrajudiciais (Alternative Dispute Resolution – ADR) utilizada pelos órgãos e Câmaras de Conciliação e Arbitragem, principalmente pelos advogados na fase inicial de contato entre escritórios e clientes. As técnicas de mediação são disciplinas ensinadas nas Faculdades de Direito; por meio de pesquisas, constantemente são buscadas novas técnicas de mediação de conflitos de família, consumidor, direitos de vizinhança e de locação, questões trabalhistas e até questões criminais de bagatela (HESS, op. cit. p. 168). Pondera Hess (Idem, p. 168) que a mediação. Trata-se de método consensual e informal, onde o mediador auxilia os interessados a buscar solução justa e adequada ao caso submetido à apreciação. Sem interferir diretamente, mas, atuando de modo a facilitar a compreensão do problema, a mediação confere aos participantes um ponto de equilíbrio. Os princípios que regem a mediação são: liberdade de escolha, neutralidade do mediador, responsabilidade pela própria decisão, informação sobre o assunto, causas e conseqüências de seus atos, confiança no procedimento desenvolvido pelo mediador (HESS, Idem, p. 168). Embora haja pontos comuns, a conciliação e a mediação guardam diferença, senão vejamos: A mediação assemelha-se à conciliação: os interessados utilizam a intermediação de um terceiro, particular, para chegarem à pacificação de seu conflito. Distingue-se dela somente porque a conciliação busca sobretudo o acordo entre as partes, enquanto a mediação objetiva trabalhar o conflito, surgindo o acordo como mera conseqüência. Trata-se mais de uma diferença de método, mas o resultado acaba sendo o mesmo (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, op. cit. p. 34) 134 Na prática, a mediação tem surtido bons efeitos na área do direito de família, pois tem ajudado casais e filhos a dialogarem no momento de solucionar os conflitos decorrentes dos entraves familiares. Ademais, a mediação tem sido aplicada nos casos envolvendo direito de vizinhança. Segundo Torres: O instrumento de mediação adapta-se muito bem e tem surtido bons efeitos em problemas e conflitos na área do direito de família. Esse procedimento pode ser iniciado em momento anterior à proposição formal de qualquer ação em juízo, no decorrer do andamento do processo, ou em qualquer fase em que haja discordância sobre algum ponto que seja considerado essencial e não esteja sendo devidamente cumprido, assim como inúmeros outros casos, envolvendo direitos de vizinhança. Na mediação, as partes é que buscam uma decisão, o intermediário como o próprio nome diz, propicia condições para que haja uma interação e uma compreensão sobre o litígio e se encontre um caminho satisfatório para os envolvidos. (TORRES, op. cit. p. 169). Há críticas endereçadas à mediação extrajudicial, pois, em tese somente o direito protege os mais fracos. Assim, o não reconhecimento jurídico das partes na mediação pode ter como conseqüência a privação dos mecanismos de proteção jurídica e tutela estatal. No entanto, Bezerra (op. cit. p. 82) combate essa idéia argumentando que: “Antes de o não reconhecimento das soluções extrajudiciais constituir-se numa conseqüência para os mais fracos, consiste em causa para os mais fortes não fazerem acordos extrajudiciais”. E continua: Na Justiça do Trabalho isso se constata largamente, onde os empregadores (parte mais forte nas relações de emprego), negam-se a compor seus litígios extrajudicialmente, exatamente por falta de segurança nas relações jurídicas futuras, pois os empregados (parte mais fraca) conciliam e depois reclamam judicialmente. (BEZERRA, Idem, p. 82). Por outro lado, assim como na conciliação, a mediação proporciona tratamento igualitário aos que dela participam, pois torna o direito mais acessível aos interessados. Logo, forçoso concluir que a mediação é instrumento indispensável para superação da crise de acesso à Justiça. Assim: 135 Traçados, em linhas gerais, os principais contornos da mediação de conflitos na atualidade, revela-se importante destacar que o resgate de seu papel, enquanto meio para resolução de conflitos, decorre não só de uma necessidade dos cidadãos, que reclamam por meios e espaços adequados para uma atuação efetiva tanto no âmbito social como político, mas se insere na própria crise em que se encontra o Estado de Direito. Crise que, de resto, é fruto daquela pela qual passa a própria democracia, não só sob o aspecto conceitual, já que hoje, afastando-se da visão de um regime político, passou a representar um modelo de sociedade, como também pela realidade pobre de vivências de práticas democráticas pelos cidadãos. (MOREIRA; SALES, op. cit. p. 352). Por último, mas não menos importante, é a arbitragem. Constitui-se meio alternativo de solução dos conflitos onde as partes submetem a um terceiro neutro, escolhido por elas, determinada disputa para que lhes seja apresentada uma decisão. Embora guarde semelhanças, não se confunde com a conciliação nem com a mediação. As distinções conceituais entre mediação e arbitragem encontram-se esboçadas por Torres: Cabe, desde logo, estabelecer, mesmo que circunstancialmente, a diferenças conceituais entre essas modalidades alternativas. A mediação constitui-se numa forma de negociação assistida, em que uma terceira pessoa, como mediadora, atua no sentido de colocar a termo à disputa. Para tanto, é imprescindível o aspecto confiança, de tal forma que a pessoa intermediadora possa, paulatinamente, ir afastando as diferenças e reunindo informações num campo investigatório para apresentar pontos convergentes e positivos, a fim de tornar possível a pacificação. A arbitragem, por sua vez, também tem na voluntariedade o seu motor e representa, juntamente com a mediação, uma das formas diferenciadas na resolução dos conflitos. Desprende-se dos formalismos exagerados do processo tradicional, tendo, nos profissionais escolhidos espontaneamente pelas partes envolvidas, um mecanismo hábil para resolver os conflitos, principalmente aqueles considerados grandes, de maior complexidade. Por isso a arbitragem tem sido utilizada na área comercial, tanto nacional quanto internacionalmente. Cabe dizer, é um instrumento alternativo para composição de um conflito sobre bens disponíveis, atuando no campo de relação jurídica em que se valoriza a liberdade e autonomia da vontade das partes. (TORRES, op. cit. p. 124). Historicamente, a arbitragem já era forma de resolução dos conflitos praticada na Grécia Antiga, nos conflitos entre cidades-estados (BEZERRA, op. cit. p. 65). Esteve presente, também, entre os hebreus, desde o ano de 1.300 a.C., na época do direito mosaico (BEZERRA, Idem, p. 65). No Novo Testamento, o apóstolo 136 Paulo censura o encaminhamento de litígios interna corporis pela Igreja de Corinto aos tribunais togados, pois, estes eram pagãos (BEZERRA, Idem, p. 65). Não se pode deixar de noticiar o direito romano, onde os pretores dirimiam os conflitos entre os romanos nacionais (HESS, op. cit. p. 169). No Brasil, a matéria está regulamentada pela Lei nº. 9.307/96 que recebeu forte influência da arbitragem praticada pelos Estados Unidos. São características da arbitragem: a) existência de uma lide entre duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, de direito público ou privado; b) são os litigantes que indicam o terceiro alheio à lide, observando as normas processuais estabelecidas no compromisso arbitral ou na legislação processual; c) o laudo arbitral possui caráter vinculante, ou seja, gera obrigatoriedade às partes, sendo executáveis na Justiça Estatal (BEZERRA, Idem, 67). A arbitragem é compatível com direitos disponíveis e pode ser aplicada a conflitos de baixo valor econômico. De acordo com a lição de Silva: Tendo a sua intervenção confinada ao campo dos direitos disponíveis, numa certa indistinção dos diferentes limites da autonomia privada (relaciona-se directamente a autonomia para a escolha da jurisdição com a autonomia para a celebração de transacção, quando aquela não implica esta), a arbitragem vem tendo dois espaços privilegiados de actuação: a conflitualidade de baixo impacto econômico e a litigiosidade ou altamente especializada ou que deve ser rodeada de confidencialidade. (SILVA, 2008, p. 105-106). Entre nós, tem sido pouco utilizada, notadamente por ser um processo caro e demorado, neste particular, pouco se diferindo do processo judicial. Assim sendo, é certo que as partes acabam por utilizar a via estatal, tendo em vista o pré-conceito de que será mais segura e garantida. E, na verdade, esse raciocínio não é de todo desprovido de razão. Na esfera processual, alguns fatores atuam como inibidores do uso corriqueiro da arbitragem: o primeiro está na necessidade de executar a sentença arbitral no Poder Judiciário, não sendo dotada de autoexecutoriedade110; outro fator 110 Art. 475-N. São títulos executivos judiciais: [...] IV – a sentença arbitral; 137 a ser considerado é a irrecorribilidade das decisões arbitrais111. A propósito, a ceifa do direito ao duplo grau de jurisdição rendeu à Lei da Arbitragem críticas doutrinárias, como menciona Bezerra: Outra polêmica já levantada em congressos sobre a matéria é que diz respeito à irrecorribilidade das decisões arbitrais, prevista na lei. Argumentase que no caso sejam lesivas ao direito, as decisões irrecorríveis se chocariam com o Art. 5º, XXXV da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, que cria o princípio da inafastabilidade do judiciário, em questões que evolvam lesão ou ameaça a direito. A observação não procede, por um lado, porque em nosso ordenamento, a arbitragem somente é feita (executada) perante o Judiciário, mesmo as elaboradas extraprocessualmente. Por outro lado, porque a decisão judicial pura, não arbitral, também pode ser injusta e ferir direito das partes, não obstante gerar obstáculo intransponível da coisa julgada, uma vez configurada e após o prazo legal de rescisória. (BEZERRA, op. cit. p. 69). Não se pode dizer que a arbitragem ofende o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, pois, a parte que a ele se submete o faz por opção. A idéia de irrecorribilidade está fundamentada, obviamente, na possibilidade de se proferir a sentença arbitral em prazo razoável, entendido aqui, como o estabelecido pelos participantes ou previsto no artigo 23 da Lei nº. 9.307/96112. Lembra-se, ainda, da utilização da arbitragem limitada a matérias de conteúdo patrimonial disponível113. Parece um pouco desarrazoado não se permitir que conflitos de natureza não patrimonial – desde que não seja de conteúdo indisponível – não possam ser resolvidos através de arbitragem, sobretudo, se considerarmos que arbitragem pressupõe a fidúcia entre árbitro e partes. Inegavelmente a arbitragem afigura-se em instrumento de importância ímpar ao combate da crise de acesso à Justiça; entretanto, precisa ser aderida pelos indivíduos, que dela pouco se valem para solucionar seus conflitos, optando pela via judicial. 