1 Seminário A Construção da Dimensão Humana Dignidade, Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais Comissão de Cidadania e Direitos Humanos 2 Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul Mesa Diretora da Assembléia Legislativa Do Estado do Rio Grande do Sul – 2001 Presidente Deputado Sérgio Zambiasi (PTB) 1º Vice-Presidente Deputado Francisco Appio (PPB) 2º Vice-Presidente Deputada Maria do Rosário (PT) 1º Secretário Deputado Alexandre Postal (PMDB) 2º Secretário Deputado João Osório (PMDB) 3º Secretário Deputado Paulo Azeredo (PDT) 4º Secretário Deputado Marco Peixoto (PPB) Comissão de Cidadania e Direitos Humanos Presidente Vice-Presidente Deputado Padre Roque Grazziotin (PT) Deputada Luciana Genro (PT) Titulares Deputada Maria do Rosário (PT) Deputado Francisco Áppio (PPB) Deputado Marco Peixoto (PPB) Deputado Manoel Maria (PTB) Deputado Elmar Schneider (PMDB) Deputada Iara Wortmann (PPS) Deputado José Ivo Sartori (PMDB) Deputado João Luiz Vargas (PDT) Deputado Vieira da Cunha (PDT) Deputado Aloísio Classmann (PTB) 3 Apresentação A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul (CCDH) realizou, em 30 de março de 2001, em parceria com o Movimento Nacional dos Direitos Humanos/RS, o seminário A Construção da Dimensão Humana - Dignidade, Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais. Em paralelo, promoveu a exposição fotográfica da Plataforma de Articulação e Diálogo das Agências Ecumênicas Européias e seus Parceiros Brasileiros (PAD), retratando perspectivas de atuação dos Direitos Humanos num contexto de violações e conquistas. O evento explicitou o compromisso da CCDH em contribuir para que os direitos econômicos, sociais e culturais se incorporem verdadeiramente ao conjunto único, indivisível e universal dos Direitos Humanos. Divulgar o conteúdo tratado no Seminário é o objetivo desta publicação, visando ampliar ao máximo o acesso a este debate e incentivar a reflexão sobre o lugar e a responsabilidade de cada um no Sistema de Proteção dos Direitos Humanos, especialmente dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Deputado Padre Roque Grazziotin 4 Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos A Construção da Dimensão HumanaDignidade, Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais Data: 30 de março de 2001 Local: Plenarinho da Assembléia Legislativa do RS 9h às 11h: Palestras Dra. Flávia Piovesan - Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho - Direitos Sociais 11h às 12h - Debate 14h às 16h - Mesa Redonda A Dimensão Humana na Consolidação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, através da manifestação dos Poderes Executivo: Mozar Arthr Dietrich - Depto. Cidadania da STACAS/RS Legislativo: Dep. Padre Roque Grazziotin - Presidente CCDHH/AL Judiciário: Dr. Rui Portanova - Desembargador Ministério Público: Dr. Claúdio Barros e Silva - Procurador-Geral de Justiça Plataforma DHESC: Professor Valdevir Both - MNDH 16h15min às 18h - Debate e encaminhamentos 18h - Encerramento - Exposição Fotográfica PAD Data: de 26 a 30 de março de 2001 Local: Espaço Novos Talentos - Assembléia Legislativa Direitos Humanos no Brasil e na Europa: Perspectivas de atuação num contexto de Violações e Conquistas 5 - Exposição organizada pela Plataforma de Articulação e Diálogo das Agências Ecumênicas Européias e seus Parceiros Brasileiros (PAD), composta de 84 fotografias, retratando as condições de vida de cidadãos e cidadãs brasileiros e de vários países europeus. Direito Social e seus significados, o princípio da alteridade José Carlos Moreira Da Silva Filho A proposta que me foi feita é no sentido de tratar do tema dos direitos sociais, em função da discussão do Pacto dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais. Na verdade, o título dessa conferência seria o direito social e seus significados, o princípio da alteridade. Inicialmente vou explicar um pouco esse título e, ao mesmo tempo, dar notícias sobre o sistema da exposição e das etapas que vamos procurar vencer. Sem dúvida, agradeço a presença de todos e espero que consigamos construir um diálogo profícuo esta manhã. Embora a Dra. Flávia Piovesan ainda não possa estar presente, manifesto de antemão que é uma imensa honra poder figurar ao seu lado para discutir tema que considero de fundamental importância e de particular apreço. O título Direito social e seus significados, princípio da alteridade surgiu a partir de dois pontos. Primeiramente, de um trabalho que desenvolvi na Universidade Federal de Santa Catarina, onde fiz meu mestrado. Na ocasião, procurei estudar o pensamento da chamada filosofia da libertação latino-americana. Dentro dessa filosofia há inúmeras correntes, e procurei privilegiar o pensamento do filósofo argentino Enrique Dussel, que considero extremamente rico e fértil, para que, a partir dele, possamos fazer reflexões envolvendo aspectos atinentes aos direitos sociais. Talvez aqueles que fizeram o curso de Direito, estudam ou tenham interesse em ler texto jurídico, ou até mesmo quem não esteja nesse meio, podem ter percebido que quando se fala em direito social normalmente vem à tona uma série de significados e sentidos que muitas vezes são misturados entre si e não são divisados em sua especificidade. Esse esforço, fruto de uma pesquisa que desenvolvi na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, onde sou docente e coordenador do curso de Direito, procurou pontuar algumas direções que se encontram por trás desse rótulo, desse tema direito social. Percebi que nessas direções diferentes podemos encontrar um fundamento único e amplo que informa todas essas direções. Este fundamento é exatamente a outra parte do título da conferência, que é o princípio da alteridade. 6 Esse termo, essa significação vem exatamente das investigações que realizei em torno da filosofia da libertação latino-americana. O filósofo Enrique Dussel desenvolve o que ele chama de ética da alteridade – alter vem do outro – e vou procurar especificar esse sentido mais adiante. Desculpo-me pelo tom excessivamente acadêmico que possa adotar, é um traquejo, uma decorrência de lidar com a academia. Dedico-me quase que praticamente à universidade, mas espero que possa contribuir com alguns subsídios teóricos para tornar essa reflexão mais rica. É fundamental fazer um contexto do aparecimento da temática dos direitos sociais. Em seguida, começarei a divisar uma das direções que o termo direito social pode apontar; seria uma direção que poderia chamar de perspectiva sociológica ou caráter formal do direito social. De antemão já esclareço o que quer dizer. Muitas vezes quando se fala em direito social, além de enfocar determinados conteúdos que esses direitos devem abraçar, está-se fazendo referência à forma como as normas de conduta são produzidas na sociedade. O direito pode ser classificado como social, não apenas em função do conteúdo de justiça social que ele busque atingir, mas também pela forma como esse direito é elaborado. Essa questão traz à tona a discussão de uma nova teoria democrática que busque ir além da democracia representativa, perceber na sociedade as movimentações coletivas de grupos como movimentos sociais e visualizar nessa atividade política a produção de legítimos direitos. Existe essa perspectiva que coloca o enfoque de maneira muito mais intensa na forma de produção – por isso o temor formal – e não necessariamente no conteúdo que se esteja defendendo por intermédio daquela movimentação coletiva. Inúmeros autores procuraram aprofundar essa faceta, digamos, do direito social. No entanto, um destacou-se dando uma solidez teórica para o discurso do direito social e desenvolvendo seu discurso exatamente nessa época – que vou falar anteriormente a esse ponto – sobre o contexto de aparecimento de direito social. Refiro-me ao jurista russo, naturalizado francês, Jorge Sgorvitz. A partir dele muitos outros se colocaram. Num terceiro momento, vou procurar dar conta já num sentido que poderia ser chamado de material, ser classificado como ético-filosófico e identificado no tema dos direitos sociais. Neste sentido, vou trazer à tona as reflexões, dentre inúmeras que podem ser feitas nesse rótulo, sobre perspectivas ético-filosóficas do direito social, a filosofia do argentino Enrique Dussel, até porque outros autores já procuraram fazer uma ponte entre o pensamento desse filósofo e as reflexões sobre os direitos, especialmente os Direitos Humanos. Vou procurar dar conta do chamado aspecto material dos direitos sociais, ao comentar esse ponto. Quando se fala em direito social, também está-se fazendo 7 referência a um determinado conjunto de direitos que possui certas características e certos valores a preservar e a efetivar. Finalmente, não poderia deixar de ser, quando se fala em direitos sociais é de se dar conta da perspectiva constitucional dessa discussão. Vamos observar também a tradição dos direitos humanos, a discussão dos direitos humanos, até mesmo na antigüidade clássica e em outras culturas e ciclos culturais, como o ciclo cultural semita. Enfim, como o termo Direitos Humanos foi, sem dúvida alguma, popularizado e tornado célebre a partir do liberalismo, dos chamados direitos de primeiras dimensões e assim por diante, como vamos observar. Neste século, a doutrina constitucional alemã, procurando prestar maior efetividade ao que então se havia tido como uma mera declaração de princípios, ou ideais atrás do termo Direitos Humanos, ou declaração de direitos, procurou emprestar uma noção de maior eficácia jurídica aos Direitos Humanos, passando a chamá-los de direitos fundamentais, na medida em que eles integrassem a ordem constitucional das sociedades modernas. Vamos procurar desenvolver essa discussão dos direitos fundamentais no âmbito do direito constitucional, enfocando a nossa realidade constitucional e trazendo à tona pontos polêmicos como, por exemplo, o dos direitos sociais serem ou não considerados verdadeiros direitos fundamentais, que vêm bem ao encontro da discussão no âmbito internacional. Aliás, a professora Flávia Piovesan certamente vai abordar esses pontos. Essa discussão revela-se como mais um argumento a favor da noção de que os direitos sociais são indissociáveis em relação aos direitos individuais e que os Direitos Humanos devem ser vistos numa perspectiva global e indissociável. Esta discussão juridicamente se coloca especificamente no ponto do art. 60, § 4 que trata dos limites formais, a reforma constitucional, isto é, das chamadas cláusulas pétreas. No § 4º do art. 60 é dito que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir. E vem lá no inciso IV, os direitos e garantias individuais. Este termo deu espaço para que muitos juristas dissessem que apenas os direitos individuais fazem parte desse núcleo irreformável da Constituição, os direitos sociais não. Vamos analisar essa polêmica e apresentar argumentos favoráveis. A proposta, portanto, seria óbvia. Poderíamos ainda enunciar outros sentidos para o termo direito social, mas procurando divisar algumas direções básicas. Então, vamo-nos manter presos a essas aqui. Conforme o roteiro informado, primeiramente trataremos do contexto de aparecimento da temática do direito social, para que possamos ter um pouco melhor a noção das circunstâncias que envolveram as discussões sobre esse tema. Sem dúvida, poderíamos fazer um contexto diferente e, por exemplo, falar da 8 tradição, alguns juristas fazem isso. O jurista mexicano Jesus Antonio de la Torre Rangel, que também analisa o pensamento do filósofo argentino Enrique Dussel, observa que na tradição bíblica percebe-se os Direitos Humanos no sentido dos direitos sociais de forma muito mais evidente do que na tradição Ocidental, que na nossa tradição, liberal-democrática. Refere-se ao conceito de Mispá que, de acordo com os profetas, seria a proteção dos mais débeis. Na própria Bíblia, pode-se perceber uma tradição em busca da efetivação dos direitos sociais e uma preocupação com o pobre. Essa é uma das características primordiais dos chamados direitos sociais. Para que possamos visualizar melhor esse termo dentro da discussão dos Direitos Humanos na nossa sociedade Ocidental, vamos comentar sobre a prioridade no aparecimento dessa temática no século passado, dentro da esteira, da seqüência, dos chamados Direitos Humanos, a partir da tradição liberal. Na segunda metade do século XIX, graças, entre outros fatores, à Segunda Grande Revolução Industrial, uma série de novas circunstâncias na sociedade começaram a aparecer, denunciando a limitação e a incapacidade do discurso político social e econômico trabalhado até então pela sociedade liberal, do Estado liberal, do capitalismo concorrencial. Na medida em que novos atores começaram a aparecer na sociedade e novas demandas começaram a surgir com maior pujança, de modo que não pudessem ser atingidas ou satisfeitas pela visão do capitalismo liberal no seu início, do Estado liberal, isso causou o aparecimento e a necessidade de uma discussão teórica em prol de direitos que trouxessem um novo modelo de Estado, um novo modelo de pensamento político, econômico e de sociedade. Por exemplo, percebeu-se uma nova classe social com maior evidência, à medida em que os meios de produção começaram a passar por uma forte industrialização, gerando a classe do proletariado. De outro lado, o capitalismo concorrencial passou a dar maior ênfase ao plano de produção e não tão-somente ao plano de circulação das mercadorias como ocorria no capitalismo concorrencial do Estado liberal, dando, assim, maior ênfase também nas próprias relações de produção, que é uma característica do capitalismo industrial. Isso começou a gerar uma série de exigências de direitos que não eram vistos, nem integrados dentro do discurso liberal proveniente da Revolução Francesa e foi emblemático nas obras da época. Inclusive, o romance de Émile Zola, Germinal, retrata com bastante clareza de que modo os direitos trabalhistas simplesmente não eram atendidos e não tinham espaço dentro da visão política, econômica e social construída a partir da sociedade liberal de antanho. Começaram a surgir novos atores, trabalhadores e sindicatos, e o ânimo associativo tornou-se mais evidente à medida que as desigualdades, que escapavam da 9 explicação de mundo fornecida pela visão de mundo liberal, apareciam num caráter coletivizado. Essa é uma das razões pelas quais entendemos o direito social como direito coletivo. Isso é o direito social que veremos em última análise, como por exemplo, o direito dos trabalhadores passa pelo atendimento individual. Ao falarmos em direitos sociais, temos a idéia de coletivo ou de coletivização, porque as desigualdades, que são objeto de atendimento dos direitos sociais e do pensamento utópico, se dão coletivamente. Portanto, são frutos de uma visão mais realista da sociedade e menos idealizados. Os Senhores devem ter a noção de que a visão de mundo da sociedade liberal é uma visão idealizada, que parte de um contrato social e na qual as duas grandes figuras que a compõem são dicotômicas, ou seja, separadas entre si. De um lado, está o indivíduo que tem sua vontade, sua autonomia e onde todos são iguais; de outro, o Estado. A essa visão de mundo corresponde a divisão que até hoje informa, de certo modo, nossa maneira de ver a realidade política, que é a divisão entre sociedade civil e Estado. Não havia espaço para os grupos intermediários, os grupos coletivos, que se colocam, não em um plano idealizado do Contrato Social, de Rousseau, por exemplo, mas, sim, num plano concreto de desigualdades que surgem a partir dos papéis que cada um ocupa na organização econômica e social. Aliás, dentro do discurso clássico do liberalismo, os grupos intermediários, as associações e, inclusive o coletivo, era visto como um ambiente pernicioso no sentido de possibilitar o desvirtuamento da vontade individual. O Plano do Direito Civil, ou seja, o Plano do Direito dos Contratos, fundamenta-se na vontade individual. O direito vê a relação contratual como uma relação entre dois indivíduos livres, que têm liberdade para contratar. Todo o direito civil está fundado na idéia de autonomia da vontade, seja no âmbito do direito da propriedade ou no âmbito do direito contratual. O proprietário tem a liberdade de dispor, como bem entender, de sua propriedade. As partes têm liberdade para escolher com quem contratar, como contratar e o que contratar. Isso possibilita a circulação da mercadoria. O contrato revelou-se como o reflexo jurídico dessa visão de mundo liberal. Existe uma grande dificuldade para essa visão de mundo entender o ânimo associativo e o coletivo. Esse estado de coisas criou uma insatisfação social que começou a trazer muitas convulsões sociais e um novo pensamento: o chamado Pensamento Utópico. Por trás desse termo, podemos perceber todos os pensadores que desenvolvem um discurso em prol do social. O grande pensador utópico desse período foi Karl Marx. Paralelo ao pensamento dele, desenvolveram-se vários outros pensadores, alguns se classificando como marxistas, embora Karl Marx tivesse afirmado que não era um marxista, na medida em que não compactuava com algumas correntes que aí se 10 colocavam. Esse estado de coisas forçou a estrutura, a sociedade capitalista, a se rearranjar. O capitalismo, que se ancorava na organização política do Estado liberal, teve de ser transformado, na medida em ao Estado abstencionista, que é o Estado liberal, impunha-se o dever de abster-se de intervir na vida das pessoas, uma vez que elas teriam direito à sua liberdade, à sua integridade física, o direito de livre manifestação de opiniões – todos eram iguais perante a lei – e assim por diante. A tarefa do Estado, dentro de uma visão liberal, é a de um Estado mínimo, que não intervém, negativo. Na medida em que a organização livre – economicamente falando – da sociedade, livre dentro da concepção do liberalismo, fundado num individualismo extremo, não estava dando conta de responder a essas demandas sociais que apareciam cada vez mais em função da transformação do capitalismo concorrencial para o capitalismo industrial, o Estado, enquanto estrutura política, teve de ser reformulado também, para procurar evitar o rompimento do próprio sistema econômico quando estava montado. Aí surge uma nova feição de Estado soberano, que é o Estado intervencionista ou o chamado welfare state ou Estado do bem-estar social. O Estado deixa de ter uma postura de abstenção e passa a ter uma postura de intervenção na realidade, uma postura positiva. Ele tem de garantir educação, saúde, enfim, garantir que os trabalhadores possam ser protegidos na relação desigual que mantinham com seus empregadores, de tal modo que o contrato de trabalho escaparia da incidência do total do princípio da autonomia da vontade. Certas cláusulas do contrato de trabalho não poderiam ser reféns de uma pretensa liberdade que se instauraria na relação entre empregador e empregado. Ainda que o trabalhador fizesse um contrato com seu empregador no sentido de não receber o salário pelo seu trabalho, essa relação, caso fosse objeto de uma demanda judicial, teria essa cláusula considerada nula e o trabalhador, obviamente, teria direito a contraprestação salarial. O welfare state, sem dúvida, além de ter sido incentivado por esse novo estado de coisas, foi incentivado pelas duas grandes guerras que aconteceram nesse século, exigindo uma atitude mais presente do Estado em termos de providenciar mantimentos e remédios. O crack da bolsa de 1929 também gerou a necessidade de uma nova atuação do Estado, intervindo mais na economia, na medida em que aconteceu muita inflação e muito desemprego a partir dele. A primeira formulação constitucional deste Estado e, conseqüentemente, dos direitos sociais que este Estado deveria contemplar, podemos identificar na Constituição de Weimar, 1919, que prenunciava – antecedeu – o Nacional Socialismo e a Constituição Mexicana de 1917. De posse desses elementos, conseguimos 11 visualizar um pouco melhor a pujança que os direitos sociais começaram a assumir. Muitos autores, inclusive de maneira confusa, no próprio âmbito do direito, identificam a discussão do direito social pura e simplesmente com o direito do trabalho, na medida em que as reivindicações trabalhistas foram aquelas que se destacaram mais. Até o próprio Gurvith dava ênfase ao direito do trabalho como o representante dos direitos sociais. Transportando essa discussão para os dias atuais, evidencia-se como é limitada uma visão dos direitos sociais que busque reduzi-lo apenas ao direito do trabalho. Atualmente, falamos em direito ao trabalho, não apenas no direito de ter um salário digno, de ter condições dignas de trabalho, coniventes com a própria humanidade daquele que está ali empregando sua força de trabalho. Isso sem falar de outros direitos que também se incluem dentro desse rótulo de direitos sociais, como o direito à educação. Os próprios direitos culturais podem ser aí incluídos, na medida em que a cultura também se reflete a partir da posição que o indivíduo ocupa no seu grupo e assim por diante. Dentro do contexto sugerido para a segunda etapa do roteiro, podemos falar numa visão sociológica ou formal dos direitos sociais. Destacamos sobremaneira o autor Georges Gurvith que procurou trabalhar essa noção e deu uma grande consistência teórica para o tema dos direitos sociais. Esse jurista, nascido na Rússia, em 1894, e naturalizado francês, faz algumas divisões. Sua intenção é procurar olhar para a realidade social vendo nela uma organização política e jurídica mais complexa do que a visão de mundo liberal havia fornecido. Ele desenvolve algumas categorias explicativas dessa realidade social e contrapõe, por exemplo, o direito social a um chamado direito individual. Procura criar tipos, trazendo à tona a categoria de Max Webber, de tipos ideais, ou seja, tipos que nos ajudam a entender a realidade, mas que necessariamente não existem na sua pureza na realidade concreta. Tipos que se interpenetram, que se misturam, mas que são úteis para que possamos entender um pouco melhor a realidade com a qual nos deparamos. Gurvith nos fala de um direito social e de um direito individual. O direito individual seria o decorrente do desenvolvimento clássico do liberalismo. O liberalismo fala em liberdade, mas essa é recalcada na idéia de indivíduo. O direito individual é aquele, por exemplo, contemplado no Código Civil Napoleônico, que foi, sem dúvida, o bastião dessa sociedade e que até hoje, de certa forma, ainda ocupa o chamado senso comum teórico dos juristas – expressão do professor Luís Alberto Vará. O direito individual está calcado numa idéia de delimitação. Delimito aquilo que é meu e delimito o meu espaço dentro da sociedade. Esse direito é reflexo de uma 12 ordem institucionalizada por um direito que exatamente procurou individualizar essa tônica individual. De outro lado, existe o chamado direito social dentro da visão desse jurista. Esse direito seria o reflexo de uma fusão comunitária. Ele torna um pouco mais complexa essa análise do direito social, percebendo que existem vários níveis de fusão na sociedade. Existem fusões que são efêmeras, por exemplo, uma multidão ou uma massa que se encontra na rua para protestar em relação a algo, e aí envolvendo vários valores e objetivos naquela relação que é social, na qual ocorre uma fusão, que tão logo se forma e que tão logo se dissipa. Existe também uma fusão mais intensa e outra moderada – ele faz essas tipologias todas. Mas o que ele busca perceber no direito social é que o esforço de delimitação do indivíduo cede para um discurso que passa pelo indivíduo e envolve os outros membros do grupo que se encontram na mesma situação em que aquele indivíduo está. A idéia de fusão comunitária que o direito social traz é uma idéia de solidariedade mais visível, em que as pessoas de um mesmo grupo, portanto passando pelas mesmas vicissitudes e situações, identificam conjuntamente uma mesma necessidade que exija a demanda de um determinado direito. Sem dúvida que esse direito social, à medida que se reflete em grupos que atuam de forma corporativa, pode acabar degenerando na mesma dinâmica e formação que os próprios direitos individuais, à medida que os grupos se coloquem contrários uns aos outros e percam de vista exatamente essa tônica solidarista, comunitária e de fusão. Gurvith também faz uma divisão entre o direito espontâneo e o direito organizado. Associa o direito organizado, de maneira mais evidente, com os direitos individuais, na medida em que estes, conforme eu disse anteriormente, foram fruto de uma institucionalização de um Estado liberal e de uma determinada codificação que ressaltou a vida civil calcada no indivíduo. Portanto, o direito de propriedade, de liberdade contratual, da inviolabilidade do seu próprio corpo e assim por diante, seriam decorrência de algo já institucionalizado. O direito social, como ainda não tinha uma resposta institucionalizada e organizada, foi classificado por esse autor como direito espontâneo, ou seja, um direito que surgia espontaneamente a partir das relações econômicas, sociais e culturais dos grupos dentro da sociedade. Então, partindo dessas duas grandes divisões – que ele obviamente torna mais complexa na sua obra, mas não vem ao caso aprofundar aqui –, ele identifica uma soberania jurídica e uma soberania política. A soberania política seria traduzida com a visão clássica da organização de poder a partir do liberalismo, isto é, o Estado, enquanto organização de poder central 13 dentro da sociedade, monopolizaria esta soberania. E ele identifica a soberania política com essa visão clássica do Estado como sendo o ator fundamental e, muitas vezes, quase que exclusivo na atuação pública. De outro lado haveria a soberania jurídica, que é vista pelo autor exatamente na existência de direitos paralelos em relação ao direito estatal. E, sem dúvida alguma, essa conclusão do Georges Gurvith deu espaço para o desenvolvimento de muitos pensadores dentro do direito, que se colocam sob a direção do pluralismo jurídico. Não poderia deixar de fazer referência a um autor gaúcho, contemporâneo, que realmente é de grande envergadura e tem contribuído muito para oxigenar, digamos assim, o pensamento jurídico, mostrando que a realidade com a qual nos deparamos é muito mais complexa do que aquela que nos foi passada pela visão de Russeau em seu Contrato Social. Refiro-me ao autor Antônio Carlos Wolkmer, que tem uma obra intitulada Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. Essa mesma linha é seguida pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos, autor que esteve no Fórum Social Mundial, que há muito tempo já fazia uma pesquisa aqui no Brasil, no Rio de Janeiro especialmente, onde morou por um tempo na favela do Jacarezinho, chamando-a de Pasárgada, e onde teve a oportunidade de perceber que ali havia um direito ou uma organização jurídica paralela em relação à organização jurídica estatal – e esta é uma discussão tanto política quanto jurídica. E o autor observou que, naquela favela, os espaços de poder na sociedade eram muito mais amplos e complexos do que os espaços institucionalizados e organizados, seja na organização dos partidos políticos, nos espaços dos poderes públicos e, mais adiante, no espaço dos próprios sindicatos. É isso que traz a discussão da sociologia política dos novos movimentos sociais, mostrando que existem outras formas de fazer política na sociedade, dando, portanto, mais razão ainda à visão desse jurista chamado Georges Gurvith, que percebia que a sociedade era algo bem mais complexo do que a visão de que o mundo liberal procurava passar. Não só no plano cultural, mas no próprio plano efetivo o Estado possui um papel primacial, sem dúvida alguma, em que pese a existência de outras organizações políticas na sociedade, ainda mais no caso do Brasil, em que o Estado veio antes da sociedade civil, é óbvio que o Estado ainda exerce um papel fundamental e deve exercer da melhor forma o espaço institucional que lhe cabe. Para encerrar essa rápida análise do pensador russo, gostaria de dizer que ele também faz uma tipologia do direito social em relação