A Construção da Dimensão Humana - Dignidade, Direitos Humanos

Propaganda
1
Seminário
A Construção da Dimensão Humana Dignidade, Direitos Humanos Econômicos,
Sociais e Culturais
Comissão de Cidadania e Direitos Humanos
2
Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul
Mesa Diretora da Assembléia Legislativa
Do Estado do Rio Grande do Sul – 2001
Presidente
Deputado Sérgio Zambiasi (PTB)
1º Vice-Presidente
Deputado Francisco Appio (PPB)
2º Vice-Presidente
Deputada Maria do Rosário (PT)
1º Secretário
Deputado Alexandre Postal (PMDB)
2º Secretário
Deputado João Osório (PMDB)
3º Secretário
Deputado Paulo Azeredo (PDT)
4º Secretário
Deputado Marco Peixoto (PPB)
Comissão de Cidadania e Direitos Humanos
Presidente
Vice-Presidente
Deputado Padre Roque Grazziotin (PT)
Deputada Luciana Genro (PT)
Titulares
Deputada Maria do Rosário (PT)
Deputado Francisco Áppio (PPB)
Deputado Marco Peixoto (PPB)
Deputado Manoel Maria (PTB)
Deputado Elmar Schneider (PMDB)
Deputada Iara Wortmann (PPS)
Deputado José Ivo Sartori (PMDB)
Deputado João Luiz Vargas (PDT)
Deputado Vieira da Cunha (PDT)
Deputado Aloísio Classmann (PTB)
3
Apresentação
A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa
do Rio Grande do Sul (CCDH) realizou, em 30 de março de 2001, em parceria
com o Movimento Nacional dos Direitos Humanos/RS, o seminário A
Construção
da
Dimensão
Humana
-
Dignidade,
Direitos
Humanos
Econômicos, Sociais e Culturais. Em paralelo, promoveu a exposição
fotográfica da Plataforma de Articulação e Diálogo das Agências Ecumênicas
Européias e seus Parceiros Brasileiros (PAD), retratando perspectivas de
atuação dos Direitos Humanos num contexto de violações e conquistas.
O evento explicitou o compromisso da CCDH em contribuir para que os
direitos econômicos, sociais e culturais se incorporem verdadeiramente ao
conjunto único, indivisível e universal dos Direitos Humanos.
Divulgar o conteúdo tratado no Seminário é o objetivo desta publicação,
visando ampliar ao máximo o acesso a este debate e incentivar a reflexão sobre
o lugar e a responsabilidade de cada um no Sistema de Proteção dos Direitos
Humanos, especialmente dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Deputado Padre Roque Grazziotin
4
Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos
A Construção da Dimensão HumanaDignidade, Direitos Humanos Econômicos,
Sociais e Culturais
Data: 30 de março de 2001
Local: Plenarinho da Assembléia Legislativa do RS
9h às 11h: Palestras
Dra. Flávia Piovesan - Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais
Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho - Direitos Sociais
11h às 12h - Debate
14h às 16h - Mesa Redonda
A Dimensão Humana na Consolidação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, através da
manifestação dos Poderes
Executivo: Mozar Arthr Dietrich - Depto. Cidadania da STACAS/RS
Legislativo: Dep. Padre Roque Grazziotin - Presidente CCDHH/AL
Judiciário: Dr. Rui Portanova - Desembargador
Ministério Público: Dr. Claúdio Barros e Silva - Procurador-Geral de Justiça
Plataforma DHESC: Professor Valdevir Both - MNDH
16h15min às 18h - Debate e encaminhamentos
18h - Encerramento
- Exposição Fotográfica PAD Data: de 26 a 30 de março de 2001
Local: Espaço Novos Talentos - Assembléia Legislativa
Direitos Humanos no Brasil e na Europa: Perspectivas de atuação num contexto de Violações e
Conquistas
5
- Exposição organizada pela Plataforma de Articulação e Diálogo das Agências Ecumênicas
Européias e seus Parceiros Brasileiros (PAD), composta de 84 fotografias, retratando as condições
de vida de cidadãos e cidadãs brasileiros e de vários países europeus.
Direito Social e seus significados, o princípio da alteridade
José Carlos Moreira Da Silva Filho
A proposta que me foi feita é no sentido de tratar do tema dos direitos sociais,
em função da discussão do Pacto dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e
Culturais. Na verdade, o título dessa conferência seria o direito social e seus
significados, o princípio da alteridade.
Inicialmente vou explicar um pouco esse título e, ao mesmo tempo, dar notícias
sobre o sistema da exposição e das etapas que vamos procurar vencer. Sem dúvida,
agradeço a presença de todos e espero que consigamos construir um diálogo profícuo
esta manhã.
Embora a Dra. Flávia Piovesan ainda não possa estar presente, manifesto de
antemão que é uma imensa honra poder figurar ao seu lado para discutir tema que
considero de fundamental importância e de particular apreço.
O título Direito social e seus significados, princípio da alteridade surgiu a
partir de dois pontos. Primeiramente, de um trabalho que desenvolvi na Universidade
Federal de Santa Catarina, onde fiz meu mestrado. Na ocasião, procurei estudar o
pensamento da chamada filosofia da libertação latino-americana.
Dentro dessa filosofia há inúmeras correntes, e procurei privilegiar o
pensamento do filósofo argentino Enrique Dussel, que considero extremamente rico e
fértil, para que, a partir dele, possamos fazer reflexões envolvendo aspectos atinentes
aos direitos sociais.
Talvez aqueles que fizeram o curso de Direito, estudam ou tenham interesse em
ler texto jurídico, ou até mesmo quem não esteja nesse meio, podem ter percebido que
quando se fala em direito social normalmente vem à tona uma série de significados e
sentidos que muitas vezes são misturados entre si e não são divisados em sua
especificidade.
Esse esforço, fruto de uma pesquisa que desenvolvi na Universidade do Vale do
Rio dos Sinos, onde sou docente e coordenador do curso de Direito, procurou pontuar
algumas direções que se encontram por trás desse rótulo, desse tema direito social.
Percebi que nessas direções diferentes podemos encontrar um fundamento único e
amplo que informa todas essas direções. Este fundamento é exatamente a outra parte do
título da conferência, que é o princípio da alteridade.
6
Esse termo, essa significação vem exatamente das investigações que realizei em
torno da filosofia da libertação latino-americana. O filósofo Enrique Dussel desenvolve
o que ele chama de ética da alteridade – alter vem do outro – e vou procurar
especificar esse sentido mais adiante.
Desculpo-me pelo tom excessivamente acadêmico que possa adotar, é um
traquejo, uma decorrência de lidar com a academia. Dedico-me quase que
praticamente à universidade, mas espero que possa contribuir com alguns subsídios
teóricos para tornar essa reflexão mais rica.
É fundamental fazer um contexto do aparecimento da temática dos direitos
sociais. Em seguida, começarei a divisar uma das direções que o termo direito social
pode apontar; seria uma direção que poderia chamar de perspectiva sociológica ou
caráter formal do direito social. De antemão já esclareço o que quer dizer. Muitas
vezes quando se fala em direito social, além de enfocar determinados conteúdos que
esses direitos devem abraçar, está-se fazendo referência à forma como as normas de
conduta são produzidas na sociedade.
O direito pode ser classificado como social, não apenas em função do
conteúdo de justiça social que ele busque atingir, mas também pela forma como esse
direito é elaborado. Essa questão traz à tona a discussão de uma nova teoria
democrática que busque ir além da democracia representativa, perceber na sociedade
as movimentações coletivas de grupos como movimentos sociais e visualizar nessa
atividade política a produção de legítimos direitos.
Existe essa perspectiva que coloca o enfoque de maneira muito mais intensa na
forma de produção – por isso o temor formal – e não necessariamente no conteúdo que
se esteja defendendo por intermédio daquela movimentação coletiva. Inúmeros
autores procuraram aprofundar essa faceta, digamos, do direito social. No entanto, um
destacou-se dando uma solidez teórica para o discurso do direito social e
desenvolvendo seu discurso exatamente nessa época – que vou falar anteriormente a
esse ponto – sobre o contexto de aparecimento de direito social. Refiro-me ao jurista
russo, naturalizado francês, Jorge Sgorvitz. A partir dele muitos outros se colocaram.
Num terceiro momento, vou procurar dar conta já num sentido que poderia ser
chamado de material, ser classificado como ético-filosófico e identificado no tema dos
direitos sociais. Neste sentido, vou trazer à tona as reflexões, dentre inúmeras que
podem ser feitas nesse rótulo, sobre perspectivas ético-filosóficas do direito social, a
filosofia do argentino Enrique Dussel, até porque outros autores já procuraram fazer
uma ponte entre o pensamento desse filósofo e as reflexões sobre os direitos,
especialmente os Direitos Humanos.
Vou procurar dar conta do chamado aspecto material dos direitos sociais, ao
comentar esse ponto. Quando se fala em direito social, também está-se fazendo
7
referência a um determinado conjunto de direitos que possui certas características e
certos valores a preservar e a efetivar.
Finalmente, não poderia deixar de ser, quando se fala em direitos sociais é de
se dar conta da perspectiva constitucional dessa discussão. Vamos observar também a
tradição dos direitos humanos, a discussão dos direitos humanos, até mesmo na
antigüidade clássica e em outras culturas e ciclos culturais, como o ciclo cultural
semita. Enfim, como o termo Direitos Humanos foi, sem dúvida alguma, popularizado
e tornado célebre a partir do liberalismo, dos chamados direitos de primeiras
dimensões e assim por diante, como vamos observar.
Neste século, a doutrina constitucional alemã, procurando prestar maior
efetividade ao que então se havia tido como uma mera declaração de princípios, ou
ideais atrás do termo Direitos Humanos, ou declaração de direitos, procurou emprestar
uma noção de maior eficácia jurídica aos Direitos Humanos, passando a chamá-los de
direitos fundamentais, na medida em que eles integrassem a ordem constitucional das
sociedades modernas.
Vamos procurar desenvolver essa discussão dos direitos fundamentais no
âmbito do direito constitucional, enfocando a nossa realidade constitucional e
trazendo à tona pontos polêmicos como, por exemplo, o dos direitos sociais serem ou
não considerados verdadeiros direitos fundamentais, que vêm bem ao encontro da
discussão no âmbito internacional.
Aliás, a professora Flávia Piovesan certamente vai abordar esses pontos. Essa
discussão revela-se como mais um argumento a favor da noção de que os direitos
sociais são indissociáveis em relação aos direitos individuais e que os Direitos
Humanos devem ser vistos numa perspectiva global e indissociável. Esta discussão
juridicamente se coloca especificamente no ponto do art. 60, § 4 que trata dos limites
formais, a reforma constitucional, isto é, das chamadas cláusulas pétreas.
No § 4º do art. 60 é dito que não será objeto de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir. E vem lá no inciso IV, os direitos e garantias individuais.
Este termo deu espaço para que muitos juristas dissessem que apenas os direitos
individuais fazem parte desse núcleo irreformável da Constituição, os direitos sociais
não. Vamos analisar essa polêmica e apresentar argumentos favoráveis. A proposta,
portanto, seria óbvia. Poderíamos ainda enunciar outros sentidos para o termo direito
social, mas procurando divisar algumas direções básicas. Então, vamo-nos manter
presos a essas aqui.
Conforme o roteiro informado, primeiramente trataremos do contexto de
aparecimento da temática do direito social, para que possamos ter um pouco melhor a
noção das circunstâncias que envolveram as discussões sobre esse tema.
Sem dúvida, poderíamos fazer um contexto diferente e, por exemplo, falar da
8
tradição, alguns juristas fazem isso.
O jurista mexicano Jesus Antonio de la Torre Rangel, que também analisa o
pensamento do filósofo argentino Enrique Dussel, observa que na tradição bíblica
percebe-se os Direitos Humanos no sentido dos direitos sociais de forma muito mais
evidente do que na tradição Ocidental, que na nossa tradição, liberal-democrática.
Refere-se ao conceito de Mispá que, de acordo com os profetas, seria a proteção dos
mais débeis. Na própria Bíblia, pode-se perceber uma tradição em busca da efetivação
dos direitos sociais e uma preocupação com o pobre. Essa é uma das características
primordiais dos chamados direitos sociais.
Para que possamos visualizar melhor esse termo dentro da discussão dos
Direitos Humanos na nossa sociedade Ocidental, vamos comentar sobre a prioridade
no aparecimento dessa temática no século passado, dentro da esteira, da seqüência,
dos chamados Direitos Humanos, a partir da tradição liberal.
Na segunda metade do século XIX, graças, entre outros fatores, à Segunda
Grande Revolução Industrial, uma série de novas circunstâncias na sociedade
começaram a aparecer, denunciando a limitação e a incapacidade do discurso político
social e econômico trabalhado até então pela sociedade liberal, do Estado liberal, do
capitalismo concorrencial. Na medida em que novos atores começaram a aparecer na
sociedade e novas demandas começaram a surgir com maior pujança, de modo que
não pudessem ser atingidas ou satisfeitas pela visão do capitalismo liberal no seu
início, do Estado liberal, isso causou o aparecimento e a necessidade de uma discussão
teórica em prol de direitos que trouxessem um novo modelo de Estado, um novo
modelo de pensamento político, econômico e de sociedade.
Por exemplo, percebeu-se uma nova classe social com maior evidência, à
medida em que os meios de produção começaram a passar por uma forte
industrialização, gerando a classe do proletariado. De outro lado, o capitalismo
concorrencial passou a dar maior ênfase ao plano de produção e não tão-somente ao
plano de circulação das mercadorias como ocorria no capitalismo concorrencial do
Estado liberal, dando, assim, maior ênfase também nas próprias relações de produção,
que é uma característica do capitalismo industrial.
Isso começou a gerar uma série de exigências de direitos que não eram vistos,
nem integrados dentro do discurso liberal proveniente da Revolução Francesa e foi
emblemático nas obras da época. Inclusive, o romance de Émile Zola, Germinal,
retrata com bastante clareza de que modo os direitos trabalhistas simplesmente não
eram atendidos e não tinham espaço dentro da visão política, econômica e social
construída a partir da sociedade liberal de antanho.
Começaram a surgir novos atores, trabalhadores e sindicatos, e o ânimo
associativo tornou-se mais evidente à medida que as desigualdades, que escapavam da
9
explicação de mundo fornecida pela visão de mundo liberal, apareciam num caráter
coletivizado. Essa é uma das razões pelas quais entendemos o direito social como
direito coletivo. Isso é o direito social que veremos em última análise, como por
exemplo, o direito dos trabalhadores passa pelo atendimento individual.
Ao falarmos em direitos sociais, temos a idéia de coletivo ou de coletivização,
porque as desigualdades, que são objeto de atendimento dos direitos sociais e do
pensamento utópico, se dão coletivamente. Portanto, são frutos de uma visão mais
realista da sociedade e menos idealizados. Os Senhores devem ter a noção de que a
visão de mundo da sociedade liberal é uma visão idealizada, que parte de um contrato
social e na qual as duas grandes figuras que a compõem são dicotômicas, ou seja,
separadas entre si. De um lado, está o indivíduo que tem sua vontade, sua autonomia e
onde todos são iguais; de outro, o Estado. A essa visão de mundo corresponde a
divisão que até hoje informa, de certo modo, nossa maneira de ver a realidade política,
que é a divisão entre sociedade civil e Estado.
Não havia espaço para os grupos intermediários, os grupos coletivos, que se
colocam, não em um plano idealizado do Contrato Social, de Rousseau, por exemplo,
mas, sim, num plano concreto de desigualdades que surgem a partir dos papéis que
cada um ocupa na organização econômica e social. Aliás, dentro do discurso clássico
do liberalismo, os grupos intermediários, as associações e, inclusive o coletivo, era
visto como um ambiente pernicioso no sentido de possibilitar o desvirtuamento da
vontade individual.
O Plano do Direito Civil, ou seja, o Plano do Direito dos Contratos,
fundamenta-se na vontade individual. O direito vê a relação contratual como uma
relação entre dois indivíduos livres, que têm liberdade para contratar. Todo o direito
civil está fundado na idéia de autonomia da vontade, seja no âmbito do direito da
propriedade ou no âmbito do direito contratual. O proprietário tem a liberdade de
dispor, como bem entender, de sua propriedade. As partes têm liberdade para escolher
com quem contratar, como contratar e o que contratar. Isso possibilita a circulação da
mercadoria.
O contrato revelou-se como o reflexo jurídico dessa visão de mundo liberal.
Existe uma grande dificuldade para essa visão de mundo entender o ânimo associativo
e o coletivo. Esse estado de coisas criou uma insatisfação social que começou a trazer
muitas convulsões sociais e um novo pensamento: o chamado Pensamento Utópico.
Por trás desse termo, podemos perceber todos os pensadores que desenvolvem um
discurso em prol do social. O grande pensador utópico desse período foi Karl Marx.
Paralelo ao pensamento dele, desenvolveram-se vários outros pensadores,
alguns se classificando como marxistas, embora Karl Marx tivesse afirmado que não
era um marxista, na medida em que não compactuava com algumas correntes que aí se
10
colocavam.
Esse estado de coisas forçou a estrutura, a sociedade capitalista, a se rearranjar.
O capitalismo, que se ancorava na organização política do Estado liberal, teve de ser
transformado, na medida em ao Estado abstencionista, que é o Estado liberal,
impunha-se o dever de abster-se de intervir na vida das pessoas, uma vez que elas
teriam direito à sua liberdade, à sua integridade física, o direito de livre manifestação
de opiniões – todos eram iguais perante a lei – e assim por diante.