111 Lei nº. 9.307/96, art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. 112 Art. 23. A sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes. Nada tendo sido convencionado, o prazo para a apresentação da sentença é de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro. 113 Lei nº. 9.307/96, art. 1º. As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. 138 Por ignorância ou por acreditar que somente o Estado é capaz de solucionar os conflitos, a arbitragem está em desuso e não atingiu o resultado esperado pelo legislador e pelos operadores do direito, que viram nela uma alternativa plausível de solução da crise da Justiça pátria. Posto isso, não paira dúvida acerca da relevância dos meios alternativos de solução dos conflitos como instrumentos viáveis de superação da crise de acesso à Justiça. Constituem-se em típica Justiça consensual, informal, simples e gratuita, que conclama os indivíduos a delas usufruir. A conciliação e a mediação podem ser utilizadas antes da instauração do processo e servem para evitá-lo, considerando o abarrotamento de demandas submetidas ao Judiciário. Os meios alternativos de solução dos conflitos devem ser institucionalizados pelo Poder Judiciário, tornando-se parte da política judiciária dos Tribunais Estaduais e Federais. A nosso ver, deve o Estado supervisioná-los e neles investir com recursos financeiros, de forma a fornecer estrutura material e humana para que se tornem mais efetivos e utilizados na sociedade brasileira. É preciso difundir mais e mais a cultura da conciliação, mediação e arbitragem entre a população, pois, a chancela do Estado confere maior segurança e tranquilidade aos que pretendem utilizar esses mecanismos. Ademais, torna-se indispensável praticar a conciliação e a mediação extrajudiciais, com vistas a diminuição de processos judiciais, o que aumenta o grau de confiabilidade no Poder Judiciário e soluciona conflitos que jamais chegarão a ele. Ao se reconhecer os meios alternativos de solução dos conflitos, numa perspectiva extrajudicial, não se está a excluir a possibilidade de instauração de processo. Ideal se lei processual determinasse a conciliação pré-processual como procedente obrigatório a instauração da fase contenciosa. Esta prática foi concebida no âmbito dos Juizados Especiais, e deveria ser estendida a todos os processos cíveis, como mecanismo de desafogamento da Justiça. Ademais, a lei precisa reconhecer e atribuir força jurídica aos acordos que não sejam realizados às vistas do juiz, ou seja, dispensar que sejam homologados judicialmente. A verdade é que o monopólio da Jurisdição é um dogma que deve ser repensado, de forma que a solução dos conflitos através da conciliação, mediação e 139 arbitragem torna-se medida inevitável e indispensável diante da crise judiciária instalada na sociedade. Os meios alternativos garantem efetivo acesso à Justiça, pois conferem tratamento equânime aos indivíduos. Além disso, permitem aos participantes a intervenção direta nas decisões tomadas e garantem a inclusão social, numa perspectiva democrática e participava, pois, a atuação da Jurisdição só se torna legítima quando permite a participação popular na administração da Justiça. 140 5 A JUSTIÇA ITINERANTE COMO ALTERNATIVA DE SUPERAÇÃO DA CRISE DE ACESSO À JUSTIÇA 5.1 Considerações introdutórias: a participação popular na administração da Justiça A Justiça Itinerante, concebida com suporte na descentralização do serviço jurisdicional, pressupõe a participação popular, vez que tem como ponto central a solução dos conflitos através da conciliação. Na medida em que a Justiça se desloca até o cidadão e busca a solução do conflito, a instauração de processo deve ser evitada, pois, a sentença judicial é ato de imposição do direito do vencedor em face do vencido e normalmente desagrada a este último. A aproximação das partes com vistas ao diálogo, a negociação e a busca pelo consenso, auxiliados por um terceiro preparado para esse fim, legitima a atuação da Justiça Itinerante porque o acordo é formulado pelas partes, com auxílio e chancela de um juiz. Assim, uma Justiça que vai de encontro ao indivíduo e prima pelo consenso mútuo produz resultados mais satisfatórios, considerando que a solução de conflitos com esteio em técnicas não adversariais aponta para uma efetividade longe de ser alcançada pela via oficial de Jurisdição. É preciso lembrar que o processo, ao invés de pacificar os conflitos, acaba por fomentá-los, como ponderou Bezerra (op. cit. p. 71). A participação popular na administração da Justiça está na essência da Justiça Itinerante, além de fortalecer o Poder Judiciário enquanto instituição que deposita no processo missão pacificadora, de modo a fomentar o resgate das raízes democráticas do Estado de Direito. A propósito, a afirmativa encontra fundamento da lição de Watanabe: É importante que se pense, outrossim, na participação da comunidade na administração da Justiça. A experiência dos Juizados Informais de Conciliação e Juizados Especiais de Pequenas Causas, têm posto à mostra a importância dessa participação. A participação tem ocorrido sob a forma de Conciliador e Árbitro. Essa participação da comunidade e a adoção de técnicas alternativas de solução de conflitos, principalmente a conciliação e o arbitramento, e ainda a tendência a deformalização (mais informalidade) e delegalização (menos legalismo e solução dos conflitos, em certos casos, 141 pela equidade) têm constituído a grande inovação desses Juizados. A par das vantagens mais evidentes, que são a maior celeridade e maior aderência da Justiça à realidade social, a participação da comunidade traz, ainda, o benefício da maior credibilidade da Justiça e principalmente o do sentido pedagógico da administração da Justiça, propiciando o espírito da colaboração. Os que têm a oportunidade de participar conhecerão melhor a Justiça e cuidarão de divulgá-la ao segmento social a que pertencem. Demais disso, a organização de uma Justiça com essas características, organizada para pessoas mais humildes, tem a virtude de gerar, pela própria peculiaridade do serviço que presta e pela exigência das pessoas que a procuram, ordinariamente pouco instruídas, um serviço paralelo, que é o de informação e orientação. (WATANABE, 1988, op. cit. p. 133). A Justiça Itinerante, além de convalescer o Estado Democrático, é elemento essencial à promoção da cidadania plena e da dignidade da pessoa humana, haja vista a perspectiva inclusiva e participativa que a compõe. Explica Marinoni que a participação popular na administração da Justiça pode ocorrer de forma direta ou indireta. A direta se caracteriza pela atuação dos juízes leigos e a indireta através dos princípios que permitem o controle da função jurisdicional (op. cit. p. 43). Complementa Grinover: Inseridos os procedimentos conciliativos, ainda que pré-processuais e de natureza não jurisdicional, no quadro da política judiciária, a intervenção de leigos na função conciliativa também se coloca no âmbito da participação popular na administração da Justiça. Representa ela, ao mesmo tempo, instrumento de garantia e instrumento de controle, configurando meio de intervenção popular direta pelos canais institucionalizados de mediação. Responde, assim, a exigências de educação cívica e de legitimação democrática. Mas ainda é vigoroso elemento propulsor de informação, conhecimento, tomada de consciência e politização, na medida em que possibilita aos usuários da Justiça a informação sobre seus direitos e a correta orientação jurídica, elementos políticas de particular importância sobretudo com relação às pessoas menos preparadas e mais carentes. (GRINOVER, 1988, op. cit. p. 288). Nesse trilhar, ainda valendo-se do escólio de Grinover, o princípio participativo insere o cidadão na administração da Justiça. Veja-se: Trata-se de uma nova forma de limitação do poder do Estado, objetivo que a separação de poderes não conseguiu alcançar, em que o conceito unitário de soberania – a soberania absoluta do povo, delegada ao Estado – é limitado pelo reconhecimento de soberania social aos grupos naturais e 142 históricos que constituem a nação. E se trata, ainda, da implantação de gestão racional de setores da vida social, que tem a seu favor não apenas a fé iluminista no valor educativo da participação, mas ainda a convicção da necessidade de busca de novas formas de democracia, adequadas ao mundo contemporâneo. (GRINOVER, 1988, op. cit. p. 285). Para ela, a participação apresenta-se em dois sentidos: a) participação na administração da Justiça e; b) participação mediante Justiça. Na primeira, utiliza-se o processo como veículo de participação democrática; na segunda, é preciso analisar três vertentes: a) participação como instrumento de garantia; b) participação como instrumento de transformação e; c) participação como instrumento de controle. A participação popular na administração da Justiça atende as exigências de legitimação democrática do exercício da jurisdição além de ser elemento de importância e grande contribuição para a educação cívica (GRINOVER, 1988, Idem, p. 287). Conclui-se que a participação popular deve ser fortalecida no âmbito do Poder Judiciário, e com isso, o Estado deve propagar suas benesses junto à sociedade, incentivando que os indivíduos busquem soluções alternativas ao processo judicial, para que não haja resistência ou desconfiança na utilização desses meios. Desse modo, inegavelmente aprimora-se a distribuição da Justiça, de maneira a alcançar aqueles que dela não partilham por estarem distantes e excluídos. Nesse viés, pertinente citar o que assinalou Torres: A idéia de levar a Justiça para todos os recantos do Brasil, onde, normalmente, pelo sistema tradicional, o Estado não consegue chegar, tem ocupado o tempo de todos que se preocupam com uma efetiva aplicação do direito. Um dos pontos que se deve destacar são os projetos que visam a descomplicar os ritos, adotando procedimentos informais, de tal maneira que esse possam atender a grande maioria dos cidadãos. [...] São Juizados como os itinerantes que tornam possível resgatar e amparar o princípio constitucional do amplo acesso à Justiça. É uma forma de Justiça a ser observada em todos os locais, diferente daquela que é praticada longe dos cidadãos, nos Fóruns, nos Tribunais, distanciada da compreensão do cidadão comum. (TORRES, op. cit. p. 85). 