ao Estado, falando de um direito social puro, que seria um direito totalmente alheio à organização institucional do Estado, no qual o grau de interação entre os membros que compartilham aqueles direitos seria máximo e tão intenso a ponto de contemplar a ausência de uma sanção 14 incondicional. Isso quer dizer que a pessoa que pertence àquele grupo só vai se submeter a sanções, ou seja, às conseqüências pelo descumprimento da norma instituída, caso queira e caso acredite efetivamente. Todos sabem que um dos fundamentos do direito moderno é exatamente a sanção incondicional ou a heteronomia dos direitos. A norma é um padrão de conduta quer você compactue ou não com o preceito que ela traduz, com a determinação da conduta que deve ser adotada. A conseqüência para o descumprimento dessa norma é uma sanção punitiva. Existem também outras formas de garantir o cumprimento da norma, uma delas é que, à medida que alguém cumpre de forma exemplar, a sanção é premial, ou seja, a pessoa é premiada. Esses são alguns conceitos jurídicos básicos. Dentro da concepção de direito social puro, a sanção não é algo que vem de fora, mas algo assumido, de fato, por aquela pessoa. O tipo, então, que Gurvith criou. Há a idéia oposta desse direito social, que tem o maior índice de espontaneidade e difusão possível, que é o direito social subordinado, direito social que foi cooptado pela organização institucional, a ponto de desmobilizar a própria espontaneidade e legitimidade daqueles direitos que haviam nascido. Gurvith menciona esse direito social como direito de dominação ou de subordinação. Podemos até interpretar uma certa degenerescência do estado do bemestar social como poderíamos utilizar essa categoria do Gurvith para explicar o estado do bem-estar social, em que pese contemplar muitas vezes normas que em si mesmo são importantes, fundamentais e uma conquista que deve ser mantida. Ao mesmo tempo, essa atuação do Estado acabou por desmobilizar uma iniciativa espontânea que surgiu no seio da sociedade e, o que é pior, retirar esses próprios sujeitos da sua posição ao formular as suas próprias demandas e a sua própria história. Existe uma coletânea, feita pela Universidade de Brasília, que também desenvolve uma vertente do chamado pluralismo jurídico, que é o projeto do Direito achado na rua, desenvolvido inicialmente pelo Prof. Roberto Lira Filho e agora levado adiante pelo professor José Geraldo Souza Júnior. Essa coletânea tem um segundo volume chamado Introdução crítica ao Direito do Trabalho, que possui um artigo muito interessante da Socióloga Profª Maria Célia Paoli, em que ela observa que, no nosso caso, a CLT significou um pouco essa desmobilização do movimento sindicalista que era bastante forte no Brasil nesse período. Então, o Estado chamou para si a tarefa de formular as demandas sociais, cortando, de certa forma, a comunicação com esses espaços. Mas é possível que haja essa comunicação, e é isso que Gurvith quer dizer quando nos fala, finalmente, de uma terceira categoria de direito social em relação ao 15 Estado, que é o chamado direito social condensado ou direito de colaboração democrático. Embora ele perceba a existência de um direito social avesso ou cooptado pelo Estado, ele percebe que é possível haver uma comunicação entre essas instâncias espontâneas, nas quais se gesta o direito social, e as dimensões institucionalizadas pelo Estado. À medida que o Estado mantém sempre aberto esse canal de comunicação com esses movimentos, com esses direitos, cria-se o chamado direito de colaboração democrático ou direito social condensado. Nessa visão de Gurvith, pode-se perceber que ele coloca ênfase nesse aspecto formal do direito social. Como bom sociólogo, ele está preocupado em como a sociedade se organiza, em como esses direitos são produzidos, se eles levam em conta a participação efetiva dos grupos que sofrem e que exigem esses direitos, ou se ele não contempla essa participação. A ênfase aqui é colocada com relação à forma, à maneira como os direitos são produzidos. Sem dúvida que o termo direito social também nos traz um sentido de conteúdo, um sentido material. Na tradição bíblica podemos perceber, num conceito de Mispá, de proteção dos mais débeis, a preocupação com o outro – daí o termo alteridade. Acredito que o princípio da alteridade é o que melhor exprime o sentido material e ético do direito social: à medida que temos uma preocupação com o outro, temos consciência da desigualdade, de uma diferença que não só deva ser eliminada – aquela diferença que traz a miséria humana para uns enquanto afasta outros dessa mesma miséria –, mas que reconhece a dignidade do outro em participar desse processo. Ou seja, temos ao mesmo tempo a ênfase nesse aspecto formal e democrático, a partir do princípio da alteridade, e a ênfase no aspecto de conteúdo, de eliminação da injustiça social. Nesse sentido, vem a calhar o desenvolvimento teórico do pensador argentino Enrique Dussel – A Filosofia da Libertação Latino-Americana –, que também é ligada a alguns setores da teologia da libertação. Mas esse autor, paralelamente à sua participação na teologia da libertação, preocupou-se em fazer um discurso filosófico que poderia inclusive prescindir de uma referência ao nível teológico, embora a discussão teológica seja importante e fundamental. Esse pensador procurou desenvolver essas categorias e esses fundamentos a partir de uma reflexão eminentemente racional, sem dúvida respaldada também pela fé. Dussel nos fala de um princípio ético da alteridade, de um pensamento voltado para o outro. Cabe a pergunta: quem é o outro? O outro pode ser definido em inúmeras dimensões: podemos falar no outro no sentido psicológico, no sentido cultural, no sentido econômico, no sentido político, enfim, em todas as instâncias em que 16 convivemos. Dussel privilegia algumas concretizações do que vem a ser esse outro. Posso já adiantar que ele coloca o foco no outro contemplando aquele que é excluído materialmente da sociedade, isto é, aquele que não tem as suas necessidades humanas fundamentais satisfeitas. Eu estava lendo o relatório feito pela sociedade civil – já que o Estado não fez o relatório que está determinado no Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966 –, que se organizou e produziu um belíssimo material. Olhando este material, podemos perceber que, sem dúvida, é preciso colocar a ênfase, quando se fala em direitos econômicos, sociais e culturais, não apenas nas chamadas necessidades fundamentais ou nos direitos de subsistência, mas sim pensar no ser humano na sua dimensão mais ampla e digna possível. Ao pensarmos no contexto latino-americano – daí por que esse pensamento se insere na esteira da filosofia da libertação latino-americana –, não podemos deixar de ver que grandes parcelas da nossa sociedade não têm sequer essas necessidades mínimas devidamente satisfeitas e que, portanto, devemos colocar os nossos esforços prioritariamente nessa direção, na medida em que uma boa parcela da nossa população vive uma situação de miséria extremada – situação referendada aqui no relatório. Para procurar tornar um pouco mais inteligível essas categorias do filósofo, procurarei sintetizar as bases. Num trabalho de Mestrado que fiz e que foi objeto de publicação, desenvolvi um pouco melhor essas categorias, mas agora serei rápido. Dussel faz uma divisão da realidade basicamente entre dois espaços: a chamada totalidade e a exterioridade. A exterioridade seria o espaço no qual o outro apareceria; e a totalidade é uma visão de mundo que não dá espaço para que o outro apareça em sua efetiva alteridade. Então, a totalidade seria tudo o que está ao nosso redor, os entes, quer dizer, os objetos, os sentidos e os significados que nos cercam, sendo que esses entes estão referenciados a um determinado fundamento, ou alguns fundamentos e valores, que estão na base dessa nossa forma de ver a realidade. Então, interpretamos todos os entes que nos cercam a partir desses fundamentos e desses valores. E à medida que não permitimos que outras realidades, outros fundamentos e outras culturas possam se expressar a partir de si mesmo, e interpretamos os entes que emergem desse âmbito da exterioridade como algo que acaba remetendo àquilo que desde de sempre conhecemos, estamos evitando que o outro apareça na sua alteridade e estamos subsumindo esse outro dentro de uma leitura feita a partir dos nossos próprios referenciais, impedindo que essa realidade possa emergir. Concretizando essas categorias, Dussel preocupa-se, inicialmente, com a contextualização histórica da América Latina. Pode-se perceber no relatório que há 17 uma ênfase com relação aos direitos indígenas – está no pacto também. Então, Dussel preocupa-se em reconstruir a história do chamado descobrimento, que também é um termo polêmico. Alguns autores falam em conquista e outros falam até em invasão. Enfim, o que Dussel busca mostrar é que, quando houve o desembarque europeu nas terras americanas, o outro, desde o início, não foi visto como o outro, mas, sim, foi subsumido em um fundamento que a visão eurocentrista trazia, já pelo próprio nome que foi dado a esse outro com o qual foi travado contato inicialmente. Os Senhores sabem que quando Cristóvão Colombo chegou na América Central viu os habitantes autóctones – habitantes naturais dessas terras – e os chamou de índios. Por que índios? Porque, na visão de Colombo, aqueles eram os habitantes das Índias. Então o outro foi visto como o mesmo, ou seja, houve uma interpretação do outro não a partir da sua cultura, dos seus referenciais, dos seus próprios valores e das suas necessidades e direitos, mas a partir do sentido que se imagina que aqueles entes preencheriam. Para Dussel, trazemos desde o início um sentido de inferioridade latinoamericana, um sentido de um povo que não afirma a sua própria cultura, que não afirma os seus próprios princípios. Temos a impressão de que a nossa base cultural fundamental é européia, mas basta ler uma obra de peso – uma das obras que, acredito, seja uma das mais importantes do Brasil, que foi Casa Grande e Senzala, do Gilberto Freyre –, para perceber que a visão européia é fundamental e explica muitas categorias com as quais nos deparamos, mas a cultura indígena e a negra fazem parte, de maneira indissociável, da nossa forma de ver a realidade. Embora Gilberto Freyre tenha colocado no seu livro maior ênfase na cultura negra, não deixou de perceber quanto a cultura indígena contribui para o nosso dia-adia e quanto está presente na nossa visão de mundo, mas sem que percebamos isso. Há o chamado mito da inferioridade latino-americana, de que devemos atingir um determinado patamar de que somos subdesenvolvidos ou um patamar cultural que ainda não atingimos, mas que não traz a nossa própria realidade. E esse estado de coisas, em nível cultural, também trouxe uma exclusão material, uma exclusão mundial. A estrutura econômica mundial acabou trazendo uma situação de extrema miséria e exclusão para o contexto latino-americano. É a partir desse contexto que Dussel busca raciocinar, dentro do seu pensamento de alteridade. Ele diz que a visão eurocentrista constrói uma totalidade na qual não conseguimos ver a exterioridade desse excluído material latino-americano. Dussel também desenvolve essas categorias em outras direções, e há uma direção especial que tem tudo a ver com a nossa discussão a respeito dos direitos sociais. Dussel também faz, mais adiante no seu itinerário teórico, uma releitura da obra de Karl Marx. Nessa releitura, ele busca aplicar essas categorias de totalidade e 18 exterioridade para o sistema capitalista, observando que esse sistema pode ser considerado como uma totalidade e que o fundamento desse sistema é o valor, que por sua vez é o fundamento do capital. Observa também que esse valor está presente em todos os entes que nos cercam. Podemos classificar tudo, inclusive as pessoas, a partir da referência a esse valor. Então, o valor que uma pessoa possui enquanto força de trabalho, enquanto proprietário de determinados meios de produção, o valor que têm todos os objetos que nos cercam. Até mesmo as reflexões culturais e os espaços de lazer e de meditação podem ter um preço e podem ser interpretados com fundamento no próprio valor desse sistema. É isso que Dussel observa, procurando traduzir para as suas categorias. Ele vê que o capital circula, o valor transita de uma a outra determinação. Este livro, por exemplo, pode ser chamado de mercadoria, na medida em que pego o dinheiro – que também é um ente fundado no capital – e entrego para receber este livro, o valor se transforma e passa a estar presente neste livro. Se o livro rasga, esse valor é depreciado; se vendo este livro por um valor maior do que aquele que comprei, esse valor é aumentado. Existem os valores fixos, nos meios de produção fixos; existe o tempo de trabalho necessário, enfim, todas aquelas categorias que Marx também analisou e que são, nada mais, nada menos, do que outras determinações do valor. Nesse sentido, pode-se perceber que a forma como o sistema está montado, não está voltado para a finalidade da satisfação das necessidades humanas, quer dizer, indiretamente pode-se atingir isso – que é defendido no discurso liberal-capitalista. Mas a prioridade e a própria lógica do sistema não são essas, mas, sim, o aumento do valor abstrato do capital. O jurista mexicano Oscar Correias – muito conhecido no meio jurídico – diz que o Direito, por sua vez, contribui para criar situações que possam perpetuar a circulação desse valor e permitir que ele adquira um valor cada vez maior, permitindo ao sistema atingir a sua finalidade, que é o aumento do valor abstrato. A observação que o jurista faz é fundamental em relação a alguns setores do Direito, entre eles o do Trabalho, que tradicionalmente é considerado um Direito protetivo, uma dimensão libertária na medida em que busca amenizar a desigualdade social, que o próprio sistema acaba trazendo. De outro lado, o chamado Direito do Consumidor, visto por muitos setores como um verdadeiro espaço, um verdadeiro bastião de garantias ao qual o cidadão deve se apegar para também amenizar essa desigualdade. O que Oscar Correias percebe é que esses setores do Direito, embora obviamente tenham uma lógica que aponte para a exterioridade desse sistema, que 19 busque o valor da humanidade, eles podem ser também subsumidos dentro dessa lógica caso não tenhamos consciência de que o fundamento da totalidade do sistema em que vivemos não privilegia diretamente a satisfação das necessidades humanas e a dignidade humana, mas, sim, o valor abstrato do capital. Então, se esquecermos de que numa relação de trabalho na verdade há um contrato de compra e venda da força de trabalho, se ocultarmos essas relações básicas com eufemismos, podemos perder de vista essa situação, esse fundamento. Da mesma forma o Direito do Consumidor, no qual as mercadorias transformam-se em bens e serviços, o comprador vira consumidor, o vendedor vira fornecedor e assim por diante. Lógico que não estou dizendo que os direitos sociais e o Direito do Consumidor deveriam ser colocados de lado porque compactuam com uma lógica ou com um fundamento que não trazem a satisfação das necessidades humanas. Não é isso, mas é preciso que tenhamos consciência e clareza quanto a essa questão filosófica e fundamental do sistema que nos move, sob pena de acabarmos entrando nesse torvelinho sem perceber, deixando de contribuir, de forma mais eficaz, para uma sociedade que efetivamente privilegie o valor da pessoa humana. Com isso, podemos delinear alguns sentidos do Direito Social: enquanto forma de produção de normas; enquanto superação das desigualdades, no sentido de justiça social; e no aspecto do coletivo, porque as desigualdades acontecem coletivamente – os aposentados, os trabalhadores. Conforme o prometido, como não poderia deixar de ser ao tratar-se de um tema como este, também temos a projeção do Direito Social no aspecto jurídico constitucional. Temos toda a tradição dos Direitos Humanos, que foi trabalhado inicialmente pelo Liberalismo, dentro dessa vertente que estamos privilegiando em termos de contexto. Já disse que podemos visualizar Direitos Humanos, até mesmo na antigüidade clássica podemos ver presente essa discussão. O termo Direitos Humanos, portanto, assumiu infelizmente, ao longo dessa história instaurada pelo liberalismo clássico, passando por essa dinâmica dos Direitos Sociais, por um lado, um sentido pejorativo – que está presente na discussão que a Professora Flávia Piovesan desenvolve – ao dizer que a chamada declaração de direitos acabou assumindo uma conotação de mera retórica, no sentido de apontar para ideais e valores que não necessariamente teriam uma eficácia jurídica. Muitos autores defendem que, no plano do Direito, deveríamos substituir o termo Direitos Humanos pelo de Direitos Fundamentais, para tentar afastar esse sentido pejorativo que se apegou ao termo e colocar mais ênfase em que esses direitos são fundamentais e constitucionais, devendo ser assim aplicados. Ora, acredito que o termo Direitos Humanos, pela sua forma e maneira como 20 se coloca, é fundamental e não pode deixar de existir. Mas é interessante perceber essa questão terminológica. Então, os Direitos Humanos, dentro dos direitos constitucionais, transformamse em direitos fundamentais, que vêm desde a doutrina constitucional alemã. E essa discussão constitucional de certa forma procurou reproduzir, nos seus textos na ordem jurídica, a discussão histórica que se instaurou sobre as chamadas gerações de direitos, termo que também é muito atacado – no relatório isso está expresso – por dar a idéia de que esses direitos existiram em uma determinada época, agora foram substituídos por outros e estão desatualizados, devendo ser substituídos. Mas a idéia, sem dúvida, não é essa. Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet, juiz do Rio Grande do Sul que fez doutorado em Munique, na Alemanha, tem um livro excelente sobre essa questão no plano do Direito Constitucional chamado Efetividade dos Direitos Fundamentais, pela Livraria do Advogado, que traz o termo dimensões de direitos. Acredito que seja uma proposta interessante, na medida em que evita essa visão cronológica de que esses direitos estão datados e de que não pertencem mais à atualidade. De toda forma, é importante termos uma visão cronológica de quando esses direitos surgiram. Essa classificação é fundada, por um lado, nessa seqüência cronológica e, por outro, num tipo de direito que está traduzido na primeira, segunda ou terceira dimensão. Na primeira dimensão de direitos, podemo-nos reportar ao século XIX e veremos os chamados direitos de defesa ou direitos de liberdade, aos quais é correlato a idéia de estado mínimo, de estado abstencionista: os direitos individuais, como o direito de integridade física, o direito de ir e vir, de inviolabilidade do próprio lar, e o polêmico direito de propriedade, que não está colocado no pacto. Existem muitas teses e conheço um colega que está desenvolvendo um estudo nessa área, na Universidade Federal de Santa Catarina, que argumenta que o direito de propriedade, como é visto, atravanca a realização dos direitos humanos, não os promovendo. Na segunda metade do século XIX, podemos ver uma outra decorrência desses direitos de defesa ou de liberdade, que se traduz nas liberdades políticas e sociais: o direito de associação, de organização partidária, de voto – extensível às mulheres e aos outros setores da sociedade. Uma decorrência dos direitos de defesa e dos direitos de liberdade. Aparece, então, a segunda dimensão de direitos, mais ou menos no final do século XIX e primeira metade do século XX, os chamados direitos sociais ou prestacionais exigem uma atitude positiva por parte do Estado no sentido de implementar e garantir a satisfação desses direitos, e não apenas uma atitude de abstenção ou de Estado mínimo. 21 Conforme já se observou, esses direitos trabalham com uma lógica coletivizada, já que as desigualdades acontecem nos espaços coletivos da sociedade. Obviamente, essa discussão inicial dos direitos sociais foi, de certa forma, como já disse antes, muitas vezes, confundida, pura e simplesmente, com os direitos trabalhistas. Essa é uma visão muito limitada da dimensão dos direitos sociais. Basta ver a situação em que nos encontramos hoje, quando se discute esse tema cada vez mais, conforme já comentei. Isso está no art. 6º da Constituição no que se refere ao direito ao trabalho. Existe um jurista espanhol, Davi Sanches Rubio, que também trabalha com Dussel na filosofia da libertação latino-americana, que vai entender no direito ao trabalho uma estratégia fundamental de luta de todos os países em prol da dignidade humana na medida em que, conforme estamos organizados, o trabalho torna-se, não só um meio de subsistência, mas também uma ocupação social e de identidade dentro da organização social que deve ser buscada. Obviamente o direito do trabalho não pode ser considerado satisfatório no seu atingimento se entendermos que basta qualquer salário e qualquer ocupação. Infelizmente, está se vendo o direito ao trabalho sendo posto, muitas vezes, como uma desculpa para desmerecê-lo e colocá-lo numa situação desvantajosa porque não se fala mais num salário digno, não se fala mais em condições dignas ou nos direitos que estão colocados no art. 7º da Constituição. Finalmente, viria a terceira dimensão de direitos que seriam os direitos chamados planetários ou de solidariedade, que também podem ser entendidos pelo conceito de interesses difusos. Aqui percebemos uma diferença em relação aos direitos sociais. E por que percebemos? Naturalmente, é pela terceira dimensão de direitos de proteção ao meio ambiente, de determinação dos povos e assim por diante. Então percebemos aqui uma diferença. Por que, quando se fala em direitos sociais, percebe-se com clareza o princípio da alteridade muito mais até do que nos chamados direitos de terceira dimensão ou de terceira geração. Vamos pensar bem: quando pensamos, por exemplo, em um meio ambiente sadio, não estamos apenas pensando no outro que está numa situação desigual. Pensamos, em última análise, em nós mesmos. São chamados direitos de solidariedade porque todos se encontram na mesma situação. Então, na medida em que uma ofensa ao meio ambiente vá trazer prejuízos a uma determinada sociedade, a uma determinada localidade, não é apenas àquela sociedade que essa ofensa vai trazer prejuízo. Vai trazer prejuízo a todo ecossistema e a todos aqueles que vivem no planeta. Se o aumento da indústria tecnológica, o aprimoramento dessas tecnologias se torna cada vez mais patente, essa ameaça também se torna cada vez maior. 22 Portanto, os direitos de terceira dimensão envolvem todos nós. É um todo. Por isso são considerados direitos de solidariedade. Nos direitos sociais, percebe-se a dimensão de alteridade na sua maior intensidade. Vemos o outro numa situação desigual e construímos um pensamento e uma ação em prol desse outro tanto no sentido de eliminar a desigualdade ultrajante em sua dignidade como no sentido de permitir que esse outro se manifeste como sujeito de sua própria história. Nesse sentido, o princípio de alteridade ganha maior poder explicativo. Cabe dizer, finalmente, que essas dimensões de direito estão sempre em constante transformação. Isso está expresso com clareza no § 2º do art. 5º, que trata do princípio da abertura material do catálogo, incorporando inclusive os tratados internacionais que discorrem sobre os direitos fundamentais da ordem constitucional brasileira, o que também – depois vamos ver – é mais um argumento para dizer que os direitos sociais são, sim, um limite formal à revisão constitucional, isto é, integram as chamadas cláusulas pétreas. Então, tratando desse aspecto, é indubitável – vou procurar agora argumentar nesse sentido para justificar essa afirmação – que o reconhecimento que os direitos de primeira, de segunda e de terceira dimensão estão no Título II da nossa Constituição, que trata dos direitos e garantias fundamentais. Isso é bem mais visível no plano dos direitos sociais na medida em que há um capítulo especial para tratar deles. Há uma maior dúvida em relação aos direitos de terceira dimensão, mas basta olharmos o art. 5º, inc. LXXIII, por exemplo, onde se trata da ação popular para proteger o meio ambiente. Vamos ver que o meio ambiente é um valor que está inserido nos direitos fundamentais. Da mesma forma, no art. 5º, inc. XXXII, diz que o Estado deve produzir uma legislação que proteja o consumidor, porque os direitos deste também são vistos, muitas vezes, como direitos de terceira dimensão, pois envolvem um todo indiferenciado onde todos estamos inseridos. Quais são os questionamentos que cercam o direito social como direito fundamental? Primeiro argumento: os direitos individuais têm um preceito claro, qual seja, preceito é o que a norma diz que devemos fazer ou não em certas situações. Preceito é o seguinte: o Estado deve abster-se. O Estado deve deixar que as pessoas atuem e deve garantir que as pessoas tenham essa liberdade de manifestar seu pensamento, de não serem violadas em sua integridade física, em suas idéias, de não serem discriminadas em função de raça, credo, religião, gênero, idade e assim por diante. Então o preceito é claro. Em relação aos direitos de segunda dimensão, os chamados direitos sociais, sabe-se o resultado ao qual se quer chegar, mas a conduta efetiva que o Estado deve assumir não está dito na norma. A norma é indeterminada, é vaga porque não traz o 23 preceito que deve ser realizado pelo Estado como destinatário da norma nem pelos membros da sociedade. Isso é algo que deve ir mudando paulatinamente na medida em que vivemos cada vez mais numa sociedade participativa onde não só o Poder Público é a instância de participação do poder na sociedade, muito embora ela seja muito importante. Na nossa própria cultura brasileira, é fundamental. Os direitos sociais devem ser vistos como um preceito para todos os membros da sociedade, em especial para aqueles que ocupam posições de relevo na produção econômica, cultural e social. Portanto o preceito não é claro. Isso faz com que muitos autores digam que os direitos sociais traduzem normas programáticas. O termo programático foi trazido pelo eminente jurista Rui Barbosa que trouxe à discussão do Direito Constitucional norte-americano a diferença entre normas selfexecuting e not self-executing, quer dizer, auto-aplicáveis e não auto-aplicáveis, que foram traduzidas para o nosso Direito como normas programáticas. Essas normas padeceriam do mesmo efeito das chamadas declarações de direitos humanos. Teriam apenas uma exortação em termos de valores e elencariam ideais a serem atingidos por todos os povos e sociedades, mas não traduziriam uma eficácia jurídica ou uma imposição de dever aos poderes públicos e a toda a sociedade. Ora, analisando esse aspecto em particular, mais uma vez mencionando Ingo Sarlef que o critica de maneira incisiva e diz que se chamar os direitos sociais de normas programáticas – e até ele muda o termo que prefere chamar de normas de cunho programático –, significa dizer que os direitos sociais, sendo normas de cunho programático, não têm nenhuma eficácia. Então ele não partilha desse termo e entende que esse termo é inadequado, porque é óbvio que, sem dúvida, há diferenças em termos de eficácia em relação aos direitos individuais e sociais. Direitos sociais traduzem uma complexidade muito maior. Daí a dizer que eles são ineficazes, que são meras normas programáticas, há uma distância. Antes de tratar da eficácia dos direitos sociais e como poderíamos visualizá-la, gostaria de elencar um outro argumento que se põe como um obstáculo à efetividade dos direitos sociais, que é a chamada Tese da Reserva do Possível. A implementação desses direitos depende de políticas públicas, de uma série de instâncias que estão institucionalizadas, da previsão orçamentária que o Executivo faça tramitar no Congresso e assim por diante. Muitas vezes, o Estado pode deparar com dificuldades ou ausência de recursos para implementar aqueles direitos. E esse