A tarefa do Estado, dentro de uma visão liberal, é a de um Estado mínimo, que
não intervém, negativo. Na medida em que a organização livre – economicamente
falando – da sociedade, livre dentro da concepção do liberalismo, fundado num
individualismo extremo, não estava dando conta de responder a essas demandas
sociais que apareciam cada vez mais em função da transformação do capitalismo
concorrencial para o capitalismo industrial, o Estado, enquanto estrutura política, teve
de ser reformulado também, para procurar evitar o rompimento do próprio sistema
econômico quando estava montado. Aí surge uma nova feição de Estado soberano,
que é o Estado intervencionista ou o chamado welfare state ou Estado do bem-estar
social.
O Estado deixa de ter uma postura de abstenção e passa a ter uma postura de
intervenção na realidade, uma postura positiva. Ele tem de garantir educação, saúde,
enfim, garantir que os trabalhadores possam ser protegidos na relação desigual que
mantinham com seus empregadores, de tal modo que o contrato de trabalho escaparia
da incidência do total do princípio da autonomia da vontade. Certas cláusulas do
contrato de trabalho não poderiam ser reféns de uma pretensa liberdade que se
instauraria na relação entre empregador e empregado.
Ainda que o trabalhador fizesse um contrato com seu empregador no sentido
de não receber o salário pelo seu trabalho, essa relação, caso fosse objeto de uma
demanda judicial, teria essa cláusula considerada nula e o trabalhador, obviamente,
teria direito a contraprestação salarial.
O welfare state, sem dúvida, além de ter sido incentivado por esse novo estado
de coisas, foi incentivado pelas duas grandes guerras que aconteceram nesse século,
exigindo uma atitude mais presente do Estado em termos de providenciar mantimentos
e remédios. O crack da bolsa de 1929 também gerou a necessidade de uma nova
atuação do Estado, intervindo mais na economia, na medida em que aconteceu muita
inflação e muito desemprego a partir dele.
A primeira formulação constitucional deste Estado e, conseqüentemente, dos
direitos sociais que este Estado deveria contemplar, podemos identificar na
Constituição de Weimar, 1919, que prenunciava – antecedeu – o Nacional Socialismo
e a Constituição Mexicana de 1917. De posse desses elementos, conseguimos
11
visualizar um pouco melhor a pujança que os direitos sociais começaram a assumir.
Muitos autores, inclusive de maneira confusa, no próprio âmbito do direito,
identificam a discussão do direito social pura e simplesmente com o direito do
trabalho, na medida em que as reivindicações trabalhistas foram aquelas que se
destacaram mais. Até o próprio Gurvith dava ênfase ao direito do trabalho como o
representante dos direitos sociais.
Transportando essa discussão para os dias atuais, evidencia-se como é limitada
uma visão dos direitos sociais que busque reduzi-lo apenas ao direito do trabalho.
Atualmente, falamos em direito ao trabalho, não apenas no direito de ter um salário
digno, de ter condições dignas de trabalho, coniventes com a própria humanidade
daquele que está ali empregando sua força de trabalho. Isso sem falar de outros
direitos que também se incluem dentro desse rótulo de direitos sociais, como o direito
à educação. Os próprios direitos culturais podem ser aí incluídos, na medida em que a
cultura também se reflete a partir da posição que o indivíduo ocupa no seu grupo e
assim por diante.
Dentro do contexto sugerido para a segunda etapa do roteiro, podemos falar
numa visão sociológica ou formal dos direitos sociais. Destacamos sobremaneira o
autor Georges Gurvith que procurou trabalhar essa noção e deu uma grande
consistência teórica para o tema dos direitos sociais. Esse jurista, nascido na Rússia,
em 1894, e naturalizado francês, faz algumas divisões. Sua intenção é procurar olhar
para a realidade social vendo nela uma organização política e jurídica mais complexa
do que a visão de mundo liberal havia fornecido.
Ele desenvolve algumas categorias explicativas dessa realidade social e
contrapõe, por exemplo, o direito social a um chamado direito individual. Procura
criar tipos, trazendo à tona a categoria de Max Webber, de tipos ideais, ou seja, tipos
que nos ajudam a entender a realidade, mas que necessariamente não existem na sua
pureza na realidade concreta. Tipos que se interpenetram, que se misturam, mas que
são úteis para que possamos entender um pouco melhor a realidade com a qual nos
deparamos.
Gurvith nos fala de um direito social e de um direito individual. O direito
individual seria o decorrente do desenvolvimento clássico do liberalismo. O
liberalismo fala em liberdade, mas essa é recalcada na idéia de indivíduo. O direito
individual é aquele, por exemplo, contemplado no Código Civil Napoleônico, que foi,
sem dúvida, o bastião dessa sociedade e que até hoje, de certa forma, ainda ocupa o
chamado senso comum teórico dos juristas – expressão do professor Luís Alberto
Vará.
O direito individual está calcado numa idéia de delimitação. Delimito aquilo
que é meu e delimito o meu espaço dentro da sociedade. Esse direito é reflexo de uma
12
ordem institucionalizada por um direito que exatamente procurou individualizar essa
tônica individual. De outro lado, existe o chamado direito social dentro da visão desse
jurista. Esse direito seria o reflexo de uma fusão comunitária. Ele torna um pouco mais
complexa essa análise do direito social, percebendo que existem vários níveis de fusão
na sociedade.
Existem fusões que são efêmeras, por exemplo, uma multidão ou uma massa
que se encontra na rua para protestar em relação a algo, e aí envolvendo vários valores
e objetivos naquela relação que é social, na qual ocorre uma fusão, que tão logo se
forma e que tão logo se dissipa. Existe também uma fusão mais intensa e outra
moderada – ele faz essas tipologias todas. Mas o que ele busca perceber no direito
social é que o esforço de delimitação do indivíduo cede para um discurso que passa
pelo indivíduo e envolve os outros membros do grupo que se encontram na mesma
situação em que aquele indivíduo está.
A idéia de fusão comunitária que o direito social traz é uma idéia de
solidariedade mais visível, em que as pessoas de um mesmo grupo, portanto passando
pelas mesmas vicissitudes e situações, identificam conjuntamente uma mesma
necessidade que exija a demanda de um determinado direito.
Sem dúvida que esse direito social, à medida que se reflete em grupos que
atuam de forma corporativa, pode acabar degenerando na mesma dinâmica e formação
que os próprios direitos individuais, à medida que os grupos se coloquem contrários
uns aos outros e percam de vista exatamente essa tônica solidarista, comunitária e de
fusão.
Gurvith também faz uma divisão entre o direito espontâneo e o direito
organizado. Associa o direito organizado, de maneira mais evidente, com os direitos
individuais, na medida em que estes, conforme eu disse anteriormente, foram fruto de
uma institucionalização de um Estado liberal e de uma determinada codificação que
ressaltou a vida civil calcada no indivíduo. Portanto, o direito de propriedade, de
liberdade contratual, da inviolabilidade do seu próprio corpo e assim por diante,
seriam decorrência de algo já institucionalizado.
O direito social, como ainda não tinha uma resposta institucionalizada e
organizada, foi classificado por esse autor como direito espontâneo, ou seja, um
direito que surgia espontaneamente a partir das relações econômicas, sociais e
culturais dos grupos dentro da sociedade.
Então, partindo dessas duas grandes divisões – que ele obviamente torna mais
complexa na sua obra, mas não vem ao caso aprofundar aqui –, ele identifica uma
soberania jurídica e uma soberania política.
A soberania política seria traduzida com a visão clássica da organização de
poder a partir do liberalismo, isto é, o Estado, enquanto organização de poder central
13
dentro da sociedade, monopolizaria esta soberania. E ele identifica a soberania política
com essa visão clássica do Estado como sendo o ator fundamental e, muitas vezes,
quase que exclusivo na atuação pública.
De outro lado haveria a soberania jurídica, que é vista pelo autor exatamente
na existência de direitos paralelos em relação ao direito estatal. E, sem dúvida alguma,
essa conclusão do Georges Gurvith deu espaço para o desenvolvimento de muitos
pensadores dentro do direito, que se colocam sob a direção do pluralismo jurídico.
Não poderia deixar de fazer referência a um autor gaúcho, contemporâneo, que
realmente é de grande envergadura e tem contribuído muito para oxigenar, digamos
assim, o pensamento jurídico, mostrando que a realidade com a qual nos deparamos é
muito mais complexa do que aquela que nos foi passada pela visão de Russeau em seu
Contrato Social. Refiro-me ao autor Antônio Carlos Wolkmer, que tem uma obra
intitulada Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito.
Essa mesma linha é seguida pelo sociólogo português Boaventura de Souza
Santos, autor que esteve no Fórum Social Mundial, que há muito tempo já fazia uma
pesquisa aqui no Brasil, no Rio de Janeiro especialmente, onde morou por um tempo
na favela do Jacarezinho, chamando-a de Pasárgada, e onde teve a oportunidade de
perceber que ali havia um direito ou uma organização jurídica paralela em relação à
organização jurídica estatal – e esta é uma discussão tanto política quanto jurídica.
E o autor observou que, naquela favela, os espaços de poder na sociedade eram
muito mais amplos e complexos do que os espaços institucionalizados e organizados,
seja na organização dos partidos políticos, nos espaços dos poderes públicos e, mais
adiante, no espaço dos próprios sindicatos.
É isso que traz a discussão da sociologia política dos novos movimentos
sociais, mostrando que existem outras formas de fazer política na sociedade, dando,
portanto, mais razão ainda à visão desse jurista chamado Georges Gurvith, que
percebia que a sociedade era algo bem mais complexo do que a visão de que o mundo
liberal procurava passar.
Não só no plano cultural, mas no próprio plano efetivo o Estado possui um
papel primacial, sem dúvida alguma, em que pese a existência de outras organizações
políticas na sociedade, ainda mais no caso do Brasil, em que o Estado veio antes da
sociedade civil, é óbvio que o Estado ainda exerce um papel fundamental e deve
exercer da melhor forma o espaço institucional que lhe cabe.
Para encerrar essa rápida análise do pensador russo, gostaria de dizer que ele
também faz uma tipologia do direito social em relação ao Estado, falando de um
direito social puro, que seria um direito totalmente alheio à organização institucional
do Estado, no qual o grau de interação entre os membros que compartilham aqueles
direitos seria máximo e tão intenso a ponto de contemplar a ausência de uma sanção
14
incondicional.
Isso quer dizer que a pessoa que pertence àquele grupo só vai se submeter a
sanções, ou seja, às conseqüências pelo descumprimento da norma instituída, caso
queira e caso acredite efetivamente. Todos sabem que um dos fundamentos do direito
moderno é exatamente a sanção incondicional ou a heteronomia dos direitos. A norma
é um padrão de conduta quer você compactue ou não com o preceito que ela traduz,
com a determinação da conduta que deve ser adotada.
A conseqüência para o descumprimento dessa norma é uma sanção punitiva.
Existem também outras formas de garantir o cumprimento da norma, uma delas é que,
à medida que alguém cumpre de forma exemplar, a sanção é premial, ou seja, a pessoa
é premiada. Esses são alguns conceitos jurídicos básicos. Dentro da concepção de
direito social puro, a sanção não é algo que vem de fora, mas algo assumido, de fato,
por aquela pessoa. O tipo, então, que Gurvith criou.
Há a idéia oposta desse direito social, que tem o maior índice de
espontaneidade e difusão possível, que é o direito social subordinado, direito social
que foi cooptado pela organização institucional, a ponto de desmobilizar a própria
espontaneidade e legitimidade daqueles direitos que haviam nascido.
Gurvith menciona esse direito social como direito de dominação ou de
subordinação. Podemos até interpretar uma certa degenerescência do estado do bemestar social como poderíamos utilizar essa categoria do Gurvith para explicar o estado
do bem-estar social, em que pese contemplar muitas vezes normas que em si mesmo
são importantes, fundamentais e uma conquista que deve ser mantida.
Ao mesmo tempo, essa atuação do Estado acabou por desmobilizar uma
iniciativa espontânea que surgiu no seio da sociedade e, o que é pior, retirar esses
próprios sujeitos da sua posição ao formular as suas próprias demandas e a sua própria
história.
Existe uma coletânea, feita pela Universidade de Brasília, que também
desenvolve uma vertente do chamado pluralismo jurídico, que é o projeto do Direito
achado na rua, desenvolvido inicialmente pelo Prof. Roberto Lira Filho e agora
levado adiante pelo professor José Geraldo Souza Júnior.
Essa coletânea tem um segundo volume chamado Introdução crítica ao
Direito do Trabalho, que possui um artigo muito interessante da Socióloga Profª
Maria Célia Paoli, em que ela observa que, no nosso caso, a CLT significou um pouco
essa desmobilização do movimento sindicalista que era bastante forte no Brasil nesse
período. Então, o Estado chamou para si a tarefa de formular as demandas sociais,
cortando, de certa forma, a comunicação com esses espaços.
Mas é possível que haja essa comunicação, e é isso que Gurvith quer dizer
quando nos fala, finalmente, de uma terceira categoria de direito social em relação ao
15
Estado, que é o chamado direito social condensado ou direito de colaboração
democrático. Embora ele perceba a existência de um direito social avesso ou cooptado
pelo Estado, ele percebe que é possível haver uma comunicação entre essas instâncias
espontâneas, nas quais se gesta o direito social, e as dimensões institucionalizadas
pelo Estado.
À medida que o Estado mantém sempre aberto esse canal de comunicação com
esses movimentos, com esses direitos, cria-se o chamado direito de colaboração
democrático ou direito social condensado.
Nessa visão de Gurvith, pode-se perceber que ele coloca ênfase nesse aspecto
formal do direito social. Como bom sociólogo, ele está preocupado em como a
sociedade se organiza, em como esses direitos são produzidos, se eles levam em conta
a participação efetiva dos grupos que sofrem e que exigem esses direitos, ou se ele não
contempla essa participação.
A ênfase aqui é colocada com relação à forma, à maneira como os direitos são
produzidos. Sem dúvida que o termo direito social também nos traz um sentido de
conteúdo, um sentido material. Na tradição bíblica podemos perceber, num conceito
de Mispá, de proteção dos mais débeis, a preocupação com o outro – daí o termo
alteridade.
Acredito que o princípio da alteridade é o que melhor exprime o sentido
material e ético do direito social: à medida que temos uma preocupação com o outro,
temos consciência da desigualdade, de uma diferença que não só deva ser eliminada –
aquela diferença que traz a miséria humana para uns enquanto afasta outros dessa
mesma miséria –, mas que reconhece a dignidade do outro em participar desse
processo. Ou seja, temos ao mesmo tempo a ênfase nesse aspecto formal e
democrático, a partir do princípio da alteridade, e a ênfase no aspecto de conteúdo, de
eliminação da injustiça social.
Nesse sentido, vem a calhar o desenvolvimento teórico do pensador argentino
Enrique Dussel – A Filosofia da Libertação Latino-Americana –, que também é ligada
a alguns setores da teologia da libertação. Mas esse autor, paralelamente à sua
participação na teologia da libertação, preocupou-se em fazer um discurso filosófico
que poderia inclusive prescindir de uma referência ao nível teológico, embora a
discussão teológica seja importante e fundamental.
Esse pensador procurou desenvolver essas categorias e esses fundamentos a
partir de uma reflexão eminentemente racional, sem dúvida respaldada também pela
fé. Dussel nos fala de um princípio ético da alteridade, de um pensamento voltado
para o outro. Cabe a pergunta: quem é o outro? O outro pode ser definido em inúmeras
dimensões: podemos falar no outro no sentido psicológico, no sentido cultural, no
sentido econômico, no sentido político, enfim, em todas as instâncias em que
16
convivemos.
Dussel privilegia algumas concretizações do que vem a ser esse outro. Posso já
adiantar que ele coloca o foco no outro contemplando aquele que é excluído
materialmente da sociedade, isto é, aquele que não tem as suas necessidades humanas
fundamentais satisfeitas.
Eu estava lendo o relatório feito pela sociedade civil – já que o Estado não fez
o relatório que está determinado no Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, de 1966 –, que se organizou e produziu um belíssimo material. Olhando
este material, podemos perceber que, sem dúvida, é preciso colocar a ênfase, quando
se fala em direitos econômicos, sociais e culturais, não apenas nas chamadas
necessidades fundamentais ou nos direitos de subsistência, mas sim pensar no ser
humano na sua dimensão mais ampla e digna possível.
Ao pensarmos no contexto latino-americano – daí por que esse pensamento se
insere na esteira da filosofia da libertação latino-americana –, não podemos deixar de
ver que grandes parcelas da nossa sociedade não têm sequer essas necessidades
mínimas devidamente satisfeitas e que, portanto, devemos colocar os nossos esforços
prioritariamente nessa direção, na medida em que uma boa parcela da nossa população
vive uma situação de miséria extremada – situação referendada aqui no relatório.
Para procurar tornar um pouco mais inteligível essas categorias do filósofo,
procurarei sintetizar as bases. Num trabalho de Mestrado que fiz e que foi objeto de
publicação, desenvolvi um pouco melhor essas categorias, mas agora serei rápido.
Dussel faz uma divisão da realidade basicamente entre dois espaços: a
chamada totalidade e a exterioridade. A exterioridade seria o espaço no qual o outro
apareceria; e a totalidade é uma visão de mundo que não dá espaço para que o outro
apareça em sua efetiva alteridade. Então, a totalidade seria tudo o que está ao nosso
redor, os entes, quer dizer, os objetos, os sentidos e os significados que nos cercam,
sendo que esses entes estão referenciados a um determinado fundamento, ou alguns
fundamentos e valores, que estão na base dessa nossa forma de ver a realidade.