143 Essa aproximação do cidadão é pressuposto essencial para que haja superação da crise de acesso à Justiça, ou, ao menos, para que haja minoração desta, pois está assentada no tratamento igualitário devido a todos, indistintamente. Merece crítica a postura passiva e estática do Poder Judiciário em relação aos diversos conflitos existentes na sociedade, sobretudo, os de menor valor e complexidade, que quase sempre são resolvidos à margem da Justiça oficial. Aludida postura passiva, estática, anacrônica e incompatível com os novos tempos, somada a fatores que obstam o efetivo acesso à Justiça, já tratados anteriormente, acaba por mitigar ou suprimir direito inalienável, fundamental, que antecede a todos os outros, visto como acesso à ordem jurídica justa. Portanto, o princípio de que a Jurisdição é inerte deve ser alvo de reflexão e sofrer atenuação porque diante das premissas estabelecidas até esta fase, muitos indivíduos não são alcançados e ficam à margem, excluídos. A propósito, “A oportunização da prestação jurisdicional não se verifica diante da inércia do Estado. Não é possível que a abstenção estatal produza solução de conflitos. Obviamente, isso não sucede”. (POLEZZE, 2006, p. 67). A Justiça Itinerante, nessa linha de raciocínio, se presta a levar a Justiça onde ela não pode chegar, tendo por objetivo resolver o conflito sem que se necessite instaurar processo judicial. Trata-se de uma maneira simples, informal, mas muito eficiente e eficaz, de solucionar os conflitos e promover o acesso à Justiça. 5.2 Aspectos gerais da Justiça Itinerante A Justiça Itinerante foi concebida com supedâneo na ideia de descentralização do serviço jurisdicional. Assim, poderá ser instalada pela Justiça Comum Estadual ou Federal, Justiça do Trabalho e seus Tribunais. Em termos legislativos, a Justiça Itinerante foi inserida na Constituição Federal por obra da Emenda Constitucional nº. 45/2004 (Reforma do Judiciário). Nessa senda, o artigo 107, § 2º, dispõe sobre a instalação da Justiça Itinerante no âmbito da Justiça Federal; o artigo 115, § 1º, dispõe sobre a instalação da Justiça Itinerante no âmbito 144 da Justiça do Trabalho; e, o artigo 125, § 7º, dispõe sobre a instalação da Justiça Itinerante no âmbito da Justiça Estadual114. Antes disso, porém, já era prática adotada por alguns Tribunais Estaduais, por meio de ato normativo editado pelo seu Presidente, com amparo no artigo 94 da Lei nº. 9.099/95, que implicitamente havia permitido a instalação de “Juizados Itinerantes115”. Com a Reforma do Judiciário, estendeu-se a abrangência de atuação da Justiça Itinerante, antes circunscrita aos Juizados Especiais, para alcançar as causas de competência da Justiça Estadual, Federal e Trabalhista. É o que afirma Azkoul: Teria sido aprimorada pela recente Emenda Constitucional n. 45 ao permitir a sua extensão na prestação jurisdicional em geral e dos seus serviços auxiliares cartoriais, ocupando não apenas prédios públicos como previa a Lei n. 9.099/1995 (art. 94), ora também pela Emenda Constitucional n. 45, os prédios comunitários. Ao ganhar estofo constitucional, recebeu expressamente no seu texto o batismo de Justiça Itinerante. Aliás, com o advento da Lei n. 9.099/1995, também se buscou uma eficaz aplicação social das infrações de menor potencial ofensivo. (AZKOUL, op. cit. p. 96). 114 Art. 115. Os Tribunais Regionais do Trabalho compõem-se de, no mínimo, sete juízes, recrutados, quando possível, na respectiva região, e nomeados pelo Presidente da República dentre brasileiros com mais de trinta e menos de sessenta e cinco anos, sendo: [...] § 1º Os Tribunais Regionais do Trabalho instalarão a Justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções de atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários. § 2º Os Tribunais Regionais do Trabalho poderão funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à Justiça em todas as fases do processo. [...] Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. [...] § 7º O Tribunal de Justiça instalará a Justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários. Art. 107. Os Tribunais Regionais Federais compõem-se de, no mínimo, sete juízes, recrutados, quando possível, na respectiva região e nomeados pelo Presidente da República dentre brasileiros com mais de trinta e menos de sessenta e cinco anos, sendo: [...] § 2º Os Tribunais Regionais Federais instalarão a Justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários. 115 Art. 94. Os serviços de cartório poderão ser prestados, e as audiências realizadas fora da sede da Comarca, em bairros ou cidades a ela pertencentes, ocupando instalações de prédios públicos, de acordo com audiências previamente anunciadas. 145 O sistema principiológico e processual da Justiça Itinerante tem como paradigma o dos Juizados Especiais. Estes, por sua vez, foram instituídos com o intuito de descentralizar a prestação do serviço jurisdicional de modo a tornar-se mais célere, informal, simplificado e gratuito. O caráter itinerante que se confere à Justiça está fundamentado na descentralização do serviço jurisdicional como alternativa viável de atuação do Poder Judiciário fora dos fóruns e dos gabinetes dos magistrados. Para Torres, [...] a democracia tem como base o respeito às leis, ao direito e ao poder constituído. Também se poderia dizer, de outra forma, que não há afirmação do Estado Democrático de Direito se não há acesso à Justiça, se o cidadão, onde quer que ele esteja, não receba orientação nem apoio. Por isso, iniciativas para afirmação da pessoa, com projetos na diretriz de aproximação da Justiça com o povo, denota o interesse do Judiciário no objetivo para encontrar alternativas na solução dos litígios, fora do padrão tradicional de prestação jurisdicional e distribuição de Justiça. (TORRES, op. cit. 81). Pressupõe, portanto, o deslocamento do aparato judicial (juízes, conciliadores, escreventes, computadores, sistema de internet, etc.) até o local onde o serviço jurisdicional será prestado aos indivíduos que dele carecessem. Assim, O Juizado Itinerante, terrestre ou fluvial, tem por objetivo levar o atendimento judiciário até o cidadão, principalmente aos setores mais pobres da sociedade, situados nas periferias da cidade. Geralmente, é constituído de uma unidade móvel, que funciona em um ônibus, ou um caminhão, ou uma embarcação, adaptado e preparado para levar uma equipe composta por juízes, conciliadores, atendentes judiciários e pessoal de apoio, que embarcam para atender a população pobre, as comunidades ribeirinhas, sem nada cobrar e de forma ágil, eficiente e desburocratizada. Foi o Poder Judiciário amapaense que primeiro cuidou do Juizado Itinerante, chegando ‘efetivamente junto à população, através das ações dos Juizados Especiais’. (FIGUEIRA JÚNIOR, op. cit. p. 31-32). É forma alternativa de acesso à Justiça a ser priorizada pelo Estado, tendo em vista os resultados que apresenta no campo da efetividade de direitos. Apenas para exemplificar, o Juizado Itinerante do Estado de Mato Grosso do Sul, um dos mais organizados e estruturados do Brasil, apresentou dados estatísticos interessantes, atualizados até 31/03/2008: no ano de 2001, das 349 ações iniciadas, 146 198 resultou em acordo e 33 em não acordo; no ano de 2002, das 4.295 ações iniciadas, 2.787 resultou em acordo e 277 em não acordo; no ano de 2003, das 7.804 ações iniciadas, 4.631 resultou em acordo e 602 em não acordo; no ano de 2004, as 10.503 ações ajuizadas, 7.837 resultou em acordo e 369 em não acordo; no ano de 2005, das 10.316 ações ajuizadas, 8.191 resultou em acordo enquanto 230 em não acordo; no ano de 2006, das 11.512 ações iniciadas, 9.699 resultou em acordo e 229 em não acordo; no ano de 2007, das 10.803 ações iniciadas, 9.216 resultou em acordo e 241 em não acordo; por fim, no ano de 2008, das 2.366 ações iniciadas, 1.986 resultou em acordo e 42 em não acordo. No período em referência, 57.948 ações foram iniciadas, 44.545 acordos realizados, havendo 2.023 não acordos116. A Justiça Itinerante é um sistema moderno, social e democrático, originário do Brasil (AZKOUL, op. cit. p. 95). Resta claro que a Justiça Itinerante atinge número elevado de acordos, o que induz a conclusão de que pacifica os conflitos apresentados pelas partes e pode se tornar poderoso instrumento para desafogamento da vias oficiais de Justiça, além de ser alternativa viável de concretização do acesso à Justiça. Azkoul define o significado de Justiça Itinerante: [...] o conceito de Justiça Itinerante no sentido formal, adjetivo ou processual, que se resume com a prestação de serviço da tutela jurisdicional do Estado, que se efetiva juridicamente com a sentença ou acórdão, ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa em outros espaços que não os fóruns, ou seja, unidades móveis, em colégios estádios de futebol, locais comunitários e em repartições públicas em geral, devidamente equipadas, preferivelmente, com sistema informatizado e de telecomunicações. (AZKOUL, Idem, p. 90). Para Bezerra (op. cit. p. 160): “As chamadas ‘Justiças itinerantes’ são, na verdade, audiências feitas em outros espaços que não os fóruns, a saber, em colégios e repartições públicas em geral. É a chamada descentralização e interiorização da Justiça”. Em que pese o conceito esposado pelo autor, que de todo não é improcedente, ousamos em parte discordar porque a Justiça Itinerante não se resume apenas em audiências realizadas distintos dos Fóruns ou Tribunais, mas, 116 Disponível em: <http://www.tjms.jus.br> Acesso em 28 ago. 2009. 147 deve ter procedimento que preveja a conciliação, instrução e julgamento das demandas que foram iniciadas. A nosso ver, a Justiça Itinerante é órgão especial da Jurisdição estatal, instituída com a finalidade de pacificar os conflitos sociais, utilizando para esse fim a conciliação e o processo e atuando através de unidade móvel do Poder Judiciário que se desloca dos fóruns para locais diversos previamente estabelecidos, onde o serviço jurisdicional será prestado a quem dele precisar, indistintamente. Trata-se de Justiça descentralizada, forma alternativa de acesso à Justiça, cujo fundamento é a busca da igualdade social distributiva e participação popular na administração da Justiça. A razão da criação da Justiça Itinerante, conforme narra Torres, é a extensão territorial de alguns estados brasileiros. Neles, a Justiça oficial não chegava pela ausência de comarca. O Estado do Amapá foi o pioneiro no Brasil, pois, através de uma embarcação, foi ao encontro da população ribeirinha para prestar o serviço jurisdicional. No Estado do Amazonas, por exemplo, cita o autor que com um milhão e meio de metros quadrados e um número de sessenta e dois municípios, apenas três são sedes de comarcas. É possível destacar ainda, que a Justiça Itinerante foi instituída para atender aqueles conflitos considerados diminutos no aspecto econômico ou processual, normalmente afetos às classes mais pobres e carentes, de regra desinformadas e desorientadas juridicamente. A propósito, é nesse ponto que a Justiça Itinerante tem papel fundamental para a concretização do acesso à Justiça, sob uma perspectiva cidadã e democrática Assim, Como se vê, o sistema tradicional e formal está cedendo lugar a alternativas que procuram vencer os problemas de lentidão e demora na entrega jurisdicional, sem ofender cânones legais, levando o Poder Judiciário às comunidades. É a necessidade de rever padrões de comportamento e atitudes, é a consciência de uma nova realidade e, felizmente, a grande maioria dos juízes e dos Tribunais está tendo um pensamento para modificar e até redirecionar a maneira de agir, porque a injustiça pelo não-reconhecimento de um direito marca fundo na alma do ser humano (TORRES, op. cit. p. 85). 