é um obstáculo que é levado em conta. Outro problema gerado é a ingerência na administração do Executivo. E aí surge a dúvida: o direito social contemplado na Constituição é ou não é Direito subjetivo público? O que é isso? Existem inúmeros conceitos de Direito subjetivo, inúmeras reflexões sobre esse conceito fundamental, mas o Direito subjetivo traduz, 24 entre outros sentidos, o interesse de ação, quer dizer, um direito que a pessoa tem de fazer valer um direito no âmbito judicial. E aí surge a pergunta: um trabalhador que esteja desempregado, por exemplo, pode ir ao Poder Judiciário e exigir que o seu direito ao trabalho seja cumprido porque há uma norma? É auto-executável porque é um direito fundamental? Essa é uma discussão que surge. Ingo Sarlet, desenvolvendo argumentos sobre essa tese, diz que, por ser óbvio, não pode haver uma ingerência do Poder Judiciário no Poder Administrativo a ponto de interferir, por exemplo, na previsão orçamentária. Deve-se levar em conta a aplicação do princípio da dignidade humana de tal modo que, no momento em que a dignidade mínima de uma pessoa esteja ameaçada pela não-satisfação de um direito fundamental previsto pela Constituição, então esse direito deve ser cumprido e assegurado de alguma forma. Lênio Streck, em seu livro Hermenêutica Jurídica em Crise, quando fala em direitos sociais, traz alguns exemplos inclusive nesse sentido como concretização do chamado direito à saúde, condenando o Estado a providenciar remédios que pelo SUS não estavam sendo fornecidos no caso de uma pessoa que tinha Aids. Como estou me estendendo no meu tempo, vou procurar avançar rapidamente para concluir. É óbvio que os direitos sociais são eficazes. Até há uma crítica à técnica legislativa que foi utilizada na Constituição. Percebemos que no art. 5º, o § 1º, que trata da auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais e o § 2º, que trata da abertura material do catálogo, inclusive abertos aos tratados internacionais, não deveriam estar subsumidos ao art. 5º, mas deveriam estar se referindo a todo título. Isso traz uma falsa idéia de que só os direitos do art. 5º têm aplicação imediata ou podem ser acrescidos de novas discussões de tratados internacionais. Isso é falso. Por isso há críticas que muitos fazem nesse sentido. Então a primeira eficácia dos direitos sociais é que têm uma eficácia revogatória. De antemão, todas as normas anteriores à Constituição que contrastem com esses direitos e seus objetivos devem ser consideradas revogadas por essas normas. Aqui se trata de revogação, e não de inconstitucionalidade uma vez que o Supremo Tribunal Federal acatou a tese de não aceitar a inconstitucionalidade superveniente, isto é, já que a norma, quando foi criada, estava sob a égide da antiga ordem constitucional, e não havia sido considerada inconstitucional na medida em que sobrevenha uma nova ordem constitucional incompatível com essa norma, que não é inconstitucional porque, quando foi gerada, a Constituição a permitia e era de acordo com ela. Então o que acontece? Se a Constituição simplesmente revoga essa norma, qual é o efeito prático disso? Não pode ser objeto de recurso extraordinário ou de ação direta de inconstitucionalidade o questionamento dessa norma, mas, sim, de uma ação que 25 vise à sua ilegalidade pura e simplesmente, e não a sua inconstitucionalidade. Há uma eficácia revogatória e, em relação às normas posteriores, pode ser sustentada a inconstitucionalidade da norma. E aí vemos o princípio da proibição do retrocesso, que é uma imposição voltada ao Poder Público no sentido de que não retroceda na garantia desses direitos sociais, isto é, não elabore normas que visem a um retrocesso nessa área. Isso é auto-aplicável, pois é uma eficácia direta que existe, muito embora não esteja sendo entendida assim principalmente devido a muitas medidas provisórias que se vêem acontecendo por aí. É uma eficácia hermenêutica, sem dúvida, porque a interpretação da legislação infraconstitucional e dos próprios ramos do Direito Público e do Direito Privado devem levar em conta os princípios do direito social como norte hermenêutico para as normas infraconstitucionais. Não vou desenvolver esse tema, mas traz à tona uma discussão que agora está em voga sobre a Hermenêutica Jurídica. Temos uma cultura jurídica extremamente pobre e desatualizada em relação a como interpretar as normas jurídicas. Muitos autores estão trazendo a discussão da Hermenêutica, que é da Filosofia do Direito, especialmente para o âmbito do Direito Constitucional. Apenas gostaria de citar um autor, o Prof. Lênio Streck, cuja obra Hermenêutica Jurídica em Crise trata a respeito desse tema e fornece-nos um bom panorama sobre essa discussão, que é Hermenêutica Jurídica em Crise. A eficácia dos direitos sociais impõe ao legislador e aos Poderes Públicos regulamentarem essas normas, torná-las mais eficazes, mais aplicáveis. Em algumas obras que andei lendo da Professora Flávia Piovesan, coloca-se a possibilidade até mesmo de uma indenização do Poder Público na medida em que omite-se desse dever impingido pela ordem constitucional. Um outro argumento de quem critica os direitos sociais é que eles ferem as liberdades. É recorrente essa visão que contrapõe os direitos sociais aos direitos individuais, que um não pode harmonizar-se com o outro e que advogar direitos sociais seria interferir de maneira intolerável nas liberdades que devem ser preservadas dentro da sociedade. Não me alongarei nesse ponto, mas farei a leitura de um trecho do relatório feito pela sociedade de uma advertência do Professor Antônio Augusto Cançado Trindade, que sintetiza e coloca por terra, ou escanteia, esse tipo de argumentação. Ele diz o seguinte: De que vale o direito à vida sem o provimento de condições mínimas de uma existência digna, senão de sobrevivência – alimentação, moradia, vestuário; de que vale o direito à liberdade de locomoção sem o direito à moradia adequada; de que vale o direito à liberdade de expressão sem o acesso à instrução e à educação básica; de que valem os direitos políticos sem o direito ao trabalho; de que vale o direito ao trabalho sem o salário justo, capaz de atender às 26 necessidades humanas básicas; de que vale o direito à liberdade de associação sem o direito à saúde; de que vale o direito à igualdade perante a lei sem as garantias do devido processo legal. E os exemplos se multiplicam. Isso sem falar que os direitos de primeira dimensão também têm um aspecto positivo, que exige uma prestação do Estado. Então, é preciso que o Estado faculte ou permita uma estrutura judiciária que dê conta do atendimento das demandas individuais dos cidadãos na Justiça, para que esses direitos não sejam violados. Isso exige uma prestação positiva do Estado. Da mesma forma, para que os direitos políticos sejam exercidos – os direitos de manifestação –, o Estado também precisa propiciar todo um aparato. De outro lado, os direitos de segunda geração também têm uma tônica abstencionista, isto é, a liberdade de associação sindical, o direito de greve, tudo isso implica também. Isso reforça a tese de que os direitos individuais e sociais não devem ser vistos de forma dissociada, que os direitos humanos devem ser vistos na sua integralidade, e que a nossa visão do homem em função das nossas vicissitudes sociais torna-se cada vez mais complexa. Isso devemos ter claro. O último argumento de quem procura combater os direitos sociais em sua eficácia é que eles não são cláusulas pétreas, ou seja, não seriam um limite à reforma material da Constituição. Como eu havia lido anteriormente, no art. 60, § 4°, inciso IV da Constituição está dito: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir – não a acrescer – os direitos e garantias individuais, e pronto. Esse termo foi o apanágio ao qual muitos juristas e pensadores se apegaram para dizer que só o art. 5° não pode ser reformado, que o art. 7°, por exemplo, pode ser reformado à vontade. O termo individuais aqui colocado na verdade expressa o jogo de forças que desenvolveu-se na Assembléia Nacional Constituinte entre as chamadas forças conservadoras e progressistas. Foi mais ou menos um acordo de cavalheiros. Por um lado, os direitos sociais estariam contemplados na Constituição, bem como a função social da propriedade. Por outro lado, esses direitos não teriam uma aplicação imediata, ficariam reféns de uma regulamentação posterior e também não seriam objeto de limite à reforma material da Constituição. Esse é um primeiro argumento. Um segundo argumento é desenvolvido por Manoel Gonçalves Ferreira em um artigo. Ele diz que a tradição constitucional brasileira quanto a essa expressão direitos e garantias individuais – que não é a mesma do art. 5°, onde consta dos direitos e deveres individuais e coletivos – sempre significou e sempre apontou para os direitos de primeira dimensão. Um outro argumento, que o Ives Gandra trouxe em um artigo, é o seguinte: 27 o caráter flexível dado pelo legislador ao salário e à jornada de trabalho no art. 7°, permitindo que por convenção ou acordo coletivo o salário pudesse ser reduzido e a jornada aumentada, era um sinal de que esse artigo não pertencia às cláusulas pétreas, porque o próprio termo seria contraditório. Se a própria Constituição está autorizando a serem flexibilizados, então eles não seriam cláusula pétrea. E, finalmente, o argumento de que só são cláusulas pétreas alguns direitos sociais, como o de associação e ao mandado de segurança coletivo, entre outros, que estão lá no art. 5°, como é em Portugal. Para rebater esses argumentos, começaremos pelo último. Embora Portugal tenha sido a nossa metrópole e haja um refluxo atual dos constitucionalistas portugueses como Jorge Miranda e o próprio Professor Canotilho – voltando um pouco atrás no que dizia sobre constituição dirigente –, a realidade deles é outra, não é a mesma que a nossa, de capitalismo periférico. A Constituição portuguesa não é um parâmetro que possa nos guiar. Temos a nossa própria Constituição, a nossa autodeterminação e a nossa própria discussão política. A tradição constitucional brasileira também não pode servir de argumento, basta dizer que nossa última Constituição era fruto de um regime autoritário. Então, o argumento que a tradição constitucional brasileira sempre deu esse sentido para esse termo também não é relevante e não pode ser levado em conta. Outro ponto é a interpretação para o termo individuais. Ora, os direitos sociais também são direitos individuais. Essa é a noção da indissociabilidade dos direitos. Os direitos sociais são coletivizados, como eu disse antes, porque são visualizados nas desigualdades que acontecem coletivamente, em grupos. Percebese uma identidade entre os indivíduos que compõe o grupo e que sofrem de uma certa desigualdade, mas os direitos que serão satisfeitos para todos serão satisfeitos para cada um daqueles que compõe esse grupo. Então, obviamente os direitos sociais são também, em última análise, direitos individuais, só que trabalham com uma lógica transindividual e não apenas com uma lógica de delimitação egoística ou individual. Outro ponto: se excluíssemos os direitos sociais e entendêssemos que só o art. 5° é cláusula pétrea, também os direitos políticos e os próprios direitos de nacionalidade ficariam excluídos enquanto direitos fundamentais, o que evidenciase como um contrasenso, sem dúvida. Em relação ao argumento da flexibilidade, o fato da Constituição estabelecer que por convenção ou acordo coletivo o salário pode ser reduzido e a jornada de trabalho aumentada, não quer dizer que não se está aí a preservar um limite à reforma constitucional. Basta dizer que se fosse possível reformar esse artigo através de uma emenda, poderíamos conviver, por exemplo, com a seguinte 28 situação: o salário pode ser reduzido por determinação do empregador, independente de convenção ou de acordo coletivo, porque pressupõe-se teoricamente, embora muitas vezes não ocorra, que a convenção e o acordo coletivo procuram diminuir uma relação de desigualdade, daí porque estariam autorizados pela Constituição. Entretanto, o argumento mais importante para considerar os direitos sociais como cláusula pétrea e, portanto, como legítimos direitos fundamentais, é que não devemos ser reféns de uma interpretação gramatical da lei; devemos priorizar uma interpretação teleológica, que leve em conta a finalidade da lei. Então, devemos pensar qual é a finalidade da Constituição, para que servem os seus limites materiais e para que servem as suas chamadas cláusulas pétreas. Elas servem para manter a identidade constitucional e para que a Constituição possa cumprir com a sua finalidade. E qual é essa finalidade? Ela está prevista no art. 1° da Constituição: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. São os direitos fundamentais que estão aqui contemplados. Está aqui dito que vivemos num Estado Democrático de Direito. E o que é um Estado Democrático de Direito? É um Estado que busca atender às promessas da modernidade, que no nosso caso estão muito longe de terem sido minimamente satisfeitas – falamos aqui em Estado do bem-estar social, mas sabemos que a realidade latino-americana é bem distante disso –, e um Estado que permita a participação política, inclusive. Como último argumento, já fazendo a ponte para a palestra da Professora Flávia Piovesan, os pactos internacionais também dizem isso. No § 2° do art. 5° está a abertura material aos catálogos, e os pactos internacionais dizem que os direitos individuais e sociais são indissociáveis. Desculpem-me, sou um pouco prolixo e acabei alongando-me demasiadamente. Poderemos nos aprofundar mais depois, no debate. Muito obrigado. 29 Mestre em Direito, Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Coordenador Adjunto do Curso de Direito da Universidade do Vale dos Sinos -Unisinos/RS e membro da Comissão de Especialistas em Ensino de Direito. Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais Flávia Piovesan - Começaremos a nossa conversa enfrentando três questões: qual a concepção contemporânea dos direitos humanos; qual os mecanismos jurídicos de proteção desses direitos, e aí tomando como ponto de partida tudo o que já foi aqui apresentado com relação à perspectiva constitucional – a nossa ênfase será na 30 perspectiva internacional, com destaque para o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e finalmente o impacto da globalização econômica no processo de efetivação dos direitos sociais e, portanto, como enfrentar o processo de desconstitucionalização ou flexibilização desses direitos. Compartilho das posições aqui externadas com relação a cláusulas pétreas. Entendo que os direitos sociais são protegidos pela cláusula do art. 60, parágrafo 4º, inciso IV, de modo que temos argumentos em comum em prol da juridicidade, da efetividade e da necessidade de que esses direitos sejam vistos como tal. Foi publicada no jornal O Globo, deste sábado, uma matéria que deve nos chamar a atenção quando se fala do princípio da alteridade, como tão bem examinado pelo Professor José Carlos Moreira da Silva. O princípio da alteridade é crucial quando se fala dos direitos econômicos, sociais e culturais, na medida em que temos que ver o outro como um sujeito de direito e na medida em que temos que encontrar mecanismos – vou-me limitar à esfera jurídica, que é a de minha atuação, mas não há dúvida que há outras tantas estratégias a serem somadas à jurídica – para que esses direitos possam ser aplicados. O jornal O Globo, deste sábado, divulgou o relatório do Índice de Desenvolvimento Humano do município do Rio de Janeiro. É a primeira vez que se faz uma pesquisa nessa direção, porque, em geral, o IDH se atém a raízes, basta lembrar que o nosso País figura no 71º lugar no ranking do desenvolvimento humano que considera outros 150 países. O Brasil está na metade, em 71º lugar, e os Senhores podem perceber que essa posição é bastante recuada, mesmo o Brasil se dizendo, com o orgulho, a 8ª ou 9ª ou 10ª economia mundial em termos de PIB nacional. Lamentavelmente, não estamos em sintonia no tocante ao desenvolvimento humano, que considera analfabetismo, escolaridade, saúde, renda, expectativa de vida, dentre outros pontos. Estamos no 71º lugar. Tendo em vista o apartheid socioeconômico existente no Rio de Janeiro, foi ele destacado como o primeiro município do mundo a ser objeto de uma pesquisa do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – a respeito do Índice de Desenvolvimento Humano. Qual a conclusão que se chegou? Lagoa é o melhor bairro do Rio de Janeiro e Acari o pior. Isso significa dizer que a Lagoa é o melhor bairro da Cidade com índices de condição de vida comparáveis aos da Itália, enquanto Acari se assemelharia às condições de vida na Argélia, na África. Em termos numéricos, a taxa de analfabetismo na Lagoa é de 2% e em Acari 16%. A escolaridade média na Lagoa é 12 anos e em Acari 3 anos. Renda per capita familiar na Lagoa é de 2 mil 126 reais e em Acari é de 115 reais. Expectativa de vida na Lagoa é de 73 anos e em Acari 56 anos. Esses dados fazem com que a ONU conclua que há uma diferença de 96 anos de atraso em relação à Lagoa se nós 31 tomarmos Acari, ou seja, há uma diferença secular que distancia a realidade de Acari à da Lagoa. Há décadas a expectativa de vida aqui no Brasil era de 56 anos. Hoje, a depender do recorte de classe, teremos uma outra resultante. Isso tem absoluta pertinência ao tema dos direitos econômicos, sociais e culturais. Vou tentar fazer menção, o tempo todo, à palestra do Dr. José Carlos Filho para reforçar a idéia da alteridade. É fundamental que incluamos essa grande parcela da população brasileira que vive em Acaris, seja em Porto Alegre ou São Paulo ou em outras regiões. Trago também uma matéria publicada no dia de hoje no jornal Estado de São Paulo em que Mary Robinson, que infelizmente deixou de ser alta comissária da ONU para Direitos Humanos nesta semana e reassumiu a presidência da Irlanda, diz que a pobreza é a negação de qualquer direito ao cidadão e qualquer estratégia de desenvolvimento deve conter ações que possam fortalecer os direitos humanos. Fica claro, então, que a pobreza é uma violação aos direitos do cidadão. Não sei se os Senhores conhecem um trabalho interessante de autoria do Professor Marcelo Paixão sobre IDH e sua perspectiva racial. De qualquer maneira, o Brasil está em 71º lugar com relação à leitura racial. Se indagamos como vive a população branca no País, nós subimos 30 casas e figuramos em 43º lugar. Se indagamos como vive a população negra, nós caímos 30 casas e figuramos em 78º lugar. Na nossa fala vamos também reforçar a idéia de que direitos humanos devem ser concebidos sobre a perspectiva de raça, etnia, gênero, dentre outros critérios. Pertencer a uma raça, a um gênero, a uma etnia importa no modo pelo qual direitos são exercidos ou violados. É fundamental que se tenha essa percepção, até porque quando se fala em direitos econômicos, sociais e culturais temos de enfrentar os processos de etnização e feminização da pobreza. A pobreza, em outras palavras, a violação aos DESC – Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – tem uma feição, tem uma cara e esta apresenta um gênero, uma etnia e uma raça preferencial. Há alvos preferenciais no processo de exclusão de direitos. Feitos esses comentários preliminares, começamos com a primeira questão. O que significaria os Direitos Humanos Sociais, Econômicos e Culturais? De que maneira os direitos humanos podem ser concebidos na ótica contemporânea e de que forma a concepção de direitos humanos abraça os direitos econômicos sociais e culturais? Filio-me àqueles e àquelas que defendem a historicidade dos direitos humanos. Os Direitos Humanos são relativos, são históricos, são invenção humana; não são um dado, mas são construídos. Não obstante à historicidade desses direitos, a todo tempo traduzem uma plataforma emancipatória. Quem defende Direitos Humanos, e aqui temos vários defensores, seja com relação à gênero, raça, adolescência, criança, todos nós 32 partilhamos da mesma ótica da gramática de inclusão. Quem defende Direitos Humanos defende uma gramática de inclusão em reação às formas de opressão, exclusão e desigualdade. Como disse, a nossa intervenção terá como prisma a ótica internacional. A fonte do Professor Norberto Bobbio sustenta essa historicidade dos Direitos Humanos afirmando que estes nascem como direitos naturais universais e aí evoca ele todo o legado iluminista que defendia direitos inalienáveis à condição humana, direitos que não precisavam ser escritos, mas que eram invioláveis, imprescritíveis e, portanto, naturais e universais. Num segundo momento, diz ele, esses direitos se desenvolvem como direitos positivos particulares. Cada Estado, dentre eles o Brasil e outros 200 Estados que integram a nossa ordem internacional, vai trazer a sua gramática própria de direitos. Eles perdem em alcance, deixam de ser universais, tornam-se mais locais, mas ganham em termos de positivação e concretude; tornam-se explícitos, para finalmente encontrarem a sua plena realização, numa terceira fase, como direitos positivos universais. É esse o momento que nos interessa. Cada vez mais há parâmetros. Cada vez mais experiências como a realizada quando da feitura do relatório paralelo ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais mostram que há parâmetros mínimos na esfera internacional que devem ser seguidos pelos Estados. Por exemplo, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi ratificado por mais de 140 Estados, dentre eles o Brasil. Esse é o parâmetro mínimo que deve ser preservado, por mais diferentes que sejam esses países, esses Estados. Então, temos que avaliar de que maneira foi construída essa gramática universal de proteção dos Direitos Humanos. E aqui me reporto à Declaração Universal de 1948, que é o grande marco do processo de internacionalização dos Direitos Humanos. É ela que nasce com a perspectiva de reconstrução dos direitos e resgate da dignidade humana quando tudo parecia estar perdido, em face das atrocidades acometidas ao longo da Segunda Guerra Mundial. Então, é importante trabalhar com este duplo vetor: a Segunda Guerra Mundial significa a ruptura dos Direitos Humanos e o pós-guerra significa a esperança da sua reconstrução. A Declaração se situa ali em 1948 como o eixo inicial de reconstrução dos Direitos Humanos. Portanto, esse é o seu legado, sua ambição, sua pretensão. Isso nos faz repensar a própria noção de cidadania, porque hoje exercer direitos e garantias não significa apenas nós exercermos direitos e garantias previstos constitucionalmente. Temos que somar o âmbito local ao âmbito regional e global. Temos que somar os direitos que aqui estão aos direitos previstos, por 33 exemplo, no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais. Além da Declaração trazer essa tônica universalizante, é o primeiro documento histórico que se clama universal, faz uma gramática universal, ou seja, a dignidade é inerente a toda e qualquer pessoa, independentemente da sua classe, raça, gênero e etnia. A dignidade é a fonte de percepção do outro como sujeito de direito, ela demarca isso. Além dessa linguagem da universalidade dos Direitos Humanos, a Declaração vem contribuir enormemente na concepção dos Direitos Humanos, porque é o primeiro documento da história da humanidade que traz a leitura de que os Direitos Humanos são indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. No relatório paralelo, inclusive, há algumas passagens dedicadas justamente aos Direitos Humanos como sendo indivisíveis e universais. Essa é a gramática contemporânea, esse é o construído contemporâneo. Citando o Professor Cançado Trindade, cada vez mais temos de ver os Direitos Humanos como uma unidade em que direitos civis e políticos, as liberdades clássicas, hão de ser somados aos direitos sociais, econômicos e culturais. Tão importante quanto a liberdade de expressão, de pensamento, de ir e vir, os direitos civis clássicos, o direito à integridade física, moral, o direito a não ser submetido à tortura, os direitos políticos, são também importantes o direito à educação, à saúde, à moradia, à terra, à alimentação, dentre outros. Esses bens devem ser reivindicados, e esse é o lema da Declaração sob a gramática de direitos e não como generosidade, compaixão de qualquer Estado. Esse é o grande avanço em termos conceituais que a Declaração traz. Saúde, educação, trabalho e moradia são direitos públicos, são Direitos Humanos e não apenas caridade a depender da boa vontade de um ou outro governante. Não são caridade, não são generosidade, não são compaixão, mas são direitos. Se os Senhores perceberem, não há dúvida de que há o ranço ideológico. Há autores que denominam os direitos civis e políticos de blue rights e os direitos econômicos, sociais e culturais como red rights. Os direitos civis e políticos são os que o mundo ocidental bem conhece, com a liderança dos Estados Unidos, e os direitos sociais, econômicos e culturais – saúde, educação e trabalho – o mundo oriental tem amplo conhecimento. Há muito de ideológico nesse cenário. Como morei nos Estados Unidos por um ano, posso testemunhar que lá há uma grande dificuldade, inclusive daqueles que militam nos Direitos Humanos, de entender os direitos sociais como Direitos Humanos. Por tradição liberal, a própria constituição norte-americana só prevê direitos civis e políticos, não há qualquer previsão de direitos sociais, econômicos e culturais. A Suprema Corte já declarou que a educação não é direito, é política pública e não pode ser reivindicada perante 34 os tribunais. Então, há a tônica de se falar que direitos civis e políticos são Direitos Humanos, mas os direitos sociais, econômicos e culturais são política pública, expectativa de direito, mas não podem ser reivindicados como direitos. Entendo que são autênticos, verdadeiros direitos fundamentais, e que a sua não-observância compromete o todo dos Direitos Humanos. Violar o direito à saúde, à habitação e à educação significa também comprometer o livre e pleno exercício dos direitos civis e políticos. Esse consenso do pós-guerra, que foi o consenso da Declaração de 1948 e que afirmou a universalidade e a indivisibilidade dos Direitos Humanos, teve a acolhida de 48 países, sendo que oito se abstiveram, mas ninguém votou contra. Com isso, essa Declaração nasceu como um código forte, simbolicamente, porque não contou com qualquer voto vencido. Atualmente o mundo é outro, pois contamos com 217 países. Portanto, é muito diferente do mundo da década de 50, no qual havia 56 países ou pouco mais do que isso. Houve um processo de descolonização, no qual muitos países se formaram enquanto tal e assim por diante. É por isso que se questiona: até que ponto o pacto ou o consenso do pós-guerra da Declaração contém balastros de legitimidade hoje num outro cenário? Essa pergunta, de alguma forma, pode ser respondida quando, há poucos anos, ou seja, em 1993, foi realizada a Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, na qual se reforçou a mesma ótica. Essa Conferência contou com a participação de 171 países, entre eles o Brasil, e veio proclamar que todos os direitos humanos são universais, interdependentes e interrelacionados. Esse é o legado, o construído que temos. Reitero que falar de Direitos Humanos hoje não é o mesmo que fazê-lo na década de 50, nem tampouco o seria se estivéssemos nesta sala em 2050. Os Direitos Humanos têm uma história. Direitos como meio-ambiente e desenvolvimento sustentável nem eram sonhados como direitos em 1948 e hoje são pautas emergentes. Tendo em vista a indivisibilidade dos Direitos Humanos, quais seriam os mecanismos jurídicos de proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais considerando a realidade brasileira? Compartilho de todas as posições apresentadas no sentido de que a Constituição confere lastro e garante proteção a esses direitos. Como afirmei, destacarei aqui a normatividade internacional. A Declaração Universal foi acolhida em 1948, e, a partir dela, começaram a ser elaborados tratados, convenções e declarações dos Direitos Humanos. Uma das grandes preocupações foi a de que não era um tratado. Até hoje se entende, e também defendo, que a Declaração, depois dos 50 anos de sua adoção, se transformou em costume nacional, porque foi sendo referência para os países, 35 tendo seus dispositivos proclamados nas constituições etc. O debate que se instaurou logo após a Declaração de 1948 foi: Como podemos emprestar aos seus dispositivos uma linguagem jurídica vinculante? Como podemos transportá-la para a linguagem dos tratados internacionais? Veio, então, a proposta de juridicização da Declaração, que começou em 1949 e terminou apenas em 1966. Foram quase 20 anos de trabalhos, de debates e de controvérsias sobre essa questão. Havia dois blocos. O Bloco Oriental entendia que a Declaração deveria resultar num só pacto, uma vez que atestava a indivisibilidade dos Direitos Humanos. Portanto, o mesmo pacto deveria prever direito civil e político e direitos econômicos, sociais e culturais; o Bloco Ocidental considerava que tinham de cingir em dois pactos, porque os direitos civis e políticos têm auto-aplicabilidade, demandando apenas de uma abstenção. Os direitos econômicos, sociais e culturais demandam de uma ação estatal, sendo, assim, direitos progressivos. Os orientais consideravam essa posição como ideologia, porque, para eles, era o oposto. Acreditavam que os direitos sociais, educação, saúde e cultura tinham aplicabilidade imediata e que a demanda, de acordo com a sua experiência histórica e com a realização progressiva, são os direitos civis e políticos. Consideravam que a sua realidade não estaria sendo respeitada. Sintetizando, o Bloco Ocidental foi vencedor, e foram feitos dois pactos. Lamentavelmente, esses pactos apresentam a mesma visão trazida pelo Bloco Ocidental, ou seja, o pacto de direitos civis e políticos vai buscar os direitos previstos na Declaração, os ampliando, detalhando e prevendo. São direitos de aplicabilidade imediata, e o Estado tem de garantir esses direitos desde logo, sem escusa e sem demora. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais enuncia também um extenso catálogo de direitos inspirados na Declaração – indo além, sendo mais minucioso, como o direito ao trabalho, justa remuneração, moradia, previdência, saúde e educação –, mas prevê que esses direitos têm a tal realização progressiva diversamente dos demais direitos civis e políticos. Faço uma crítica a essa construção, porque, cada vez mais, entendemos que os direitos humanos sejam eles direitos civis e políticos, ou direitos econômicos, sociais e culturais demandam prestações positivas e negativas. É ilusório e simplista entender, por exemplo, que o direito de voto – um direito político fundamental – ou o direito à segurança sejam direitos que demandem apenas da abstenção do Estado. Quanto custa o direito de voto? Não estou dizendo que não vale a pena esse preço. Quanto custa manter o aparato eleitoral? Quanto custa manter o aparato de segurança para que se proteja o direito à liberdade? 36 Vejam que os direitos civis e políticos têm um custo. Não li nenhum trabalho que equacionasse esses custos, tal como o direito à saúde e à educação. Por isso, considero temerária a doutrina que alguns defendem sobre o princípio da reserva do possível. O que é o possível? Entendo que nesse ponto há toda uma discussão ideológica. Por que é possível investir numa direção e não em outra? Penso que temos de ter esse viés crítico e entender que os Direitos Humanos são complexos e que ambos – direitos civis e políticos, e direitos econômicos, sociais e culturais – demandam ações e omissões do Estado. É muito comum ter-se a visão bastante simplista de que uns são direitos positivos e outros, direitos negativos. De qualquer maneira, corroboramos no sentido de que devemos extrair o máximo de eficácia dos direitos econômicos, sociais e culturais. Na linguagem, esses direitos estão previstos como direitos de aplicação progressiva, ou seja, cabe aos países, e é sua obrigação, reconhecer e, progressivamente, implementá-los, utilizando o máximo dos recursos disponíveis. Isso também fala do pacto. Também concordamos que da aplicação progressiva desses direitos resulta a cláusula da proibição do retrocesso social, significando que se é progressivo, tem de ir para frente. Isso torna juridicamente censurável o retrocesso quando se fala em políticas públicas referentes aos direitos econômicos, sociais e culturais. Trago aqui a voz de Canotilho, para quem o princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: O núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que se traduzam, na prática, em uma anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo social. Creio que, nós, que estamos no âmbito jurídico, temos de endossar essa gramática da progressividade e da proibição do retrocesso social, banindo, como afirmou o professor, leituras que entendam que os direitos sociais são normas programáticas, despidas de qualquer eficácia e com isso anulam e esvaziam a imperatividade e efetividade desses direitos. Se o Brasil e mais 140 países são partes do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, não pode posteriormente, quando se vê cobrado pela implementação desses direitos, se esconder numa falaciosa escusa de soberania nacional. Ser parte desse pacto é ato de soberania. O Brasil só o é no livre e pleno exercício de sua soberania. Foi assim que contraiu obrigações jurídico-vinculantes para se tornar parte desse pacto. Não pode ocorrer, mas muitas vezes ocorre, de o Brasil ser soberano na hora em que entra num tratado ou que reconhece a jurisdição internacional de uma corte e, depois, quando se vê cobrado pela ONU a 37 respeitar e a observar aqueles parâmetros, considera uma afronta à soberania nacional. Isso é o uso hipócrita do termo soberania, porque soberano é o país que entra nesse jogo internacional porque assim quis. Como afirmei, os tratados de Direitos Humanos são parâmetros mínimos de proteção – aqui está o piso mínimo e não o teto máximo de proteção. Se o País for mais avançado, se a legislação doméstica for mais progressista, ótimo. Não se aplica esse mínimo. Lembro que, além do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Brasil também ratificou o Protocolo de San Salvador em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais que entrou em vigor em 1999. A diferença é que esse pacto se atém ao sistema da ONU, e o outro, que fiz menção, se atém ao sistema da OEA e também reforça a importância de garantir-se os direitos econômicos, sociais e culturais, como trabalho, saúde, previdência social, educação, cultura etc, e reitera a mesma linguagem. O protocolo de San Salvador prevê que os países partes – e o Brasil o é – devem investir o máximo dos recursos disponíveis para alcançar progressivamente a plena efetividade desses direitos. Lembro, também, que esse protocolo permite o recurso ao direito de petição a instâncias internacionais, no caso, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para defender dois direitos que ele prevê: o direito à educação e direitos sindicais. Inclusive, houve uma reunião recente da Plataforma Interamericana dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, nos dias 15 e 16, na qual existe toda uma linha de advocacia internacional para que casos de afronta a esses direitos, os quais não possam ser resolvidos no campo nacional, ou seja, esgotadas as reservas internas, possam ser encaminhados à referida comissão. Sustentamos a visão de que temos de somar o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo de San Salvador com o arcabouço nacional e, fundamentalmente, com a Carta de 1988. Temos de somar as duas perspectivas, os dois parâmetros, e avaliar qual é a melhor maneira, as melhores estratégias de defesa e de litigância dos direitos econômicos, sociais e culturais. A Carta de 1988 é o nosso pacto pós-ditadura e, no fundo, está absolutamente sintonizada com essa concepção contemporânea. Endossa a gramática da universalidade e da indivisibilidade; prevê o valor da dignidade humana, que é núcleo básico e formador do ordenamento jurídico. As normas jurídicas hão de ser interpretadas com essa hermenêutica renovada, capaz de seguir a teologia do sistema – a racionalidade do sistema é essa; aposta nos direitos fundamentais, no valor da dignidade humana e no valor do Estado 38 Democrático de Direito. Por essa condição, os tratados, como é o Pacto de Direitos Civis e Políticos. E o protocolo de San Salvador entra pela porta do art. 5º, & 2º, que prevê que os direitos aqui previstos não excluem outros. Então, temos os direitos constitucionais expressos, implícitos, e os direitos internacionais, que devem ser somados ao rol dos nossos direitos. No campo, também sustento que os direitos sociais integram os direitos fundamentais. A própria Constituição, numa análise literal, responde isso afirmativamente. Basta ver que, quando a Constituição, no Título II, trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, traz não só os direitos civis e políticos, nacionalidade, mas também os direitos sociais. Quer dizer, não restam dúvidas de que esses direitos estão previstos na Constituição e nos tratados internacionais. A grande dificuldade reside na relação entre o direito e a política. Na realidade, temos esse desafio. Como diz Canotilho, a Constituição sempre tem como tarefa a realidade. Juridificar constitucionalmente essa tarefa ou abandoná-la à política é esse o grande desafio. Ou seja, as Constituições pretendem conformar o político. Se avaliarmos o legado impacto e o balanço desses pouco mais de 12 anos de vigência da Carta de 1988, veremos que temos 37 emendas à Constituição. Numa análise sistemática, se quisermos avaliar qual o prumo do processo de reforma da Constituição, perceberemos que são reformas que buscam descaracterizar a roupagem social do nosso Estado; que buscam trazer abertura desenfreada da nossa economia aos mercados internacionais; que fragilizam a linguagem dos direitos econômicos, sociais e culturais. Têm sido esses o impacto das reformas, fundamentalmente daquelas realizadas pós 1995. Esse é o grande dilema de quem estuda hoje Direito Constitucional. Temos esta Constituição e temos a Carta emenda, com 37 emendas, que apontam um outro rumo, não só aqui no Brasil, mas na América Latina como um todo, que é o grande rumo da reforma do Estado no campo previdenciário, administrativo, econômico, judicial. Quer dizer, o momento da reforma do Estado. Isso, de alguma forma, responde a plataforma neoliberal, a plataforma da globalização econômica. Tememos imensamente o impacto destruidor dessas reformas no tocante a esse arcabouço denso, protetivo, dos direitos econômicos, sociais e culturais. Quer dizer, quem vai vencer a batalha? De que maneira? Quais as forças de exclusão e de inclusão resultantes nesse cenário? Assim passamos à última questão que se refere ao impacto da globalização econômica no processo de efetivação dos direitos sociais. Como devemos 39 enfrentar a flexibilização e a desconstitucionalização desses direitos? Se olharmos para a América Latina nas últimas décadas, veremos que foram três os grandes desafios: abertura política, estabilização econômica e reforma social. Essas foram as três grandes bandeiras. Hoje, a agenda dos países latino-americanos passou a incluir, com preocupação central, a inserção na economia globalizada. No final de janeiro, todos acompanhamos a realização do Fórum Social Mundial aqui em Porto Alegre. Há toda uma crítica construtiva feita com relação à plataforma neoliberal, aos cortes de despesa pública, à privatização, à desconstitucionalização(?4:18?) e essa abertura desenfreada do mercado ao comércio internacional. Gosto muito de uma frase de Habermas: Hoje, são antes os Estados que se acham incorporados, engolidos pelos mercados e não a economia política, limitada pelas fronteiras nacionais ou estatais. Quer dizer, é chocante notar que, hoje, das 100 maiores economias mundiais, 51 são multinacionais e 49 são do Estado. É nesse cenário que temos de inserir e fazer a nossa avaliação. Hoje, o próprio BID, Banco Mundial, a ONU e o próprio FMI têm consenso de que a plataforma neoliberal, a plataforma da globalização econômica tem aumentado a pobreza, o protecionismo e tem gerado uma exclusão cada vez mais crescente. Com isso, grande parte das pessoas vivem mais no estado da natureza do que propriamente no Estado Democrático de Direito. É bastante temerária essa flexibilização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Esquecime de trazer, mas houve um encarte publicado na Folha de São Paulo sobre o Brasil privatizado. Há estudos excelentes do Aloysio Biondi: Brasil Privatizado, o Desmonte do Estado. Qual é o desafio? Vejam, Senhores, que o Estado brasileiro está deixando de ser prestador direto de direitos, de políticas públicas com as privatizações. O Estado passa a ser regulador do modo pelo qual o setor privado vai prestar não essas políticas públicas – pois setor privado nenhum prestará política pública –, mas serviços. Isso traz toda uma revolução no tocante à gramática dos direitos econômicos, sociais e culturais. O Estado deixa de ser prestador direto de políticas, passa a ser agente regulador econômico; direitos se transformam em serviços; o cidadão se transforma em consumidor. Isso tudo é bastante temerário, pois, seguramente, quando a população cair, não terá o poder aquisitivo e o poder de consumo para usufruir esses serviços. Tomo a liberdade de passar aos Senhores um artigo que versa sobre os direitos trabalhistas. Posso ter uma posição jurássica, mas entendo ser fundamental o fato de que não podemos deixá-los flexibilizados. A proposta que há de reforma 40 do art.7º, caput, da Constituição, é no sentido da flexibilização total. Ou seja, direitos como férias, licença-gestante, licença-paternidade, salário mínimo, tudo isso dependerá do contrato. As Centrais Sindicais ficaram indignadas com a proposta de reforma. Agora, o Governo tenta recuar, tenta evitar que isso seja feito via reforma da Constituição, mas já há projeto de mudança da CLT com o mesmo sentido. Na verdade, trata-se de uma reforma constitucional por via oblíqua. A tentativa é para submeter e condicionar todos os parâmetros mínimos na área trabalhista a contrato, que pode ser individual ou coletivo. Hoje, vivemos com um alto índice de desemprego. Isso acaba tornando precária e assimétrica a relação de trabalho. É fundamental que o Direito tenha esse papel compensatório. Segundo dados, somos a quinta população economicamente ativa do mundo, mas, em contrapartida, temos a terceira maior quantidade de desempregados. São dados de 1999, pesquisados em 141 países. Na Folha de São Paulo, foi publicado um artigo do Professor Márcio Pochman, da Unicamp, sobre o desemprego na economia global. Nesse artigo, há menção sobre esse estudo. Num cenário como esse, imaginem os Senhores o poder de barganha, de negociação dos trabalhadores, do próprio movimento sindical, já que há um exército de excluídos que se submeteria a qualquer condição de trabalho. Isso seria a própria globalização da escravidão. É por tudo isso que entendo ser de fundamental importância imaginarmos estratégias de proteção e de salvaguarda dos direitos econômicos, sociais e culturais em espaços como este, reafirmando a indivisibilidade desses direitos, lembrando que a vulnerabilidade econômico-social leva à vulnerabilidade dos direitos civis e políticos, lembrando o legado de Amartya Sen, Prêmio Nobel da Economia em 1998, autor de um excelente livro, traduzido recentemente para o português: O Desenvolvimento como Liberdade. Ele diz que a negação da liberdade econômica sob a forma de pobreza extrema torna a pessoa vulnerável a violações de outras formas de liberdade. Ou seja, a negação de liberdade econômica implica a negação da liberdade social, política e outras. É um economista partilhando desta ótica tão clara da indivisibilidade dos Direitos Humanos. Torno a dizer que os grupos sociais mais vulneráveis são aqueles que mais sofrem nesse processo, especialmente as mulheres e, no caso brasileiro, a população negra dentre outros setores. Termino minha participação, citando um autor chamado Jack Donelli que diz que se os Direitos Humanos são os que civilizam a democracia, o estado de bem-estar social é o que civiliza os mercados. Quer dizer, se os direitos civis e 41 políticos mantêm a democracia em índices razoáveis, os direitos econômicos e sociais estabelecem parâmetros e limites adequados aos mercados, de forma que mercados, eleições, por si só, não são suficientes para assegurar Direitos Humanos para todos. Daí, emerge este desafio: a construção de um novo paradigma. A contribuição do Fórum Social Mundial foi extraordinária nesse sentido, dando visibilidade, experiências exitosas com relação à defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais em outras partes do mundo. Nesse arcabouço construtivo, é capaz de dar visibilidade a uma estratégia que busca o desenvolvimento sustentável, mais igualitário e mais democrático. O imperativo da eficácia econômica tem de ser conjugada com a exigência ética de justiça social em uma ordem democrática que garanta a todos o pleno exercício dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais sob a perspectiva de gênero, raça, etnia, entre outros critérios. Concluo citando Saramago, numa passagem que considero da máxima importância: O mundo não está em ordem; a ordem é sempre ao que nós buscamos construir. Temos de inventar essa ordem. Segundo o autor, as pessoas nascem todos os dias e só delas é que depende continuarem a viver o dia de ontem ou começarem, de raiz e berço, o dia novo, o hoje. Espaços como este são oportunidades de revitalização, de construção de estratégias em prol da defesa radical e intransigente da dignidade humana. Muito obrigada. Professora da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo; coordenadora do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado/SP; membro do Comitê Latino-Americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher; integrante da Comissão Justiça e Paz; membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana; ativista da Anistia Internacional; autora de diversos livros sobre o tema. 42 Debate Virgínia Feix – advogada da Themis- Estudos de Gênero e Assessoria Jurídica: -Tenho uma pergunta com relação à eficácia dos Direitos Humanos e, mais especificamente, sobre a relação entre a sociedade civil e a tutela dos direitos difusos. Em função de um fato ocorrido aqui no Rio Grande do Sul, a Temis resolveu canalizar uma indignação nacional com relação a certas letras de música – no caso agora, do ritmo funk – que afrontam diretamente a dignidade das mulheres e crianças e que incitam a violência. A iniciativa não se deu numa perspectiva moralista ou de censura, mas numa discussão de direitos. Em nome da liberdade de expressão, até que ponto nós poderíamos apontar outros princípios constitucionais, mas entendemos que não. Nessa perspectiva, discutimos o que fazer e acabamos concluindo por uma representação no Ministério Público pedindo providências e fazendo essa discussão com a sociedade. Nessa discussão do que fazer nos vem claramente a necessidade de construir procedimentos para que a sociedade civil possa compartilhar da titularidade de interposição de ações civis públicas. A nossa perspectiva é de fazer um seminário internacional ainda este ano e aproveito para pedir a contribuição dos juristas que fazem parte da mesa nesse sentido. Seria esta a questão que apresentaria à Mesa: pensarmos ou apontarmos caminhos nessa perspectiva. Flávia Piovesan – Agradeço à Virgínia Feix. É uma questão tormentosa e difícil, mas lembraria que há precedentes no caso de São Paulo com relação ao Movimento Negro. Houve uma reação a algumas músicas e o Movimento Negro acabou reagindo, seja com representação administrativa junto ao Conar, seja com medidas judiciais. Recordo-me no ano retrasado ao receber denúncias do Movimento Nacional de Direitos Humanos não com relação à música, mas a outdoor alusivo a uma campanha pelo armamento em reação ao Projeto de Lei que previa os armamentos. Foi um caso interessante do qual participei elaborando a inicial da ação civil pública. Aí houve essa ponte do movimento social, ou seja, a demanda nasceu do movimento social, especialmente do Movimento Nacional dos Direitos Humanos e de vários grupos do movimento negro, entendendo que o outdoor – não sei se aqui chegou esse outdoor – da Mainardi em que havia um jovem negro com uma tarja nos olhos – a campanha sou da paz –, com uma arma, 43 dizia: Você é da paz, eles não. Vamos desarmar os bandidos e não os cidadãos de bem. Era absolutamente esteorotipada a visão que lá se tinha. Para quem lia, o bandido é o negro, é o jovem de periferia e assim por diante. Foi um caso interessante, pois veio do movimento social, ou seja, o laço de legitimidade havia e, no grupo de trabalho de direitos humanos da procuradoria que coordeno, debatemos esse caso, fizemos a inicial e o Estado de São Paulo propôs, como autor, a ação civil pública. Foi feito pela Procuradoria do Estado de São Paulo. Foi um caso interessante, primeiro, porque houve a demanda de entidades, segundo, porque várias vítimas foram humilhadas e agredidas com aquele outdoor e o que foi muito bom é que o Juiz foi sensível. Sempre ficamos com aquele medo de que pode ser uma decisão exitosa, mas pode não ser e aí tem que ser avaliado o custo disso. Nesse caso, houve a constituição de tutela antecipada com a determinação imediata de remoção dos outdoors e multas. O processo assumiu uma feição pública e política também bastante acentuada, porque o indivíduo que estava no outdoor dizia que ele não era negro. Ele dizia-se branco, só que a comunidade negra inteira viu-se nele refletida. É aquela negação da negritude pelo próprio negro. O movimento negro se viu nele. Essa ação não se volta para defender o seu direito, ele pode se achar vermelho, azul, amarelo, o que importa é que as pessoas se viram nele e a comunidade viu-se humilhada por estar ali refletida naquela dimensão. O fundamental, portanto, é que a ação civil pública é um instrumento jurídico de grande lastro político também. Pela lei, quem pode propor é o Ministério Público, o Estado, o Município, a União e entidades se estiverem legalmente constituídas há dois anos, se tiverem no seu estatuto essa previsão. O grande problema é que nós não podemos instaurar o inquérito civil público. Isso é medida do Ministério Público, só ele pode. Então, ficamos em desvantagem nesse sentido. A Themis ou outras entidades não poderiam requisitar provas, não poderiam instaurar o inquérito no sentido de levantar evidência em relação a esse assunto. Parece-me que a estratégia a ser adotada no caso das ações civis públicas para que exista realmente a defesa de direitos difusos, que a sociedade se sinta representada, é através de audiências públicas, dando visibilidade a questão, chamando setores significativos da sociedade civil para que, então, exista o instrumento judicial e a ação seja proposta. Dou um exemplo, mas ainda estamos trabalhando com o Ministério Público e outras entidades, atuando com o Ministério Público Federal numa ação civil pública que busca ações afirmativas em prol de mulheres no tocante à administração pública federal, já que há um 44 estudo mostrando uma discrepância no tocante aos cargos de chefia que estariam sendo distribuídos de forma bastante desigual entre homens e mulheres. A vantagem é que houve a instauração de inquérito civil público. Há volumes e volumes, o Ministério Publico oficiou e todas as entidades oficiadas responderam, há provas, portanto há indícios, e agora queremos dar visibilidade e ampliar esse debate. A idéia é fazer uma audiência pública fazendo com que a sociedade civil se sinta envolvida para que, então, a ação judicial possa representar a voz e a pluralidade da sociedade civil. Entendo qual a tua questão. Muitas vezes pode parecer que é a Themis e não a sociedade civil que se vê. Não sei se essa é a tua preocupação, no campo da legitimidade. Virgínia Feix – A questão seria buscar construir procedimentos para que as organizações da sociedade civil pudessem ser autoras na ação civil. Nesse caso, a estratégia que talvez seja construída, já manifestada pelo Procurador da República de Cidadania e Direitos Humanos, é de fazer audiência pública e instaurar imediatamente inquérito civil público. Ele está propondo que, se indicada a ação civil pública, venhamos a ser litisconsorte. Flávia Piovesan – Ótimo. Isso é o que estamos também avaliando em termos de estratégia para essa outra. Que não seja o Ministério Público sozinho monopolizador da ação, mas que seja o Ministério Público e entidades x, y e z. Virgínia Feix – Até porque fizemos um ato e contamos com o apoio de dezenas de entidades ligadas à criança e ao adolescente e às mulheres, que assinaram um documento de apoio à representação. Flávia Piovesan – Concordo. Acredito que essa é a via: audiência pública e também segurar no pólo ativo da demanda, ou seja, ser autor e provocador do Poder Judiciário. José Carlos Moreira Da Silva Filho – Faço apenas um rápido comentário. Sem dúvida alguma, tudo que foi apresentado também sinaliza para a direção da importância exatamente de uma preocupação como a tua, ou seja, de aproximar as instâncias legítimas de organização da sociedade civil em relação às instâncias institucionais. Nesse ponto temos uma riqueza muito grande em nível institucional, através do Ministério Público, enquanto quarto poder, que deve atuar na medida em que também houver uma maior interação com a sociedade civil. Então, a sociedade civil aproximando-se mais dessa instância e ao mesmo tempo o Ministério Público também tornando-se sensível, acredito que teremos uma maior eficácia até em termos estratégicos, na medida em que há uma grande resistência política e jurídica às reivindicações e mobilizações que não sejam legitimadas ou que não passem por essas instâncias, o que observa-se em determinados segmentos 45 sociais que independentemente de uma mediação com instâncias que integram a função da justiça colocam os seus direitos e exigem o seu atendimento. Acredito que é uma estratégia fundamental e importante. Esse assunto, em termos acadêmicos, também traz uma discussão bastante interessante no que se refere ao conflito de princípios, a antinomia de princípios. Pela própria tradição jurídica à qual o nosso senso comum está aferrado, temos uma dificuldade muito grande de trabalhar com noção de princípios. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal há bem pouco tempo tinha uma posição majoritária de que a ofensa a um princípio constitucional não era interpretada dentro da alínea a do inciso I do art. 102, que aborda os casos de recursos extraordinários, na medida em que interpretavam que o princípio não seria uma ofensa direta à Constituição, exatamente pela sua vagueza e ambigüidade. Um entendimento que já foi contraditado ali mesmo. Temos essa cultura de que princípio é uma determinação e, quando se coloca em contradição com os outros, há um argumento a mais. Na verdade, vamos deixar que os funks invadam as nossas telas a todo momento. Ontem mesmo vendo televisão, em pelo menos dois canais estavam sendo exibidas coisas dessa natureza. Realmente impõe-se um questionamento em relação ao princípio da dignidade, do respeito a determinados valores em contraposição ao princípio da liberdade de expressão. É importante utilizar-se a estratégia referida, pois como é polêmico pensar em termos de censura ao exibir determinadas imagens, a propagar determinadas frases, é importante também adotar uma estratégia no sentido de compartilhar os mesmos espaços para dar uma outra visão, para mostrar que essa não é uma visão unívoca ou pelo menos para polemizar aquilo de uma forma interessante. Flávia Piovesan – Faço um último comentário interessante à luz até do que disse o José Carlos. Também vejo que essa reflexão sobre a Themis esboça o quanto o movimento de direitos humanos em geral se apega mais a estratégias políticas e não tanto a estratégias jurídicas. Entendo como fundamental que possamos somar as duas estratégias, a política e a jurídica, e tentar litigar perante o Poder Judiciário causas de direitos humanos como essa e como tantas outras e provocar o Judiciário. O Judiciário brasileiro é pouco provocado em relação a direitos humanos. Nós, como um todo, sabemos fazer manifestação, seminário, tecer fóruns, passeata, agora valer-se de estratégias jurídicas ainda é um aprendizado que está em construção. No estudo que fiz no ano passado, percebe-se isso. A sociedade civil sente-se mais próxima do Legislativo, sabe chegar ao Legislativo. Vejam quantos da sociedade civil estão aqui. O Legislativo está de portas abertas. No Executivo, querendo ou não, há um trânsito. O Legislativo e o Executivo incorporaram a lógica dos direitos humanos, basta dizer que há 46 comissões de direitos humanos aqui e nos demais Estados da Federação, na Câmara Federal, e, gostemos ou não, no âmbito federal o tema também foi introjetado e foi incorporado, há, inclusive, Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Nos Executivos estaduais isso também chegou. E, no Poder Judiciário, não chegou. O processo de democratização não encurtou a distância entre a população e o Judiciário. E aí é uma outra longa discussão que não quero entrar. Há pesquisas que mostram que 80% da população latino-americana se vê distanciada do Judiciário. E esse é o maior problema. Uma pesquisa feita aponta que 75% dos juízes brasileiros se vêem distantes da população e entendem que esse é o maior problema. Ações como essa são fundamentais para reduzir a distância que há entre o Judiciário e a população e permitir que ele seja quiçá um locus de afirmação de direitos. Pelo menos tem que ser testado e provocado para isso. José Carlos Moreira da Silva Filho – Para reforçar o que a Professora disse em relação ao Poder Judiciário, há um estudo feito por um autor gaúcho, José Felipe Ledur, publicado pelo Sérgio Antônio Fabris, que fala do direito ao trabalho. Ele fez uma pesquisa jurisprudencial sobre em quantas decisões nos Tribunais Superiores se havia tratado ou tentado tratar o tema da dignidade humana. Simplesmente, ele não encontrou. Encontrou em apenas duas ações envolvendo habeas corpus. 47 Mesa redonda A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos, sociais e culturais Deputado Pe. Roque Grazziotin - A proposta deste Seminário que está sendo realizado é que, posteriormente, seja feita uma publicação que nos auxilie profundamente nessa nova visão desafiante dos Direitos Humanos nos dias de hoje, em que todos estamos buscando um aperfeiçoamento. Inicio falando a respeito da dimensão humana, da dignidade, que não é algo óbvio e nem consensual. Na disputa histórica entre dois projetos de civilização, a dimensão humana nem sempre aparece como um elemento de base negociável e inarredável de qualquer tratado, convênio ou norma de convivência social. Ao contrário, na atualidade, por incrível que pareça, a dimensão humana tem sido cada vez mais posta em xeque, cada vez mais vilipendiada na balança de decisões que determina o destino do meio ambiente, da paz e das condições de vida dos povos. Proclamar os Direitos Humanos constitui-se num dos primeiros momentos de progresso de um projeto de civilização, um projeto humanista e solidário que se opõe à hegemonia dos interesses econômicos concentrados e excludentes, projeto de um novo mundo, que acreditamos possível e viável. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos materializaram-se dois pactos internacionais, que formam a chamada Carta da ONU sobre Direitos Humanos: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A Doutrina Oficial da ONU, de 1989, a partir de Viena, afirma a igualdade, a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a interpelação dos direitos humanos individuais, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais das sociedades e dos povos. De certa forma, isso não deixa de ser uma nova declaração ou proclamação que, se não avançar em termos de esforço e de concretização, permanecerá na mera retórica, principalmente no que diz respeito 48 aos direitos econômicos, sociais e culturais. Se é verdade que a possibilidade de realização é elemento imprescindível dos direitos, é nesse ponto que devemos concentrar os nossos esforços, criatividade e coragem. Dar um passo adiante não queimando etapas, mas criando condições para que as anteriores não caiam no vazio da mera eficácia simbólica. A fome não é nada simbólica, como também não é a ignorância, a tortura e a exclusão. Qual é o elo que falta entre a normatização internacional e a satisfação real das necessidades básicas, que realmente possibilitam a autonomia e a liberdade? Sem preocupar-me em hierarquizar, aponto algumas condições indispensáveis e ainda insuficientes para a plena realização dos Direitos Humanos, especialmente dos direitos econômicos, sociais e culturais. Primeiro, em termos teóricos, a impossibilidade de realizar plenamente os direitos humanos, de acordo com a doutrina oficial da ONU, condiciona a própria definição dos direitos econômicos, sociais e culturais como outro tipo de direito. São fundamentais. É como se afirmássemos que, como é praticamente impossível acabar com o extermínio de adolescentes pobres, não existe o direito fundamental à vida no ordenamento jurídico brasileiro, ou que ele não é universal, mas apenas para os ricos. Ou que, como ainda são torturados escandalosamente nas delegacias e nos presídios, não exista o direito à integridade física e moral no Brasil, a não ser para aqueles que nunca são suspeitos de nada. Da mesma forma, porque não são combatidos a fome e o trabalho infantil, não se quer dizer que a alimentação, a saúde e o trabalho digno não sejam direitos fundamentais. Segundo, a título de condições jurídicas, a debilidade jurídicoconstitucional dos direitos econômicos, sociais e culturais no Brasil é causa que contribui para a não-realização pela via da proteção, ou seja, não há mecanismo de amparo às violações dos direitos econômicos, o que explica também por que não são considerados direitos fundamentais, mas, sim, sociais, com toda a carga, abertura e imprecisão que o termo social implica. Percis Barba propõe que devemos considerar esses direitos como subjetivos, posto que, frente ao titular do direito – sujeito ativo – existe um sujeito identificável obrigado por esse direito – sujeito passivo. Nessa linha, grande parte dos advogados brasileiros também propõem a auto-aplicação de todos os direitos constitucionalizados, numa verdadeira inversão da lógica do saber jurídico dominante. É necessário, em qualquer caso, cimentar juridicamente e não só como imperativo moral o estatuto jurídico constitucional dos direitos econômicos, sociais e culturais. 49 Terceiro, no que diz respeito às condições éticas, Barba nos ensina que os direitos, juntamente com os valores e princípios, formam o conteúdo de justiça de uma sociedade democrática e moderna, tendo como objetivo último ajudar para que todas as pessoas possam alcançar o nível de humanização máximo possível em cada momento histórico. O que ocorre atualmente é uma inversão de valores que sobrepõe o princípio do crescimento da autonomia individual, da eficiência econômica e da competitividade ao princípio da igualdade e da solidariedade. Assim, fica difícil disputar a legitimidade de ações positivas de prestação sociais para todos os cidadãos, que por diversos motivos não produzem, não consomem, enfim, não participam plenamente do jogo utilitarista, mercantilista e consumista em que se resume o modelo econômico e político brasileiro atual. Quarto, as condições sócio-políticas baseiam-se no trabalho, um dos principais pilares de sustentação dos direitos econômicos, sociais e culturais que vêm se debilitando rapidamente, não só em sua dimensão de direito, mas também de fato. A internacionalização das atividades econômicas e seus reflexos diretos no mercado formal e informal de trabalho tem excluído famílias e comunidades inteiras das possibilidades reais de gozo de todos os Direitos Humanos. O Estado não dá conta de tal rombo, nem em termos de políticas públicas de redistribuição de riquezas, propriedades e terras, nem em termos de reorganização estrutural do modelo que causa esse desastre social. Quinto, em termos de condições econômicas, a escassez crônica de recursos, decorrente de opções políticas que nem sempre estão ao alcance do Estado nacional, e muito menos do local, serve sempre de justificativa para recortes cada vez maiores nos gastos sociais, frente ao crescimento ilimitado das necessidades básicas da população. Mas a margem de decisão nacional e local é chave para a existência e condições concretas de realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. E aí cabe todo o tipo de iniciativas e alternativas ao modelo excludente dominante, como, por exemplo, o Orçamento Participativo, Frentes de Trabalho, Programa Primeiro Emprego e tantos outros programas sociais. Não são fundamentais, não se realizam, não se protegem, não são legítimos socialmente e não são objeto de interesse econômico. Como afirmar, nessas condições, que os direitos econômicos, sociais e culturais são Direitos Humanos, ao lado dos direitos individuais, civis e políticos? Esses direitos não partem da ficção de que basta ostentar a condição humana para ser titular, se o ponto de partida, no nosso entendimento, é outro, é o 50 da desigual distribuição da riqueza e da propriedade que impede que as pessoas possam satisfazer por si mesmas as suas necessidades básicas. Se o ponto de chegada, sua utopia é justamente o ponto de partida dos Direitos Humanos individuais, é a universalidade no limite, a democracia só é possível numa situação de homogeneidade e oportunidades sociais. O desafio que se impõe a todos nós está, tanto quanto em relação aos direitos individuais, civis e políticos, na criação de mecanismos efetivos de proteção. Os direitos individuais, civis e políticos dependem, atualmente, quase exclusivamente da boa vontade política de não violá-los. Não dependem quase de verbas, de prioridades orçamentárias ou de políticas afirmativas. Bastaria uma ordem decidida, ações eficazes de controle e punição para que, imediatamente, diminuíssem as barbaridades das torturas contra cidadãos que estão sob os cuidados do Estado, delegacias de polícia, viaturas policiais, militares, Febem, hospitais públicos e privados com leitos psiquiátricos. Há bases legais, éticas e estruturas institucionais coerentes com o Estatuto dos Direitos Humanos Individuais que permitem um avanço maior do que o alcançado até aqui. Já os direitos econômicos, sociais e culturais carecem ainda de bases teóricas e metodológicas, éticas e políticas, e de recursos para que se possam fundamentar e conquistar a sua plena realização. Entretanto, assim como os direitos individuais dependem, como alavanca primeira para a sua eficácia, da vontade política, de iniciativas de ações afirmativas positivas e atenção às necessidades básicas sem discriminação, o desafio está em criar mecanismos de realização e proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais. Aos operadores do Direito cabe enfrentar o desafio de construir solidamente uma lógica alternativa dominante, ou seja, sustentar a autoaplicabilidade das normas constitucionais, a automática aplicação das normas internacionais e a criação de mecanismos de proteção efetivos ágeis e acessíveis para os casos de violação ou de omissão do Estado. Aos legisladores cabe enfrentar o desafio de conformar políticas públicas de redistribuição das riquezas, contingenciar verbas à existência de uma institucionalidade democrática e plural, priorizar a criança e o adolescente em todas as iniciativas de fiscalização, promoção e legislação, criando medidas legais para a mediação entre os setores privados que combatem a exploração e a exclusão. Aos executores cabe enfrentar o desafio de destinar todos os recursos disponíveis, inclusive contando com a ajuda internacional e iniciativas privadas para as políticas e programas concretos de combate à pobreza, de desenvolvimento 51 auto-sustentável de proteção das culturas diversas e de oportunidade de autonomia individual, familiar e comunitária. Ao Ministério Público cabe fiscalizar tudo isso, obrigando-nos a cumprir com as nossas responsabilidades e a propor punição para toda a sorte de violação, negligência ou omissão. À sociedade cabe lutar pela transformação dos direitos em poderes, disputando, em todos os momentos, espaços concretos de participação dos processos de decisão. Cabe disputar modelos éticos que contemplem a solidariedade, a auto-ajuda e o cooperativismo. Cabe também autogarantir-se, ao mesmo tempo em que pressionar o Estado, para que, como mediador, seja um aliado e um priorizador dos Direitos Humanos em todas as frentes de sua intervenção. A democracia mais radical e a realização dos Direitos Humanos são dois pilares que se sustentam mutuamente, apoiando e protegendo os valores mais caros à civilização que queremos construir. Há que combater a atitude cínica de afirmar a bondade dos direitos econômicos, sociais e culturais, desde que fora do ordenamento jurídico que os garanta e proteja. Há que combater a postura absolutista cega, que atribui automática efetividade sem a criação de mecanismos de amparo individual e coletivo. Há que lutar por uma lógica de reciprocidade não só entre direitos e deveres, mas também entre direitos individuais e sociais. Por exemplo, equiparar o direito à inviolabilidade do domicílio ao direito de moradia. Há que trabalhar para que haja novas realizações no campo desses direitos, contando com a auto-ajuda social e com movimentos de voluntariado qualificado e comprometido. Há que fugir da lógica da reserva do possível, da ideologia da ditadura dos cofres vazios, libertando a criatividade e a ousadia de inverter prioridades, ainda que com recursos escassos. Há que desmascarar a crise como pontual e como justificativa sempre imprevista para que programas se desmoronem, projetos não saiam do papel e verbas não cheguem. A famosa crise é, na verdade, estrutural e corresponde a uma parcela da sociedade que não está em crise, mas vive dela. A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, honrando a sua trajetória de trabalho pioneiro neste campo, assume nesta gestão, de forma mais explícita e comprometida, a árdua tarefa de contribuir para que os direitos econômicos, sociais e culturais se incorporem real e eficazmente ao conjunto único, indivisível e universal dos Direitos Humanos. Esta Comissão propõe-se a trabalhar também para que, ainda que tardiamente, os direitos fundamentais à vida, à integridade física e moral e à 52 liberdade se realizem plenamente em nosso País. Agradeço a presença e a participação de todos neste painel que estamos iniciando. Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa. A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos, sociais e culturais, na visão do Judiciário Rui Portanova Gostaria de agradecer o convite para participar deste painel e dizer que logo levantei a questão se, na verdade, eu estaria aqui para representar o Poder Judiciário. E esta é uma dificuldade bastante grande que tenho, mas deram-me uma certa liberdade para não o representar, porque, do ponto de vista dos Direitos Humanos, tenho uma visão crítica em relação ao que tem sido colocado dentro do Poder Judiciário em geral. Ficaria extremamente constrangedor se eu colocasse aqui, representando o Poder Judiciário, a minha posição particular, mas foi-me dito que eu viria representando a mim mesmo. Portanto, peço desculpas aos Senhores porque, certamente, cometerei um equívoco de linguagem que percebi no momento em que estava pensando a respeito. Falarei eles no sentido da visão tradicional de Poder Judiciário, e na verdade somos nós, eu também sou tão conservador, tão neutro quanto é o Poder Judiciário como um todo, ou seja, quando eu estiver falando eles, não fiquem imaginando que estou sendo mais crítico do que gostaria de ser. Trata-se apenas da forma como me manifesto na minha crítica: eles, é o Poder Judiciário e sou eu também. A pergunta que faço, em razão de parte do que foi dito pelo Padre Roque, e que gostaria que conduzisse toda a minha fala, é no sentido de saber se para o Judiciário adianta ter lei. E gostaria de mostrar aos Senhores como é difícil ficar numa posição de representante do Poder Judiciário e possibilitar esta resposta. O primeiro enfrentamento, que me parece ser o mais radical de todos, é que entendo que o Poder Judiciário não é neutro, apesar de a maioria das pessoas que trabalha no Judiciário, que trabalha com o Direito, ver o juiz como neutro. Faço uma distinção entre imparcialidade e neutralidade. O juiz é imparcial, mas não é 53 neutro. Imparcialidade é aquela relação que liga o juiz com a parte. Por isso o juiz não pode julgar o caso do seu irmão, do seu pai e da sua mãe, pois tem uma relação com a parte. Ele tem de ser imparcial, mas não é neutro. A neutralidade é o instituto que liga o juiz, não enquanto ser e não enquanto indivíduo, mas enquanto cidadão, com o tema posto em juízo e não com a parte posta em juízo. E aqui o juiz não é neutro. Se na imparcialidade o juiz tem de se omitir para não julgar os casos dos seus irmãos ou de seus parentes, na neutralidade o juiz é obrigado a se comprometer, porque a sentença é o sentimento e provém de sentir – e o sistema quer que o juiz diga o seu sentimento. É exatamente por isso que um juiz homossexual pode julgar um caso de homossexual, um juiz negro pode julgar um caso de racismo e um juiz homem ou mulher pode julgar um caso em que tenha sido envolvida uma questão de machismo. E os juízes – desculpem, mas agora vou começar com eles – acham que são neutros, ou seja, não se apercebem que são machistas, racistas, heterossexualistas e capitalistas. E não se apercebendo disso, ou às vezes se apercebendo um pouco mais, acabam reproduzindo o que chamo de ideologia dominante, que é o machismo, o racismo, o capitalismo e o heterossexualismo. Para dentro do Poder Judiciário sempre vêm causas que a todo o momento estão sendo cortejadas essas ideologias, algumas vezes mais claramente, noutras nem tanto. Daí não poder acusar o Poder Judiciário, por exemplo, de não ser humano, que é a dimensão proposta neste painel. Nem posso dizer que não obedece à lei. Obedece, mas acontece que faz uma determinada escolha de toda a lei que existe, e obedece à dimensão humana. As decisões obedecem, só que obedecem a uma determinada dimensão humana: àquela que é capitalista, racista, machista e heterossexualista. Então, não se pode acusar o Judiciário de não tratar o humano. Apenas que trata o humano prestigiando mais o capital do que o trabalho, mais o individual do que o social, mais a lei do que a ética, mais a busca da liberdade do que a busca da igualdade – nesta perspectiva, a minha visão é crítica. Na dimensão ética, para citar um exemplo, recentemente o Presidente do Tribunal fez passar uma circular perguntando se dentro dos gabinetes dos desembargadores havia nepotismo. Respondi, perguntando se a resposta que eu tinha de dar também envolvia o que se chama de troca-troca. Não aquele filho que eu contrato, ou filho de um desembargador que eu contrato, mas o filho do procurador ou do juiz do Tribunal que eu contrato e que, por sua vez, contrata o meu filho. Se isso eu também tinha de informar, porque sei que essa não é uma dimensão jurídica legal, não consta na Constituição, mas é uma dimensão ética e que pode minar, do ponto de vista ético, 54 aquilo que é uma conquista contra o nepotismo no Rio Grande do Sul. Foi-me dito que eu só deveria informar o que consta da emenda constitucional. Então, informei que no meu gabinete não havia nepotismo, mas sugeri ao Presidente do Tribunal que fizesse a mesma pesquisa, fazendo circular um novo ofício, para fins de eliminar as questões de ponto de vista ético, perguntando aos desembargadores se contratavam em seus gabinetes algum filho de procurador ou de juiz do Tribunal de Contas que, por sua vez, contratasse também o seu próprio filho; e se nos gabinetes era contratado namorado ou namorada de um filho ou de uma filha. O ofício foi recentemente respondido. Ainda não foi dito se será feita a pesquisa ou não, mas pode-se sentir que no Poder Judiciário, na perspectiva de interior e administrativa, a preocupação é muito mais legal do que ética. Pretendo fazer um enfrentamento dessa dimensão humana, dessa perspectiva e dessa visão crítica, muito mais do ponto de vista cível, que é a minha área de atuação – talvez fosse interessante fazer do ponto de vista criminal, mas não tenho engenho e arte para isso, pois não é a área em que trabalho – e do ponto de vista do processo, nem tanto do direito material. Mesmo que eu não trabalhe com a visão criminal, gostaria de lembrar que a Lei das Execuções Penais, se fosse cumprida, não deixaria margem à discussão sobre aplicações de humanidade e de atendimento aos Direitos Humanos. Apesar de a lei não ser atendida – e vejam como aqui não basta ter a lei –, a minha pergunta já se responde. Temos a lei para uma boa execução criminal, mas desrespeitada, certamente em nome de outros valores. Gostaria de falar da dimensão do humano na perspectiva do ECA e processual, de aplicação do ECA e na parte cível. Há um ano e meio venho trabalhando com as medidas contra adolescentes, e tenho visto que os maiores estão melhor processualmente protegidos do que os menores – sei que não se usa mais a expressão menores. Tenho tido uma preocupação muito grande, dentro do Tribunal, de fazer uma aproximação entre o Código de Processo Penal e o ECA, na sua parte processual, mas, ainda assim, com muita dificuldade, porque, se hoje, no interrogatório criminal, é absolutamente indispensável a participação de um advogado, ainda há muita dúvida, principalmente das duas câmaras. Eu diria que só três desembargadores entendem que o adolescente sendo ouvido, precisa estar acompanhado de seu defensor. Só três desembargadores anulam, de ofício, esse tipo de situação. Vejam, aí já se tem uma violação do princípio constitucional da defesa, algo já consagrado no Processo Penal, não é trazido para dentro do ECA. Pelo ECA, ainda, uma questão revelantíssima, o Tribunal tem que destinar uma verba para a equipe interprofissional fazer os exames nos adolescentes infratores, 55 é obrigado a destinar uma verba para isso, a lei determina que o juiz pode determinar que faça um laudo antes de decretar a interação, que é justamente para auxiliar o tipo de medida que vai aplicada, mas 90% dos processos infracionais não têm nenhuma preocupação em relação a fazer laudos. Eu, particularmente, tenho anulado, porque apesar de a maioria dos desembargadores entenderem que aquele laudo é facultativo do juiz, costumo dizer que, infelizmente, continuo juiz, e para mim é importante que um laudo venha, ainda que seja em segundo grau, para fazer a identificação, tenho anulado, então, os processos para que se proceda a esse laudo, mas sou vencido, apenas um outro desembargador me acompanha. Está lá, com todas as letras, no Código, que o juiz pode pedir o laudo, porém, os juízes não pedem os laudos. E a execução do ECA sofre do mesmo problema da execução penal no normal. Verdadeiramente temos, na Febem, um presídio, não é outra coisa, e a lei fala que o juiz pode revisar a medida em até seis meses, porém, a interpretação que tem se dado é que só se revisa a medida de seis em seis meses. Quer dizer, o menor pode ter sua solução dois meses depois de uma entrevista com um juiz, mas ainda assim terá que esperar mais quatro meses, o que é uma afronta à lei. Temos a lei, mas devido a uma política judiciária, não a obedecemos. No Cível também, não há falta de lei, apenas há uma forma de dimensão humana, e que esta forma dominante de se ver a dimensão humana, a mim, data vênia, merece crítica. É uma forma capitalista. Não falta lei, por exemplo, para proteção da função social da propriedade, contudo, não se tem visto nenhum fazendeiro que tenha suas terras ocupadas pelo Movimento Sem Terra, precisar alegar nas suas petições iniciais que a sua propriedade tem função social. E nem os juízes têm a mínima preocupação em saber se aquela terra tem função social ou não. Não conheço nenhum caso de juízes, diante de uma ocupação do Movimento Sem Terra, de ir até o local para saber se a terra está tendo função social, e função social da propriedade está prevista na Constituição, é elemento essencial do direito de propriedade. Logo, temos lei, mas mesmo assim, a lei, em relação à função social da propriedade, que é a Lei Maior, e que tem aplicação imediata, não tem sido levada em consideração. Também é constitucional, mas tem outros argumentos, a limitação dos juros. Novamente, uma visão capitalista do juiz. Não adianta haver lei dizendo que os juros estão limitados a 12%, porque os bancos cobram o que querem. Esse é o detalhe mais significativo. Não estou dizendo que os bancos só abusam, os bancos cobram o que querem, em termos de juros, e não existe nenhum tipo de fiscalização. Eles podem cobrar 12, 15 ou 50% por mês, nenhum tipo de fiscalização existe, estão liberados os juros no Brasil, apesar de termos leis. O 56 Poder Judiciário tem deixado os bancos cobrarem o que querem, não tem nenhuma fiscalização, não tem nenhuma limitação. O Poder Judiciário tem deixado cobrar, no Rio Grande do Sul, menos do que nos outros estados, evidente, e aqui um elogio, algumas câmaras, alguns juízes do Rio Grande do Sul têm criado algum tipo de limite. Nesse mesmo rumo, o Brasil desobedece o Pacto de São José, principalmente o Supremo Tribunal Federal, quando permite a prisão do devedor fiduciário, quando o Pacto de São José diz que só permitirão a prisão por alimentos. Trata-se de uma prisão por dívida, por depositário, e o Pacto de São José foi assinado pelo Brasil mas ainda assim o Supremo permite esse tipo de prisão. Evidentemente, aqui temos mais do que uma lei, temos um tratado, e ainda assim não é respeitado, certamente em nome de uma visão capitalista do direito, qual seja, a de proteção das financeiras, porque elas mesmas é que fazem esse tipo de contrato. Trata-se de uma visão ideológica branca. Não temos casos de crimes de racismo, são raros, num país racista como o nosso. Esses crimes que são trazidos para dentro do Judiciário são raros os que têm julgamento de procedência, seja do ponto de vista cível, seja do ponto de vista criminal. E o que é pior, encontramos algumas decisões exatamente racistas, algumas decisões que vieram a público pelo jornal, que representam a perspectiva de juízes que, sem dúvida, são racistas, ou no mínimo não se apercebem da sua ideologia racista. Por exemplo, aquela que saiu recentemente, que um negro foi chamado de macaco e o juiz disse que era perfeitamente normal um negro ser chamado de macaco, porque isso é um dito popular, os sem cabelos são chamados de carecas, os baixos são chamados de anões e os negros são chamados de macacos, então seria uma coisa absolutamente normal. Vejam que é um tipo de enfrentamento. Ele está fazendo o que ele entende de direito humano. Se ele tiver a grandeza de entender, ele verá que quando tu chamas alguém de careca ou alguém de anão, não se perdeu a dimensão do humano, mas se chamas alguém de macaco, realmente perdeste a dimensão do humano. É o mesmo que acontece com os homossexuais, que são chamados de bichas, onde se perde a dimensão do humano. Agora, no que diz com a questão da família homossexual, aqui o Poder Judiciário, parece-me, pode dar alguns exemplos, principalmente no segundo grau, onde, recentemente foi reconhecida a sociedade, e o companheiro homossexual pode usar, então, da meação dos bens que foram adquiridos na constância daquela união homossexual, mas a tendência é, certamente, avançar ao ponto de, nas relações familiares de homossexualidade, o companheiro ou a companheira homossexual herdar no lugar do cônjuge. 