Então, interpretamos todos os entes que nos cercam a partir desses
fundamentos e desses valores. E à medida que não permitimos que outras realidades,
outros fundamentos e outras culturas possam se expressar a partir de si mesmo, e
interpretamos os entes que emergem desse âmbito da exterioridade como algo que
acaba remetendo àquilo que desde de sempre conhecemos, estamos evitando que o
outro apareça na sua alteridade e estamos subsumindo esse outro dentro de uma leitura
feita a partir dos nossos próprios referenciais, impedindo que essa realidade possa
emergir.
Concretizando essas categorias, Dussel preocupa-se, inicialmente, com a
contextualização histórica da América Latina. Pode-se perceber no relatório que há
17
uma ênfase com relação aos direitos indígenas – está no pacto também. Então, Dussel
preocupa-se em reconstruir a história do chamado descobrimento, que também é um
termo polêmico. Alguns autores falam em conquista e outros falam até em invasão.
Enfim, o que Dussel busca mostrar é que, quando houve o desembarque
europeu nas terras americanas, o outro, desde o início, não foi visto como o outro,
mas, sim, foi subsumido em um fundamento que a visão eurocentrista trazia, já pelo
próprio nome que foi dado a esse outro com o qual foi travado contato inicialmente.
Os Senhores sabem que quando Cristóvão Colombo chegou na América Central viu os
habitantes autóctones – habitantes naturais dessas terras – e os chamou de índios. Por
que índios? Porque, na visão de Colombo, aqueles eram os habitantes das Índias.
Então o outro foi visto como o mesmo, ou seja, houve uma interpretação do
outro não a partir da sua cultura, dos seus referenciais, dos seus próprios valores e das
suas necessidades e direitos, mas a partir do sentido que se imagina que aqueles entes
preencheriam.
Para Dussel, trazemos desde o início um sentido de inferioridade latinoamericana, um sentido de um povo que não afirma a sua própria cultura, que não
afirma os seus próprios princípios. Temos a impressão de que a nossa base cultural
fundamental é européia, mas basta ler uma obra de peso – uma das obras que, acredito,
seja uma das mais importantes do Brasil, que foi Casa Grande e Senzala, do Gilberto
Freyre –, para perceber que a visão européia é fundamental e explica muitas categorias
com as quais nos deparamos, mas a cultura indígena e a negra fazem parte, de maneira
indissociável, da nossa forma de ver a realidade.
Embora Gilberto Freyre tenha colocado no seu livro maior ênfase na cultura
negra, não deixou de perceber quanto a cultura indígena contribui para o nosso dia-adia e quanto está presente na nossa visão de mundo, mas sem que percebamos isso.
Há o chamado mito da inferioridade latino-americana, de que devemos atingir
um determinado patamar de que somos subdesenvolvidos ou um patamar cultural que
ainda não atingimos, mas que não traz a nossa própria realidade.
E esse estado de coisas, em nível cultural, também trouxe uma exclusão
material, uma exclusão mundial. A estrutura econômica mundial acabou trazendo uma
situação de extrema miséria e exclusão para o contexto latino-americano. É a partir
desse contexto que Dussel busca raciocinar, dentro do seu pensamento de alteridade.
Ele diz que a visão eurocentrista constrói uma totalidade na qual não conseguimos ver
a exterioridade desse excluído material latino-americano.
Dussel também desenvolve essas categorias em outras direções, e há uma
direção especial que tem tudo a ver com a nossa discussão a respeito dos direitos
sociais. Dussel também faz, mais adiante no seu itinerário teórico, uma releitura da
obra de Karl Marx. Nessa releitura, ele busca aplicar essas categorias de totalidade e
18
exterioridade para o sistema capitalista, observando que esse sistema pode ser
considerado como uma totalidade e que o fundamento desse sistema é o valor, que por
sua vez é o fundamento do capital.
Observa também que esse valor está presente em todos os entes que nos
cercam. Podemos classificar tudo, inclusive as pessoas, a partir da referência a esse
valor. Então, o valor que uma pessoa possui enquanto força de trabalho, enquanto
proprietário de determinados meios de produção, o valor que têm todos os objetos que
nos cercam. Até mesmo as reflexões culturais e os espaços de lazer e de meditação
podem ter um preço e podem ser interpretados com fundamento no próprio valor desse
sistema.
É isso que Dussel observa, procurando traduzir para as suas categorias. Ele vê
que o capital circula, o valor transita de uma a outra determinação. Este livro, por
exemplo, pode ser chamado de mercadoria, na medida em que pego o dinheiro – que
também é um ente fundado no capital – e entrego para receber este livro, o valor se
transforma e passa a estar presente neste livro. Se o livro rasga, esse valor é
depreciado; se vendo este livro por um valor maior do que aquele que comprei, esse
valor é aumentado.
Existem os valores fixos, nos meios de produção fixos; existe o tempo de
trabalho necessário, enfim, todas aquelas categorias que Marx também analisou e que
são, nada mais, nada menos, do que outras determinações do valor.
Nesse sentido, pode-se perceber que a forma como o sistema está montado,
não está voltado para a finalidade da satisfação das necessidades humanas, quer dizer,
indiretamente pode-se atingir isso – que é defendido no discurso liberal-capitalista.
Mas a prioridade e a própria lógica do sistema não são essas, mas, sim, o aumento do
valor abstrato do capital.
O jurista mexicano Oscar Correias – muito conhecido no meio jurídico – diz
que o Direito, por sua vez, contribui para criar situações que possam perpetuar a
circulação desse valor e permitir que ele adquira um valor cada vez maior, permitindo
ao sistema atingir a sua finalidade, que é o aumento do valor abstrato.
A observação que o jurista faz é fundamental em relação a alguns setores do
Direito, entre eles o do Trabalho, que tradicionalmente é considerado um Direito
protetivo, uma dimensão libertária na medida em que busca amenizar a desigualdade
social, que o próprio sistema acaba trazendo. De outro lado, o chamado Direito do
Consumidor, visto por muitos setores como um verdadeiro espaço, um verdadeiro
bastião de garantias ao qual o cidadão deve se apegar para também amenizar essa
desigualdade.
O que Oscar Correias percebe é que esses setores do Direito, embora
obviamente tenham uma lógica que aponte para a exterioridade desse sistema, que
19
busque o valor da humanidade, eles podem ser também subsumidos dentro dessa
lógica caso não tenhamos consciência de que o fundamento da totalidade do sistema
em que vivemos não privilegia diretamente a satisfação das necessidades humanas e a
dignidade humana, mas, sim, o valor abstrato do capital.
Então, se esquecermos de que numa relação de trabalho na verdade há um
contrato de compra e venda da força de trabalho, se ocultarmos essas relações básicas
com eufemismos, podemos perder de vista essa situação, esse fundamento. Da mesma
forma o Direito do Consumidor, no qual as mercadorias transformam-se em bens e
serviços, o comprador vira consumidor, o vendedor vira fornecedor e assim por
diante.
Lógico que não estou dizendo que os direitos sociais e o Direito do
Consumidor deveriam ser colocados de lado porque compactuam com uma lógica ou
com um fundamento que não trazem a satisfação das necessidades humanas. Não é
isso, mas é preciso que tenhamos consciência e clareza quanto a essa questão
filosófica e fundamental do sistema que nos move, sob pena de acabarmos entrando
nesse torvelinho sem perceber, deixando de contribuir, de forma mais eficaz, para
uma sociedade que efetivamente privilegie o valor da pessoa humana.
Com isso, podemos delinear alguns sentidos do Direito Social: enquanto
forma de produção de normas; enquanto superação das desigualdades, no sentido de
justiça social; e no aspecto do coletivo, porque as desigualdades acontecem
coletivamente – os aposentados, os trabalhadores.
Conforme o prometido, como não poderia deixar de ser ao tratar-se de um
tema como este, também temos a projeção do Direito Social no aspecto jurídico
constitucional. Temos toda a tradição dos Direitos Humanos, que foi trabalhado
inicialmente pelo Liberalismo, dentro dessa vertente que estamos privilegiando em
termos de contexto. Já disse que podemos visualizar Direitos Humanos, até mesmo
na antigüidade clássica podemos ver presente essa discussão.
O termo Direitos Humanos, portanto, assumiu infelizmente, ao longo dessa
história instaurada pelo liberalismo clássico, passando por essa dinâmica dos
Direitos Sociais, por um lado, um sentido pejorativo – que está presente na discussão
que a Professora Flávia Piovesan desenvolve – ao dizer que a chamada declaração de
direitos acabou assumindo uma conotação de mera retórica, no sentido de apontar
para ideais e valores que não necessariamente teriam uma eficácia jurídica.
Muitos autores defendem que, no plano do Direito, deveríamos substituir o
termo Direitos Humanos pelo de Direitos Fundamentais, para tentar afastar esse
sentido pejorativo que se apegou ao termo e colocar mais ênfase em que esses
direitos são fundamentais e constitucionais, devendo ser assim aplicados.
Ora, acredito que o termo Direitos Humanos, pela sua forma e maneira como
20
se coloca, é fundamental e não pode deixar de existir. Mas é interessante perceber
essa questão terminológica.
Então, os Direitos Humanos, dentro dos direitos constitucionais, transformamse em direitos fundamentais, que vêm desde a doutrina constitucional alemã. E essa
discussão constitucional de certa forma procurou reproduzir, nos seus textos na
ordem jurídica, a discussão histórica que se instaurou sobre as chamadas gerações de
direitos, termo que também é muito atacado – no relatório isso está expresso – por
dar a idéia de que esses direitos existiram em uma determinada época, agora foram
substituídos por outros e estão desatualizados, devendo ser substituídos. Mas a idéia,
sem dúvida, não é essa.
Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet, juiz do Rio Grande do Sul que fez
doutorado em Munique, na Alemanha, tem um livro excelente sobre essa questão no
plano do Direito Constitucional chamado Efetividade dos Direitos Fundamentais,
pela Livraria do Advogado, que traz o termo dimensões de direitos. Acredito que
seja uma proposta interessante, na medida em que evita essa visão cronológica de
que esses direitos estão datados e de que não pertencem mais à atualidade. De toda
forma, é importante termos uma visão cronológica de quando esses direitos surgiram.
Essa classificação é fundada, por um lado, nessa seqüência cronológica e, por
outro, num tipo de direito que está traduzido na primeira, segunda ou terceira
dimensão. Na primeira dimensão de direitos, podemo-nos reportar ao século XIX e
veremos os chamados direitos de defesa ou direitos de liberdade, aos quais é
correlato a idéia de estado mínimo, de estado abstencionista: os direitos individuais,
como o direito de integridade física, o direito de ir e vir, de inviolabilidade do
próprio lar, e o polêmico direito de propriedade, que não está colocado no pacto.
Existem muitas teses e conheço um colega que está desenvolvendo um estudo
nessa área, na Universidade Federal de Santa Catarina, que argumenta que o direito
de propriedade, como é visto, atravanca a realização dos direitos humanos, não os
promovendo.
Na segunda metade do século XIX, podemos ver uma outra decorrência
desses direitos de defesa ou de liberdade, que se traduz nas liberdades políticas e
sociais: o direito de associação, de organização partidária, de voto – extensível às
mulheres e aos outros setores da sociedade. Uma decorrência dos direitos de defesa e
dos direitos de liberdade.
Aparece, então, a segunda dimensão de direitos, mais ou menos no final do
século XIX e primeira metade do século XX, os chamados direitos sociais ou
prestacionais exigem uma atitude positiva por parte do Estado no sentido de
implementar e garantir a satisfação desses direitos, e não apenas uma atitude de
abstenção ou de Estado mínimo.
21
Conforme já se observou, esses direitos trabalham com uma lógica
coletivizada, já que as desigualdades acontecem nos espaços coletivos da sociedade.
Obviamente, essa discussão inicial dos direitos sociais foi, de certa forma, como já
disse antes, muitas vezes, confundida, pura e simplesmente, com os direitos
trabalhistas. Essa é uma visão muito limitada da dimensão dos direitos sociais. Basta
ver a situação em que nos encontramos hoje, quando se discute esse tema cada vez
mais, conforme já comentei. Isso está no art. 6º da Constituição no que se refere ao
direito ao trabalho.
Existe um jurista espanhol, Davi Sanches Rubio, que também trabalha com
Dussel na filosofia da libertação latino-americana, que vai entender no direito ao
trabalho uma estratégia fundamental de luta de todos os países em prol da dignidade
humana na medida em que, conforme estamos organizados, o trabalho torna-se, não
só um meio de subsistência, mas também uma ocupação social e de identidade dentro
da organização social que deve ser buscada. Obviamente o direito do trabalho não
pode ser considerado satisfatório no seu atingimento se entendermos que basta
qualquer salário e qualquer ocupação.
Infelizmente, está se vendo o direito ao trabalho sendo posto, muitas vezes,
como uma desculpa para desmerecê-lo e colocá-lo numa situação desvantajosa
porque não se fala mais num salário digno, não se fala mais em condições dignas ou
nos direitos que estão colocados no art. 7º da Constituição.
Finalmente, viria a terceira dimensão de direitos que seriam os direitos
chamados planetários ou de solidariedade, que também podem ser entendidos pelo
conceito de interesses difusos. Aqui percebemos uma diferença em relação aos
direitos sociais. E por que percebemos? Naturalmente, é pela terceira dimensão de
direitos de proteção ao meio ambiente, de determinação dos povos e assim por
diante. Então percebemos aqui uma diferença. Por que, quando se fala em direitos
sociais, percebe-se com clareza o princípio da alteridade muito mais até do que nos
chamados direitos de terceira dimensão ou de terceira geração.
Vamos pensar bem: quando pensamos, por exemplo, em um meio ambiente
sadio, não estamos apenas pensando no outro que está numa situação desigual.
Pensamos, em última análise, em nós mesmos. São chamados direitos de
solidariedade porque todos se encontram na mesma situação. Então, na medida em
que uma ofensa ao meio ambiente vá trazer prejuízos a uma determinada sociedade, a
uma determinada localidade, não é apenas àquela sociedade que essa ofensa vai
trazer prejuízo. Vai trazer prejuízo a todo ecossistema e a todos aqueles que vivem
no planeta. Se o aumento da indústria tecnológica, o aprimoramento dessas
tecnologias se torna cada vez mais patente, essa ameaça também se torna cada vez
maior.
22
Portanto, os direitos de terceira dimensão envolvem todos nós. É um todo.
Por isso são considerados direitos de solidariedade. Nos direitos sociais, percebe-se a
dimensão de alteridade na sua maior intensidade. Vemos o outro numa situação
desigual e construímos um pensamento e uma ação em prol desse outro tanto no
sentido de eliminar a desigualdade ultrajante em sua dignidade como no sentido de
permitir que esse outro se manifeste como sujeito de sua própria história. Nesse
sentido, o princípio de alteridade ganha maior poder explicativo.
Cabe dizer, finalmente, que essas dimensões de direito estão sempre em
constante transformação. Isso está expresso com clareza no § 2º do art. 5º, que trata
do princípio da abertura material do catálogo, incorporando inclusive os tratados
internacionais que discorrem sobre os direitos fundamentais da ordem
constitucional brasileira, o que também – depois vamos ver – é mais um argumento
para dizer que os direitos sociais são, sim, um limite formal à revisão
constitucional, isto é, integram as chamadas cláusulas pétreas.
Então, tratando desse aspecto, é indubitável – vou procurar agora
argumentar nesse sentido para justificar essa afirmação – que o reconhecimento que
os direitos de primeira, de segunda e de terceira dimensão estão no Título II da
nossa Constituição, que trata dos direitos e garantias fundamentais. Isso é bem mais
visível no plano dos direitos sociais na medida em que há um capítulo especial para
tratar deles. Há uma maior dúvida em relação aos direitos de terceira dimensão, mas
basta olharmos o art. 5º, inc. LXXIII, por exemplo, onde se trata da ação popular
para proteger o meio ambiente. Vamos ver que o meio ambiente é um valor que está
inserido nos direitos fundamentais.
Da mesma forma, no art. 5º, inc. XXXII, diz que o Estado deve produzir
uma legislação que proteja o consumidor, porque os direitos deste também são
vistos, muitas vezes, como direitos de terceira dimensão, pois envolvem um todo
indiferenciado onde todos estamos inseridos.
Quais são os questionamentos que cercam o direito social como direito
fundamental? Primeiro argumento: os direitos individuais têm um preceito claro,
qual seja, preceito é o que a norma diz que devemos fazer ou não em certas
situações. Preceito é o seguinte: o Estado deve abster-se. O Estado deve deixar que
as pessoas atuem e deve garantir que as pessoas tenham essa liberdade de
manifestar seu pensamento, de não serem violadas em sua integridade física, em
suas idéias, de não serem discriminadas em função de raça, credo, religião, gênero,
idade e assim por diante. Então o preceito é claro.
Em relação aos direitos de segunda dimensão, os chamados direitos sociais,
sabe-se o resultado ao qual se quer chegar, mas a conduta efetiva que o Estado deve
assumir não está dito na norma. A norma é indeterminada, é vaga porque não traz o
23
preceito que deve ser realizado pelo Estado como destinatário da norma nem pelos
membros da sociedade. Isso é algo que deve ir mudando paulatinamente na medida
em que vivemos cada vez mais numa sociedade participativa onde não só o Poder
Público é a instância de participação do poder na sociedade, muito embora ela seja
muito importante. Na nossa própria cultura brasileira, é fundamental.