148 Em síntese, a Justiça Itinerante é alternativa efetiva de acesso à Justiça. Deve ser organizada de modo a atender – ou tentar – toda a demanda apresentada pelos cidadãos através da prestação do serviço jurisdicional onde existe carência. Pode a Justiça Itinerante, desde que haja previsão legal, celebrar casamentos, expedir registro civil, carteira de identificação civil e até CPF. Esta Justiça pode atuar em conjunto com o Poder Público, pois visa não só prestar a tutela jurisdicional, mas, levar cidadania. A Justiça Itinerante deve ser instalada após estudo prévio, para análise dos municípios ou bairros carentes de distribuição da Justiça. Assim, o Poder Judiciário passa a ser interiorizado e atinge pessoas que carecem dos serviços jurisdicionais. A Justiça Itinerante é uma Justiça Cidadã, participativa, que se propõe a ampliar o acesso à Justiça. Inevitavelmente, a estruturação da Justiça Itinerante implica em custos para o erário público, pois é preciso adquirir unidades móveis, investir em tecnologia, e contratar servidores e juízes. Nessa linha de raciocínio, a Justiça Itinerante deve ser elevada a categoria de política pública essencial do Poder Judiciário e deve ser contemplada com recursos orçamentários específicos, destinados a manter a prestação desse importante serviço jurisdicional. O sucesso da Justiça Itinerante depende da efetividade das ações estatais com objetivo de oportunizar a todos o tão aclamado acesso à Justiça, no que se refere às demandas de sua competência. Da assertiva formulada por Azkoul infere-se o ideal de igualdade perseguido pela Justiça Itinerante: [...] este mecanismo visa facilitar o acesso ao Judiciário por meio da Justiça Itinerante (Federal e Estadual), incluída nos arts. 107, § 2º e 3º; 115, §§ 1º e 2º; e 125, § 7º, da Carta Magna, objetivando levar atendimento judiciário a todos indistintamente, seja julgamento concorrente das causas de família, da infância e da juventude, idoso, consumidor, registros públicos, eleitoral, comercial, civil, criminal, além de outras questões previstas em lei, principalmente as pessoas com dificuldades de acessar e conhecer a Justiça, em especial nas periferias, favelas, cortiços, quilombos, assentamentos, populações ribeirinhas, grandes e pequenas cidades, etc. (AZKOUL, op. cit. p. 99). 149 5.3 Aspectos processuais da Justiça Itinerante Não há uniformidade procedimental na Justiça Itinerante, pois, aos Tribunais compete regulamentar o funcionamento desta. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a Justiça Itinerante instrui e julga os litígios a ela submetidos, caso não haja conciliação entre as partes117. Já no Estado de Mato Grosso do Sul, a Justiça Itinerante está habilitada a tentar a conciliação das partes, nos limites da sua competência; sendo infrutífera, o feito é redistribuído à vara originariamente competente para conhecer dele118. Como órgão especial da Jurisdição, entendemos que a Justiça Itinerante é dotada de procedimento processual próprio, razão pela qual se propõe pontuar seus aspectos processuais. Não se trata de esgotar o assunto, tendo em vista que pouco se doutrinou a respeito, mas, de encetar debates a respeito de tema relevante para a efetiva concretização do acesso à Justiça. Será analisada a organização e composição, princípios processuais, competência nos limites do que o trabalho se propõe. A Justiça Itinerante atua numa unidade móvel, terrestre ou fluvial, equipada com materiais de expediente necessários à prestação do serviço jurisdicional, nos moldes de um cartório judicial convencional. Deve conter mesas, computadores, sistema de internet e telefonia para que se torne possível o atendimento ao cidadão. É composta pelo juiz (togado) e auxiliares da Justiça (juízes leigos e conciliadores), conforme art. 5º a 7º da Lei nº. 9.099/95119, além de promotor de Justiça, defensores públicos, assistente social, psicólogo e oficial de Justiça. 117 Resolução nº. 10/2004. Art. 3º - A competência dos Juízes designados para atuarem na Justiça itinerante, de natureza funcional, para a conciliação, instrução e julgamento das causas mencionadas no art. 1º, exclui a de qualquer outro órgão judicial, que não o de origem, devendo ser privilegiadas as soluções conciliadas. 118 Resolução nº. 353/2001. Art. 4º Diante da competência fixada no artigo anterior, se não houver composição do conflito mediante acordo entre as partes, o respectivo processo será redistribuído a uma das Varas que seria originariamente competente para processar e julgar o respectivo feito, nos termos da Resolução n. 349, de 20 de Setembro de 2001, deste Tribunal, cientificando-se os interessados. 119 Art. 5º O Juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, para apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica. Art. 6º O Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum. Art. 7º Os conciliadores e Juízes leigos são auxiliares da Justiça, recrutados, os primeiros, preferentemente, entre os bacharéis em Direito, e os segundos, entre advogados com mais de cinco anos de experiência. 150 Os princípios que melhor se adaptam ao processo e o procedimento na Justiça Itinerante são aqueles previstos no artigo 2º da Lei nº. 9.099/95, a saber: oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, sempre com objetivo de alcançar a conciliação ou a transação entre as partes120, mas sem excluir os princípios processuais-constitucionais, tais como o devido processo legal, contraditório e ampla defesa, igualdade, dentre outros. Pelo princípio da oralidade há exigência precípua da forma oral no tratamento da causa, sem que com isso se exclua a utilização da escrita. Lembra Figueira Junior que “processo oral não é sinônimo de processo verbal” (op. cit. p. 35). O princípio da oralidade impõe ao juiz a colheita direta da prova oral. Lembra, ainda, que a oralidade abrange outros princípios, dentre os quais: a) o da imediação; b) o da concentração dos atos processuais; c) o da irrecorribilidade das interlocutórias; d) o da identidade física do juiz. O princípio da imediação implica no contato direto do juiz com as alegações e provas produzidas; o princípio da concentração dos atos processuais reduz o procedimento a uma única audiência; o princípio da identidade física do juiz vincula o julgador à decisão da causa, por decorrência da oralidade e da imediatidade. Na Lei nº. 9.099/95, vários atos processuais serão praticados com supedâneo no princípio da oralidade. O pedido inicial pode ser formulado oralmente perante os Juizados Especiais121; o mandato outorgado ao advogado da parte poderá ser oral122; a contestação do réu poderá ser oral123; os embargos de declaração serão opostos oralmente124, apesar de o recurso ser escrito125; a Parágrafo único. Os Juízes leigos ficarão impedidos de exercer a advocacia perante os Juizados Especiais, enquanto no desempenho de suas funções. 120 Art. 2º O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. 121 Art. 14. O processo instaurar-se-á com a apresentação do pedido, escrito ou oral, à Secretaria do Juizado. [...] § 3º O pedido oral será reduzido a escrito pela Secretaria do Juizado, podendo ser utilizado o sistema de fichas ou formulários impressos. 122 Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória. [...] § 3º O mandato ao advogado poderá ser verbal, salvo quanto aos poderes especiais. 123 Art. 30. A contestação, que será oral ou escrita, conterá toda matéria de defesa, exceto argüição de suspeição ou impedimento do Juiz, que se processará na forma da legislação em vigor. 124 Art. 49. Os embargos de declaração serão interpostos por escrito ou oralmente, no prazo de cinco dias, contados da ciência da decisão. 125 Art. 42. O recurso será interposto no prazo de dez dias, contados da ciência da sentença, por petição escrita, da qual constarão as razões e o pedido do recorrente. 151 execução de sentença poderá ser iniciada oralmente126 (ABREU, op. cit. p. 213214). Os princípios da simplicidade e da informalidade açambarcam o da instrumentalidade das formas, ou seja, a invalidade da relação processual será medida imposta por razões intransponíveis quando suplantar a questão de fundo, comprometida com os fins de Justiça do processo. Nessa linha, o pedido deverá ser feito de maneira simples e em linguagem acessível127; a nulidade não será decretada sem a existência de efetivo prejuízo128; a citação por oficial de Justiça será feita independentemente de mandado, inclusive noutra comarca129; as intimações serão realizadas por qualquer meio idôneo130; as provas poderão ser produzidas em audiência, ainda que não requeridas previamente, comparecendo as testemunhas em juízo independentemente de intimação131; a sentença será concisa132; o julgamento em segunda instância constará apenas de ata, com indicação do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva, servindo como acórdão a súmula do julgamento na hipótese de a sentença ser confirmada por seus próprios fundamentos133; o início da execução de sentença condenatória será postulada de forma oral e sem citação134; a alienação de bens penhorados pode ser 126 Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações: [...] IV - não cumprida voluntariamente a sentença transitada em julgado, e tendo havido solicitação do interessado, que poderá ser verbal, proceder-se-á desde logo à execução, dispensada nova citação; 127 Art. 14. O processo instaurar-se-á com a apresentação do pedido, escrito ou oral, à Secretaria do Juizado. § 1º Do pedido constarão, de forma simples e em linguagem acessível: [...] 