57 Tentarei me explicar, se não tiver descendente nem ascendente, a lei diz que herda o cônjuge. Pois bem, ainda não temos um caso absolutamente julgado, mas há a possibilidade de o companheiro ou companheira homossexual herdar ali e excluir o irmão, que seria o próximo a receber a herança. Então, realmente, acho que nessa perspectiva, há algum avanço. Concluindo, volto à pergunta inicial: adianta lei? Não adianta lei, o que adianta é mudar a mentalidade, é o juiz reconhecer que ele é um ser ideológico, que ele coloca algo de seu dentro de cada processo, e a partir desse momento poderemos construir um Poder Judiciário mais democrático. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos, sociais e culturais, na visão do Ministério Público Cláudio Barros e Silva – Creio que as posições técnicas trazidas na visão do Deputado Roque Grazziotin, também a visão crítica do Desembargador Rui Portanova, conhecido pelas suas posições no Tribunal, tentando de fato avançar, modificar praxes, juntamente com outros magistrados que lutam também pela transformação do Judiciário, refletem a necessidade de termos numa mesa posicionamentos que são claros e refletem a visão de cada um. O Deputado Roque Grazziotin tentou refletir a posição da visão do Legislativo, o Desembargador Rui Portanova tentou refletir 58 uma posição crítica a respeito do Judiciário, incluindo-se neles, e tentarei refletir uma visão de Ministério Público falando de nós, digo nós porque tenho aqui cinco colegas do Ministério Público que trabalham exatamente nesta área, na dimensão de estudar, refletir e avançar com relação às questões dos Direitos Humanos. Realmente me incluo dentre aqueles que acreditam que a instituição do Ministério Público tem que ter compromissos claros com os avanços sociais, ao contrário dos magistrados, que são inertes, e tentam avançar quando provocados, se não são provocados não podem criar, não podem avançar. É quando têm a possibilidade de vir num painel como este e refletir uma posição do Judiciário, que podem ir um pouco mais adiante do que ficar esperando a provocação. Nós não, saímos para o campo, estamos já há algum tempo trabalhando e buscando efetivação de direitos fundamentais. Todos sabemos que a Constituição de 1988 procurou refletir na sua organização formal posicionamentos claros de avanço social. Não há dúvida alguma que a constituição que temos é uma constituição que procurou resgatar a cidadania. Faço parte de uma geração de cidadãos brasileiros que proibida de se manifestar na faculdade. Fui proibido de militar efetivamente, embora militasse em determinado momento histórico da minha vida, tanto nos movimentos préuniversitários quanto na própria universidade. Tive a oportunidade de conviver com pessoas que hoje estão militando exatamente nessas questões, tentando avançar e transformar a sociedade. Quando a Constituição procurou formalmente destacar as questões da cidadania, ela procurou mostrar a todos nós que era necessário fazer ou pelo menos despertar a população brasileira com relação a algumas questões que haviam ficado no esquecimento, ou num provocado esquecimento, pela força, até, durante mais de 25 anos. Então, aqueles que lutaram, alguns de forma até utópica, e que ficaram inclusive no meio do caminho nesta luta, que lutaram para que construíssemos um Estado Democrático, que de fato fosse de direito e que a cidadania fosse plena, eles sonhavam na efetivação de um texto que pudesse avançar e ele avançou. Hoje, se temos juízes discutindo quando julgam no segundo grau a questão de uma relação homossexual é porque se permite chegar ao judiciário uma demanda como essa. Há 12 anos sequer os juízes teriam a oportunidade de apreciar isso, pois a inicial em relação a essa sociedade de fato não seria recebida. O que estamos tendo é a oportunidade de avançar no nosso sistema judiciário com relação às questões que passamos a discutir depois que tivemos a oportunidade de também avançar em relação aos Direitos Humanos e sociais. Buscou-se avanços que efetivassem transformações. 59 O Ministério Público sabe que quando o legislador formatou a Constituição, determinando as competências de cada um dos poderes do Estado, das instituições estatais, determinou que a instituição do Ministério Público não estaria mais vinculada aos poderes do Estado, mas ao seu lado para lhe controlar. O legislador quis que a sociedade tivesse um caminho para a efetivação de direitos. Mauro Capeletti, um dos maiores pensadores de transformação de avanço que estudou com profundidade o acesso à Justiça, em determinada oportunidade, disse que víamos o direito sem conseguir perceber as três ondas que se colocavam para todos nós, e que era necessário, naquele momento histórico, metade da década de 80, que conseguíssemos fazer essa identificação. Dizia Capeletti, que na primeira onda éramos pobres não no sentido econômico mas no sentido ético. Para nós valia, em determinado momento, a Lei de Gerson, levar vantagem em tudo. Passamos a ter isso como real e efetivo sem nunca criticar tal lei. Para nós também valia a Lei do Robertão, do dando que se recebe. O Ministério Público Brasileiro, há quatro ou cinco anos, tentou investigar a compra de votos feita para efeitos de aprovação de uma emenda constitucional que determinava a reeleição do presidente. Isso foi identificado mas foi barrado na investigação, não chegando sequer a ser discutido no Judiciário. O é dando que se recebe que nos leva a oportunidades como essa. A sociedade brasileira, embora a identificação das pessoas, dos deputado que não voltaram ao parlamento, não chegou a ter claro o reconhecimento disso em uma sentença. São situações claras que passamos a aceitar de forma tácita. Hoje, pelos avanços da cidadania e maturidade do povo brasileiro, não se permite mais que essas questões fiquem esquecidas ou restritas a livros. Temos que avançar e transformar. Estamos, de fato, caminhando para a efetivação destes direitos. O Capeletti disse que somos pobres moralmente e também com relação às informações. Talvez as informações sejam justamente o grande avanço que teremos no terceiro milênio. Quem detiver o conhecimento e a informação não será aquele que exercerá o poder formal mas o poder do conhecimento. Aliás, Humberto Eco já dizia que quem detém o conhecimento detém o poder e que quem não detém o conhecimento será escravo daquele que o detiver. Esta é a grande questão que estamos passando neste momento, segundo Mauro Capeletti, que disse tudo isso há 15 ou 20 anos em relação a essa primeira onda que diz respeito à pobreza. Mas, a nossa pobreza refletia, de forma clara, naquela década, uma situação que era mundial, ou seja, sabíamos que tínhamos os 60 direitos massificados da sociedade, assim como os direitos dos consumidores; das pessoas portadoras de deficiência; do meio ambiente; direitos referentes às pessoas que não querem a afirmação da improbidade administrativa e direito com relação ao mercado de capitais, todos eles igualmente não estavam formalmente regulamentados. Passamos a identificar tudo isso e ainda o direito das mulheres; das minorias – índios, pretos, prostitutas, homossexuais –; etc, enfim direitos que reconhecíamos mas não tínhamos sequer uma legislação para tentar proteger. A partir do momento em que passamos a identificar isso, passamos a ter necessidade de identificar uma segunda onda. Essa era a onda em que se identificava a necessidade da formalização dos direitos. Não adianta nada dizer que temos leis, normas constitucionais, e não cumpri-las ou desprezá-las. Quando tivermos a cultura da obediência à lei ou de que uma decisão judicial tenha que ser efetivamente cumprida e que se tenha posicionamento crítico, fundamentais para os avanços sociais, teremos isso como norma para todos nós. A partir de 1985, o nosso país passa a ter norma constitucional que definiu direitos dos portadores de deficiência; dos consumidores; do meio ambiente; da infância e da juventude. Todos esses direitos são supraindividuais, estando acima dos direitos meramente individuais. Quando digo isso o faço com a clara convicção de que a nós, que saímos de uma faculdade de direito, foi ensinado resolver problemas puramente individuais. O Ministério Público já começou a sair dessa praxe que nos foi ensinada. A magistratura é esperta em resolver um conflito de interesses individuais. Ou seja, eu consigo solucionar um conflito que diga respeito a um processo de execução. Para isso sequer juiz era necessário porque é a força do poder econômico na mão e na caneta de um juiz. Mas isso se resolve no processo. Agora, a solução de questões relativas ao Sistema Único de Saúde; ao internamento em hospitais psiquiátricos; à Febem; ao consumidor; ao meio ambiente etc. não dizem respeito a interesses individuais mas de uma comunidade inteira, a pessoas que sequer conhecemos. O resultado desse processo se dará em benefício da sociedade, do cidadão. Não tivemos ainda uma discussão clara e um avanço em relação a algumas questões. Mais do que isso, para evitar a discussão de mérito dessas questões, que dizem respeito aos direitos de todos nós – por serem Direitos Humanos – ficamos limitando, por vezes, a discussão da questão formal, puramente processual que discute a legitimidade ou não de o Ministério Público entrar com essa demanda. Com isso, terminamos com um processo que discute, por vezes, interesses de milhões de pessoas. 61 Por que não se quer fazer isso? Porque não se quer discutir isso. Talvez para se manter uma situação de discriminação, de exclusão e de manutenção de elites em nosso país. Quando vemos uma regra que diz que o Ministério Público tutela o interesse da sociedade e é o defensor deles, pela norma constitucional, sabemos que ele não é o único, ele não tem legitimação exclusiva para isso. Também o são o Legislativo, o executivo, o Judiciário, os entes estatais, fundações e a sociedade organizada, aqueles que podem, eventualmente, promover demandas. Mas são poucos que promovem ações civis públicas embora a lei permita que se possa eventualmente promover ação civil pública. Quem faz isso, em 98% das demandas civis públicas postas ao Judiciário, é o Ministério Público. Temos uma lei, de ação civil pública, de avanço social fundamental, que contém uma regra que determina que o Ministério Público, como órgão estatal tutelando interesses da sociedade, está isento de pagar custas processuais. Ele tem isenção para recorrer sem sofrer os ônus da sucumbência porque o direito material não é seu mas das pessoas que recebem o benefício ou prejuízo de uma decisão. Quem tem vantagem com a decisão não é o Ministério Público e sim a sociedade. É imputado ao Ministério Público, eventualmente, a sucumbência exatamente para não permitir que ele demande nestas questões. Isso é uma situação de criação contra legem em prejuízo da sociedade claramente no sentido de manter uma estrutura de opressão, discriminação e exclusão. Lutamos, judicialmente, para denunciar exatamente isso que não diz respeito ao Ministério Público. Se não tivermos legitimidade não promovemos a ação, mas a sociedade também não terá tutela. Ou seja, se somos o caminho da tutela e me impedem de tutelar porque não tenho dinheiro para pagar e não tenho que ser condenado – o Estado que o seja mas não a instituição sob o argumento de que tem orçamento próprio – mas convenhamos, a lei diz que o Ministério Público está isento e nós estamos negando tutela, negando o acesso à Justiça, negando a implementação de direitos fundamentais. Mas isso tudo quando se passou a trabalhar exatamente essas novas questões. A grande diferença talvez esteja aí, quando a lei passou a definir direitos fundamentais e o Ministério Público começou a alcançar esses direitos, ou seja, tentar implementá-los em juízo. A terceira onda vai além, diz que não adianta reconhecermos os direitos se não buscarmos sua efetivação. Os direitos não devem mais ser vistos pela ótica dos seus produtores, sejam eles juízes, promotores, advogados, doutrinadores, professores, enfim aqueles que fazem o direito para a manutenção, mas por todos nós como direito dos seus consumidores, sob a lógica daqueles que necessitam da sua implementação, que é o cidadão, a sociedade, que é aquele que quer que o seu 62 direito individual e humano se inclua nessa proposta do Deputado Roque Grazziotin em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais. Ele deve ter essa amplitude e ser reconhecido. Na medida em que o direito deve ser do consumidor e não mais do produtor temos que ter formas de fazer com que o direito seja efetivo. Hoje o direito é efetivo para uma elite brasileira. São poucas as pessoas que tem acesso à Justiça, que tem condições de implementar os seus direitos e que sequer sabem ou conhecem plenamente quais são. Se a grande maioria da população brasileira não tem acesso à Justiça, ela está excluída da possibilidade de efetivação dos seus direitos. Mais do que isso, se reconhecemos que 50 milhões de brasileiros estão naquela faixa que ganha menos do que 1 (um) dólar/dia, ou se tem emprego formal, ou se não o tem, veremos que essas pessoas estão fora de uma estrutura do direito que é feito para a manutenção exatamente daqueles que estão dentro do direito. Temos que interpretar exatamente as questões neste sentido. Quando Capeletti fala dessa questão ele procura identificar isso para que possamos refletir a respeito. A norma Constitucional, em seu artigo 98, impôs que tivéssemos, em cada Estado brasileiro, aquilo que já se experimentava no Rio Grande do Sul antes da lei ordinária feita no Brasil, com relação aos Juizados Especiais Civis. Ou seja, a matéria civil, que trabalha basicamente com o patrimônio, nós nos preocupávamos. Sobre essas nós formamos os nossos juizados especiais. Sobre o criminal, ficamos discutindo na Câmara dos Deputados sobre sua formalização. Então, vamos fazer a lei: aí então o Judiciário brigava para manter sua jurisdição, o Ministério Público brigava para manter a titularidade da ação penal, a polícia brigava para manter o inquérito policial. Passamos quatro ou cinco anos discutindo no Congresso Nacional até que se chegou a uma lei que criava os Juizados Especiais Criminais e que é claramente o neoliberalismo no direito penal. Tudo se resolve por dinheiro, se tiver dinheiro não responde processo, se não tiver dinheiro será processado. Então esta é a regra prevista na norma constitucional com relação aos Juizados Especiais. Mas, quando falamos na terceira onda temos que achar formas de solução de conflitos que, por vezes, sequer passa pelo juiz. Tínhamos que ter oportunidades de, em quarteirões, em bairros, em comunidades, ou em cidades pequenas, de permitir que aquelas pessoas que servem à comunidade, líderes comunitários, possam resolver os conflitos normais da comunidade sem a participação do judiciário, do Ministério Público, deixando que aqueles que trabalham com direito formal trabalhem nas questões maiores, como por exemplo os problemas que envolvem os consumidores, os problema da infância e da juventude, questões que dizem respeito aos interesses do meio ambiente e outros. 63 Creio que este é o grande caminho rumo à solução, que está previsto na terceira onda do Capeletti. Mas, com esse recado que foi dado em meados da década de 80, passamos então, com os compromissos constitucionais impostos ao Ministério Público, a organizar a instituição e a ter, por exemplo, promotores que não trabalham com juízes. Temos promotorias que trabalham com a comunidade. Não temos um juiz do consumidor, mas quatro promotores em Porto Alegre que são os promotores do consumidor. Não temos um juiz de defesa dos direitos do cidadão e dos Direitos Humanos, mas quatro promotores, que aqui estão, que trabalham com essa matéria. Não temos um juiz do meio ambiente, mas quatro promotores que trabalham com as questões que envolvem essa questão. Não temos um juiz que trabalhe a matéria do crime organizado, mas sete promotores que trabalham com ele. Assim por diante. Temos procurado trabalhar assim. Esses são os colegas que trabalham diretamente com a comunidade e que levam as demandas perante o juiz, embora ele seja especializado na matéria. Proponho que tivéssemos juízes que estudassem a matéria dos direitos não individuais e sim supraindividuais. Ou seja, teríamos um juiz expert em conflito coletivo e difuso, que saberia o significado de cada um dos atos que tem repercussão geral e não individual. Sendo assim teríamos, por exemplo, um juiz expert em crime organizado, que tem um resultado que agride a própria sociedade. Quando trabalhamos a improbidade administrativa, seja na área criminal ou na civil, e temos exemplos disso em nosso Estado, passamos a ter um resultado efetivo. Chegamos a ter uma câmara especializada, no Tribunal, para analisar os crimes praticados por prefeitos. Passamos a estudar a legislação de forma clara e específica com relação a algumas situações. Exemplo disso foi que o Ministério Público se especializou na matéria. Com isso, a sociedade passou a acreditar na punição dos homens públicos, como prefeitos que há muito tempo praticavam delitos e que hoje estão foragidos. Passamos a dar respostas para a sociedade. Teríamos mais avanços se tivéssemos juízes especializados em improbidade administrativa, civil; juízes trabalhando com questões do meio ambiente, direito do consumidor etc. A especialização nestas matérias permitiria que os Direitos Humanos fossem implementados exatamente nos resultados que se buscaria em demandas colocadas em juízo. Não tenho nenhuma dúvida que para o Ministério Público avançar nas questões dos Direitos Humanos temos que, de fato, querer e ter isso como prioridade e como proposta de ação. Se o Ministério Público não quiser fazer isso pode ficar como não sendo prioritário na ação. Sendo assim, teremos muitas outras 64 demandas que poderão ser prioritárias e que, exatamente, estarão permitindo que se mantenha uma sociedade em que não se possa discutir questões, por exemplo, de quilombos no Estado, sobre as quais temos colegas trabalhando. Temos 36 quilombos identificados. Temos colegas trabalhando diretamente na questão indígena, não só do Ministério Público Estadual como também do Federal. Alguns colegas trabalham com questões relativas à saúde, à educação. Segunda-feira, estaremos aproximando os Município do Estado na tentativa de resolvermos a questão do transporte escolar, que é obrigação do Estado, por termo de ajustamento. Se não tivermos isso como prioridade, poderemos trabalhar em um processo em que a intervenção – por exemplo em um processo de usucapião, onde as partes são legítimas e estão bem representadas, tem advogadas etc. – do Ministério Público se daria apenas por um parecer no processo, sem reflexo maior com relação à sentença. Ou teremos a opção. Ou nós vamos ter a opção para afirmação da cidadania ou dos Direitos Humanos ou teremos a opção de mais uma vez passarmos – e digo isso porque fui reconduzido, pelo voto dos meus colegas – porque isso passou a ser prioridade dentro do Ministério Público. Há um reconhecimento da nossa instituição no sentido de que nós e não o Procurador quer isso. A instituição quer avançar e, de fato, transformar. O Ministério Público tem sido uma instituição de ponta neste país, o tem sido reconhecido pela sociedade. Hoje todo mundo sabe o que faz o Ministério Público. A instituição, com todos os defeitos que possa ter, principalmente os individuais – porque ela é o resultado de todos nós – é reconhecida pela sociedade. Coloco-me à disposição para um debate sobre a instituição, sobre nós, e o que podemos fazer para transformar uma sociedade que precisa, de fato, de graves transformações sociais. 65 Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos, sociais e culturais, na visão do Executivo Mozar Artur Dietrich – Discutimos, na Secretaria, a partir do convite que nos foi formulado, para falarmos a respeito da dimensão humana e sua dignidade com relação aos direitos humanos sociais, econômicos e culturais, e nos perguntamos, por que não falávamos dos direitos políticos e civis. O Governo do Estado tem como uma questão muito cara a questão dos direitos humanos políticos e civis. É a partir da afirmação dos direitos civis e políticos, bem mais do que simples garantias individuais do Estado, direitos muito mais amplos de participação e de controle social, assim como a partir da garantia da efetivação desses direitos, que o Estado dá condições para a sociedade exercer tais direitos. Sendo assim conseguiremos caminhar em direção a garantia dos direitos sociais, econômicos e culturais. Nosso Governo tem como concepção muito cara, e princípio básico de toda 66 a nossa ação, a construção da cidadania e a garantia dos Direitos Humanos de toda população. Vivemos, como já foi dito aqui, em uma sociedade com grandes distorções e problema. Avançamos muito como humanidade, como nação, na garantia dos direito, pelo menos em leis, mas muitas conquistas que foram obtidas por nós, pela luta das instituições que aqui estão representadas e outras, estão se perdendo, em função de na última década o nosso país ter se subordinado a uma globalização econômica que traz no seu rastro transformações profundas nos processos produtivos da sociedade e no papel do Estado. Toda essa situação tem provocado uma perda gradativa e crescente dos direitos sociais, com a deterioração dos serviços público e uma precarização nas relações de trabalho, com desemprego etc. Tudo isso vem agravando, dia-a-dia, a exclusão social. O contingente de excluído em nossa sociedade é crescente, resultado deste processo econômico global que privilegia o capital em detrimento da vida humana. Entendemos que as ações de Governo que executamos devam ser prioritariamente voltadas para aqueles segmentos que estão excluídos social, econômica e culturalmente ou que sequer, até hoje, chegaram a ser incluídos para, então, serem excluídos. Para a caminhada em direção a esse objetivo, evidentemente, somos contrários à concepção de um Estado mínimo, mas, também, não somos defensores de um Estado total e absoluto, pois pensamos que o Estado deve ter o tamanho necessário para desenvolver as ações que lhe cabe. Não consideramos, também, que o Estado seja o único elemento alavancador e gestor de processos, pois entendemos que a sociedade deve trabalhar solidariamente. Hoje pela manhã, durante uma palestra, o Professor José Carlos Moreira falou na questão do direito da colaboração democrática, que, para nós, é uma concepção bastante cara, pois entendemos que o poder está, de fato, espalhado pela sociedade em milhares de instâncias, não somente nas do Estado, mas em coletivas, comunitárias, sindicais, empresariais e nos movimentos sociais, e que o Estado deve, sim, garantir a participação de todas essas instâncias em todos os processos decisórios da nossa sociedade. Portanto, partimos da concepção da soberania popular, envolvendo toda a sociedade nesse processo de colaboração democrática, como foi referido, e pensamos que esse é o caminho para se conceber e construir uma nova sociedade participativa e democrática, que tenha em suas próprias mãos, e não nos gabinetes, o poder de decidir em todos os níveis, principalmente no econômico. Não parto de uma visão economicista na qual a sociedade se insira, girando em torno do econômico, pois entendemos que a sociedade tem muitos outros 67 aspectos, mas não podemos negar a importância e a força da economia na nossa sociedade. Nós, do Governo do Estado, também não entendemos que esse projeto de sociedade seja uma concepção exclusiva nossa; ao contrário, como já foi referido hoje de manhã, há toda uma luta histórica da participação popular na construção dos Direitos Humanos, e pensamos que estamos no Governo exatamente para levar adiante esse projeto, que tem sido gestado há séculos pela humanidade na busca da soberania do povo e que está tão bem consubstanciado na nossa Constituição Federal, dita cidadã porque busca a participação popular, bem como na Constituição Estadual e nos pactos internacionais, que exigem a participação das comunidades e da sociedade em geral nas decisões acerca das políticas públicas que os Governos devem desenvolver para a sociedade como um todo. Portanto, entendemos que estamos fazendo nada mais do que se levar adiante um projeto que a humanidade há muitos séculos já está criando. Mais concretamente, quando falamos na dimensão humana e na consolidação dos direitos econômicos, sociais e culturais, temos basicamente quatro dimensões, que são um ponto de partida para alavancar as nossas ações. A primeira dimensão, como não poderia deixar de ser, é a participação popular. Entendemos que o controle social e a participação do povo são a base do Governo democrático e popular do Estado. O Orçamento Participativo é, para nós, o maior instrumento de gestão pública do Governo e de uma participação direta e universal de toda a sociedade, para se debater e decidir acerca de todas as grandes questões que envolvem o Estado, desde a sua receita orçamentária, a matriz tributária – insistimos no sentido de continuar a fazer essa discussão com a sociedade –, o planejamento e o controle dos investimentos até a prestação de contas. Estamos, agora, em pleno processo do Orçamento Participativo em todo o Estado, sendo que, mais uma vez, centenas de assembléias estão acontecendo e vão ocorrer durante todo este semestre, onde reunir-se-ão centenas de milhares de pessoas a exemplo dos anos anteriores. Pelo que temos visto nos últimos dias, está crescendo cada vez mais a participação popular, pois a população, de fato, está descobrindo, por meio do Orçamento Participativo, um instrumento muito forte para exercer a cidadania e o controle e para tomar decisões. Além do Orçamento Participativo, outros instrumentos muito importantes para a participação e o controle social são as conferências estaduais, que são muito mais do que meios simples de consulta popular, proporcionando um debate amplo e profundo na nossa sociedade, que envolve determinados segmentos e políticas sociais. No nosso entender, essas são instâncias, também, deliberam políticas. 