Os direitos sociais devem ser vistos como um preceito para todos os
membros da sociedade, em especial para aqueles que ocupam posições de relevo na
produção econômica, cultural e social. Portanto o preceito não é claro. Isso faz com
que muitos autores digam que os direitos sociais traduzem normas programáticas. O
termo programático foi trazido pelo eminente jurista Rui Barbosa que trouxe à
discussão do Direito Constitucional norte-americano a diferença entre normas selfexecuting e not self-executing, quer dizer, auto-aplicáveis e não auto-aplicáveis, que
foram traduzidas para o nosso Direito como normas programáticas.
Essas normas padeceriam do mesmo efeito das chamadas declarações de
direitos humanos. Teriam apenas uma exortação em termos de valores e elencariam
ideais a serem atingidos por todos os povos e sociedades, mas não traduziriam uma
eficácia jurídica ou uma imposição de dever aos poderes públicos e a toda a
sociedade. Ora, analisando esse aspecto em particular, mais uma vez mencionando
Ingo Sarlef que o critica de maneira incisiva e diz que se chamar os direitos sociais
de normas programáticas – e até ele muda o termo que prefere chamar de normas de
cunho programático –, significa dizer que os direitos sociais, sendo normas de
cunho programático, não têm nenhuma eficácia. Então ele não partilha desse termo
e entende que esse termo é inadequado, porque é óbvio que, sem dúvida, há
diferenças em termos de eficácia em relação aos direitos individuais e sociais.
Direitos sociais traduzem uma complexidade muito maior. Daí a dizer que
eles são ineficazes, que são meras normas programáticas, há uma distância. Antes
de tratar da eficácia dos direitos sociais e como poderíamos visualizá-la, gostaria de
elencar um outro argumento que se põe como um obstáculo à efetividade dos
direitos sociais, que é a chamada Tese da Reserva do Possível. A implementação
desses direitos depende de políticas públicas, de uma série de instâncias que estão
institucionalizadas, da previsão orçamentária que o Executivo faça tramitar no
Congresso e assim por diante. Muitas vezes, o Estado pode deparar com
dificuldades ou ausência de recursos para implementar aqueles direitos. E esse é um
obstáculo que é levado em conta.
Outro problema gerado é a ingerência na administração do Executivo. E aí
surge a dúvida: o direito social contemplado na Constituição é ou não é Direito
subjetivo público? O que é isso? Existem inúmeros conceitos de Direito subjetivo,
inúmeras reflexões sobre esse conceito fundamental, mas o Direito subjetivo traduz,
24
entre outros sentidos, o interesse de ação, quer dizer, um direito que a pessoa tem de
fazer valer um direito no âmbito judicial. E aí surge a pergunta: um trabalhador que
esteja desempregado, por exemplo, pode ir ao Poder Judiciário e exigir que o seu
direito ao trabalho seja cumprido porque há uma norma? É auto-executável porque
é um direito fundamental? Essa é uma discussão que surge.
Ingo Sarlet, desenvolvendo argumentos sobre essa tese, diz que, por ser
óbvio, não pode haver uma ingerência do Poder Judiciário no Poder Administrativo
a ponto de interferir, por exemplo, na previsão orçamentária. Deve-se levar em
conta a aplicação do princípio da dignidade humana de tal modo que, no momento
em que a dignidade mínima de uma pessoa esteja ameaçada pela não-satisfação de
um direito fundamental previsto pela Constituição, então esse direito deve ser
cumprido e assegurado de alguma forma.
Lênio Streck, em seu livro Hermenêutica Jurídica em Crise, quando fala em
direitos sociais, traz alguns exemplos inclusive nesse sentido como concretização
do chamado direito à saúde, condenando o Estado a providenciar remédios que pelo
SUS não estavam sendo fornecidos no caso de uma pessoa que tinha Aids.
Como estou me estendendo no meu tempo, vou procurar avançar
rapidamente para concluir. É óbvio que os direitos sociais são eficazes. Até há uma
crítica à técnica legislativa que foi utilizada na Constituição. Percebemos que no
art. 5º, o § 1º, que trata da auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais e o § 2º,
que trata da abertura material do catálogo, inclusive abertos aos tratados
internacionais, não deveriam estar subsumidos ao art. 5º, mas deveriam estar se
referindo a todo título. Isso traz uma falsa idéia de que só os direitos do art. 5º têm
aplicação imediata ou podem ser acrescidos de novas discussões de tratados
internacionais. Isso é falso. Por isso há críticas que muitos fazem nesse sentido.
Então a primeira eficácia dos direitos sociais é que têm uma eficácia
revogatória. De antemão, todas as normas anteriores à Constituição que contrastem
com esses direitos e seus objetivos devem ser consideradas revogadas por essas
normas. Aqui se trata de revogação, e não de inconstitucionalidade uma vez que o
Supremo Tribunal Federal acatou a tese de não aceitar a inconstitucionalidade
superveniente, isto é, já que a norma, quando foi criada, estava sob a égide da
antiga ordem constitucional, e não havia sido considerada inconstitucional na
medida em que sobrevenha uma nova ordem constitucional incompatível com essa
norma, que não é inconstitucional porque, quando foi gerada, a Constituição a
permitia e era de acordo com ela. Então o que acontece?
Se a Constituição simplesmente revoga essa norma, qual é o efeito prático
disso? Não pode ser objeto de recurso extraordinário ou de ação direta de
inconstitucionalidade o questionamento dessa norma, mas, sim, de uma ação que
25
vise à sua ilegalidade pura e simplesmente, e não a sua inconstitucionalidade. Há
uma eficácia revogatória e, em relação às normas posteriores, pode ser sustentada a
inconstitucionalidade da norma. E aí vemos o princípio da proibição do retrocesso,
que é uma imposição voltada ao Poder Público no sentido de que não retroceda na
garantia desses direitos sociais, isto é, não elabore normas que visem a um
retrocesso nessa área. Isso é auto-aplicável, pois é uma eficácia direta que existe,
muito embora não esteja sendo entendida assim principalmente devido a muitas
medidas provisórias que se vêem acontecendo por aí. É uma eficácia hermenêutica,
sem dúvida, porque a interpretação da legislação infraconstitucional e dos próprios
ramos do Direito Público e do Direito Privado devem levar em conta os princípios
do direito social como norte hermenêutico para as normas infraconstitucionais.
Não vou desenvolver esse tema, mas traz à tona uma discussão que agora
está em voga sobre a Hermenêutica Jurídica. Temos uma cultura jurídica
extremamente pobre e desatualizada em relação a como interpretar as normas
jurídicas. Muitos autores estão trazendo a discussão da Hermenêutica, que é da
Filosofia do Direito, especialmente para o âmbito do Direito Constitucional.
Apenas gostaria de citar um autor, o Prof. Lênio Streck, cuja obra Hermenêutica
Jurídica em Crise trata a respeito desse tema e fornece-nos um bom panorama sobre
essa discussão, que é Hermenêutica Jurídica em Crise.
A eficácia dos direitos sociais impõe ao legislador e aos Poderes Públicos
regulamentarem essas normas, torná-las mais eficazes, mais aplicáveis. Em algumas
obras que andei lendo da Professora Flávia Piovesan, coloca-se a possibilidade até
mesmo de uma indenização do Poder Público na medida em que omite-se desse
dever impingido pela ordem constitucional.
Um outro argumento de quem critica os direitos sociais é que eles ferem as
liberdades. É recorrente essa visão que contrapõe os direitos sociais aos direitos
individuais, que um não pode harmonizar-se com o outro e que advogar direitos
sociais seria interferir de maneira intolerável nas liberdades que devem ser
preservadas dentro da sociedade.
Não me alongarei nesse ponto, mas farei a leitura de um trecho do relatório
feito pela sociedade de uma advertência do Professor Antônio Augusto Cançado
Trindade, que sintetiza e coloca por terra, ou escanteia, esse tipo de argumentação.
Ele diz o seguinte: De que vale o direito à vida sem o provimento de condições
mínimas de uma existência digna, senão de sobrevivência – alimentação, moradia,
vestuário; de que vale o direito à liberdade de locomoção sem o direito à moradia
adequada; de que vale o direito à liberdade de expressão sem o acesso à instrução
e à educação básica; de que valem os direitos políticos sem o direito ao trabalho;
de que vale o direito ao trabalho sem o salário justo, capaz de atender às
26
necessidades humanas básicas; de que vale o direito à liberdade de associação
sem o direito à saúde; de que vale o direito à igualdade perante a lei sem as
garantias do devido processo legal. E os exemplos se multiplicam.
Isso sem falar que os direitos de primeira dimensão também têm um aspecto
positivo, que exige uma prestação do Estado. Então, é preciso que o Estado faculte
ou permita uma estrutura judiciária que dê conta do atendimento das demandas
individuais dos cidadãos na Justiça, para que esses direitos não sejam violados. Isso
exige uma prestação positiva do Estado. Da mesma forma, para que os direitos
políticos sejam exercidos – os direitos de manifestação –, o Estado também precisa
propiciar todo um aparato.
De outro lado, os direitos de segunda geração também têm uma tônica
abstencionista, isto é, a liberdade de associação sindical, o direito de greve, tudo
isso implica também. Isso reforça a tese de que os direitos individuais e sociais não
devem ser vistos de forma dissociada, que os direitos humanos devem ser vistos na
sua integralidade, e que a nossa visão do homem em função das nossas vicissitudes
sociais torna-se cada vez mais complexa. Isso devemos ter claro.
O último argumento de quem procura combater os direitos sociais em sua
eficácia é que eles não são cláusulas pétreas, ou seja, não seriam um limite à
reforma material da Constituição. Como eu havia lido anteriormente, no art. 60, §
4°, inciso IV da Constituição está dito: Não será objeto de deliberação a proposta
de emenda tendente a abolir – não a acrescer – os direitos e garantias individuais,
e pronto. Esse termo foi o apanágio ao qual muitos juristas e pensadores se
apegaram para dizer que só o art. 5° não pode ser reformado, que o art. 7°, por
exemplo, pode ser reformado à vontade.
O termo individuais aqui colocado na verdade expressa o jogo de forças que
desenvolveu-se na Assembléia Nacional Constituinte entre as chamadas forças
conservadoras e progressistas. Foi mais ou menos um acordo de cavalheiros. Por
um lado, os direitos sociais estariam contemplados na Constituição, bem como a
função social da propriedade. Por outro lado, esses direitos não teriam uma
aplicação imediata, ficariam reféns de uma regulamentação posterior e também não
seriam objeto de limite à reforma material da Constituição. Esse é um primeiro
argumento.
Um segundo argumento é desenvolvido por Manoel Gonçalves Ferreira em
um artigo. Ele diz que a tradição constitucional brasileira quanto a essa expressão
direitos e garantias individuais – que não é a mesma do art. 5°, onde consta dos
direitos e deveres individuais e coletivos – sempre significou e sempre apontou para
os direitos de primeira dimensão.
Um outro argumento, que o Ives Gandra trouxe em um artigo, é o seguinte:
27
o caráter flexível dado pelo legislador ao salário e à jornada de trabalho no art. 7°,
permitindo que por convenção ou acordo coletivo o salário pudesse ser reduzido e a
jornada aumentada, era um sinal de que esse artigo não pertencia às cláusulas
pétreas, porque o próprio termo seria contraditório. Se a própria Constituição está
autorizando a serem flexibilizados, então eles não seriam cláusula pétrea.
E, finalmente, o argumento de que só são cláusulas pétreas alguns direitos
sociais, como o de associação e ao mandado de segurança coletivo, entre outros,
que estão lá no art. 5°, como é em Portugal.
Para rebater esses argumentos, começaremos pelo último. Embora Portugal
tenha sido a nossa metrópole e haja um refluxo atual dos constitucionalistas
portugueses como Jorge Miranda e o próprio Professor Canotilho – voltando um
pouco atrás no que dizia sobre constituição dirigente –, a realidade deles é outra,
não é a mesma que a nossa, de capitalismo periférico. A Constituição portuguesa
não é um parâmetro que possa nos guiar. Temos a nossa própria Constituição, a
nossa autodeterminação e a nossa própria discussão política.
A tradição constitucional brasileira também não pode servir de argumento,
basta dizer que nossa última Constituição era fruto de um regime autoritário. Então,
o argumento que a tradição constitucional brasileira sempre deu esse sentido para
esse termo também não é relevante e não pode ser levado em conta.
Outro ponto é a interpretação para o termo individuais. Ora, os direitos
sociais também são direitos individuais. Essa é a noção da indissociabilidade dos
direitos. Os direitos sociais são coletivizados, como eu disse antes, porque são
visualizados nas desigualdades que acontecem coletivamente, em grupos. Percebese uma identidade entre os indivíduos que compõe o grupo e que sofrem de uma
certa desigualdade, mas os direitos que serão satisfeitos para todos serão satisfeitos
para cada um daqueles que compõe esse grupo. Então, obviamente os direitos
sociais são também, em última análise, direitos individuais, só que trabalham com
uma lógica transindividual e não apenas com uma lógica de delimitação egoística
ou individual.
Outro ponto: se excluíssemos os direitos sociais e entendêssemos que só o
art. 5° é cláusula pétrea, também os direitos políticos e os próprios direitos de
nacionalidade ficariam excluídos enquanto direitos fundamentais, o que evidenciase como um contrasenso, sem dúvida.
Em relação ao argumento da flexibilidade, o fato da Constituição
estabelecer que por convenção ou acordo coletivo o salário pode ser reduzido e a
jornada de trabalho aumentada, não quer dizer que não se está aí a preservar um
limite à reforma constitucional. Basta dizer que se fosse possível reformar esse
artigo através de uma emenda, poderíamos conviver, por exemplo, com a seguinte
28
situação: o salário pode ser reduzido por determinação do empregador,
independente de convenção ou de acordo coletivo, porque pressupõe-se
teoricamente, embora muitas vezes não ocorra, que a convenção e o acordo coletivo
procuram diminuir uma relação de desigualdade, daí porque estariam autorizados
pela Constituição.
Entretanto, o argumento mais importante para considerar os direitos sociais
como cláusula pétrea e, portanto, como legítimos direitos fundamentais, é que não
devemos ser reféns de uma interpretação gramatical da lei; devemos priorizar uma
interpretação teleológica, que leve em conta a finalidade da lei.
Então, devemos pensar qual é a finalidade da Constituição, para que servem
os seus limites materiais e para que servem as suas chamadas cláusulas pétreas. Elas
servem para manter a identidade constitucional e para que a Constituição possa
cumprir com a sua finalidade. E qual é essa finalidade? Ela está prevista no art. 1°
da Constituição: A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a
dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e
o pluralismo político. São os direitos fundamentais que estão aqui contemplados.
Está aqui dito que vivemos num Estado Democrático de Direito. E o que é
um Estado Democrático de Direito? É um Estado que busca atender às promessas
da modernidade, que no nosso caso estão muito longe de terem sido minimamente
satisfeitas – falamos aqui em Estado do bem-estar social, mas sabemos que a
realidade latino-americana é bem distante disso –, e um Estado que permita a
participação política, inclusive.
Como último argumento, já fazendo a ponte para a palestra da Professora
Flávia Piovesan, os pactos internacionais também dizem isso. No § 2° do art. 5°
está a abertura material aos catálogos, e os pactos internacionais dizem que os
direitos individuais e sociais são indissociáveis.
Desculpem-me, sou um pouco prolixo e acabei alongando-me
demasiadamente. Poderemos nos aprofundar mais depois, no debate. Muito
obrigado.
29
Mestre em Direito, Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná,
Coordenador Adjunto do Curso de Direito da Universidade do Vale dos Sinos -Unisinos/RS
e membro da Comissão de Especialistas em Ensino de Direito.
Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais
Flávia Piovesan
- Começaremos a nossa conversa enfrentando três questões: qual a
concepção contemporânea dos direitos humanos; qual os mecanismos jurídicos de
proteção desses direitos, e aí tomando como ponto de partida tudo o que já foi aqui
apresentado com relação à perspectiva constitucional – a nossa ênfase será na
30
perspectiva internacional, com destaque para o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, e finalmente o impacto da globalização econômica
no processo de efetivação dos direitos sociais e, portanto, como enfrentar o
processo de desconstitucionalização ou flexibilização desses direitos.
Compartilho das posições aqui externadas com relação a cláusulas pétreas.
Entendo que os direitos sociais são protegidos pela cláusula do art. 60, parágrafo 4º,
inciso IV, de modo que temos argumentos em comum em prol da juridicidade, da
efetividade e da necessidade de que esses direitos sejam vistos como tal.
Foi publicada no jornal O Globo, deste sábado, uma matéria que deve nos
chamar a atenção quando se fala do princípio da alteridade, como tão bem
examinado pelo Professor José Carlos Moreira da Silva. O princípio da alteridade é
crucial quando se fala dos direitos econômicos, sociais e culturais, na medida em
que temos que ver o outro como um sujeito de direito e na medida em que temos
que encontrar mecanismos – vou-me limitar à esfera jurídica, que é a de minha
atuação, mas não há dúvida que há outras tantas estratégias a serem somadas à
jurídica – para que esses direitos possam ser aplicados.