128 Art. 13. Os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais forem realizados, atendidos os critérios indicados no art. 2º desta Lei. § 1º Não se pronunciará qualquer nulidade sem que tenha havido prejuízo. 129 Art. 18. A citação far-se-á: [...] III - sendo necessário, por oficial de Justiça, independentemente de mandado ou carta precatória. 130 Art. 19. As intimações serão feitas na forma prevista para citação, ou por qualquer outro meio idôneo de comunicação. 131 Art. 34. As testemunhas, até o máximo de três para cada parte, comparecerão à audiência de instrução e julgamento levadas pela parte que as tenha arrolado, independentemente de intimação, ou mediante esta, se assim for requerido. 132 Art. 38. A sentença mencionará os elementos de convicção do Juiz, com breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório. 133 Art. 46. O julgamento em segunda instância constará apenas da ata, com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva. Se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão. 134 Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações: [...] 152 deferida a pessoa idônea135; tratando-se de coisa de pequeno valor a ser alienada, pode se dispensar a publicação de editais136 (ABREU, Idem, p. 216-217). Pelo princípio da economia processual, o julgador, adotando-se a regra de Chiovenda, deve dirigir o processo, conferindo às partes um máximo de resultado em confronto com um mínimo de esforço processual. Nessa linha, a agilização do provimento, com formas seguras e não-solenes, é consequência natural e evidente desse princípio. A Lei dos Juizados consagra as seguintes hipóteses de aplicação prática desse dispositivo: os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais forem realizados137; cumulação de pedidos conexos138; apreciação conjunta, na mesma sentença, do pedido inicial e pedido contraposto139; dispensa de reconvenção nas ações dúplices140; dispensa do relatório na sentença141; intimação da sentença condenatória na própria audiência em que foi proferida142; imediata extinção do processo na ausência de bens do devedor143 (ABREU, Idem, p. 215-216). IV - não cumprida voluntariamente a sentença transitada em julgado, e tendo havido solicitação do interessado, que poderá ser verbal, proceder-se-á desde logo à execução, dispensada nova citação; 135 Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações: [...] VII - na alienação forçada dos bens, o Juiz poderá autorizar o devedor, o credor ou terceira pessoa idônea a tratar da alienação do bem penhorado, a qual se aperfeiçoará em juízo até a data fixada para a praça ou leilão. Sendo o preço inferior ao da avaliação, as partes serão ouvidas. Se o pagamento não for à vista, será oferecida caução idônea, nos casos de alienação de bem móvel, ou hipotecado o imóvel; 136 Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações: [...] VIII - é dispensada a publicação de editais em jornais, quando se tratar de alienação de bens de pequeno valor; 137 Vide artigo 13 da Lei nº. 9.099/95. 138 Art. 15. Os pedidos mencionados no art. 3º desta Lei poderão ser alternativos ou cumulados; nesta última hipótese, desde que conexos e a soma não ultrapasse o limite fixado naquele dispositivo. 139 Art. 17. Comparecendo inicialmente ambas as partes, instaurar-se-á, desde logo, a sessão de conciliação, dispensados o registro prévio de pedido e a citação. Parágrafo único. Havendo pedidos contrapostos, poderá ser dispensada a contestação formal e ambos serão apreciados na mesma sentença. 140 Art. 31. Não se admitirá a reconvenção. É lícito ao réu, na contestação, formular pedido em seu favor, nos limites do art. 3º desta Lei, desde que fundado nos mesmos fatos que constituem objeto da controvérsia. Parágrafo único. O autor poderá responder ao pedido do réu na própria audiência ou requerer a designação da nova data, que será desde logo fixada, cientes todos os presentes. 141 Vide artigo 38 da Lei nº. 9.099/95. 142 Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações: [...] III - a intimação da sentença será feita, sempre que possível, na própria audiência em que for proferida. Nessa intimação, o vencido será instado a cumprir a sentença tão logo ocorra seu trânsito em julgado, e advertido dos efeitos do seu descumprimento (inciso V); 153 Por fim, o princípio da celeridade está ligado ao da efetividade, que tem por finalidade genérica, além de dar razão a quem tem, recompor o patrimônio do lesado pelo descumprimento da ordem jurídica. A aplicação do princípio da celeridade no âmbito dos Juizados Especiais pode ser contemplada através das seguintes hipóteses: instauração imediata da conciliação quando os litigantes comparecerem ao Juizado144; impossibilidade de realização de citação por edital145; prolação imediata da sentença se ausente o demandado146; concentração dos atos processuais147; dentre outros (ABREU, op. p. 215). A Justiça Itinerante é competente para conhecer das causas cíveis de menor complexidade. Inserem-se nessa ideia as relacionadas na Lei nº. 9.099/95, as consumeristas, relativas a inquilinato e vizinhança, família, estado, e capacidade das pessoas, sucessões e registro civil. Trata-se de competência funcional por três razões: 1) havendo óbice processual intransponível o processo será redistribuído a vara que originariamente dele conheceria; 2) havendo intenção de recorrer da sentença, o recurso será processado no foro originariamente competente; 3) a Justiça Itinerante não executa seus próprios julgados. Na seara extrajudicial, a Justiça Itinerante tem como atribuição a assistência jurídica pré-processual através da orientação jurídica aos necessitados. Essa função é atribuída a Defensoria Pública, mas, pode ser delegada aos auxiliares da Justiça. Comparecendo a parte, ela deve receber orientação jurídica para obter a solução de seu problema. Se a causa é de competência da Justiça Itinerante, já deve ser marcada audiência para data em que a unidade móvel retornar ao local, providenciando-se a citação/intimação do réu para nela comparecer com documentos e testemunhas, caso haja instrução processual. O autor deve proceder da mesma forma. [...] 143 Art. 53. A execução de título executivo extrajudicial, no valor de até quarenta salários mínimos, obedecerá ao disposto no Código de Processo Civil, com as modificações introduzidas por esta Lei. [...] § 4º Não encontrado o devedor ou inexistindo bens penhoráveis, o processo será imediatamente extinto, devolvendo-se os documentos ao autor. 144 Vide artigo 17 da Lei nº. 9.099/95. 145 Art. 18. A citação far-se-á: [...] § 2º Não se fará citação por edital. 146 Art. 23. Não comparecendo o demandado, o Juiz togado proferirá sentença. 147 Art. 28. Na audiência de instrução e julgamento serão ouvidas as partes, colhida a prova e, em seguida, proferida a sentença. 154 Atribui-se ainda a esta Justiça a missão de conciliar os conflitos apresentados pelas partes, haja vista ser sua prioridade. Trata-se de conciliação pré-processual, pois, o processo judicial ainda não foi instaurado. Nessa oportunidade, o conciliador atuará com objetivo de aproximar as partes, incitando-as a dialogar e negociar em conjunto uma solução para o conflito. Se positiva a conciliação, deverá ser homologada imediatamente pelo juiz presente na unidade móvel e valerá como título executivo judicial em caso de descumprimento. Na esfera jurisdicional, instaura-se o processo judicial caso não haja êxito na conciliação. Ato contínuo, o autor formula seu pedido, de forma simples, sucinta e oral, através de defensor público presente na unidade móvel. Na mesma oportunidade, o réu apresenta resposta ao pedido inicial, também de forma sucinta, simples e oral, através de defensor público presente na unidade móvel, diverso do qual defenderá os interesses do autor. Em havendo necessidade de produção de provas, o juiz declara aberta a fase de instrução e julgamento e colhe a prova oral. Se desnecessária a produção de provas, profere sentença em audiência. Caso a parte vencida pretenda recorrer da sentença prolatada, o feito deverá ser encaminhado ao foro competente, considerando que a Justiça Itinerante está autorizada somente a conciliar, instruir e julgar as causas que lhe são submetidas148. O mesmo raciocínio se aplica também ao que se refere à execução dos julgados proferidos. Infere-se que na Justiça Itinerante a conciliação é o objetivo precípuo, a prioridade. Sendo inviável, após incessante tentativa, é que se instaura o processo, cujo procedimento é simples, informal, célere e gratuito. É, verdadeiramente, alternativa a ser priorizada pelo Poder Judiciário, pois, garante o acesso à Justiça aos excluídos e marginalizados da Jurisdição oficial. A nosso ver, é preciso editar-se lei federal regulamentadora do processo e procedimento 148 da Justiça Itinerante, delegando aos Tribunais apenas a A interposição de Recurso perante a Justiça Itinerante torna-se óbice processual intransponível, considerando vigorar nesta o princípio da concentração dos atos processuais em audiência. A solução de remeter o feito ao Juizado Especial local tem fundamento no art. 2º, § 1º da Resolução nº. 10/2004, editada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e que dispõe sobre o funcionamento da Justiça Itinerante. Aludido dispositivo estabelece: “Para efeito de registro, distribuição, guarda e arquivo a Justiça Itinerante será adjunta à Vara mais antiga de Família da Comarca-sede, ou à Vara Única em se tratando de Comarca de 1ª Entrância. Na hipótese de óbice processual intransponível para a solução eficiente do conflito no âmbito da Justiça Itinerante o feito será encaminhado à Justiça comum”. 155 regulamentação de questões administrativas. Assim, haverá uniformização, além de obrigatoriedade de instalação em todos os estados do Brasil. 5.4 Algumas experiências de Justiça Itinerante no Brasil A Justiça Itinerante tornou-se garantia constitucional do cidadão com a Emenda Constitucional nº. 45/2004 quando foi positivada na Constituição Federal. Não obstante, alguns tribunais estaduais já haviam posto em prática a Justiça descentralizada, institucionalizando-a como projeto de ampliação do acesso à Justiça. Deste modo, torna-se imprescindível mencionar algumas experiências de Justiça Itinerante, visando difundir essa prática. Importante salientar que nem todos os estados brasileiros criaram e instalaram a Justiça Itinerante, razão pela qual uma das propostas do presente trabalho é a de que seja editada lei federal impondo sua instalação. 