68 Temos a absoluta certeza de que todas as ações que o Governo do Estado está desenvolvendo e que todos os seus programas estão legitimados em conferências estaduais, não só no Orçamento Participativo, que já foram realizadas. Houve várias nesses dois anos de Governo, como a Conferência da Assistência Social da Criança e do Adolescente, a Conferência do Meio Ambiente, a Conferência da Segurança e a Constituinte Escolar. Para este ano, está prevista a realização de várias conferências. Teremos a 1ª Conferência Estadual da Comunidade Negra, um momento importante e histórico do nosso Estado, a 1ª Conferência Estadual do Idoso, a 1ª Conferência Estadual dos Direitos do Consumidor e a 4ª Conferência da Criança e do Adolescente. Haverá a 1ª Conferência Crianças e Adolescentes do Estado, que também terá o apoio do nosso Governo, pois as crianças e os adolescentes reclamam sempre durante os encontros que as conferências que lhes dizem respeito são, de fato, de adultos, já que as conversas são muito complicadas. Então, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Ruas e outras entidades, com o apoio do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – Cedica – e do Governo do Estado, já estão preparando essa Conferência, que será realizada com a participação das crianças e dos adolescentes. O 3º Fórum Estadual dos Povos Indígenas acontecerá neste ano. Em 1999 houve o 2º Fórum, que trabalhou na reestruturação do Conselho e na definição das políticas do Governo do Estado com relação à comunidade indígena. Um outro elemento importante da participação e do controle social dessa primeira dimensão, para a garantia e a construção dos direitos econômico-sociais, são os conselhos estaduais de direitos. Desde o início do Governo, temos reafirmado a sua importância e temos incentivado, reestruturado e apoiado todos esses conselhos, que, atualmente, estão num processo crescente e bastante vigoroso de elaboração, de discussão e de deliberação de políticas de ação, de fiscalização, de cobrança e de instigação do Governo. Entendemos que esses órgãos são supra-estatais, já que têm a participação de representantes do Governo do Estado e da sociedade civil. Entendemos que esses conselhos também são instâncias de participação legítimas da sociedade. Temos o Conselho Estadual da Comunidade Negra, dos Povos Indígenas, da Criança e do Adolescente, do Idoso, o Conselho de Assistência Social, o Conselho Estadual de Educação, o Conselho Estadual de Saúde e vários outros. O Governo trabalha no sentido de dar garantia para que essas instâncias, de 69 fato, sejam de envolvimento e de articulação desses segmentos sociais e de deliberação. Trouxe, para ser distribuído, um caderno do Orçamento Participativo, que contém todos os programas e ações que estão sendo votados pelas suas assembléias no nosso Estado. São mais de cem programas e ações, todos, como já disse, discutidos e deliberados por todas essas instâncias, e a sociedade, como um todo, tem a oportunidade de conhecer o que foi decidido, por exemplo, pelo Conselho Estadual da Comunidade Negra e de, na sua comunidade, votar com relação a esse programa, propor alterações ou ainda um outro projeto. Esse caderno é muito interessante porque contém, de forma resumida, praticamente todas as ações e programas, o que nos dá uma idéia do conjunto da política que o Governo do Estado desenvolve para todas as suas áreas. Para quem ainda não o conhece, o caderno está à disposição. Uma segunda dimensão, que para nós também é muito cara, quando pensamos na consolidação da dignidade humana e dos Direitos Humanos, diz respeito ao fato de que partimos da concepção do ser humano como prioridade. Combatemos a lógica neoliberal, que privilegia o capital e os grandes investimentos e investidores, porque entendemos que o ser humano deve ser o centro, o objetivo e o ponto de partida de toda a idéia do Estado, e essa também não é uma concepção nossa, mas da própria Constituição e dos pactos internacionais. Mas, infelizmente, na nossa sociedade neoliberal temos que chegar ao ridículo de todo o dia reafirmar isso, quando achamos que devemos defender pequenos projetos de economia popular e solidária em contrapartida a grandes investimentos de milhões de reais, que outros Governos insistem em fazer. Pensamos que o ser humano, que muitas vezes tem pequenos projetos, dos quais vive, deve ser a prioridade. Uma terceira dimensão, de vital importância para a execução de um projeto de sociedade como esse, é a valorização local. Não somos contrários à globalização, mas somos críticos com relação à globalização econômica da forma como está sendo desenvolvida, porque ela vem, de fato, destruindo as pequenas globalizações locais, que devem ser, ao contrário, fortalecidas. Trabalhamos nesse sentido a partir, também, das decisões e das instâncias da sociedade, pois devemos privilegiar as matrizes produtivas locais. Em termos de projetos maiores, já temos várias ações com relação, por exemplo, ao Vale do Sapateiro, ao setor moveleiro, mas, mais do que isso, o nosso Estado é muito rico culturalmente, pois abriga inúmeras matrizes produtivas próprias, que se constituíram historicamente há décadas ou séculos e que não se podem perder, 70 devendo ser valorizadas. A não-valorização dessas economias é uma agressão a essas pessoas. Portanto, temos que ter muito cuidado na proteção das matrizes produtivas locais do nosso Estado. Uma quarta dimensão muito importante com relação à concepção dos Direitos Humanos é exatamente o aumento dos investimentos nas áreas sociais. Estamos trabalhando dentro do Governo do Estado no sentido de garantir maiores recursos para estas áreas, como a da saúde, da educação, da assistência social e da habitação, retomando-se as atividades da Cohab. Também queremos assegurar investimentos em políticas de meio ambiente, de geração de empregos e de renda, e tem sido nessas assembléias do Orçamento Participativo, que já estão acontecendo no interior do Estado, que a população está elegendo a geração de emprego e renda como uma das prioridades das ações que o Estado deve desenvolver. Trouxe para os Senhores, também, um caderno contendo o resumo das ações que o Executivo estadual desenvolveu nos primeiros dois anos, que são resultado de um esforço do Governo em sistematizar as suas ações. No ano passado, quando se procurou e lutou para a elaboração do relatório das ONGs para a ONU sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul teve a coragem de apresentar também o seu relatório, mas como era um relatório das ONGs, ele não foi, evidentemente, incluído nesta publicação que agora vocês receberam através da Comissão de Direitos Humanos. Mas, mesmo assim, insistimos em fazer a publicação porque precisamos ter coragem de mostrar à sociedade o que estamos fazendo, até para podermos receber críticas e sugestões. Durante a Conferência Estadual dos Direitos Humanos do ano passado foi apresentado um relatório bem completo. Inicialmente seriam essas as questões que gostaria de fazer, reafirmando aquilo que já disse no início desta reunião, no sentido de que entendemos que as políticas do Governo do Estado do Rio Grande do Sul devem garantir este espaço de participação, de articulação e controle da sociedade civil. A sociedade tem o conhecimento e as condições necessárias para propor políticas e ações, fiscalizálas e lutar para que sejam efetivadas. Muito obrigado. 71 Diretor do Departamento de Cidadania da Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social/RS A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos, sociais e culturais, na visão de uma Organização Não-Governamental Valdevir Both – Farei uma reflexão do ponto de vista da sociedade civil, mais especificamente do Movimento Nacional de Direitos Humanos do Estado. Quando falamos em Direitos Humanos, falamos em papéis, ou seja, em alguém que deve garantir e promover esses direitos, e para isso temos aqui dois atores fundamentais: o Estado e a sociedade civil, principalmente a partir da 72 conferência de Viena realizada em 1993. Segundo Vitório Trevisol, vivemos uma emergência da sociedade civil, um fenômeno político muito recente, cada vez mais fortalecido, mas ainda pouco conhecido, que é o trabalho da sociedade civil. Conhecida como o fenômeno ONGs, ou Organizações Não-Governamentais, são os novos e mais criativos atores políticos da atualidade, tanto no âmbito interno como externo. Entretanto, o tema na sociedade civil é histórico, e já foi abordado por Aristóteles, Hobbes, Locke, Kant e Rousseau. Mais tarde, o tema foi bem aprofundado por Hegel, Torqueville, Marx e, principalmente, Gramsci. Na atualidade, principalmente, depois dos anos 80 e da grandes ditaduras no mundo, tivemos a volta reinventada do conceito de sociedade civil para representar e entender o significado político e social de uma série de acontecimentos novos e políticos que emergiam tanto nos países do Oeste, América Latina e Europa. Temos, portanto, um fenômeno novo que começa a ser tematizado, principalmente, a partir de Gramsci, que é a sociedade civil, e que, na verdade, vai contemplar esses novos fenômenos. Temos também expressões políticas diferentes como os movimentos pela democracia nos países da América Latina, a rede de levantes populares no Leste Europeu que desejava o fim do socialismo real, também os movimentos sociais, a criação e o surgimento de milhares de ONGs que representam o fortalecimento de um setor, até então, reprimido e negligenciado pela modernidade. Em 1839, tivemos a formação da primeira ONG e, em 1986, contávamos com mais de 4.649 ONGs, organizações que aos poucos ganham formato de rede, se ampliam, adquirem um caráter internacional, dando visibilidade às lutas sociais. Podemos dizer que essas ONGs e os movimentos sociais, conforme a tradição teórica, distinta entre eles, aprimoram uma distinção proposta por Gramsci entre Estado, mercado e sociedade civil. Essa última ficou conhecida como terceiro setor, a partir do qual os cidadãos arregimentariam recursos materiais e simbólicos para implementarem suas lutas em defesa das liberdades civis e políticas dos Direitos Humanos, do meio ambiente, na promoção da cidadania, do desenvolvimento sustentável etc. Portanto, conforme Souza Santos, a sociedade civil é um amplo, heterogêneo e complexo número de movimentos, entidades iniciativas civis, que tomam forma de rede, coalizões e alianças não-estatais e nãoeconômicas, que ultrapassam os limites geopolíticos dos estados nacionais, com relativa autonomia em relação aos governos, e se ligam às necessidades locais, com os interesses globais, no intuito de preservar e realizar valores, princípios ou interesses públicos. Ou seja, a sociedade civil lança-se para além das fronteiras para tematizar 73 globalmente novas problemáticas que os Estados, muitas vezes, por limitações, não respondem ou até se abstém de fazê-lo. Conforme Habermas, a sociedade civil capta o eco dos problemas sociais que vão ressoar nas esferas privadas, condensando e transmitindo-os, a seguir, para a esfera pública política, isto é, dando voz às demandas sociais. Há, então, um movimento da sociedade civil de alavancar, explicitar e legitimar, conforme vimos pela manhã, os problemas que, depois, serão levados para a esfera pública. A luta recente pelos Direitos Humanos no Brasil tematiza este aspecto, ou seja, a importância da sociedade civil na construção dos Direitos Humanos. Tivemos um Programa Nacional de Direitos Humanos que já pecou na sua essência, ao enfatizar os direitos apenas civis e políticos, esquecendo-se da universalidade, da indivisibilidade e interdependência, tão proclamados na Conferência de Viena. Além disso, não conseguiu sequer garantir as limitadas ações a que se propôs, e sequer entregou o seu relatório oficial para a ONU. Diante disso, a sociedade civil brasileira cumpriu função fundamental ao denunciar o limite do Estado e o descumprimento do seu papel primordial, apresentando um relatório paralelo, hoje referência para a ONU. Cumpre à sociedade civil não assumir as funções do Estado, muito menos ser a calibradora da pressão social, como muitos dizem, mas manter viva a consciência dos Direitos Humanos da sociedade, o que significa organizar a cidadania no sentido de capacitá-la para exigir os seus direitos, a partir da construção de espaços públicos que ensejem a formação e o controle social de políticas públicas. Deste modo, estará efetivando o seu importante papel na construção e implementação dos Direitos Humanos, conforme a Declaração de Viena, que lhe confere papel fundamental no esforço conjunto entre governo e sociedade civil. Conforme o § 25, a Conferência Mundial de Direitos Humanos reconhece a importante função que cumprem as organizações não-governamentais, na promoção de todos os Direitos Humanos e nas atividades humanitárias em nível nacional, regional e internacional. A Conferência aprecia a contribuição que essas organizações trazem à tarefa de aumentar o interesse público nas questões de Direitos Humanos. As atividades de ensino, capacitação e investigação nesse campo e a promoção e proteção dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais. Apesar de reconhecer a responsabilidade primordial no que se refere à adoção de normas correspondentes aos Estados, a Conferência também aprecia a contribuição que as organizações não-governamentais trazem a esse processo. 74 A Conferência insiste na importância de que prossigam o diálogo e a cooperação entre governos e organizações não-governamentais. As organizações não-governamentais e os membros dessas organizações, que verdadeiramente se ocupam na esfera dos Direitos Humanos, devem gozar dos direitos e das liberdades reconhecidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e da proteção das leis nacionais. Esses direitos e liberdades não podem ser exercidos de forma contrária aos propósitos e princípios das Nações Unidas. As organizações não-governamentais devem ser donas de realizar suas atividades de Direitos Humanos, sem ingerências no marco da legislação nacional e da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Aqui no Estado, a partir dessa perspectiva, o desafio atual significa intensificar o processo de construção do Plano Estadual e do Conselho Estadual de Direitos Humanos, já iniciado pelo conjunto da sociedade e governo, através das conferências. Isso significa uma luta conjunta entre Governo e sociedade civil, sem a troca de papéis, na promoção dos Direitos Humanos, a partir de ações estruturais, capazes de garantir a todos os Direitos Humanos, processo que, como dissemos pela manhã, requer maior aproximação entre os diferentes poderes aqui representados e a sociedade civil, principalmente, entre o Ministério Público e o Judiciário. Muito obrigado. Coordenador Estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos/RS Debate Presidente Roque Grazziotin – Pergunto aos presentes se gostariam de fazer alguma abordagem ou questionamento sobre este painel que foi colocado a partir de diversos ângulos do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público, do Executivo e da Organização Civil sobre o tema da Dimensão humana na consolidação de direitos econômicos, sociais e culturais, que é um grande desafio 75 para a construção de uma nova sociedade. Essa dimensão vai-se tornando cada vez mais crítica, na medida em que vamos nos desempermeabilizando e, ao mesmo tempo, nos questionando a respeito do que nos cerca. Isso vai-se somando às nossas utopias para a construção de uma sociedade que seja possível, porque em muitas ocasiões, por intermédio da mídia ou de outros órgãos, ou de filosofias que vão sendo impostas, parece que não conseguimos sair de um mercantilismo, de um consumismo e não encontramos mais alternativas. O fato de estarmos aqui demonstra que é possível construirmos algo diferente para a conquista de uma sociedade humana mais justa e mais fraterna. Concedo a palavra ao Sr. Dorvalino Filippini, da Fundação de Atendimento ao Deficiente e ao Superdotado do Estado do Rio Grande do Sul – Faders. Sr. Dorvalino Filippini – Farei um comentário e espero que possamos encontrar uma forma de enquadrá-lo nesta discussão. Trabalho com pessoas portadoras de deficiências, como surdez, cegueira e outras, e de altas habilidades. A deficiência que é mais discriminada em toda a sociedade é a mental. Percebi que essa discriminação maior parte dos meios de comunicação. O jornal Zero Hora, quando foi decretada a regulamentação da Lei nº 7.853, noticiou o fato sem fazer constar o número da lei, a data e utilizou o termo: deficiente físico. Diante disso, entramos em contato com a empresa responsável e solicitamos que ao publicarem uma matéria o fizessem corretamente, porque foram vários os telefonemas para a Prefeitura e para o Estado querendo esclarecimentos sobre a referida lei. Além do mais, alertamos que estavam utilizando a terminologia incorreta, porque ao referirem-se a deficiente físico, estavam determinando um tipo específico de deficiência, e que o termo correto é Pessoa Portadora de Deficiência. Obtivemos a resposta de que somos um segmento muito pequeno e que não temos o direito de nos manifestar quanto ao termo com o qual queremos ser referidos. O Correio do Povo também utilizou a expressão: deficiente físico e, quando reclamei, alegaram que o termo era muito comprido e que não o utilizariam por que não caberia na reportagem. No Fantástico, contaram o caso de uma menina que ficou de cadeira de rodas e a trataram como se fosse uma criminosa, utilizando o termo: Condenada a viver confinada em uma cadeira de rodas. Não sei como faríamos para inverter esse quadro. A mídia tem grande culpa, porque, quando apontamos a terminologia correta, se acham no direito de dizer que não temos o direito de escolher o termo 76 com o qual queremos ser referidos. Não sei qual a lógica nisso. Quando uma pessoa comum – não uma pessoa portadora de deficiência – vai comprar um carro, conta com financiamento, mas se preciso fazer um financiamento para adquirir uma cadeira de rodas ou um aparelho ortopédico, eles me negam. Por quê? Muito obrigado. Presidente Roque Grazziotin – Concedo a palavra ao Representante do Judiciário, Dr. Rui Portanova, que poderá fazer um comentário sobre esse assunto. Dr. Rui Portanova – O engraçado é que não é difícil fazer um comentário. Acontece que a gente, no Judiciário, para qualquer coisa que as pessoas falem, fica imaginando que ação poderia ser inventada ou como o juiz poderia intervir para obrigar a imprensa a usar a expressão inteira, qual seja, Pessoa Portadora de Deficiência. E se essa expressão não for utilizada, vamos fixar uma multa ou o quê? É uma situação um pouco complexa. Acredito que o Padre Roque me passe essa questão exatamente para que eu seja chato no sentido de pensar em uma forma de a burocracia judiciária poder intervir no procedimento do meio jornalístico e até da área financeira. Vejo que talvez não estejas preocupado em pagar juro de 12% ao dia, mas, sim, numa forma de conseguir um financiamento para poder comprar a cadeira de rodas. Lembro que os movimentos têm essa importância muito grande de luta e de formação de uma consciência diferente. Creio que nunca há de se cansar de fazer essa luta nas suas diversas facetas, inclusive essa do politicamente correto do ponto de vista da linguagem. Sem dúvida, essa é uma idéia que tem de perpassar sempre. Vejo que o Judiciário lida – aproveito a tua questão para abordar isso – com um dos termos que o Capelleti usou e que o Cláudio referiu de passagem, chamado O acesso ao Judiciário, ou seja, sempre podemos pensar em ir buscar no Judiciário aquilo que queremos, pois esse Poder está de portas abertas. Costumo dizer o seguinte: não tenha dúvidas de que podes entrar no Judiciário. O que não sei é como vais sair dali. Os negros sabem bem disso também. Aliás, não se trata de saber como vai sair. Tu não sabes como vai andar ali dentro, porque são tão intricados os processos. Imagino sempre essa perspectiva: que o Judiciário seja também considerado um local de luta, nem que seja para tencioná-lo, para que ele saia de sua neutralidade, porque poder tem. Na perspectiva do politicamente correto, do ponto de vista do Judiciário, creio que há como pensar isso. As Pessoas Portadoras de Deficiência devem ir ao juiz e, de alguma maneira, mostrarem que se sentiram ofendidas pela forma como a Zero Hora publicou, a fim de fazer o juiz se movimentar. Na palestra que chamo de O Poder do Poder Judiciário, tento mostrar 77 exatamente a questão de que podes entrar no Judiciário. O problema é sair. Mas tu infernizas a vida daquele que está ali se tiveres uma boa causa, mesmo que não ganhes a ação, porque às vezes as vitórias dentro do Poder Judiciário não se dão com a procedência ou a improcedência de uma ação, mas com a infernização da vida do opressor. Essa é que me parece a grande vitória. Costumo dizer ao pessoal do Movimento Negro: não sei se vocês já notaram que para nós não basta ganhar uma ação. Ao negro não adianta muito entrar com uma ação de dano moral contra o racista e ganhá-la, se o juiz não fez a investigação do racismo e condena a tanto tempo alegando que realmente foi provado. Ganhar a ação assim, não tem graça nenhuma. Só o tem, quando o juiz revela que somos um País racista e, na sua sentença, mostra que aquela atitude é comum a tantas pessoas. Nesse caso, é o gol de placa. Para nós, nos movimentos, não basta fazer só um gol. Tem de ser um gol do Ronaldinho. Um gol de placa. Por isso afirmo a você, que trabalha com o Movimento das Pessoas Portadoras de Deficiência, que dá para pensar na perspectiva de buscar o Poder Judiciário. Não pense que vais ganhar, mas a Zero Hora é capaz de refletir. Vamos ser bem claros: Nós, da esquerda, somos os perdedores. O neoliberalismo ganhou, mas o nosso sonho continua. Ninguém mata o nosso sonho. O que sobra do nosso sonho é infernizar a vida da direita nas suas contradições. Estão nos deixando o Judiciário aberto? Então vamos entrar ali, nem que seja para infernizar. Quanto à questão do financiamento, lembro-me de que o Judiciário obrigou os bancos a refinanciar as dívidas dos agricultores. Há decisões nesse sentido. Não conheço nenhum financiamento específico que possas fazer para adquirir uma cadeira de rodas ou outro equipamento, mas pode-se pensar numa vinculação, em criar um tipo de empréstimo bancário com alienação fiduciária, assim como existem para os automóveis, eletrodomésticos e outros, pois, no fundo, a agência financeira é um comércio, e quando o comércio oferece, é obrigado a vender. Acredito que dá para se pensar em alguma forma de fazer isso. Agora, nunca contar com o Judiciário, porque aí você precisa trabalhar com um outro tipo de situação. Presidente Roque Grazziotin – Dr. Rui, obrigado. Acredito que o Senhor nos abre uma perspectiva no sentido de que a sociedade civil, na prática, utiliza muito pouco o Judiciário e tem até medo dessa instituição. Creio que esse é um dos desafios que temos de nos propor nesta caminhada. Concedo a palavra à Psicóloga e Agente de Direitos Humanos, Sra. Ana Paula. Sra. Ana Paula – Boa-tarde, sou psicóloga e agente de Direitos Humanos. Atuo 78 em um projeto, ainda em implantação e discussão pela Coordenação de Direitos Humanos da Prefeitura de Porto Alegre, que propõe que existam núcleos de Direitos Humanos regionais e descentralizados que possam fazer a ponte, a interlocução com as comunidades locais. Esse projeto é vinculado ao Conselho Municipal de Direitos Humanos, que substitui o Conselho maior que tratava das discriminações e violações. Trabalho também na Fundação de Assistência Social e Cidadania na Região Glória, Cruzeiro e Cristal. Gostaria que o representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos pudesse falar um pouco mais acerca desse assunto. Ele disse que o movimento de Estado coloca duas diretrizes: o Plano Estadual de Direitos Humanos e a criação do Conselho Estadual. Gostaria que o Senhor esclarecesse como que um Conselho de Direitos Humanos, a partir da idéia de indivisibilidade dos direitos, interage com os outros. E gostaria de saber também como vem sendo pensado esse Conselho e que o Senhor comentasse o plano estadual. O representante do Ministério Público referiu a importância da apropriação da discussão dos Direitos Humanos pelas comunidades, para, enfim, para melhorar a participação dos indivíduos. O representante do Ministério Público abordou esse tema dando ênfase à visão do Judiciário, mas o que eu gostaria de saber é se essa questão vem sendo pensada com um enfoque político. Os adultos é que definem, num plano teórico, as questões relativas às crianças e adolescentes. E isso limita o acesso das pessoas pela falta de informação e conhecimento, causada pela nossa linguagem. E gostaria de saber também o que tem sido feito pela ASTCS para aproximar a comunidade dos projetos que estão sendo realizados em termos de cidadania e Direitos Humanos. Sr. Valdevir Both – Na verdade, a pergunta é importante e se coloca num contexto atual no Estado para todos os movimentos. Ou seja, o contexto atual da luta pelos Direitos Humanos vai abordar essas duas questões. Por que o movimento discute como duas diretrizes gerais a questão do Plano Estadual e a criação do Conselho Estadual de Direitos Humanos? Primeiro, porque entendemos – e a Conferência de Viena, reforça essa idéia – que a garantia, a promoção dos Direitos Humanos passa por planos consistentes, estruturais que os Estados adotam para implementação dos Direitos Humanos. Agora, esses planos devem ser construídos junto à sociedade e não em um círculo restrito. A sociedade civil tem o papel de elaborar o plano, de fiscalizá-lo e de avaliá-lo junto com o Governo. De nada adiantará fazermos um plano de direitos humanos como o de 1996, em nível nacional, pois sequer conseguiram 79 implantar as ações que aquele plano previa. Portanto, não vale a pena investir, se for para realizar um plano dessa forma. O que queremos – e o Estado está dando um passo importante nesse sentido – é construir um plano estadual de Direitos humanos em que estejam previstos os princípios básicos, ou seja, a universalidade, a interdependência, e a indivisibilidade. Portanto, para nós é importante que se construa esse plano com essas diretrizes junto com a população. E nessa perspectiva já realizamos duas Conferências Estaduais de Direitos Humanos, um pouco, com esse objetivo. A última conferência, se recordarmos, teve exatamente esse objetivo, ou seja, rediscutir, a partir das conferências regionais, as grandes diretrizes que deverão fazer parte do Plano Estadual de Direitos Humanos que iríamos construir a partir deste ano. Com relação ao Conselho Estadual de Direitos Humanos posso dizer que atualmente temos um Conselho muito restrito, pois ele está vinculado à Secretaria da Justiça e da Segurança. Entendemos que a questão dos Direitos Humanos não passa só pelos direitos civis e políticos. A vinculação dos Direitos Humanos a uma secretaria específica configura uma certa concepção de Direitos Humanos. Portanto, o Governo assumiu na Conferência – e isso é importante – que iria reformular a lei que abarcaria, além dos direitos civis e políticos, o direitos econômicos, sociais e culturais. E assumiu até metade do ano a implantação desse novo Conselho. Ele teria um papel intrasecretarias, ou seja, pensar junto com o Governo a política geral dos Direitos Humanos no Estado. E esse Conselho vai ter que ser representativo, legítimo junto à sociedade civil. Obviamente, se vamos construir um Plano Estadual de Direitos Humanos, sem dúvida nenhuma, um Conselho legítimo, com todas as instâncias a partir dessa nova concepção de Direitos Humanos, terá um papel fundamental de acompanhar a execução de uma política geral de Direitos Humanos no Estado. Por isso essa é uma grande questão para a sociedade, nesse contexto atual, ou seja, a construção de um Plano estrutural que é na verdade a garantia dos Direitos Humanos e depois, obviamente, acompanhá-lo e monitorá-lo. Presidente Roque Grazziotin – Há também um questionamento para o Sr. Mozar Dietrich. Sr. Mozar Artur Dietrich – Com relação ao que já foi dito sobre a criação do Conselho Estadual dos Direitos Humanos podemos dizer que esse compromisso já foi assumido pelo Governador. Portanto, essa questão já está encaminhada em nível de Governo. É verdade que ela ainda está meio truncada. E existe a questão dos demais conselhos. Por exemplo, o Conselho Estadual do Idoso discute, 80 encaminha e delibera a partir dos pactos internacionais e da Política Nacional do Idoso, as políticas que o Governo do Estado deve executar com relação à população idosa do Estado. Evidentemente, que todos os conselhos devem cumprir o que determina os pactos dos Direitos Humanos. Essa é uma discussão que os próprios conselhos irão travar buscando a solução dos problemas. Em nível de Governo também tomamos uma decisão. Existia a discussão acerca da criação de uma Secretaria dos Direitos Humanos e de uma Coordenadoria dos Direitos Humanos. Tomamos a decisão, com base em muita conversa, de não criar esse órgão agora e ao contrário reforçar nas secretarias e em todos os agentes políticos desse Governo a política dos Direitos Humanos como transversal e plural. Dessa forma torna-se exigência de toda e qualquer secretaria, como a da Saúde e a de Transporte, a questão dos Direitos Humanos. E é muito melhor que o Governo como um todo em todas suas instâncias, em seus órgãos políticos e de execução, entenda essa dimensão, essa concepção de Direitos Humanos do que criarmos uma secretaria específica que demandaria questões de Direitos Humanos e começaria a entrar em enfrentamento com as demais secretarias. Então a nossa decisão por enquanto é essa. Agora seria importante a criação de um Conselho que pudesse congregar todos os segmentos da sociedade e fazer a discussão desse assunto. Fazemos a discussão sobre o Plano Estadual para o Idoso. Essa é uma atribuição do próprio Conselho Estadual do Idoso, em conjunto com os órgãos do Governo. Então temos que pensar isso também como atribuição do Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Com relação a outra questão que levantaste, uma das diretrizes do Departamento da Cidadania, da Secretaria do Trabalho, Cidadania, e Assistência Social é exatamente trabalhar no sentido da capacitação, do fomento do que chamamos de controle social de descentralização. Temos portanto um programa de realização de encontros, seminários, palestras, materiais para que as pessoas possam estar-se capacitando