O jornal O Globo, deste sábado, divulgou o relatório do Índice de
Desenvolvimento Humano do município do Rio de Janeiro. É a primeira vez que se
faz uma pesquisa nessa direção, porque, em geral, o IDH se atém a raízes, basta
lembrar que o nosso País figura no 71º lugar no ranking do desenvolvimento
humano que considera outros 150 países. O Brasil está na metade, em 71º lugar, e
os Senhores podem perceber que essa posição é bastante recuada, mesmo o Brasil
se dizendo, com o orgulho, a 8ª ou 9ª ou 10ª economia mundial em termos de PIB
nacional. Lamentavelmente, não estamos em sintonia no tocante ao
desenvolvimento humano, que considera analfabetismo, escolaridade, saúde, renda,
expectativa de vida, dentre outros pontos. Estamos no 71º lugar.
Tendo em vista o apartheid socioeconômico existente no Rio de Janeiro, foi
ele destacado como o primeiro município do mundo a ser objeto de uma pesquisa
do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – a respeito do
Índice de Desenvolvimento Humano. Qual a conclusão que se chegou? Lagoa é o
melhor bairro do Rio de Janeiro e Acari o pior. Isso significa dizer que a Lagoa é o
melhor bairro da Cidade com índices de condição de vida comparáveis aos da Itália,
enquanto Acari se assemelharia às condições de vida na Argélia, na África. Em
termos numéricos, a taxa de analfabetismo na Lagoa é de 2% e em Acari 16%. A
escolaridade média na Lagoa é 12 anos e em Acari 3 anos. Renda per capita familiar
na Lagoa é de 2 mil 126 reais e em Acari é de 115 reais. Expectativa de vida na
Lagoa é de 73 anos e em Acari 56 anos. Esses dados fazem com que a ONU
conclua que há uma diferença de 96 anos de atraso em relação à Lagoa se nós
31
tomarmos Acari, ou seja, há uma diferença secular que distancia a realidade de
Acari à da Lagoa. Há décadas a expectativa de vida aqui no Brasil era de 56 anos.
Hoje, a depender do recorte de classe, teremos uma outra resultante.
Isso tem absoluta pertinência ao tema dos direitos econômicos, sociais e
culturais. Vou tentar fazer menção, o tempo todo, à palestra do Dr. José Carlos
Filho para reforçar a idéia da alteridade. É fundamental que incluamos essa grande
parcela da população brasileira que vive em Acaris, seja em Porto Alegre ou São
Paulo ou em outras regiões.
Trago também uma matéria publicada no dia de hoje no jornal Estado de
São Paulo em que Mary Robinson, que infelizmente deixou de ser alta comissária
da ONU para Direitos Humanos nesta semana e reassumiu a presidência da Irlanda,
diz que a pobreza é a negação de qualquer direito ao cidadão e qualquer estratégia
de desenvolvimento deve conter ações que possam fortalecer os direitos humanos.
Fica claro, então, que a pobreza é uma violação aos direitos do cidadão.
Não sei se os Senhores conhecem um trabalho interessante de autoria do
Professor Marcelo Paixão sobre IDH e sua perspectiva racial. De qualquer maneira,
o Brasil está em 71º lugar com relação à leitura racial. Se indagamos como vive a
população branca no País, nós subimos 30 casas e figuramos em 43º lugar. Se
indagamos como vive a população negra, nós caímos 30 casas e figuramos em 78º
lugar. Na nossa fala vamos também reforçar a idéia de que direitos humanos devem
ser concebidos sobre a perspectiva de raça, etnia, gênero, dentre outros critérios.
Pertencer a uma raça, a um gênero, a uma etnia importa no modo pelo qual direitos
são exercidos ou violados. É fundamental que se tenha essa percepção, até porque
quando se fala em direitos econômicos, sociais e culturais temos de enfrentar os
processos de etnização e feminização da pobreza. A pobreza, em outras palavras, a
violação aos DESC – Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – tem uma feição,
tem uma cara e esta apresenta um gênero, uma etnia e uma raça preferencial. Há
alvos preferenciais no processo de exclusão de direitos.
Feitos esses comentários preliminares, começamos com a primeira questão.
O que significaria os Direitos Humanos Sociais, Econômicos e Culturais? De que
maneira os direitos humanos podem ser concebidos na ótica contemporânea e de
que forma a concepção de direitos humanos abraça os direitos econômicos sociais e
culturais? Filio-me àqueles e àquelas que defendem a historicidade dos direitos
humanos. Os Direitos Humanos são relativos, são históricos, são invenção humana;
não são um dado, mas são construídos.
Não obstante à historicidade desses direitos, a todo tempo traduzem uma
plataforma emancipatória. Quem defende Direitos Humanos, e aqui temos vários
defensores, seja com relação à gênero, raça, adolescência, criança, todos nós
32
partilhamos da mesma ótica da gramática de inclusão. Quem defende Direitos
Humanos defende uma gramática de inclusão em reação às formas de opressão,
exclusão e desigualdade.
Como disse, a nossa intervenção terá como prisma a ótica internacional. A
fonte do Professor Norberto Bobbio sustenta essa historicidade dos Direitos
Humanos afirmando que estes nascem como direitos naturais universais e aí evoca
ele todo o legado iluminista que defendia direitos inalienáveis à condição humana,
direitos que não precisavam ser escritos, mas que eram invioláveis, imprescritíveis
e, portanto, naturais e universais.
Num segundo momento, diz ele, esses direitos se desenvolvem como
direitos positivos particulares. Cada Estado, dentre eles o Brasil e outros 200
Estados que integram a nossa ordem internacional, vai trazer a sua gramática
própria de direitos. Eles perdem em alcance, deixam de ser universais, tornam-se
mais locais, mas ganham em termos de positivação e concretude; tornam-se
explícitos, para finalmente encontrarem a sua plena realização, numa terceira fase,
como direitos positivos universais. É esse o momento que nos interessa.
Cada vez mais há parâmetros. Cada vez mais experiências como a realizada
quando da feitura do relatório paralelo ao Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais mostram que há parâmetros mínimos na esfera
internacional que devem ser seguidos pelos Estados. Por exemplo, o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi ratificado por mais
de 140 Estados, dentre eles o Brasil. Esse é o parâmetro mínimo que deve ser
preservado, por mais diferentes que sejam esses países, esses Estados. Então, temos
que avaliar de que maneira foi construída essa gramática universal de proteção dos
Direitos Humanos.
E aqui me reporto à Declaração Universal de 1948, que é o grande marco do
processo de internacionalização dos Direitos Humanos. É ela que nasce com a
perspectiva de reconstrução dos direitos e resgate da dignidade humana quando
tudo parecia estar perdido, em face das atrocidades acometidas ao longo da
Segunda Guerra Mundial. Então, é importante trabalhar com este duplo vetor: a
Segunda Guerra Mundial significa a ruptura dos Direitos Humanos e o pós-guerra
significa a esperança da sua reconstrução. A Declaração se situa ali em 1948 como
o eixo inicial de reconstrução dos Direitos Humanos. Portanto, esse é o seu legado,
sua ambição, sua pretensão.
Isso nos faz repensar a própria noção de cidadania, porque hoje exercer
direitos e garantias não significa apenas nós exercermos direitos e garantias
previstos constitucionalmente. Temos que somar o âmbito local ao âmbito regional
e global. Temos que somar os direitos que aqui estão aos direitos previstos, por
33
exemplo, no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais.
Além da Declaração trazer essa tônica universalizante, é o primeiro
documento histórico que se clama universal, faz uma gramática universal, ou seja, a
dignidade é inerente a toda e qualquer pessoa, independentemente da sua classe,
raça, gênero e etnia. A dignidade é a fonte de percepção do outro como sujeito de
direito, ela demarca isso. Além dessa linguagem da universalidade dos Direitos
Humanos, a Declaração vem contribuir enormemente na concepção dos Direitos
Humanos, porque é o primeiro documento da história da humanidade que traz a
leitura de que os Direitos Humanos são indivisíveis, interdependentes e
interrelacionados.
No relatório paralelo, inclusive, há algumas passagens dedicadas justamente
aos Direitos Humanos como sendo indivisíveis e universais. Essa é a gramática
contemporânea, esse é o construído contemporâneo. Citando o Professor Cançado
Trindade, cada vez mais temos de ver os Direitos Humanos como uma unidade em
que direitos civis e políticos, as liberdades clássicas, hão de ser somados aos
direitos sociais, econômicos e culturais.
Tão importante quanto a liberdade de expressão, de pensamento, de ir e
vir, os direitos civis clássicos, o direito à integridade física, moral, o direito a não
ser submetido à tortura, os direitos políticos, são também importantes o direito à
educação, à saúde, à moradia, à terra, à alimentação, dentre outros. Esses bens
devem ser reivindicados, e esse é o lema da Declaração sob a gramática de direitos
e não como generosidade, compaixão de qualquer Estado. Esse é o grande avanço
em termos conceituais que a Declaração traz. Saúde, educação, trabalho e
moradia são direitos públicos, são Direitos Humanos e não apenas caridade a
depender da boa vontade de um ou outro governante. Não são caridade, não
são generosidade, não são compaixão, mas são direitos.
Se os Senhores perceberem, não há dúvida de que há o ranço ideológico.
Há autores que denominam os direitos civis e políticos de blue rights e os direitos
econômicos, sociais e culturais como red rights. Os direitos civis e políticos são os
que o mundo ocidental bem conhece, com a liderança dos Estados Unidos, e os
direitos sociais, econômicos e culturais – saúde, educação e trabalho – o mundo
oriental tem amplo conhecimento. Há muito de ideológico nesse cenário.
Como morei nos Estados Unidos por um ano, posso testemunhar que lá há
uma grande dificuldade, inclusive daqueles que militam nos Direitos Humanos, de
entender os direitos sociais como Direitos Humanos. Por tradição liberal, a própria
constituição norte-americana só prevê direitos civis e políticos, não há qualquer
previsão de direitos sociais, econômicos e culturais. A Suprema Corte já declarou
que a educação não é direito, é política pública e não pode ser reivindicada perante
34
os tribunais. Então, há a tônica de se falar que direitos civis e políticos são
Direitos Humanos, mas os direitos sociais, econômicos e culturais são política
pública, expectativa de direito, mas não podem ser reivindicados como direitos.
Entendo que são autênticos, verdadeiros direitos fundamentais, e que a sua
não-observância compromete o todo dos Direitos Humanos. Violar o direito à
saúde, à habitação e à educação significa também comprometer o livre e pleno
exercício dos direitos civis e políticos.
Esse consenso do pós-guerra, que foi o consenso da Declaração de 1948 e
que afirmou a universalidade e a indivisibilidade dos Direitos Humanos, teve a
acolhida de 48 países, sendo que oito se abstiveram, mas ninguém votou contra.
Com isso, essa Declaração nasceu como um código forte, simbolicamente, porque
não contou com qualquer voto vencido.
Atualmente o mundo é outro, pois contamos com 217 países. Portanto, é
muito diferente do mundo da década de 50, no qual havia 56 países ou pouco mais
do que isso. Houve um processo de descolonização, no qual muitos países se
formaram enquanto tal e assim por diante. É por isso que se questiona: até que
ponto o pacto ou o consenso do pós-guerra da Declaração contém balastros de
legitimidade hoje num outro cenário? Essa pergunta, de alguma forma, pode ser
respondida quando, há poucos anos, ou seja, em 1993, foi realizada a Conferência
de Viena sobre Direitos Humanos, na qual se reforçou a mesma ótica.
Essa Conferência contou com a participação de 171 países, entre eles o
Brasil, e veio proclamar que todos os direitos humanos são universais,
interdependentes e interrelacionados. Esse é o legado, o construído que temos.
Reitero que falar de Direitos Humanos hoje não é o mesmo que fazê-lo na
década de 50, nem tampouco o seria se estivéssemos nesta sala em 2050. Os
Direitos Humanos têm uma história. Direitos como meio-ambiente e
desenvolvimento sustentável nem eram sonhados como direitos em 1948 e hoje
são pautas emergentes.
Tendo em vista a indivisibilidade dos Direitos Humanos, quais seriam os
mecanismos jurídicos de proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais
considerando a realidade brasileira? Compartilho de todas as posições
apresentadas no sentido de que a Constituição confere lastro e garante proteção a
esses direitos. Como afirmei, destacarei aqui a normatividade internacional.
A Declaração Universal foi acolhida em 1948, e, a partir dela, começaram
a ser elaborados tratados, convenções e declarações dos Direitos Humanos. Uma
das grandes preocupações foi a de que não era um tratado. Até hoje se entende, e
também defendo, que a Declaração, depois dos 50 anos de sua adoção, se
transformou em costume nacional, porque foi sendo referência para os países,
35
tendo seus dispositivos proclamados nas constituições etc.
O debate que se instaurou logo após a Declaração de 1948 foi: Como
podemos emprestar aos seus dispositivos uma linguagem jurídica vinculante?
Como podemos transportá-la para a linguagem dos tratados internacionais? Veio,
então, a proposta de juridicização da Declaração, que começou em 1949 e
terminou apenas em 1966. Foram quase 20 anos de trabalhos, de debates e de
controvérsias sobre essa questão.
Havia dois blocos. O Bloco Oriental entendia que a Declaração deveria
resultar num só pacto, uma vez que atestava a indivisibilidade dos Direitos
Humanos. Portanto, o mesmo pacto deveria prever direito civil e político e direitos
econômicos, sociais e culturais; o Bloco Ocidental considerava que tinham de
cingir em dois pactos, porque os direitos civis e políticos têm auto-aplicabilidade,
demandando apenas de uma abstenção. Os direitos econômicos, sociais e culturais
demandam de uma ação estatal, sendo, assim, direitos progressivos.
Os orientais consideravam essa posição como ideologia, porque, para eles,
era o oposto. Acreditavam que os direitos sociais, educação, saúde e cultura
tinham aplicabilidade imediata e que a demanda, de acordo com a sua experiência
histórica e com a realização progressiva, são os direitos civis e políticos.
Consideravam que a sua realidade não estaria sendo respeitada.
Sintetizando, o Bloco Ocidental foi vencedor, e foram feitos dois pactos.
Lamentavelmente, esses pactos apresentam a mesma visão trazida pelo Bloco
Ocidental, ou seja, o pacto de direitos civis e políticos vai buscar os direitos
previstos na Declaração, os ampliando, detalhando e prevendo. São direitos de
aplicabilidade imediata, e o Estado tem de garantir esses direitos desde logo, sem
escusa e sem demora.
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
enuncia também um extenso catálogo de direitos inspirados na Declaração – indo
além, sendo mais minucioso, como o direito ao trabalho, justa remuneração,
moradia, previdência, saúde e educação –, mas prevê que esses direitos têm a tal
realização progressiva diversamente dos demais direitos civis e políticos.
Faço uma crítica a essa construção, porque, cada vez mais, entendemos que
os direitos humanos sejam eles direitos civis e políticos, ou direitos econômicos,
sociais e culturais demandam prestações positivas e negativas. É ilusório e
simplista entender, por exemplo, que o direito de voto – um direito político
fundamental – ou o direito à segurança sejam direitos que demandem apenas da
abstenção do Estado. Quanto custa o direito de voto? Não estou dizendo que não
vale a pena esse preço. Quanto custa manter o aparato eleitoral? Quanto custa
manter o aparato de segurança para que se proteja o direito à liberdade?
36
Vejam que os direitos civis e políticos têm um custo. Não li nenhum
trabalho que equacionasse esses custos, tal como o direito à saúde e à educação.
Por isso, considero temerária a doutrina que alguns defendem sobre o princípio da
reserva do possível. O que é o possível? Entendo que nesse ponto há toda uma
discussão ideológica. Por que é possível investir numa direção e não em outra?
Penso que temos de ter esse viés crítico e entender que os Direitos
Humanos são complexos e que ambos – direitos civis e políticos, e direitos
econômicos, sociais e culturais – demandam ações e omissões do Estado. É muito
comum ter-se a visão bastante simplista de que uns são direitos positivos e outros,
direitos negativos.
De qualquer maneira, corroboramos no sentido de que devemos extrair o
máximo de eficácia dos direitos econômicos, sociais e culturais. Na linguagem,
esses direitos estão previstos como direitos de aplicação progressiva, ou seja, cabe
aos países, e é sua obrigação, reconhecer e, progressivamente, implementá-los,
utilizando o máximo dos recursos disponíveis. Isso também fala do pacto.
Também concordamos que da aplicação progressiva desses direitos resulta a
cláusula da proibição do retrocesso social, significando que se é progressivo, tem
de ir para frente. Isso torna juridicamente censurável o retrocesso quando se fala
em políticas públicas referentes aos direitos econômicos, sociais e culturais.
Trago aqui a voz de Canotilho, para quem o princípio da proibição do
retrocesso social pode formular-se assim: O núcleo essencial dos direitos sociais já
realizado e efetivado deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo
inconstitucionais quaisquer medidas que se traduzam, na prática, em uma
anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo social.
Creio que, nós, que estamos no âmbito jurídico, temos de endossar essa
gramática da progressividade e da proibição do retrocesso social, banindo, como
afirmou o professor, leituras que entendam que os direitos sociais são normas
programáticas, despidas de qualquer eficácia e com isso anulam e esvaziam a
imperatividade e efetividade desses direitos.
Se o Brasil e mais 140 países são partes do Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, não pode posteriormente, quando se vê
cobrado pela implementação desses direitos, se esconder numa falaciosa escusa de
soberania nacional.