156 No Estado do Amapá, pioneiro dessa prática descentralizadora149, a Justiça Itinerante foi instalada no ano de 2005 e é executada tanto no primeiro quanto no segundo grau de jurisdição e tem abrangência estadual, com atuação em todas as comarcas. No primeiro grau, a Justiça Itinerante Terrestre corresponde à realização de jornadas periódicas em comunidades, vilas, distritos ou municípios acessíveis por terra e a Justiça Itinerante Fluvial é realizada em comunidades, vilas, distritos ou municípios acessíveis exclusivamente por água, com uso de embarcações próprias ou alugadas150. Destinada à busca de composição dos conflitos na área do Direito Cível e de Família, considerando que o objetivo principal da Justiça Itinerante é obter a conciliação das partes, o Estado de Amazonas, por seu Tribunal de Justiça, criou a 149 “A prática de levar jurisdição às comunidades interioranas é antiga na Justiça do Estado do Amapá e remonta a 1992. Naquele ano o juiz José Luciano de Assis, então titular da comarca de Mazagão, utilizando-se de uma embarcação da prefeitura dele município, iniciou essa atividade indo a várias localidades do município prestando atendimento jurídico às comunidades ribeirinhas, como registro de nascimento, separação de sociedade de fato (separação de companheiros) e alimentação (família). O serviço teve prosseguimento com o juiz Reginaldo Gomes de Andrade a frente daquela comarca. Em 1994, na Comarca de Serra do Navio, tendo a juíza Eleuza Muniz como titular, foi iniciada a Justiça itinerante terrestre, quando a equipe do judiciário, um defensor público e um promotor de Justiça, percorriam, de carro, comunidades daquele município e de Pedra Branca do Amapari, levando os serviços da Justiça. Casamentos, registros de nascimento e reclamações cíveis diversas, eram os mais comuns. Na Comarca de Amapá, duas vezes por ano, o Judiciário em parceria com a Prefeitura do município, empreende uma jornada até a Vila de Sucuriju, área de preservação ambiental, onde reside uma comunidade de pescadores, localizada no Cabo do Norte, com cerca de 700 pessoas praticamente isoladas da civilização, vivendo graves dificuldades, até mesmo de abastecimento d’água, que precisa ser coletada durante o período chuvoso . O acesso somente é possível por helicóptero ou via fluvial. A jornada da Justiça é feita em um barco, dependendo de marés, chegando a gastar mais de vinte quatro horas da sede do município até a Vila de Sucuriju. O Judiciário resolve os conflitos de interesse enquanto a Prefeitura leva atendimento médico à população. Em Oiapoque, o Juizado itinerante é feito em catraias, com o Juiz e sua equipe indo até as mais distantes comunidades, inclusive às aldeias indígenas, enfrentando inúmeras corredeiras, muitas vezes tendo que arrastar a embarcação sobre as pedras. Na Comarca de Macapá a Justiça Itinerante Fluvial e a Justiça Itinerante Terrestre foram implantadas em 1996, durante a gestão do Desembargador Mário Gurtyev de Queiroz como presidente do Tribunal de Justiça do Estado. A primeira Jornada Fluvial com destino à região do Bailique saiu do Porto de Santana no dia 22 de março de 1996 numa embarcação cedida pela Marinha. No mesmo ano, foi adquirido um ônibus com ambiente climatizado, dotado de salas de audiência e computadores para a execução da Justiça Itinerante Terrestre. A viatura passou a percorrer bairros periféricos, vilarejos e municípios vizinhos próximos da capital, levando a prestação jurisdicional a pessoas que, em razão da distância, enfrentam dificuldades para se deslocar até os fóruns. As jornadas fluviais atraíram a atenção da mídia nacional e internacional. Grandes veículos de comunicação do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos já publicaram matéria sobre essa forma rápida, eficiente e acessível de distribuir Justiça. O primeiro estrangeiro a cobrir uma jornada fluvial à região do Bailique, foi o jornalista americano Matt Muffet, do jornal Nova-iorquino Waal Street Journal, que publicou uma pagina sobre o assunto. Em seguida vieram os alemães Mathias Matussek (repórter) e Michael Ende (fotógrafo) da revista Der Spiegel. Uma equipe da N-TV (um canal de notícias da Alemanha, associada à americana CNN) e um repórter do Jornal americano Washington Post já estiveram na Jornada Fluvial. equipes da Rádio BBC de Londres, da televisão australiana e da canadense também já cobriram a Justiça itinerante fluvial”. Disponível em: <http://www.tjap.jus.br>. Acesso em: 30 agosto, 2009. 150 Informações disponíveis em: <http://www.tjap.jus.br> Acesso em: 30 agosto, 2009. 157 Justiça Itinerante em novembro de 2003. Funciona em ônibus adaptado e preparado para levar a Justiça e é composta por um juiz, conciliadores, atendentes judiciários e pessoal de apoio, preparados para atender a população de forma gratuita, eficiente e desburocratizada. A iniciativa visou diminuir e desafogar o acúmulo de processos nos Juizados Especiais e Varas de Família buscando o enxugamento das pautas e a celeridade processual151. A Justiça Paulista instalou no ano de 1998 o Juizado Itinerante. O Juizado é composto por dois trailers que visitam bairros da cidade com endereços préestabelecidos facilitando o acesso da população à Justiça. Um dos veículos é utilizado para fazer o atendimento e o outro retorna ao local cerca de um mês depois para as audiências agendadas. Tem a mesma competência dos Juizados Especiais cíveis, ou seja, atende causas de até 40 salários mínimos, não havendo, para causas de até 20 salários, necessidade de se constituir advogado. As questões mais frequentes referem-se a Direito do Consumidor, planos de saúde, cobranças em geral, conflitos de vizinhança e acidentes de trânsito. O sistema não aceita reclamações trabalhistas. Os trailers são equipados com notebooks, impressoras e máquinas de reprodução. Se a questão não puder ser resolvida pelo juizado, os atendentes informam os locais e procedimentos corretos para a solução do problema. Qualquer pessoa maior de 18 anos portadora de RG pode procurar o trailer de atendimento e entrar com uma ação. É preciso saber o nome e o endereço do réu. Pessoas jurídicas não podem fazer parte desse tipo de processo como autores. O autor relata o seu caso e o atendente faz um resumo. Ele sai do trailer sabendo o dia da audiência, realizada no prazo médio de um mês quando o itinerante retornará ao local. No dia, as duas partes se apresentam ao juiz para a audiência. Caso o réu apareça com advogado, Procuradores do Estado auxiliam o autor durante o julgamento. Havendo a possibilidade de conciliação, os termos do acordo são lançados na sentença. Se não, o juiz ouve o autor, o réu, as testemunhas e dá a sentença, passível de recurso na Justiça comum. É importante ressaltar que todos que procuram o trailer saem do local com uma resposta. Se a questão não puder ser resolvida pelo Juizado Itinerante são fornecidas informações sobre os locais e procedimentos para o encaminhamento e solução do problema152. 151 152 Informações disponíveis em: <http://www.tjam.jus.br> Acesso em: 30 agosto, 2009. Informações disponíveis em: <http://www.tjsp.jus.br>. Acesso em: 31 agosto, 2009. 158 No Estado do Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça disponibiliza quatro ônibus equipados com computadores e demais materiais e mobiliário que permitem que eles funcionem como cartórios móveis. Como o projeto tem a parceria da Defensoria Pública Geral do Estado e do Ministério Público do Estado, há possibilidade de que o processo seja finalizado no mesmo dia em que o requerente procura atendimento. Isso porque o ônibus funciona conectado à rede de informações do Tribunal de Justiça, compartilhando informações processuais de todo o Estado. Os ônibus atendem uma vez por semana os municípios de Areal, Carapebus, Comendador Levy Gasparian, Macuco, Tanguá e Duque de Caxias. Há previsão de que outros municípios do estado que possuem grande contingente populacional sejam também atendidos pelo projeto153. A Justiça Itinerante sul-mato-grossense foi implantada no ano de 2001 através da criação e instalação da 8ª Vara do Juizado Especial na comarca de Campo Grande. Funciona num ônibus equipado para atender os conflitos de competência dos Juizados Especiais bem como as causas de família, estado, capacidade das pessoas e sucessões, compondo o conflito de interesses exclusivamente por meio da conciliação, que é homologada com força de sentença. Caso não aconteça a composição do conflito mediante acordo entre as partes, o respectivo processo é redistribuído a uma das varas que seria originariamente competente para processar e julgar o respectivo feito. Homologado o acordo, o respectivo processo também é encaminhado à Vara do Juizado originariamente competente para o processo, cientificando-se às partes onde tramitará a execução na hipótese de descumprimento da composição homologada154. Com as experiências de Justiça Itinerante relatadas, verifica-se que o Poder Judiciário deve ir onde está a demanda155. Trata-se de postura arrojada, que deve ser adotada porque concretiza direitos fundamentais e humanos e aprimora o exercício da cidadania através da participação popular na administração da Justiça. A simplicidade, informalidade, e busca pela celeridade são traços 153 Informações disponíveis em: <http://www.tjrj.jus.br>. Acesso em 31 agosto, 2009. Informações disponíveis em: <http://www.tjms.jus.br>. Acesso em 31 agosto, 2009. 155 “O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Edson Vidigal, disse que ‘a Justiça deve ir onde está a demanda’ para justificar a defesa da ampliação do quadro de varas federais e estaduais no País. Segundo o ministro, a Emenda Constitucional nº 45, que tratou da reforma do Poder Judiciário, permitiu a criação de juizados itinerantes. Para o presidente do STJ, essa é a solução para se ter um Judiciário mais ágil, e não a criação de novos Tribunais Regionais Federais (TRFs) [...].” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. A Justiça deve ir onde está a demanda. Disponível em http://www.stj.jus.br. Acesso em: 31 agosto, 2009). 154 159 característicos desta Justiça cuja efetividade é latente nos estados onde já foi instalada156. 6 CONCLUSÃO A proposta central do presente trabalho cingiu-se a investigar causas da crise de acesso à Justiça, propondo a Justiça Itinerante como alternativa de superação. 