e não só as lideranças. Por exemplo, temos um programa de capacitação de lideranças indígenas que já está em desenvolvimento através de vários órgãos do Governo Estado, Saúde, Educação, Agricultura. Estamos iniciando esse processo e indo ao encontro das comunidades remanescentes de quilombos, com a participação de representantes da sociedade civil. O Governo iniciou no ano passado, em conjunto com o movimento negro organizado, um processo de capacitação, inicialmente de algumas lideranças. E o segundo passo, agora, é ir ao encontro das comunidades remanescentes no sentido de capacitá-las para que possam exercer a cidadania, a participação. Além disso, hoje, está acontecendo no município de Santo Cristo um 81 encontro que está reunindo cerca de 150 grupos de terceira idade da região, no sentido de capacitar essas pessoas no que diz respeito aos Direitos Humanos, de cidadania, de participação, de conselhos municipais de direitos, de controle social, de política estadual de idoso. Estamos participando desse encontro com os representantes da Secretaria da Saúde, da Educação, da Assistência Social. Temos para este ano programado dezenas de seminários e encontros. Queremos congregar a comunidade e conselheiros de praticamente todos os tipos de conselhos que existem e realizar seminários regionais e municipais. Queremos congregar conselhos como os tutelares, de agricultura, de desenvolvimento, de educação, de saúde, comissões municipais de emprego, enfim, todos os agentes organizados da sociedade. O objetivo é trabalhar a capacitação em Direitos Humanos, em participação, em controle social e em cidadania. Percebemos exatamente isso, que as pessoas tem uma sede de formação e querem participar, mas sequer sabem quais as instâncias que existem, quais os mecanismos e como acessá-las. Portanto, essa é uma preocupação nossa. Presidente Roque Grazziotin – Obrigado, Sr. Mozar Detrich pela sua participação. Está com a palavra a Sra. Heraida Cyreli Raupp. Sra. Heraida Cyreli Raupp – Sou assistente Social e atualmente estou na coordenação do movimento da Secretaria Municipal de Administração. Primeiramente, gostaria de parabenizar a Mesa pela organização desse evento. Confesso que sinto uma grande pena pelo fato de poucas pessoas estarem ouvindo o que os Senhores falaram para que possamos debater em outros espaços. Quero manifestar o meu encantamento com o Dr. Rui, porque ele conseguiu dar uma escrachada na questão da ideologia dominante. Até porque nós, nos nossos movimentos dos quais participamos, precisamos a todo momento repensar, reconstruir os conceitos, porque quando falamos em machismo parece distante, mas nos movimentos vemos que muitos homens ainda não dividem suas tarefas com as suas companheiras, porque ainda pensam que são elas que têm que realizar três, quatro, cinco turnos de trabalho. Com relação ao racismo, quantos de nós até acredita que o negro é um grande amigo, é um grande companheiro, mas quanto ao fato de ser juiz, prefeito ou prefeita, ocupar realmente um cargo já é demais? Quantos de nós crê ser favorável ao homossexualismo, mas quanto ao fato de se aproximar e dar um abraço numa mulher que convive com outra do mesmo sexo ou sentar à mesa de bar com um homem que vive com outro do sexo masculino aí já estão pedindo demais? Essa manifestação do Dr. Rui Portanova nos motiva a analisarmos as dificuldades que temos. Atualmente, com a reestruturação positiva, buscamos 82 resultados, quer dizer, cada vez mais um processo permanente de aumentar os lucros não importando os meios. Quais os resultados disso no nosso dia-a-dia? Vou trazer aqui uma questão a mais do Movimento de Mulheres, do qual também faço parte: com a reestruturação produtiva temos um violento aumento do assédio sexual, que não está aparecendo. Recentemente estivemos participando de uma assembléia nacional sobre essa questão, na CUT, e percebemos o quanto os sindicatos estão preocupados com tal questão. O fato de não termos mais emprego formal, uma carteira de trabalho, faz com que cada vez mais as mulheres precisem se submeter a essas questões para permanecer no emprego. Além do aumento do assédio sexual, temos o crescimento do assédio mental – na Europa já é conhecido como Mowik –, que é quando os trabalhadores tem de ficar quietos para se segurarem no emprego. Eles têm que, cada vez mais, fazerem-se de surdos, de mudos, têm que agüentar no tranco. Mesmo com problemas, não falam, para mostrar que estão bem e assim manter-se no emprego. Essas questões estão vindo à tona. Temos que saber, quanto aos movimentos, que não é somente uma questão de quem é favorável ao projeto capitalista e quem faz uma defesa de um projeto socialista, mas de que nós, no nosso movimento, temos muitos preconceitos e muitas dificuldades. Quando fazemos o debate do empoderamento da mulher, temos de lembrar que ela está, inclusive, votando nos movimentos sindicais. O próprio movimento de esquerda tem resistência a essa questão, porque ainda se entende que o trabalhador é aquele que está direto no serviço. A companheira dele, que está num outro trabalho, não deveria se envolver, logo, sem direito a voto nas assembléias sindicais, congressos etc. As questões da reestruturação produtiva, da ideologia dominante, são muito forte no nosso meio. Precisamos estar a todo momento repensando o nosso fazer e as nossas ações. Fiquei um pouco preocupada e gostaria de entender melhor o assunto que o Deputado Roque Grazziotin expôs a respeito do voluntariado qualificado. Penso que o compromisso com as políticas públicas são necessárias, assim como são as ONGs que os nossos colegas dos movimentos estão trazendo com clareza. Presidente Roque Grazziotin – Quando discorro a respeito de voluntariado qualificado falo de militantes sociais que se engajam dentro de um processo. O voluntário, ao meu ver, é um militante social que pode estar muito bem empregado ou desempregado, mas é alguém que desperta para a construção de um novo tipo de sociedade. O que é divulgado na mídia é um voluntariado que faz parceria com empresas que visam somente o marketing através de propagandas. Creio que há uma distorção muito grande, por isso citei sem explicitar. 83 Sr. Marcelo Ferrão – Meu nome é Marcelo Ferrão e faço parte dos Movimentos Sociais de Base. Não sei se é um comentário, ou se é uma pergunta, ou se é para esclarecer a minha grande confusão, mas quanto mais falamos em Direitos Humanos, mais confuso fico. Ouvi o Dr. Rui Portanova dizer que somente a lei não basta e ouvi outro representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos dizer que é importante a participação da sociedade civil. Vou falar do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, da qual faço parte na executiva municipal de Porto Alegre. Quanto às questões de ética e de legalidade, existem vários tratados que falam da habitação, do Direito Humano social à moradia adequada. Podemos nos basear nas diretrizes de Mastrid, na nossa Constituição Federal e na Declaração Universal de Direitos Humanos, mas sabemos que, atualmente, não existe na esfera federal nenhuma política habitacional entrando em funcionamento – isso constou do nosso encontro estadual, há algum tempo, em Esteio. No campo estadual, essa iniciativa também é tímida. Quanto ao município de Porto Alegre, é desastroso dentro do campo do Demhab, que hoje se resume tão-somente a apagar incêndios, assim como os bombeiros. Posso falar isso tranqüilamente, assim como criticar, porque fui um dos que construiu tanto o Governo Estadual quanto o Municipal. Quando o representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos questionou a questão do Plano Nacional de Direitos Humanos, disse ele que foi criado somente abrangendo aspectos de direitos civis e políticos e ficaram de fora os DESC – Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Fui um dos relatores do Plano Nacional de Direitos Humanos na área de moradia adequada para o Rio Grande do Sul e não faria uma crítica tão contundente desta porque não precisamos ir muito longe para censurar, podemos fazê-lo dentro da nossa casa também. De acordo com a I Conferência Nacional de Direitos Humanos, de cuja organização fiz parte, a II Conferência Municipal, a I e a II Conferência Estadual, podemos verificar que não foi implementado nem 20% do que estava na I Conferência Municipal e nem 20%, talvez, do que vai ser implementado da II Conferência Municipal, nem 20% da Conferência Estadual e assim por diante, porque a nossa luta dos Direitos Humanos se assemelha a Dom Quixote e a uma formiguinha. Talvez por acreditarmos que a nossa Cidade seja muito grande é que o processo está vagaroso. Não é necessário nos encaminharmos até o Governo Federal, que é o nosso grande inimigo, enquanto temos problemas aqui dentro, não resta dúvida quanto a isso, mas também não podemos colocar peso em cima da Prefeitura e muito menos em cima do Governo do Estado, porque penso que a implementação das leis 84 depende das pessoas. Acredito que essa crítica é válida, mas penso que já deve estar pronta a reformulação do plano. Temos, então, que ir devagar com o andor, porque o santo é de barro. Estamos avançando lentamente. Quanto à moradia, entramos na questão da lei e da jurisprudência. O Dr. Rui Portanova falou que somente a lei não basta, mas complementou dizendo que devemos infernizar por intermédio do Judiciário, com o qual concordo. Existe uma Lei, prevista em vários códigos, que nos garante direito à moradia adequada. Vimos, no entanto, que não é praticada, conseqüentemente, não temos direito à moradia. O que é legal e o que é ético? É legal promovermos ocupações requisitando o uso social da terra frente à nossa necessidade de moradia? É ético pessoas morando embaixo da ponte, enquanto temos direitos que nos asseguram a moradia? Quanto ao movimento nacional, não temos política habitacional no campo federal, nem estadual e nem municipal, então, vamos ocupar. Essa é a nossa determinação. A partir de 3 de junho vamos deflagrar ocupações no Estado e no Município, articulados com o Brasil inteiro. Isso causou-nos um profundo questionamento. Há pouco tempo eu estava dando instrução na Secretaria de Estado da Justiça e da Segurança, na parte de movimentos sociais, para a Polícia Civil, Brigada Militar etc., e eles me questionaram alarmados o fato de eu ser um defensor dos Direitos Humanos e da Lei e agora estar querendo fazer ocupação. Como fica isso? Qual é o conflito? Dr. Rui Portanova, o que podemos fazer? Ou continuamos aceitando o descumprimento da Lei que nos garante moradia ou ocupamos, correndo o risco de sermos taxados de invasores ou contraventores, enquanto que o Estado é o contraventor maior? Ocupamos ou esperamos a Lei? Requisitamos o nosso direito à moradia adequada no Judiciário tentando forçar uma jurisprudência? Acredito muito nisso. Por exemplo, quanto à questão da sexualidade, pode estudar o caso tanto um juiz preconceituoso quanto à homossexualidade como podem ser o Dr. Roger Rios e a Dra. Berenice. Será que o caminho não seria o exercício da jurisprudência, o exercício da Lei? Como resolvemos esta questão: ocupamos ou não? Sr. Rui Portanova – Ocupamos e rezamos. O Senhor fez a pergunta para a pessoa errada. Em Esteio, eu e o Prefeito estivemos no local onde houve uma ocupação, parece-me que de moradia, e após uma negociação as pessoas foram desocupando o local devagar. Houve uma ocupação de moradia também em São Leopoldo, que tinha tudo para dar certo. A reivindicação não era do pessoal do Movimento Sem Terra, era do pessoal da moradia e tinha tudo para dar certo, mas infelizmente 85 fizeram um acordo de desocupação. De qualquer maneira, solicitei para a juíza que continuasse investigando a função social. Dois processos de ocupação rural – Movimento Sem Terra – acabaram em minhas mãos, e nessas duas oportunidades entendi que os ocupantes deveriam permanecer na terra. Quando o Estado tirou o monopólio da violência das pessoas com o intuito de resolver a questão, também achou por bem esclarecer que entrariam no Judiciário e dentro dele teriam que se submeter a um determinado tipo de processo. O que está acontecendo, atualmente, nessas questões coletivas? O que está bem claro é esse embate de ordem política e ideológica, que está sendo trazido para dentro do Judiciário. Sinceramente, não acredito que algum juiz vai te deixar morando o resto da vida ali. Não acredito, é difícil, mas ali é um degrau da luta. Não sei se vais ganhar o processo, mas se as pessoas do movimento estão entendo que o momento é de fazer ocupação e de ir ao Judiciário recorrer, ou seja, correr riscos, penso que é isso que deve-se fazer. Agora, sejamos bem claros. Não pode ser o Judiciário que irá fazer isso. Não podemos contar com o Judiciário para essa finalidade, nem com o Direito. É aquela questão de que só a lei não basta. Não tenho dúvida de que esse tipo de movimento é formado pelas pessoas que até agora têm sofrido opressão, e digo bem claramente, não me referindo a pobres, porque nem todos os devedores de bancos são pobres, às vezes, são grandes empresas. Nessa altura, a gente começa a fazer a defesa do empresário, porque a luta, apesar de não ser por moradia, também acaba sendo uma luta por trabalho. Eles terminam sendo explorados por alguém que é maior do que eles. Isso resulta em envolvimento do empresariado brasileiro. Sem dúvida, sou a favor dessa posição do movimento. Não conta com o Judiciário, mas não deixa de pressioná-lo. Acredito que devem ingressar com as ações, reunir os companheiros na frente do Tribunal. São atitudes importantes. O Poder Judiciário, principalmente o do Rio Grande do Sul, precisa sofrer esse espraiamento democrático que se origina dos movimentos e que neste Estado é bastante desenvolvido. Desde que mais tarde não venham me cobrar, dizendo que fizeram tudo o que eu tinha recomendado e perderam a ação, do ponto de vista da legitimidade, podem ter a certeza de que a têm. Vocês dispõem da lei, existe a Constituição, garantindo o direito à moradia. Há todas as possibilidades, mas vai entrar em questão a perspectiva ideológica e, corre-se esse risco. Porém essa luta é bem maior do que simplesmente obter um ganho de causa dentro do Poder Judiciário. Sr. Valdevir Both – Quero fazer um rápida manifestação com relação aos 86 questionamentos que o companheiro mencionou. Em minha avaliação, penso que necessitamos ser duros com o nosso plano nacional em relação àquilo que se propôs a fazer, até porque, repito, ele peca na sua essência, ou seja, no início, foi elaborado por um grupo dentro da universidade. Na nossa avaliação isso é muito complicado. Claro que no ano passado, tivemos uma má avaliação no plano nacional que o ministro assumiu em fazer. Inclusive, em Porto Alegre, tivemos um fórum de discussão, quando foram incluídos direitos econômicos, sociais e culturais. Agora, não podemos admitir que tenhamos um plano simplesmente para ter um status internacional. Por exemplo, se formos observar as ações a que o Governo se propôs na área dos Direitos Humanos, para resolver de uma melhor forma a questão dos presídios, muito pouco daquilo foi realizado. Então, não podemos ter um plano simplesmente para desfrutar de um status internacional. Agora, esse relatório paralelo denunciou isso para fora do País. Antes disso a questão dos Direitos Humanos tinha um status muito grande. Em relação à questão local, estadual, penso que nós, como movimento, não podemos perder nossa essência. Concordo com o Senhor quando diz que a promoção, conquista e implementação dos Direitos Humanos constitui-se de um processo, ou seja, não se sai de um estado hoje e se passa para outro amanhã. Digo isso para qualquer dos governos. Não podemos perder a nossa essência de fazer pressão para a garantia dos Direitos Humanos. Acredito que esse é um ponto fundamental, por isso repito que é importante que participemos e façamos o nosso Plano Estadual de Direitos Humanos, assim como planos municipais, que constituem a base de que disporemos depois para uma política de Direitos Humanos. Em hipótese alguma, nós, como movimento social, não podemos perder a noção de que essa grande luta pelos Direitos Humanos é um processo. Sra. Ana Elusa Rech – Mudei de profissão há 12 anos, em função da Constituição Federal. Investi concretamente na consolidação de movimentos sociais. Tenho hoje uma preocupação muito grande, porque no Rio Grande do Sul, salvo melhor juízo, contamos aproximadamente onze conselhos estaduais. Algumas das pessoas que fazem parte desses conselhos, desde o primeiro, são as mesmas. Temo que, nessa nossa capacidade de organização e no avanço que a globalização e as privatizações têm obtido neste País, acabemos entrando em um processo autofágico de descrédito da mobilização, da consolidação de planos que se efetivem. Digo isso com um fundamento muito concreto em minha experiência bastante sofrida e vivenciada. 87 Nessa semana participei de um evento, que era a assinatura de um protocolo de intenções de um sonho que conta pelo menos seis anos. Fiquei feliz com a assinatura do protocolo. Refere-se à construção de repúblicas para os meninos de 16 a 21 anos em situação de vulnerabilidade social, ou seja, sem casa, sem família, sem condições de se auto-sustentarem. Sabemos que precisaremos esperar por, pelo menos, mais seis meses. Alguns desses meninos que entrarão na república nem estavam na rua, quando iniciamos a sonhar. Vejo que as emergências sociais são muito grandes e que as dificuldades de organização do serviço são maiores ainda. Por outro lado, ao mesmo tempo em que consolidamos a burocracia organizacional do movimento, por meio dos conselhos, assistimos placidamente, de mãos amarradas, a perda de direitos civis, como o trabalho, que os trabalhadores têm sofrido. É nesse sentido que gostaria de ver de que forma, além da mobilização, podemos de fato concretizar alguns sonhos. Sr. Mozart Artur Dietrich – Acredito muito na mobilização dos movimentos sociais. Vemos essa força na história. Hoje, pela manhã, foi relatado um pouco dos históricos. É uma força crescente que tem evidentemente em todos os seus momentos de quedas, de perdas de energia, mas logo adiante percebemos que os movimentos retomam. Cito dois exemplos que estão ocorrendo agora no Estado e que nos estão deixando bastante contentes. Um é o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Estado – CODENE. Penso que ele se encontrava nessa situação mencionada. Foi institucionalizado um conselho antigo, que talvez até devido ao tempo e ao fato de as pessoas serem sempre as mesmas, estava perdendo a força. Mas, houve uma reação substancial em grande parte do Estado do Rio Grande do Sul que decidiu tomar o poder para si. Houve uma organização de vários municípios. O CODENE era muito centrado na Região Metropolitana. Em novembro do ano passado, aconteceu a eleição para o novo CODENE. Agora esse conselho possui nove representantes de nove regiões do Estado, somente um de Porto Alegre. O pessoal se encontra bastante motivado. Estão bastante ativos dentro do Conselho. Isso reflete talvez um refluxo da força da comunidade durante algum período, mas que agora está retomando. É importante que o Estado não seja aquele que vai inibir isso, ou tentar conter essa força. A própria comunidade negra conquistou esse espaço. Outro exemplo que podemos mencionar refere-se à comunidade indígena. Quando reestruturamos o Conselho da Comunidade Indígena, em 1999, o Conselho anterior contava nove representantes indígenas e nove do Estado. 88 Atualmente, esse conselho possui 20 representantes indígenas e dez do Estado. Os índios não aceitaram a imposição de um conselho paritário, a qual defendíamos, pois o Governo precisaria do mesmo número de votos. Não houve aceitação desse argumento. O Governo terminou por aceitar até para não obstaculizar ou impedir essa força do movimento indígena e estamos convivendo muito bem com essa situação. Os índios atualmente são a absoluta maioria dentro do Conselho que está funcionando muito bem, com bastante participação. Penso que, de modo geral, percebemos que essa renovação está ocorrendo em outros conselhos também. Considero que isso é da natureza dos movimentos sociais. Historicamente eles possuem essa característica. Às vezes, sofrem momentos de desarticulação, como o que ocorreu no início do Governo Fernando Henrique contra o Movimento Sindical Brasileiro, quando praticamente arrebentou com os petroleiros. Todos lembramos disso. No entanto, não extinguiu o movimento. Estes sempre se articulam e fortalecem e retornam. Sra. Tereza Polleto Porto – Desejo formular uma pergunta. O Desembargador Portanova disse que no Ministério Público, o difícil não era entrar e, sim, sair. Penso que tudo é muito difícil, principalmente no nosso Estado. Sou Tereza Polleto Porto. Luto pela libertação da minha família e, lutarei sempre. Quero perguntar se o magistério público enquadra-se naquele ditado gaúcho que diz que tem que pagar uma carrada de gado para entrar, ou para não sair? Muito obrigada. Presidente Roque Grazziotin – Dona Tereza, penso que a luta continua. Com a palavra o Sr. Dorvalino Fillipini. Sr. Dorvalino Fillipini – Meu nome é Dorvalino. Existe algo que venho observando há muito tempo. Não sei se a culpa cabe à mídia, ou à escola, ou à sociedade, porque toda pessoa, quando busca atendimento em qualquer lugar, seja público seja privado, que versa sobre o direito do ser humano, só é respeitada, na maioria das vezes, se está sabendo como funciona a legislação. Se não sabe sobre o que versa a lei que a protege, é pisada. Teria que se inverter isso. Não sei se é culpa da sociedade ou de quem. Conheço vários casos como, por exemplo, o de uma menina portadora de deficiência, lá de Nova Prata que, quando ia conversar com um vereador disse que, se ela continuasse incomodando-o, ela iria parar na cadeia. O vereador tratou-a bem assim. Então ela ligou para mim que a orientei para que, na próxima vez que ele dissesse aquilo, ela perguntasse a ele se conhecia o art. 8º da Lei nº 8.753. Orientei-a para que só falasse isso, e não dissesse mais nada. Na próxima vez, ela seguiu a minha orientação, e ele nunca mais a xingou e hoje a atende com todo o respeito. Por quê? É porque viu que ela conhece a lei. 89 Então, não sei se se começaria o esclarecimento pela escola ou pela faculdade, ou pelos meios de comunicação, pelos jornais ou não sei por onde. Teríamos de ter um começo para esclarecer a população para saber onde está mexendo, e não precisar sempre buscar um advogado, um professor, sei lá para esclarecer para chegar no ponto comum para defender o seu direito como cidadão, como pessoa, como ser humano. Muito obrigado. Presidente Roque Grazziotin – Vamos, a partir de agora, conceder um minutinho para cada painelista apresentar, não a sua conclusão porque este tema não conclui, pois é o início de um processo que nunca termina. Sr. Valdevir Both – O companheiro levanta mais uma vez essa problemática que, na minha avaliação e na avaliação do Movimento Nacional de Direitos Humanos, que inclusive foi tratado pela manhã, é fundamental e temos de enfrentá-la. Ou seja, hoje enfrentamos uma grande mídia que simplesmente detona os direitos humanos. Na verdade, temos programas que simplesmente não dá para assistir. Daí entramos num problema muito grande que é o da censura. Somos logo acusados de que queremos implantar novamente a censura, pois lutamos por esse direito durante muito tempo. Então essa é uma problemática que foi levantada duas vezes hoje. Pela manhã, já discutimos esse tema com o pessoal da Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero – Themis. Temos de enfrentá-lo de qualquer maneira, ou seja, nós nos sentimos pequenos em frente de um programa que, por exemplo, fica, à noite, durante duas horas, catequizando milhões de pessoas do Brasil. A problemática que temos de começar a enfrentar é como vamos trabalhar mídia e Direitos Humanos, para que, em primeiro lugar, não se deteriorem os Direitos Humanos e, em segundo lugar, que ela promova os Direitos Humanos. Com isso quero dizer que temos muito a fazer. Agradeço a participação e até uma próxima oportunidade. Sr. Rui Portanova – Quero dizer uma palavrinha à Dona Tereza: não é só no Judiciário que se dá um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não sair dela. A vida é assim e no Judiciário é assim também. Isso também vale para o companheiro que trouxe a problemática da moradia. Temos de ser eternos inconformados e eternos revoltados. Essa é a lógica que tem de ser mudada no Direito, que sempre trabalhou muito com a ordem e com o medo do caos. No entanto, sabe-se que essa é a ordem burguesa, e o caos que o Direito teme não é o caos que nos legaram. Temos de viver, pois é essa a situação que se tem. Em relação à mídia que não é a minha especialidade, há algo que gostaria de falar para podermos repartir algumas idéias. A mídia, principalmente o pessoal de rádio, tem uma expressão que chamam de virar o fio, que quando se bate muito 90 no mesmo tema vira o fio. Não sei se os Senhores têm o mesmo sentimento que eu. Por exemplo, na RBS, há determinadas pessoas que são de tal forma ranzinzas e rancorosas que viraram o fio. Ninguém acredita mais neles. Quanto mais eles falarem é até melhor. Então, nessa idéia de mídia, pode-se ter esse pensamento, enquanto nós, como movimento, sabemos bem como minar essas estruturas. Volto a agradecer ao Deputado Roque Grazziotin pelo convite. Estou à disposição para debates. Confesso, sinceramente, que estou muito cansado de ler livros de Direito. Já os li e reli e, infelizmente, não aprendi nada. Os Senhores viram aqui como não aprendi nada de Direito. Falo tudo ao contrário do que o Direito afirma. Os locais de aprendizagem mesmo são os movimentos populares. É com os Senhores que quero aprender. Por favor, me convidem para as reuniões que estarei à disposição. Muito obrigado. Sr. Mozar Artur Dietrich – Também quero agradecer mais uma vez o convite que a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e Movimento Nacional de Direitos Humanos fez ao Governo do Estado. Para nós foi uma satisfação estarmos aqui, trazendo o nosso ponto de vista sobre essa temática tão importante. Estamos à disposição. Como já disse, vou encaminhar ao Governo as questões que foram levantadas aqui, principalmente com relação ao plano e ao Conselho de Direitos Humanos. Finalmente, como cidadão, quero dizer que me senti de alma lavada ao escutar o Dr. Rui Portanova. É bom muito escutar palavras de quem sabe bastante, de quem já tem uma história. Sobre tudo que ele falou, temos vontade de falar também, mas não se consegue. Muito obrigado, Dr. Rui Portanova, por ter podido ouvi-lo nesta tarde. Presidente Roque Grazziotin – Queremos agradecer a participação de todos e, de modo especial, aqueles que ajudaram a organizar este Seminário: todos os técnicos da equipe da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos aqui da Assembléia Legislativa, assim como os participantes do Movimento Nacional de Direitos Humanos. O nosso agradecimento especial também aos painelistas: Dra. Flávia Piovesan e Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho. Neste painel da tarde sobre a Dimensão Humana na Consolidação de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, agradecemos ao Dr. Rui Portanova, ao Dr. Cláudio Barros e Silva, representando o Executivo, ao Mozar Artur Dietrich e ao Professor Valdevir Both, do Movimento Nacional de Direitos Humanos. Gostaria de concluir, recordando uma pequena frase de Brecht que, desde que a ouvi pela primeira vez, animou-me muito. Ele diz que nesta luta pelos Direitos Humanos, pela caminhada por este processo, há gente que luta um dia e é boa, há gente que luta uma semana e é melhor e há gente que luta um ano e é 91 muito boa, mas são necessários aqueles que lutam toda a vida e são imprescindíveis. Por isso há um processo permanente e um processo dos imprescindíveis. Todos nós somos convocados e reconvocados para nos aperfeiçoar principalmente neste novo milênio. Nas funções que cada um vai exercendo, muito temos a contribuir. Portanto, obrigado pela contribuição de todos que participaram deste Seminário no dia de hoje. Muito obrigado.