Ser parte desse pacto é ato de soberania. O Brasil só o é no livre e pleno
exercício de sua soberania. Foi assim que contraiu obrigações jurídico-vinculantes
para se tornar parte desse pacto. Não pode ocorrer, mas muitas vezes ocorre, de o
Brasil ser soberano na hora em que entra num tratado ou que reconhece a
jurisdição internacional de uma corte e, depois, quando se vê cobrado pela ONU a
37
respeitar e a observar aqueles parâmetros, considera uma afronta à soberania
nacional. Isso é o uso hipócrita do termo soberania, porque soberano é o país que
entra nesse jogo internacional porque assim quis.
Como afirmei, os tratados de Direitos Humanos são parâmetros mínimos
de proteção – aqui está o piso mínimo e não o teto máximo de proteção. Se o País
for mais avançado, se a legislação doméstica for mais progressista, ótimo. Não se
aplica esse mínimo.
Lembro que, além do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, o Brasil também ratificou o Protocolo de San Salvador em
matéria de direitos econômicos, sociais e culturais que entrou em vigor em 1999.
A diferença é que esse pacto se atém ao sistema da ONU, e o outro, que fiz
menção, se atém ao sistema da OEA e também reforça a importância de garantir-se
os direitos econômicos, sociais e culturais, como trabalho, saúde, previdência
social, educação, cultura etc, e reitera a mesma linguagem. O protocolo de San
Salvador prevê que os países partes – e o Brasil o é – devem investir o máximo
dos recursos disponíveis para alcançar progressivamente a plena efetividade
desses direitos.
Lembro, também, que esse protocolo permite o recurso ao direito de
petição a instâncias internacionais, no caso, à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, para defender dois direitos que ele prevê: o direito à educação
e direitos sindicais. Inclusive, houve uma reunião recente da Plataforma
Interamericana dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, nos dias 15 e 16, na
qual existe toda uma linha de advocacia internacional para que casos de afronta a
esses direitos, os quais não possam ser resolvidos no campo nacional, ou seja,
esgotadas as reservas internas, possam ser encaminhados à referida comissão.
Sustentamos a visão de que temos de somar o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo de San Salvador com o
arcabouço nacional e, fundamentalmente, com a Carta de 1988. Temos de somar
as duas perspectivas, os dois parâmetros, e avaliar qual é a melhor maneira, as
melhores estratégias de defesa e de litigância dos direitos econômicos, sociais e
culturais.
A Carta de 1988 é o nosso pacto pós-ditadura e, no fundo, está
absolutamente sintonizada com essa concepção contemporânea. Endossa a
gramática da universalidade e da indivisibilidade; prevê o valor da dignidade
humana, que é núcleo básico e formador do ordenamento jurídico. As normas
jurídicas hão de ser interpretadas com essa hermenêutica renovada, capaz de
seguir a teologia do sistema – a racionalidade do sistema é essa; aposta nos
direitos fundamentais, no valor da dignidade humana e no valor do Estado
38
Democrático de Direito.
Por essa condição, os tratados, como é o Pacto de Direitos Civis e
Políticos. E o protocolo de San Salvador entra pela porta do art. 5º, & 2º, que
prevê que os direitos aqui previstos não excluem outros. Então, temos os direitos
constitucionais expressos, implícitos, e os direitos internacionais, que devem ser
somados ao rol dos nossos direitos.
No campo, também sustento que os direitos sociais integram os direitos
fundamentais. A própria Constituição, numa análise literal, responde isso
afirmativamente. Basta ver que, quando a Constituição, no Título II, trata dos
Direitos e Garantias Fundamentais, traz não só os direitos civis e políticos,
nacionalidade, mas também os direitos sociais. Quer dizer, não restam dúvidas de
que esses direitos estão previstos na Constituição e nos tratados internacionais.
A grande dificuldade reside na relação entre o direito e a política. Na
realidade, temos esse desafio. Como diz Canotilho, a Constituição sempre tem
como tarefa a realidade. Juridificar constitucionalmente essa tarefa ou abandoná-la
à política é esse o grande desafio. Ou seja, as Constituições pretendem conformar
o político.
Se avaliarmos o legado impacto e o balanço desses pouco mais de 12 anos
de vigência da Carta de 1988, veremos que temos 37 emendas à Constituição.
Numa análise sistemática, se quisermos avaliar qual o prumo do processo de
reforma da Constituição, perceberemos que são reformas que buscam
descaracterizar a roupagem social do nosso Estado; que buscam trazer abertura
desenfreada da nossa economia aos mercados internacionais; que fragilizam a
linguagem dos direitos econômicos, sociais e culturais. Têm sido esses o impacto
das reformas, fundamentalmente daquelas realizadas pós 1995.
Esse é o grande dilema de quem estuda hoje Direito Constitucional. Temos
esta Constituição e temos a Carta emenda, com 37 emendas, que apontam um
outro rumo, não só aqui no Brasil, mas na América Latina como um todo, que é o
grande rumo da reforma do Estado no campo previdenciário, administrativo,
econômico, judicial. Quer dizer, o momento da reforma do Estado. Isso, de alguma
forma, responde a plataforma neoliberal, a plataforma da globalização econômica.
Tememos imensamente o impacto destruidor dessas reformas no tocante a
esse arcabouço denso, protetivo, dos direitos econômicos, sociais e culturais. Quer
dizer, quem vai vencer a batalha? De que maneira? Quais as forças de exclusão e
de inclusão resultantes nesse cenário?
Assim passamos à última questão que se refere ao impacto da globalização
econômica no processo de efetivação dos direitos sociais. Como devemos
39
enfrentar a flexibilização e a desconstitucionalização desses direitos?
Se olharmos para a América Latina nas últimas décadas, veremos que
foram três os grandes desafios: abertura política, estabilização econômica e
reforma social. Essas foram as três grandes bandeiras. Hoje, a agenda dos países
latino-americanos passou a incluir, com preocupação central, a inserção na
economia globalizada.
No final de janeiro, todos acompanhamos a realização do Fórum Social
Mundial aqui em Porto Alegre. Há toda uma crítica construtiva feita com relação à
plataforma neoliberal, aos cortes de despesa pública, à privatização, à
desconstitucionalização(?4:18?) e essa abertura desenfreada do mercado ao
comércio internacional.
Gosto muito de uma frase de Habermas: Hoje, são antes os Estados que se
acham incorporados, engolidos pelos mercados e não a economia política,
limitada pelas fronteiras nacionais ou estatais. Quer dizer, é chocante notar que,
hoje, das 100 maiores economias mundiais, 51 são multinacionais e 49 são do
Estado. É nesse cenário que temos de inserir e fazer a nossa avaliação.
Hoje, o próprio BID, Banco Mundial, a ONU e o próprio FMI têm
consenso de que a plataforma neoliberal, a plataforma da globalização econômica
tem aumentado a pobreza, o protecionismo e tem gerado uma exclusão cada vez
mais crescente. Com isso, grande parte das pessoas vivem mais no estado da
natureza do que propriamente no Estado Democrático de Direito. É bastante
temerária essa flexibilização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Esquecime de trazer, mas houve um encarte publicado na Folha de São Paulo sobre o
Brasil privatizado. Há estudos excelentes do Aloysio Biondi: Brasil Privatizado, o
Desmonte do Estado.
Qual é o desafio? Vejam, Senhores, que o Estado brasileiro está deixando
de ser prestador direto de direitos, de políticas públicas com as privatizações. O
Estado passa a ser regulador do modo pelo qual o setor privado vai prestar não
essas políticas públicas – pois setor privado nenhum prestará política pública –,
mas serviços. Isso traz toda uma revolução no tocante à gramática dos direitos
econômicos, sociais e culturais. O Estado deixa de ser prestador direto de
políticas, passa a ser agente regulador econômico; direitos se transformam em
serviços; o cidadão se transforma em consumidor. Isso tudo é bastante temerário,
pois, seguramente, quando a população cair, não terá o poder aquisitivo e o poder
de consumo para usufruir esses serviços.
Tomo a liberdade de passar aos Senhores um artigo que versa sobre os
direitos trabalhistas. Posso ter uma posição jurássica, mas entendo ser fundamental
o fato de que não podemos deixá-los flexibilizados. A proposta que há de reforma
40
do art.7º, caput, da Constituição, é no sentido da flexibilização total. Ou seja,
direitos como férias, licença-gestante, licença-paternidade, salário mínimo, tudo
isso dependerá do contrato. As Centrais Sindicais ficaram indignadas com a
proposta de reforma. Agora, o Governo tenta recuar, tenta evitar que isso seja feito
via reforma da Constituição, mas já há projeto de mudança da CLT com o mesmo
sentido. Na verdade, trata-se de uma reforma constitucional por via oblíqua. A
tentativa é para submeter e condicionar todos os parâmetros mínimos na área
trabalhista a contrato, que pode ser individual ou coletivo.
Hoje, vivemos com um alto índice de desemprego. Isso acaba tornando
precária e assimétrica a relação de trabalho. É fundamental que o Direito tenha
esse papel compensatório. Segundo dados, somos a quinta população
economicamente ativa do mundo, mas, em contrapartida, temos a terceira maior
quantidade de desempregados. São dados de 1999, pesquisados em 141 países.
Na Folha de São Paulo, foi publicado um artigo do Professor Márcio
Pochman, da Unicamp, sobre o desemprego na economia global. Nesse artigo, há
menção sobre esse estudo.
Num cenário como esse, imaginem os Senhores o poder de barganha, de
negociação dos trabalhadores, do próprio movimento sindical, já que há um
exército de excluídos que se submeteria a qualquer condição de trabalho. Isso
seria a própria globalização da escravidão.
É por tudo isso que entendo ser de fundamental importância imaginarmos
estratégias de proteção e de salvaguarda dos direitos econômicos, sociais e
culturais em espaços como este, reafirmando a indivisibilidade desses direitos,
lembrando que a vulnerabilidade econômico-social leva à vulnerabilidade dos
direitos civis e políticos, lembrando o legado de Amartya Sen, Prêmio Nobel da
Economia em 1998, autor de um excelente livro, traduzido recentemente para o
português: O Desenvolvimento como Liberdade. Ele diz que a negação da
liberdade econômica sob a forma de pobreza extrema torna a pessoa vulnerável a
violações de outras formas de liberdade. Ou seja, a negação de liberdade
econômica implica a negação da liberdade social, política e outras. É um
economista partilhando desta ótica tão clara da indivisibilidade dos Direitos
Humanos.
Torno a dizer que os grupos sociais mais vulneráveis são aqueles que mais
sofrem nesse processo, especialmente as mulheres e, no caso brasileiro, a
população negra dentre outros setores.
Termino minha participação, citando um autor chamado Jack Donelli que
diz que se os Direitos Humanos são os que civilizam a democracia, o estado de
bem-estar social é o que civiliza os mercados. Quer dizer, se os direitos civis e
41
políticos mantêm a democracia em índices razoáveis, os direitos econômicos e
sociais estabelecem parâmetros e limites adequados aos mercados, de forma que
mercados, eleições, por si só, não são suficientes para assegurar Direitos Humanos
para todos. Daí, emerge este desafio: a construção de um novo paradigma.
A contribuição do Fórum Social Mundial foi extraordinária nesse sentido,
dando visibilidade, experiências exitosas com relação à defesa dos direitos
econômicos, sociais e culturais em outras partes do mundo. Nesse arcabouço
construtivo, é capaz de dar visibilidade a uma estratégia que busca o
desenvolvimento sustentável, mais igualitário e mais democrático. O imperativo
da eficácia econômica tem de ser conjugada com a exigência ética de justiça social
em uma ordem democrática que garanta a todos o pleno exercício dos direitos
civis, políticos, econômicos, sociais e culturais sob a perspectiva de gênero, raça,
etnia, entre outros critérios.
Concluo citando Saramago, numa passagem que considero da máxima
importância: O mundo não está em ordem; a ordem é sempre ao que nós
buscamos construir. Temos de inventar essa ordem. Segundo o autor, as pessoas
nascem todos os dias e só delas é que depende continuarem a viver o dia de ontem
ou começarem, de raiz e berço, o dia novo, o hoje.
Espaços como este são oportunidades de revitalização, de construção de
estratégias em prol da defesa radical e intransigente da dignidade humana.
Muito obrigada.
Professora da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo; coordenadora do Grupo de
Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado/SP; membro do Comitê
Latino-Americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher; integrante da
Comissão Justiça e Paz; membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana; ativista da Anistia Internacional; autora de diversos livros sobre o tema.
42
Debate
Virgínia Feix – advogada da Themis- Estudos de Gênero e Assessoria
Jurídica:
-Tenho uma pergunta com relação à eficácia dos Direitos Humanos e, mais
especificamente, sobre a relação entre a sociedade civil e a tutela dos direitos
difusos.
Em função de um fato ocorrido aqui no Rio Grande do Sul, a Temis
resolveu canalizar uma indignação nacional com relação a certas letras de música
– no caso agora, do ritmo funk – que afrontam diretamente a dignidade das
mulheres e crianças e que incitam a violência. A iniciativa não se deu numa
perspectiva moralista ou de censura, mas numa discussão de direitos. Em nome da
liberdade de expressão, até que ponto nós poderíamos apontar outros princípios
constitucionais, mas entendemos que não. Nessa perspectiva, discutimos o que
fazer e acabamos concluindo por uma representação no Ministério Público
pedindo providências e fazendo essa discussão com a sociedade. Nessa discussão
do que fazer nos vem claramente a necessidade de construir procedimentos para
que a sociedade civil possa compartilhar da titularidade de interposição de ações
civis públicas. A nossa perspectiva é de fazer um seminário internacional ainda
este ano e aproveito para pedir a contribuição dos juristas que fazem parte da mesa
nesse sentido. Seria esta a questão que apresentaria à Mesa: pensarmos ou
apontarmos caminhos nessa perspectiva.
Flávia Piovesan – Agradeço à Virgínia Feix. É uma questão tormentosa e
difícil, mas lembraria que há precedentes no caso de São Paulo com relação ao
Movimento Negro. Houve uma reação a algumas músicas e o Movimento Negro
acabou reagindo, seja com representação administrativa junto ao Conar, seja com
medidas judiciais. Recordo-me no ano retrasado ao receber denúncias do
Movimento Nacional de Direitos Humanos não com relação à música, mas a
outdoor alusivo a uma campanha pelo armamento em reação ao Projeto de Lei que
previa os armamentos. Foi um caso interessante do qual participei elaborando a
inicial da ação civil pública. Aí houve essa ponte do movimento social, ou seja, a
demanda nasceu do movimento social, especialmente do Movimento Nacional dos
Direitos Humanos e de vários grupos do movimento negro, entendendo que o
outdoor – não sei se aqui chegou esse outdoor – da Mainardi em que havia um
jovem negro com uma tarja nos olhos – a campanha sou da paz –, com uma arma,
43
dizia: Você é da paz, eles não. Vamos desarmar os bandidos e não os cidadãos de
bem.
Era absolutamente esteorotipada a visão que lá se tinha. Para quem lia, o
bandido é o negro, é o jovem de periferia e assim por diante. Foi um caso
interessante, pois veio do movimento social, ou seja, o laço de legitimidade havia
e, no grupo de trabalho de direitos humanos da procuradoria que coordeno,
debatemos esse caso, fizemos a inicial e o Estado de São Paulo propôs, como
autor, a ação civil pública. Foi feito pela Procuradoria do Estado de São Paulo. Foi
um caso interessante, primeiro, porque houve a demanda de entidades, segundo,
porque várias vítimas foram humilhadas e agredidas com aquele outdoor e o que
foi muito bom é que o Juiz foi sensível. Sempre ficamos com aquele medo de que
pode ser uma decisão exitosa, mas pode não ser e aí tem que ser avaliado o custo
disso. Nesse caso, houve a constituição de tutela antecipada com a determinação
imediata de remoção dos outdoors e multas. O processo assumiu uma feição
pública e política também bastante acentuada, porque o indivíduo que estava no
outdoor dizia que ele não era negro. Ele dizia-se branco, só que a comunidade
negra inteira viu-se nele refletida. É aquela negação da negritude pelo próprio
negro. O movimento negro se viu nele. Essa ação não se volta para defender o seu
direito, ele pode se achar vermelho, azul, amarelo, o que importa é que as pessoas
se viram nele e a comunidade viu-se humilhada por estar ali refletida naquela
dimensão.
O fundamental, portanto, é que a ação civil pública é um instrumento
jurídico de grande lastro político também. Pela lei, quem pode propor é o
Ministério Público, o Estado, o Município, a União e entidades se estiverem
legalmente constituídas há dois anos, se tiverem no seu estatuto essa previsão. O
grande problema é que nós não podemos instaurar o inquérito civil público. Isso é
medida do Ministério Público, só ele pode. Então, ficamos em desvantagem nesse
sentido. A Themis ou outras entidades não poderiam requisitar provas, não
poderiam instaurar o inquérito no sentido de levantar evidência em relação a esse
assunto.
Parece-me que a estratégia a ser adotada no caso das ações civis públicas
para que exista realmente a defesa de direitos difusos, que a sociedade se sinta
representada, é através de audiências públicas, dando visibilidade a questão,
chamando setores significativos da sociedade civil para que, então, exista o
instrumento judicial e a ação seja proposta. Dou um exemplo, mas ainda estamos
trabalhando com o Ministério Público e outras entidades, atuando com o
Ministério Público Federal numa ação civil pública que busca ações afirmativas
em prol de mulheres no tocante à administração pública federal, já que há um
44
estudo mostrando uma discrepância no tocante aos cargos de chefia que estariam
sendo distribuídos de forma bastante desigual entre homens e mulheres. A
vantagem é que houve a instauração de inquérito civil público. Há volumes e
volumes, o Ministério Publico oficiou e todas as entidades oficiadas responderam,
há provas, portanto há indícios, e agora queremos dar visibilidade e ampliar esse
debate. A idéia é fazer uma audiência pública fazendo com que a sociedade civil
se sinta envolvida para que, então, a ação judicial possa representar a voz e a
pluralidade da sociedade civil.