156 Uma das grandes procuras pelos serviços da 8ª Vara do Juizado Especial – Justiça Itinerante e Comunitária - em Campo Grande são de casos que envolvem questões de casamento, divórcio e separação, o que pode ser percebido num balanço deste tipo de ações entre os anos de 2006 a 2009. No ano de 2006, do número de processos na Justiça Itinerante que resultaram em acordo, foram 3.448 reconhecimentos da união estável e sua conversão em casamento; 570 divórcios e 690 separações judiciais - totalizando 4.708 ações relacionadas ao tema. Em 2007, foram 3.914 reconhecimentos da união estável e sua conversão em casamento; o número de divórcios baixou um pouco para 472, como também o de separações judiciais, que ficou em 638. O total no ano foi de 5.024 feitos tramitados na Justiça Itinerante em relação ao tema. Quem procurou atendimento na Justiça Itinerante em 2007 foi a comerciária Martha de Oliveira Lemes. Moradora do bairro Santa Emília, Martha buscou o ônibus da Itinerante em uma segunda-feira para pedir esclarecimentos sobre separação e na semana seguinte já ocorreu a audiência na qual ela e seu ex-companheiro entraram em acordo para a divisão dos bens, além de determinar a guarda dos três filhos. Martha comenta que o serviço foi muito rápido e simples. Em uma negociação tranquila foi estabelecida a divisão dos bens e a guarda das crianças, em comum acordo. Cada um já saiu do atendimento do ônibus com uma cópia da audiência. Um mês depois, Martha foi retirar o documento original no Cartório da 8ª Vara, na Av. Bandeirantes, 2261. Tudo muito simples e eficiente, concluiu Martha. No ano passado, resultaram em acordo 3.963 ações de reconhecimento da união estável e sua conversão em casamento, além de 505 divórcios e 735 separações judiciais que resultaram em 5.203 processos em 2008 sobre questões que envolvem casamento, divórcio e separação. E o balanço parcial de 2009 aponta que já foram realizados 1.841 reconhecimentos da união estável e sua conversão em casamento, 272 divórcios e 413 separações judiciais. Um dos casais que procurou o serviço este ano foi Auro Sávio do Nascimento e Marília Capellini. Eles formalizaram a união no dia 10 de fevereiro no atendimento do ônibus da Justiça Itinerante no Bairro Coronel Antonino. Para Auro, a Justiça Itinerante é um serviço que atrai o público campo-grandense pela facilidade e rapidez no atendimento, além de não gerar nenhum custo à população. Em fevereiro não foi a primeira vez que Auro utilizou os serviços da Itinerante. Em 2000, ele procurou os serviços do ônibus para a separação judicial do primeiro casamento e posterirormente para conversão desta separação em divórcio. "Cada vez que precisei dos serviços da Justiça Itinerante fui muito bem atendido. Acredito que esta é uma das melhores iniciativas do judiciário sul-mato-grossense", disse ele. [...] Critérios - Para que seja feito o reconhecimento da união estável e a sua conversão em casamento, é necessário que o casal compareça à Justiça Itinerante com duas testemunhas que confirmem que o casal vive junto há pelo menos um ano. As testemunhas não podem ser parentes e devem estar munidas de documento de identidade ou documento com foto. Além disso, é necessária a apresentação das seguintes documentações: cédula de identidade; CPF; certidão de nascimento (se for solteiro); certidão de casamento com averbação de divórcio (se for divorciado); certidão de casamento e óbito (se for viúvo) e certidão de nascimento dos filhos em comum (se houver). O casamento é realizado no ato. A certidão é emitida pelo cartório extrajudicial três meses após a audiência e deve ser retirada no cartório da 8º Vara do Juizado Especial da Justiça Itinerante. O casamento não pode ser realizado por procuração, em função da obrigatoriedade da presença de ambos os cônjuges na audiência. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MATO GROSSO DO SUL. Justiça Itinerante agiliza casamentos, divórcios e separações. Disponível em: <http://www.tjms.jus.br>. Acesso em 31 agosto, 2009. 160 Os diversos movimentos de acesso à Justiça na história permitiram constatar que por muito tempo este direito foi assegurado apenas formalmente. Garantia formal é garantia imaginária, que aliena e mantém sob estado de ignorância absoluta, razão pela qual se verifica que no curso da história, a busca pela Justiça já estava em crise e o acesso a ela comprometido. A democracia vigente na Grécia antiga conferia a ideia de acesso à Justiça amplo e irrestrito, porém, o sistema processual era arcaico e desorganizado. Em Roma, as desigualdades sociais existentes no império obstavam os cidadãos romanos e estrangeiros de terem seus conflitos examinados pelo sistema oficial de Justiça. No Período Medieval, a ordem jurídica pluralista, segmentada por uma dualidade de ordenamentos legais, acabou por gerar uma carência ao indivíduo, que precisava superar mais de um poder jurisdicional para ver seu direito assegurado. Já no Período Moderno houve enfraquecimento da Jurisdição pela veemente limitação de poderes do juiz, que como dito, não passava de escravo da lei. No Período Contemporâneo, o acesso à Justiça não se traduz apenas em acesso ao Poder Judiciário, mas, compreende o acesso a ordem jurídica justa, que somente se concretiza se houver igualdade de oportunidades no acesso. O acesso à Justiça é direito natural, valor inerente à pessoa humana. Adquiriu status de direito fundamental conforme se verifica no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988. É direito humano ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, núcleo central de toda ordem jurídica nacional e internacional. O respeito aos direitos humanos e fundamentais é pilastra mestra na construção de um verdadeiro Estado de Direito democrático e sua constitucionalização não significa mera enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, a partir dos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela diante do Poder Judiciário. O acesso à Justiça, portanto, não pode ser confundido com o simples acesso formal ao Judiciário. Assim pensa o leigo e o jurista desavisado. Não se resume na existência de um ordenamento jurídico que seja capaz de regular as atividades individuais e sociais, mas, ao mesmo tempo, deve ter aptidão de distribuir legislativamente, de forma justa os direitos e faculdades substanciais. Nessa ótica, o acesso à Justiça deve ser compreendido no sentido de toda atividade jurídica passando pela criação de normas, sua interpretação, integração e aplicação, com 161 Justiça, isto é, o acesso deve ser compreendido num sentido abrangente que vai desde a criação das normas até sua concreta e justa aplicação. Numa perspectiva de Justiça social, acesso à Justiça compreende o acesso à saúde, educação, lazer, cultura, moradia, alimentação e tantos outros direitos fundamentais que são verdadeiras liberdades positivas de um Estado que apregoa ser “Democrático” e de “Direito”. Assim, se o Poderes da República cumprissem o mister constitucional que lhes foi atribuído, garantindo esses direitos ao cidadão, inegavelmente que o número de demandas reduziria-se drasticamente. Basta verificar na mídia quantas ações versam a respeito de direitos da saúde, educação, moradia, entre outros. O acesso à Justiça é direito humano e fundamental indispensável à concretização plena do princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, aquele que não acessa a Justiça não pode ser denominado “cidadão” porque cidadania implica no exercício de direitos e participação efetiva na sociedade. Ampliar o acesso à Justiça deve ser prioridade dos Poderes de Estado; restringi-lo a poucas pessoas caracteriza-se violação da dignidade da pessoa humana. Os dados estatísticos investigados apontam para a existência de crise no sistema oficial de Justiça. A crise de acesso à Justiça não é exclusivamente jurídica, e nem mesmo pode o Direito resolvê-la. Fatores sociais, políticos e culturais agravam a crise e dependem de iniciativas do Poder Executivo e Legislativo para serem solucionadas ou amenizadas. Em verdade, a crise do acesso à Justiça ocasiona a descrença nas instituições estatais, nesse caso, no Poder Judiciário, que detém a função constitucional de pacificar os conflitos sociais com Justiça. Sem exaurir o tema, descreveram-se algumas causas já constatadas pela doutrina que contribuem para o agravamento da crise e que, dentro da abordagem pretendida, entende-se imprescindível destacar. Ainda hoje, o custo do processo afasta o cidadão da Jurisdição. Os dados estatísticos demonstram que grande parcela da população brasileira vive abaixo da linha de pobreza e não tem alimentação, vestuário, moradia, saúde e educação, direitos básicos que o Estado se comprometeu a garantir a todos, indistintamente. Como custearão o processo? A nosso ver, Justiça paga é Justiça aristocrática e elitista porque somente as 162 pessoas ricas podem acessá-la. E veja o contraste: o Poder Público, litigante em potencial, é isento de custas e despesas do processo. Se os tributos arrecadados fossem bem geridos, certamente seria possível prestar o serviço jurisdicional gratuito, ou a custo baixo, de maneira a abranger a todos. Não bastasse as custas e despesas processuais, a parte precisa constituir advogado para ingressar com a demanda. Quando esse advogado é público, o serviço prestado é gratuito. No entanto, não há advogados públicos suficientes nem Defensoria Pública em todos os estados brasileiros, razão pela qual, muitos ficam desassistidos e renunciam ao direito de ir à Justiça. A duração do processo e a morosidade da Justiça constituem-se em outra limitação ao acesso à Justiça. É que, além de pagar para demandar, arcar com honorários de advogado e correr risco de perder a demanda, a parte precisa aguardar anos a fio para obter a certeza do seu direito ou cumprimento forçado da obrigação. A morosidade causa desestímulo ao jurisdicionado, que só de pensar quantos anos levará o processo desiste de buscar seu direito. Nessa trilha, torna o processo um fim em si mesmo já que quando a sentença de mérito é proferida o direito das partes já sucumbiu ao tempo. Tais causas obstam a plenitude do acesso à ordem jurídica justa e devem ser alvos de políticas públicas do Poder Judiciário, aptas a combater o dilema da morosidade da Justiça. Mas não é só. O desconhecimento do direito posto é causa de limitação ao acesso à Justiça. Nesse ponto, a crise de acesso à Justiça reflete a crise à informação. No Brasil, o grau de instrução é baixo e a qualidade do ensino nas escolas, principalmente as de ensino fundamental, é questionável. O Poder Público não se preocupa como deveria com a educação formal, de base, porque prefere manter os indivíduos em estado de alienação e ignorância, o que facilita a legitimação no poder e evita revoltas e pressões populares. A orientação jurídica pré-processual, embora existente, é falha porque não consegue atender a todos que dela necessitam. É de se reputar o desconhecimento de direitos como uma das limitações mais graves do acesso à Justiça. Aquele que não conhece seus direitos encontra-se excluído; é “não-cidadão”, pois a educação é pressuposto da cidadania. O indivíduo que não conhece seus direitos é facilmente manipulado e mantido em erro pelos