Entendo qual a tua questão. Muitas vezes pode parecer que é a Themis e
não a sociedade civil que se vê. Não sei se essa é a tua preocupação, no campo da
legitimidade.
Virgínia Feix – A questão seria buscar construir procedimentos para que
as organizações da sociedade civil pudessem ser autoras na ação civil. Nesse caso,
a estratégia que talvez seja construída, já manifestada pelo Procurador da
República de Cidadania e Direitos Humanos, é de fazer audiência pública e
instaurar imediatamente inquérito civil público. Ele está propondo que, se indicada
a ação civil pública, venhamos a ser litisconsorte.
Flávia Piovesan – Ótimo. Isso é o que estamos também avaliando em
termos de estratégia para essa outra. Que não seja o Ministério Público sozinho
monopolizador da ação, mas que seja o Ministério Público e entidades x, y e z.
Virgínia Feix – Até porque fizemos um ato e contamos com o apoio de
dezenas de entidades ligadas à criança e ao adolescente e às mulheres, que
assinaram um documento de apoio à representação.
Flávia Piovesan – Concordo. Acredito que essa é a via: audiência pública
e também segurar no pólo ativo da demanda, ou seja, ser autor e provocador do
Poder Judiciário.
José Carlos Moreira Da Silva Filho – Faço apenas um rápido
comentário. Sem dúvida alguma, tudo que foi apresentado também sinaliza para a
direção da importância exatamente de uma preocupação como a tua, ou seja, de
aproximar as instâncias legítimas de organização da sociedade civil em relação às
instâncias institucionais. Nesse ponto temos uma riqueza muito grande em nível
institucional, através do Ministério Público, enquanto quarto poder, que deve atuar
na medida em que também houver uma maior interação com a sociedade civil.
Então, a sociedade civil aproximando-se mais dessa instância e ao mesmo tempo o
Ministério Público também tornando-se sensível, acredito que teremos uma maior
eficácia até em termos estratégicos, na medida em que há uma grande resistência
política e jurídica às reivindicações e mobilizações que não sejam legitimadas ou
que não passem por essas instâncias, o que observa-se em determinados segmentos
45
sociais que independentemente de uma mediação com instâncias que integram a
função da justiça colocam os seus direitos e exigem o seu atendimento. Acredito
que é uma estratégia fundamental e importante.
Esse assunto, em termos acadêmicos, também traz uma discussão bastante
interessante no que se refere ao conflito de princípios, a antinomia de princípios.
Pela própria tradição jurídica à qual o nosso senso comum está aferrado, temos
uma dificuldade muito grande de trabalhar com noção de princípios. Até mesmo o
Supremo Tribunal Federal há bem pouco tempo tinha uma posição majoritária de
que a ofensa a um princípio constitucional não era interpretada dentro da alínea a
do inciso I do art. 102, que aborda os casos de recursos extraordinários, na medida
em que interpretavam que o princípio não seria uma ofensa direta à Constituição,
exatamente pela sua vagueza e ambigüidade. Um entendimento que já foi
contraditado ali mesmo. Temos essa cultura de que princípio é uma determinação
e, quando se coloca em contradição com os outros, há um argumento a mais. Na
verdade, vamos deixar que os funks invadam as nossas telas a todo momento.
Ontem mesmo vendo televisão, em pelo menos dois canais estavam sendo exibidas
coisas dessa natureza. Realmente impõe-se um questionamento em relação ao
princípio da dignidade, do respeito a determinados valores em contraposição ao
princípio da liberdade de expressão.
É importante utilizar-se a estratégia referida, pois como é polêmico pensar
em termos de censura ao exibir determinadas imagens, a propagar determinadas
frases, é importante também adotar uma estratégia no sentido de compartilhar os
mesmos espaços para dar uma outra visão, para mostrar que essa não é uma visão
unívoca ou pelo menos para polemizar aquilo de uma forma interessante.
Flávia Piovesan – Faço um último comentário interessante à luz até do
que disse o José Carlos. Também vejo que essa reflexão sobre a Themis esboça o
quanto o movimento de direitos humanos em geral se apega mais a estratégias
políticas e não tanto a estratégias jurídicas. Entendo como fundamental que
possamos somar as duas estratégias, a política e a jurídica, e tentar litigar perante o
Poder Judiciário causas de direitos humanos como essa e como tantas outras e
provocar o Judiciário. O Judiciário brasileiro é pouco provocado em relação a
direitos humanos. Nós, como um todo, sabemos fazer manifestação, seminário,
tecer fóruns, passeata, agora valer-se de estratégias jurídicas ainda é um
aprendizado que está em construção. No estudo que fiz no ano passado, percebe-se
isso. A sociedade civil sente-se mais próxima do Legislativo, sabe chegar ao
Legislativo. Vejam quantos da sociedade civil estão aqui. O Legislativo está de
portas abertas. No Executivo, querendo ou não, há um trânsito. O Legislativo e o
Executivo incorporaram a lógica dos direitos humanos, basta dizer que há
46
comissões de direitos humanos aqui e nos demais Estados da Federação, na
Câmara Federal, e, gostemos ou não, no âmbito federal o tema também foi
introjetado e foi incorporado, há, inclusive, Secretaria Nacional dos Direitos
Humanos. Nos Executivos estaduais isso também chegou. E, no Poder Judiciário,
não chegou.
O processo de democratização não encurtou a distância entre a população e
o Judiciário. E aí é uma outra longa discussão que não quero entrar. Há pesquisas
que mostram que 80% da população latino-americana se vê distanciada do
Judiciário. E esse é o maior problema. Uma pesquisa feita aponta que 75% dos
juízes brasileiros se vêem distantes da população e entendem que esse é o maior
problema. Ações como essa são fundamentais para reduzir a distância que há entre
o Judiciário e a população e permitir que ele seja quiçá um locus de afirmação de
direitos. Pelo menos tem que ser testado e provocado para isso.
José Carlos Moreira da Silva Filho – Para reforçar o que a Professora
disse em relação ao Poder Judiciário, há um estudo feito por um autor gaúcho,
José Felipe Ledur, publicado pelo Sérgio Antônio Fabris, que fala do direito ao
trabalho. Ele fez uma pesquisa jurisprudencial sobre em quantas decisões nos
Tribunais Superiores se havia tratado ou tentado tratar o tema da dignidade
humana. Simplesmente, ele não encontrou. Encontrou em apenas duas ações
envolvendo habeas corpus.
47
Mesa redonda
A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos,
sociais e culturais
Deputado Pe. Roque Grazziotin
- A proposta deste Seminário que está sendo realizado é que,
posteriormente, seja feita uma publicação que nos auxilie profundamente nessa
nova visão desafiante dos Direitos Humanos nos dias de hoje, em que todos
estamos buscando um aperfeiçoamento.
Inicio falando a respeito da dimensão humana, da dignidade, que não é
algo óbvio e nem consensual. Na disputa histórica entre dois projetos de
civilização, a dimensão humana nem sempre aparece como um elemento de base
negociável e inarredável de qualquer tratado, convênio ou norma de convivência
social. Ao contrário, na atualidade, por incrível que pareça, a dimensão humana
tem sido cada vez mais posta em xeque, cada vez mais vilipendiada na balança de
decisões que determina o destino do meio ambiente, da paz e das condições de
vida dos povos.
Proclamar os Direitos Humanos constitui-se num dos primeiros momentos
de progresso de um projeto de civilização, um projeto humanista e solidário que se
opõe à hegemonia dos interesses econômicos concentrados e excludentes, projeto
de um novo mundo, que acreditamos possível e viável.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos materializaram-se dois
pactos internacionais, que formam a chamada Carta da ONU sobre Direitos
Humanos: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
A Doutrina Oficial da ONU, de 1989, a partir de Viena, afirma a igualdade,
a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a interpelação dos
direitos humanos individuais, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais das
sociedades e dos povos. De certa forma, isso não deixa de ser uma nova
declaração ou proclamação que, se não avançar em termos de esforço e de
concretização, permanecerá na mera retórica, principalmente no que diz respeito
48
aos direitos econômicos, sociais e culturais.
Se é verdade que a possibilidade de realização é elemento imprescindível
dos direitos, é nesse ponto que devemos concentrar os nossos esforços,
criatividade e coragem. Dar um passo adiante não queimando etapas, mas criando
condições para que as anteriores não caiam no vazio da mera eficácia simbólica. A
fome não é nada simbólica, como também não é a ignorância, a tortura e a
exclusão.
Qual é o elo que falta entre a normatização internacional e a satisfação real
das necessidades básicas, que realmente possibilitam a autonomia e a liberdade?
Sem preocupar-me em hierarquizar, aponto algumas condições
indispensáveis e ainda insuficientes para a plena realização dos Direitos Humanos,
especialmente dos direitos econômicos, sociais e culturais. Primeiro, em termos
teóricos, a impossibilidade de realizar plenamente os direitos humanos, de acordo
com a doutrina oficial da ONU, condiciona a própria definição dos direitos
econômicos, sociais e culturais como outro tipo de direito.
São fundamentais. É como se afirmássemos que, como é praticamente
impossível acabar com o extermínio de adolescentes pobres, não existe o direito
fundamental à vida no ordenamento jurídico brasileiro, ou que ele não é universal,
mas apenas para os ricos. Ou que, como ainda são torturados escandalosamente
nas delegacias e nos presídios, não exista o direito à integridade física e moral no
Brasil, a não ser para aqueles que nunca são suspeitos de nada. Da mesma forma,
porque não são combatidos a fome e o trabalho infantil, não se quer dizer que a
alimentação, a saúde e o trabalho digno não sejam direitos fundamentais.
Segundo, a título de condições jurídicas, a debilidade jurídicoconstitucional dos direitos econômicos, sociais e culturais no Brasil é causa que
contribui para a não-realização pela via da proteção, ou seja, não há mecanismo de
amparo às violações dos direitos econômicos, o que explica também por que não
são considerados direitos fundamentais, mas, sim, sociais, com toda a carga,
abertura e imprecisão que o termo social implica.
Percis Barba propõe que devemos considerar esses direitos como
subjetivos, posto que, frente ao titular do direito – sujeito ativo – existe um sujeito
identificável obrigado por esse direito – sujeito passivo. Nessa linha, grande parte
dos advogados brasileiros também propõem a auto-aplicação de todos os direitos
constitucionalizados, numa verdadeira inversão da lógica do saber jurídico
dominante.
É necessário, em qualquer caso, cimentar juridicamente e não só como
imperativo moral o estatuto jurídico constitucional dos direitos econômicos,
sociais e culturais.
49
Terceiro, no que diz respeito às condições éticas, Barba nos ensina que os
direitos, juntamente com os valores e princípios, formam o conteúdo de justiça de
uma sociedade democrática e moderna, tendo como objetivo último ajudar para
que todas as pessoas possam alcançar o nível de humanização máximo possível
em cada momento histórico.
O que ocorre atualmente é uma inversão de valores que sobrepõe o
princípio do crescimento da autonomia individual, da eficiência econômica e da
competitividade ao princípio da igualdade e da solidariedade.
Assim, fica difícil disputar a legitimidade de ações positivas de prestação
sociais para todos os cidadãos, que por diversos motivos não produzem, não
consomem, enfim, não participam plenamente do jogo utilitarista, mercantilista e
consumista em que se resume o modelo econômico e político brasileiro atual.
Quarto, as condições sócio-políticas baseiam-se no trabalho, um dos
principais pilares de sustentação dos direitos econômicos, sociais e culturais que
vêm se debilitando rapidamente, não só em sua dimensão de direito, mas também
de fato.
A internacionalização das atividades econômicas e seus reflexos diretos no
mercado formal e informal de trabalho tem excluído famílias e comunidades
inteiras das possibilidades reais de gozo de todos os Direitos Humanos. O Estado
não dá conta de tal rombo, nem em termos de políticas públicas de redistribuição
de riquezas, propriedades e terras, nem em termos de reorganização estrutural do
modelo que causa esse desastre social.
Quinto, em termos de condições econômicas, a escassez crônica de
recursos, decorrente de opções políticas que nem sempre estão ao alcance do
Estado nacional, e muito menos do local, serve sempre de justificativa para
recortes cada vez maiores nos gastos sociais, frente ao crescimento ilimitado das
necessidades básicas da população. Mas a margem de decisão nacional e local é
chave para a existência e condições concretas de realização dos direitos
econômicos, sociais e culturais.
E aí cabe todo o tipo de iniciativas e alternativas ao modelo excludente
dominante, como, por exemplo, o Orçamento Participativo, Frentes de Trabalho,
Programa Primeiro Emprego e tantos outros programas sociais. Não são
fundamentais, não se realizam, não se protegem, não são legítimos socialmente e
não são objeto de interesse econômico. Como afirmar, nessas condições, que os
direitos econômicos, sociais e culturais são Direitos Humanos, ao lado dos direitos
individuais, civis e políticos?
Esses direitos não partem da ficção de que basta ostentar a condição
humana para ser titular, se o ponto de partida, no nosso entendimento, é outro, é o
50
da desigual distribuição da riqueza e da propriedade que impede que as pessoas
possam satisfazer por si mesmas as suas necessidades básicas. Se o ponto de
chegada, sua utopia é justamente o ponto de partida dos Direitos Humanos
individuais, é a universalidade no limite, a democracia só é possível numa situação
de homogeneidade e oportunidades sociais.
O desafio que se impõe a todos nós está, tanto quanto em relação aos
direitos individuais, civis e políticos, na criação de mecanismos efetivos de
proteção. Os direitos individuais, civis e políticos dependem, atualmente, quase
exclusivamente da boa vontade política de não violá-los. Não dependem quase de
verbas, de prioridades orçamentárias ou de políticas afirmativas. Bastaria uma
ordem decidida, ações eficazes de controle e punição para que, imediatamente,
diminuíssem as barbaridades das torturas contra cidadãos que estão sob os
cuidados do Estado, delegacias de polícia, viaturas policiais, militares, Febem,
hospitais públicos e privados com leitos psiquiátricos.
Há bases legais, éticas e estruturas institucionais coerentes com o Estatuto
dos Direitos Humanos Individuais que permitem um avanço maior do que o
alcançado até aqui. Já os direitos econômicos, sociais e culturais carecem ainda de
bases teóricas e metodológicas, éticas e políticas, e de recursos para que se possam
fundamentar e conquistar a sua plena realização.
Entretanto, assim como os direitos individuais dependem, como alavanca
primeira para a sua eficácia, da vontade política, de iniciativas de ações
afirmativas positivas e atenção às necessidades básicas sem discriminação, o
desafio está em criar mecanismos de realização e proteção dos direitos
econômicos, sociais e culturais.
Aos operadores do Direito cabe enfrentar o desafio de construir
solidamente uma lógica alternativa dominante, ou seja, sustentar a autoaplicabilidade das normas constitucionais, a automática aplicação das normas
internacionais e a criação de mecanismos de proteção efetivos ágeis e acessíveis
para os casos de violação ou de omissão do Estado.
Aos legisladores cabe enfrentar o desafio de conformar políticas públicas
de redistribuição das riquezas, contingenciar verbas à existência de uma
institucionalidade democrática e plural, priorizar a criança e o adolescente em
todas as iniciativas de fiscalização, promoção e legislação, criando medidas legais
para a mediação entre os setores privados que combatem a exploração e a
exclusão.
Aos executores cabe enfrentar o desafio de destinar todos os recursos
disponíveis, inclusive contando com a ajuda internacional e iniciativas privadas
para as políticas e programas concretos de combate à pobreza, de desenvolvimento
51
auto-sustentável de proteção das culturas diversas e de oportunidade de autonomia
individual, familiar e comunitária.
Ao Ministério Público cabe fiscalizar tudo isso, obrigando-nos a cumprir
com as nossas responsabilidades e a propor punição para toda a sorte de violação,
negligência ou omissão.
À sociedade cabe lutar pela transformação dos direitos em poderes,
disputando, em todos os momentos, espaços concretos de participação dos
processos de decisão. Cabe disputar modelos éticos que contemplem a
solidariedade, a auto-ajuda e o cooperativismo. Cabe também autogarantir-se, ao
mesmo tempo em que pressionar o Estado, para que, como mediador, seja um
aliado e um priorizador dos Direitos Humanos em todas as frentes de sua
intervenção.
A democracia mais radical e a realização dos Direitos Humanos são dois
pilares que se sustentam mutuamente, apoiando e protegendo os valores mais
caros à civilização que queremos construir. Há que combater a atitude cínica de
afirmar a bondade dos direitos econômicos, sociais e culturais, desde que fora do
ordenamento jurídico que os garanta e proteja. Há que combater a postura
absolutista cega, que atribui automática efetividade sem a criação de mecanismos
de amparo individual e coletivo.
Há que lutar por uma lógica de reciprocidade não só entre direitos e
deveres, mas também entre direitos individuais e sociais. Por exemplo, equiparar o
direito à inviolabilidade do domicílio ao direito de moradia. Há que trabalhar para
que haja novas realizações no campo desses direitos, contando com a auto-ajuda
social e com movimentos de voluntariado qualificado e comprometido.