detentores do poder. Assim, nunca terá condições de romper com o jugo desigual das relações jurídicas em que sempre prevalece os interesses dos mais poderosos, normalmente juridicamente bem 163 assessorados. Como última limitação ao acesso à Justiça, destaca-se a questão psicológica. Significa que o cidadão pobre, mais humilde, sente-se intimidado em procurar a Justiça por medo, desconfiança, ignorância, falta de condições econômicas, etc. Encontra dificuldades de toda sorte para contratar advogado, pois tem a falsa ideia de que referido profissional está à disposição apenas dos ricos. Não bastasse, precisa esperar anos a fio para obter um pronunciamento jurisdicional. A crise de acesso à Justiça é vencida facilmente se a Justiça for até o cidadão mostrando-se acessível a todos. A descentralização da prestação dos serviços jurisdicionais e o fortalecimento dos mecanismos extrajudiciais de solução dos conflitos são alternativas viáveis e positivas ao regime democrático pois encontram alicerce no pluralismo jurídico e democratizam a Justiça de modo a efetivá-la, não apenas formalmente, mas, através da distribuição verdadeira e plena de Justiça. A toda evidência, constata-se que o Poder Judiciário não tem condições de centralizar a prestação do serviço jurisdicional. A crise da Justiça exclui de apreciação do Poder Judiciário os conflitos ditos “menores” e viola o acesso à Justiça, mormente das camadas mais pobres da sociedade. Assim, a descentralização da Justiça impõe a relativização do monopólio da Jurisdição estatal. Nesse viés, a descentralização consiste no reconhecimento de soluções alternativas aos conflitos, passíveis de romper com a forma tradicional de prestação do serviço jurisdicional e de distribuição de Justiça. A descentralização induz a uma adaptação da forma de se fazer solucionar conflitos de interesses ante os novos tempos e novos direitos: esta Justiça é conciliadora e sai dos gabinetes dos fóruns indo de encontro ao cidadão, buscando solucionar seus problemas sem que ele precise, formalmente, provocar a manifestação do Poder Judiciário para prestar a tutela jurisdicional. A descentralização da Justiça resgata a imagem do Poder Judiciário e a solidifica junto ao povo pelo trabalho itinerante que realiza. Essa prática deve ser defendida por todos aqueles que pretenderem ver o acesso à Justiça ampliado, além de uma Justiça aberta e próxima da população. O objetivo da descentralização é ampliar o acesso à Justiça e instituir uma 164 Justiça mais simplificada, acessível, pronta para a solução dos conflitos e, notadamente, adaptada à realidade brasileira. Dentre as medidas de descentralização, merecem relevo duas: o Sistema dos Juizados Especiais, pois constitui-se em alternativa descentralizada de solução dos conflitos eficiente e eficaz e os meios alternativos de solução dos conflitos, por permitirem o desafogamento do Judiciário e resolverem de forma rápida, simples e econômica os conflitos apresentados pelos indivíduos, permitindo a eles uma participação efetiva na solução. A experiência dos Juizados surgiu através da Lei nº. 7.244/84 que instituiu os Juizados de Pequenas Causas, objetivando evitar o que Watanabe denominou de litigiosidade contida. Com um procedimento simples, informal e gratuito, constituiu-se em alternativa interessante e viável de superação da crise de acesso à Justiça. Ocorre que até 1988, os Juizados de Pequenas Causas funcionaram precariamente e nem todos os estados brasileiros o instalaram. Assim, a Constituição Federal, promulgada nesse ano, estabeleceu a obrigatoriedade de instalação e realizou algumas modificações legislativas para melhorar o sistema já então existente através das Pequenas Causas. Tardiamente, a Lei nº. 9.099/95 foi editada para regular os Juizados Especiais, fixando sua competência para processamento e julgamento de causas cíveis de menor complexidade, cujo valor não ultrapasse 40 salários mínimos, além de crimes de menor potencial ofensivo. A ideologia dos Juizados Especiais é fiel ao movimento de ampliação do acesso à Justiça. Seus princípios são a celeridade, informalidade, oralidade, economia processual, havendo gratuidade de Justiça no primeiro grau de jurisdição. Um dos aspectos mais importantes dos Juizados Especiais é o relevo dado à conciliação. Conclui-se que os Juizados Especiais são um marco e um divisor entre a Justiça clássica e a contemporânea e se transformaram na porta principal de inclusão social e cidadã, principalmente para as classes menos abastadas e excluídas da Jurisdição. Permite a participação popular na administração da Justiça, fortalecendo a legitimidade da Jurisdição no Estado Democrático, À experiência frutuosa dos Juizados Especiais, ainda como mecanismo de superação da crise de acesso à Justiça, somam-se os meios alternativos de solução dos conflitos. Dentre a conciliação, a mediação e arbitragem, o destaque vai para o 165 primeiro meio alternativo, por ser um dos pilares da Justiça Itinerante. A conciliação é meio de solução dos conflitos extremamente importante não só para a superação da crise de acesso à Justiça, como também para a pacificação social. Através dela, mediante concessões mútuas, os interessados estabelecem entre si a solução que melhor atenda a ambas, sem que haja total renúncia ou submissão de uma parte a outra. Desta maneira, a conciliação guarda característica essencial à concretude plena do acesso à Justiça: a participação dos contendores. Nessa linha de entendimento, é certo que a conciliação se consubstancia em poderoso instrumento de participação popular na administração da Justiça, sendo capítulo amplo do tema da democracia participativa. A conciliação pode ser praticada no âmbito judicial e extrajudicial, pelo juiz de direito ou conciliador nomeado para a função, a depender da instauração ou não de processo. É meio alternativo institucionalizado pelo Poder Judiciário através do movimento “Conciliar é legal”, que apresenta resultados satisfatórios. A verdade é que o monopólio da Jurisdição é um dogma que deve ser repensado, de forma que a solução dos conflitos através da conciliação, mediação e arbitragem torna-se medida inevitável e indispensável diante da crise judiciária instalada na sociedade. Os meios alternativos garantem efetivo acesso à Justiça, pois conferem tratamento equânime aos indivíduos. Além disso, permitem aos participantes a intervenção direta nas decisões tomadas e garantem a inclusão social, numa perspectiva democrática e participava, pois a Jurisdição só se torna legítima quando permite a participação popular na administração da Justiça. Alternativa de superação da crise de acesso à Justiça que merece enfoque especial no presente trabalho é a Justiça Itinerante, tema recentíssimo e que pouco foi explorado pela doutrina. A Justiça Itinerante encontra suporte na descentralização do serviço jurisdicional e pressupõe a participação popular, vez que tem como ponto central a solução dos conflitos através da conciliação. A Justiça que se desloca até o cidadão e busca a solução do conflito por meio da conciliação evita a instauração do processo. A aproximação das partes com vistas ao diálogo, à negociação e à busca pelo consenso, constitui exímio instrumento de cidadania, reduzindo a distância entre cidadão e Judiciário, seja pela questão econômica, seja pela questão cultural, seja pela questão psicológica. 166 Uma Justiça que vai de encontro ao indivíduo e prima pelo consenso mútuo produz resultados mais satisfatórios, considerando que a solução de conflitos com esteio em técnicas não adversariais aponta para uma efetividade longe de ser alcançada pela via oficial de Jurisdição. A Justiça Itinerante fortalece o Poder Judiciário e fomenta o resgate das raízes democráticas do Estado de Direito. Sob nosso alvitre, embora haja divergência, compete à Justiça Itinerante conciliar, processar e julgar causas cíveis de menor complexidade. Inserem-se as causas relacionadas na Lei nº. 9.099/95, as consumeristas, relativas a inquilinato e vizinhança, família, estado, e capacidade das pessoas, sucessões e registro civil. A nosso ver, a competência desta Justiça é funcional. Atua numa unidade móvel, terrestre ou fluvial, equipada com materiais de expediente necessários a prestação do serviço jurisdicional, nos moldes de um cartório judicial convencional, sendo composta pelo juiz (togado) e auxiliares da Justiça (juízes leigos e conciliadores), além de promotor de Justiça, defensores públicos, assistente social, psicólogo e oficial de Justiça. Entendemos que deve ser atribuição da Justiça Itinerante a assistência jurídica pré-processual através da orientação jurídica aos necessitados. Essa função é atribuída à Defensoria Pública, mas, pode ser delegada aos auxiliares da Justiça presentes na unidade móvel. Seu procedimento processual é célere, informal, simplificado e gratuito, iniciando com a conciliação, prosseguindo com audiência una onde haverá instrução processual e sentença. As experiências de Justiça Itinerante examinadas apontam para uma efetividade distante de ser alcançada pela via normal de Jurisdição. Assim, concluímos que a Justiça Itinerante deve ser elevada à categoria de política pública essencial do Poder Judiciário e deve ser contemplada com recursos orçamentários específicos, destinados a manter a prestação desse importante serviço jurisdicional. É preciso editar lei federal que uniformize o procedimento processual da Justiça Itinerante e imponha sua instalação em todos os Estados do País. Desta feita, não paira dúvida de que a Justiça Itinerante, além de fortalecer o Estado Democrático, é elemento essencial à promoção da cidadania plena e da 167 dignidade da pessoa humana, haja vista a perspectiva inclusiva e participativa que a compõe. A Justiça Itinerante é alternativa de superação da crise da Justiça e pode contribuir para diminuir as limitações do acesso a ela. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU. G. C. M. A Duração Razoável do Processo como Elemento Constitutivo do Acesso à Justiça. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. 154 p. ABREU, P. M. Acesso à Justiça e Juizados Especiais: O desafio histórico da consolidação de uma Justiça cidadã no Brasil. 2. ed. rev. e atual. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. 282 p. AGUIAR, R. A. R. O que é Justiça: Uma abordagem dialética. 5. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1999. 123 p. ALMEIDA, G. A.; BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia de Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. 559 p. 168 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3. ed. 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