Há que fugir da lógica da reserva do possível, da ideologia da ditadura dos
cofres vazios, libertando a criatividade e a ousadia de inverter prioridades, ainda
que com recursos escassos. Há que desmascarar a crise como pontual e como
justificativa sempre imprevista para que programas se desmoronem, projetos não
saiam do papel e verbas não cheguem.
A famosa crise é, na verdade, estrutural e corresponde a uma parcela da
sociedade que não está em crise, mas vive dela. A Comissão de Cidadania e
Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, honrando a
sua trajetória de trabalho pioneiro neste campo, assume nesta gestão, de forma
mais explícita e comprometida, a árdua tarefa de contribuir para que os direitos
econômicos, sociais e culturais se incorporem real e eficazmente ao conjunto
único, indivisível e universal dos Direitos Humanos.
Esta Comissão propõe-se a trabalhar também para que, ainda que
tardiamente, os direitos fundamentais à vida, à integridade física e moral e à
52
liberdade se realizem plenamente em nosso País.
Agradeço a presença e a participação de todos neste painel que estamos
iniciando.
Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa.
A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos, sociais e
culturais, na visão do Judiciário
Rui Portanova
Gostaria de agradecer o convite para participar deste painel e dizer que
logo levantei a questão se, na verdade, eu estaria aqui para representar o Poder
Judiciário. E esta é uma dificuldade bastante grande que tenho, mas deram-me
uma certa liberdade para não o representar, porque, do ponto de vista dos Direitos
Humanos, tenho uma visão crítica em relação ao que tem sido colocado dentro do
Poder Judiciário em geral.
Ficaria extremamente constrangedor se eu colocasse aqui, representando o
Poder Judiciário, a minha posição particular, mas foi-me dito que eu viria
representando a mim mesmo.
Portanto, peço desculpas aos Senhores porque, certamente, cometerei um
equívoco de linguagem que percebi no momento em que estava pensando a
respeito. Falarei eles no sentido da visão tradicional de Poder Judiciário, e na
verdade somos nós, eu também sou tão conservador, tão neutro quanto é o Poder
Judiciário como um todo, ou seja, quando eu estiver falando eles, não fiquem
imaginando que estou sendo mais crítico do que gostaria de ser. Trata-se apenas
da forma como me manifesto na minha crítica: eles, é o Poder Judiciário e sou eu
também.
A pergunta que faço, em razão de parte do que foi dito pelo Padre Roque, e
que gostaria que conduzisse toda a minha fala, é no sentido de saber se para o
Judiciário adianta ter lei. E gostaria de mostrar aos Senhores como é difícil ficar
numa posição de representante do Poder Judiciário e possibilitar esta resposta.
O primeiro enfrentamento, que me parece ser o mais radical de todos, é que
entendo que o Poder Judiciário não é neutro, apesar de a maioria das pessoas que
trabalha no Judiciário, que trabalha com o Direito, ver o juiz como neutro. Faço
uma distinção entre imparcialidade e neutralidade. O juiz é imparcial, mas não é
53
neutro. Imparcialidade é aquela relação que liga o juiz com a parte. Por isso o juiz
não pode julgar o caso do seu irmão, do seu pai e da sua mãe, pois tem uma
relação com a parte. Ele tem de ser imparcial, mas não é neutro.
A neutralidade é o instituto que liga o juiz, não enquanto ser e não
enquanto indivíduo, mas enquanto cidadão, com o tema posto em juízo e não com
a parte posta em juízo. E aqui o juiz não é neutro. Se na imparcialidade o juiz tem
de se omitir para não julgar os casos dos seus irmãos ou de seus parentes, na
neutralidade o juiz é obrigado a se comprometer, porque a sentença é o sentimento
e provém de sentir – e o sistema quer que o juiz diga o seu sentimento. É
exatamente por isso que um juiz homossexual pode julgar um caso de
homossexual, um juiz negro pode julgar um caso de racismo e um juiz homem ou
mulher pode julgar um caso em que tenha sido envolvida uma questão de
machismo.
E os juízes – desculpem, mas agora vou começar com eles – acham que são
neutros, ou seja, não se apercebem que são machistas, racistas, heterossexualistas
e capitalistas. E não se apercebendo disso, ou às vezes se apercebendo um pouco
mais, acabam reproduzindo o que chamo de ideologia dominante, que é o
machismo, o racismo, o capitalismo e o heterossexualismo. Para dentro do Poder
Judiciário sempre vêm causas que a todo o momento estão sendo cortejadas essas
ideologias, algumas vezes mais claramente, noutras nem tanto.
Daí não poder acusar o Poder Judiciário, por exemplo, de não ser humano,
que é a dimensão proposta neste painel. Nem posso dizer que não obedece à lei.
Obedece, mas acontece que faz uma determinada escolha de toda a lei que existe, e
obedece à dimensão humana. As decisões obedecem, só que obedecem a uma
determinada dimensão humana: àquela que é capitalista, racista, machista e
heterossexualista.
Então, não se pode acusar o Judiciário de não tratar o humano. Apenas que
trata o humano prestigiando mais o capital do que o trabalho, mais o individual do
que o social, mais a lei do que a ética, mais a busca da liberdade do que a busca da
igualdade – nesta perspectiva, a minha visão é crítica. Na dimensão ética, para
citar um exemplo, recentemente o Presidente do Tribunal fez passar uma circular
perguntando se dentro dos gabinetes dos desembargadores havia nepotismo.
Respondi, perguntando se a resposta que eu tinha de dar também envolvia
o que se chama de troca-troca. Não aquele filho que eu contrato, ou filho de um
desembargador que eu contrato, mas o filho do procurador ou do juiz do Tribunal
que eu contrato e que, por sua vez, contrata o meu filho. Se isso eu também tinha
de informar, porque sei que essa não é uma dimensão jurídica legal, não consta na
Constituição, mas é uma dimensão ética e que pode minar, do ponto de vista ético,
54
aquilo que é uma conquista contra o nepotismo no Rio Grande do Sul.
Foi-me dito que eu só deveria informar o que consta da emenda
constitucional. Então, informei que no meu gabinete não havia nepotismo, mas
sugeri ao Presidente do Tribunal que fizesse a mesma pesquisa, fazendo circular
um novo ofício, para fins de eliminar as questões de ponto de vista ético,
perguntando aos desembargadores se contratavam em seus gabinetes algum filho
de procurador ou de juiz do Tribunal de Contas que, por sua vez, contratasse
também o seu próprio filho; e se nos gabinetes era contratado namorado ou
namorada de um filho ou de uma filha.
O ofício foi recentemente respondido. Ainda não foi dito se será feita a
pesquisa ou não, mas pode-se sentir que no Poder Judiciário, na perspectiva de
interior e administrativa, a preocupação é muito mais legal do que ética.
Pretendo fazer um enfrentamento dessa dimensão humana, dessa
perspectiva e dessa visão crítica, muito mais do ponto de vista cível, que é a minha
área de atuação – talvez fosse interessante fazer do ponto de vista criminal, mas
não tenho engenho e arte para isso, pois não é a área em que trabalho – e do ponto
de vista do processo, nem tanto do direito material.
Mesmo que eu não trabalhe com a visão criminal, gostaria de lembrar que
a Lei das Execuções Penais, se fosse cumprida, não deixaria margem à discussão
sobre aplicações de humanidade e de atendimento aos Direitos Humanos. Apesar
de a lei não ser atendida – e vejam como aqui não basta ter a lei –, a minha
pergunta já se responde. Temos a lei para uma boa execução criminal, mas
desrespeitada, certamente em nome de outros valores.
Gostaria de falar da dimensão do humano na perspectiva do ECA e
processual, de aplicação do ECA e na parte cível. Há um ano e meio venho
trabalhando com as medidas contra adolescentes, e tenho visto que os maiores
estão melhor processualmente protegidos do que os menores – sei que não se usa
mais a expressão menores. Tenho tido uma preocupação muito grande, dentro do
Tribunal, de fazer uma aproximação entre o Código de Processo Penal e o ECA,
na sua parte processual, mas, ainda assim, com muita dificuldade, porque, se hoje,
no interrogatório criminal, é absolutamente indispensável a participação de um
advogado, ainda há muita dúvida, principalmente das duas câmaras. Eu diria que
só três desembargadores entendem que o adolescente sendo ouvido, precisa estar
acompanhado de seu defensor. Só três desembargadores anulam, de ofício, esse
tipo de situação. Vejam, aí já se tem uma violação do princípio constitucional da
defesa, algo já consagrado no Processo Penal, não é trazido para dentro do ECA.
Pelo ECA, ainda, uma questão revelantíssima, o Tribunal tem que destinar uma
verba para a equipe interprofissional fazer os exames nos adolescentes infratores,
55
é obrigado a destinar uma verba para isso, a lei determina que o juiz pode
determinar que faça um laudo antes de decretar a interação, que é justamente para
auxiliar o tipo de medida que vai aplicada, mas 90% dos processos infracionais
não têm nenhuma preocupação em relação a fazer laudos.
Eu, particularmente, tenho anulado, porque apesar de a maioria dos
desembargadores entenderem que aquele laudo é facultativo do juiz, costumo
dizer que, infelizmente, continuo juiz, e para mim é importante que um laudo
venha, ainda que seja em segundo grau, para fazer a identificação, tenho anulado,
então, os processos para que se proceda a esse laudo, mas sou vencido, apenas um
outro desembargador me acompanha. Está lá, com todas as letras, no Código, que
o juiz pode pedir o laudo, porém, os juízes não pedem os laudos.
E a execução do ECA sofre do mesmo problema da execução penal no
normal. Verdadeiramente temos, na Febem, um presídio, não é outra coisa, e a lei
fala que o juiz pode revisar a medida em até seis meses, porém, a interpretação que
tem se dado é que só se revisa a medida de seis em seis meses. Quer dizer, o
menor pode ter sua solução dois meses depois de uma entrevista com um juiz, mas
ainda assim terá que esperar mais quatro meses, o que é uma afronta à lei. Temos a
lei, mas devido a uma política judiciária, não a obedecemos.
No Cível também, não há falta de lei, apenas há uma forma de dimensão
humana, e que esta forma dominante de se ver a dimensão humana, a mim, data
vênia, merece crítica. É uma forma capitalista. Não falta lei, por exemplo, para
proteção da função social da propriedade, contudo, não se tem visto nenhum
fazendeiro que tenha suas terras ocupadas pelo Movimento Sem Terra, precisar
alegar nas suas petições iniciais que a sua propriedade tem função social. E nem os
juízes têm a mínima preocupação em saber se aquela terra tem função social ou
não. Não conheço nenhum caso de juízes, diante de uma ocupação do Movimento
Sem Terra, de ir até o local para saber se a terra está tendo função social, e função
social da propriedade está prevista na Constituição, é elemento essencial do direito
de propriedade. Logo, temos lei, mas mesmo assim, a lei, em relação à função
social da propriedade, que é a Lei Maior, e que tem aplicação imediata, não tem
sido levada em consideração.
Também é constitucional, mas tem outros argumentos, a limitação dos
juros. Novamente, uma visão capitalista do juiz. Não adianta haver lei dizendo que
os juros estão limitados a 12%, porque os bancos cobram o que querem. Esse é o
detalhe mais significativo. Não estou dizendo que os bancos só abusam, os bancos
cobram o que querem, em termos de juros, e não existe nenhum tipo de
fiscalização. Eles podem cobrar 12, 15 ou 50% por mês, nenhum tipo de
fiscalização existe, estão liberados os juros no Brasil, apesar de termos leis. O
56
Poder Judiciário tem deixado os bancos cobrarem o que querem, não tem nenhuma
fiscalização, não tem nenhuma limitação. O Poder Judiciário tem deixado cobrar,
no Rio Grande do Sul, menos do que nos outros estados, evidente, e aqui um
elogio, algumas câmaras, alguns juízes do Rio Grande do Sul têm criado algum
tipo de limite.
Nesse mesmo rumo, o Brasil desobedece o Pacto de São José,
principalmente o Supremo Tribunal Federal, quando permite a prisão do devedor
fiduciário, quando o Pacto de São José diz que só permitirão a prisão por
alimentos. Trata-se de uma prisão por dívida, por depositário, e o Pacto de São
José foi assinado pelo Brasil mas ainda assim o Supremo permite esse tipo de
prisão. Evidentemente, aqui temos mais do que uma lei, temos um tratado, e ainda
assim não é respeitado, certamente em nome de uma visão capitalista do direito,
qual seja, a de proteção das financeiras, porque elas mesmas é que fazem esse tipo
de contrato.
Trata-se de uma visão ideológica branca. Não temos casos de crimes de
racismo, são raros, num país racista como o nosso. Esses crimes que são trazidos
para dentro do Judiciário são raros os que têm julgamento de procedência, seja do
ponto de vista cível, seja do ponto de vista criminal. E o que é pior, encontramos
algumas decisões exatamente racistas, algumas decisões que vieram a público pelo
jornal, que representam a perspectiva de juízes que, sem dúvida, são racistas, ou
no mínimo não se apercebem da sua ideologia racista. Por exemplo, aquela que
saiu recentemente, que um negro foi chamado de macaco e o juiz disse que era
perfeitamente normal um negro ser chamado de macaco, porque isso é um dito
popular, os sem cabelos são chamados de carecas, os baixos são chamados de
anões e os negros são chamados de macacos, então seria uma coisa absolutamente
normal. Vejam que é um tipo de enfrentamento. Ele está fazendo o que ele entende
de direito humano. Se ele tiver a grandeza de entender, ele verá que quando tu
chamas alguém de careca ou alguém de anão, não se perdeu a dimensão do
humano, mas se chamas alguém de macaco, realmente perdeste a dimensão do
humano.
É o mesmo que acontece com os homossexuais, que são chamados de
bichas, onde se perde a dimensão do humano. Agora, no que diz com a questão da
família homossexual, aqui o Poder Judiciário, parece-me, pode dar alguns
exemplos, principalmente no segundo grau, onde, recentemente foi reconhecida a
sociedade, e o companheiro homossexual pode usar, então, da meação dos bens
que foram adquiridos na constância daquela união homossexual, mas a tendência
é, certamente, avançar ao ponto de, nas relações familiares de homossexualidade,
o companheiro ou a companheira homossexual herdar no lugar do cônjuge.
57
Tentarei me explicar, se não tiver descendente nem ascendente, a lei diz que herda
o cônjuge. Pois bem, ainda não temos um caso absolutamente julgado, mas há a
possibilidade de o companheiro ou companheira homossexual herdar ali e excluir
o irmão, que seria o próximo a receber a herança. Então, realmente, acho que nessa
perspectiva, há algum avanço.
Concluindo, volto à pergunta inicial: adianta lei? Não adianta lei, o que
adianta é mudar a mentalidade, é o juiz reconhecer que ele é um ser ideológico,
que ele coloca algo de seu dentro de cada processo, e a partir desse momento
poderemos construir um Poder Judiciário mais democrático.
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos,
sociais e culturais, na visão do Ministério Público
Cláudio Barros e Silva
– Creio que as posições técnicas trazidas na visão do Deputado Roque
Grazziotin, também a visão crítica do Desembargador Rui Portanova, conhecido
pelas suas posições no Tribunal, tentando de fato avançar, modificar praxes,
juntamente com outros magistrados que lutam também pela transformação do
Judiciário, refletem a necessidade de termos numa mesa posicionamentos que são
claros e refletem a visão de cada um. O Deputado Roque Grazziotin tentou refletir
a posição da visão do Legislativo, o Desembargador Rui Portanova tentou refletir
58
uma posição crítica a respeito do Judiciário, incluindo-se neles, e tentarei refletir
uma visão de Ministério Público falando de nós, digo nós porque tenho aqui cinco
colegas do Ministério Público que trabalham exatamente nesta área, na dimensão
de estudar, refletir e avançar com relação às questões dos Direitos Humanos.
Realmente me incluo dentre aqueles que acreditam que a instituição do
Ministério Público tem que ter compromissos claros com os avanços sociais, ao
contrário dos magistrados, que são inertes, e tentam avançar quando provocados,
se não são provocados não podem criar, não podem avançar. É quando têm a
possibilidade de vir num painel como este e refletir uma posição do Judiciário, que
podem ir um pouco mais adiante do que ficar esperando a provocação. Nós não,
saímos para o campo, estamos já há algum tempo trabalhando e buscando
efetivação de direitos fundamentais.
Todos sabemos que a Constituição de 1988 procurou refletir na sua
organização formal posicionamentos claros de avanço social. Não há dúvida
alguma que a constituição que temos é uma constituição que procurou resgatar a
cidadania. Faço parte de uma geração de cidadãos brasileiros que proibida de se
manifestar na faculdade. Fui proibido de militar efetivamente, embora militasse
em determinado momento histórico da minha vida, tanto nos movimentos préuniversitários quanto na própria universidade.
Tive a oportunidade de conviver com pessoas que hoje estão militando
exatamente nessas questões, tentando avançar e transformar a sociedade. Quando a
Constituição procurou formalmente destacar as questões da cidadania, ela
procurou mostrar a todos nós que era necessário fazer ou pelo menos despertar a
população brasileira com relação a algumas questões que haviam ficado no
esquecimento, ou num provocado esquecimento, pela força, até, durante mais de
25 anos.
Então, aqueles que lutaram, alguns de forma até utópica, e que ficaram
inclusive no meio do caminho nesta luta, que lutaram para que construíssemos um
Estado Democrático, que de fato fosse de direito e que a cidadania fosse plena,
eles sonhavam na efetivação de um texto que pudesse avançar e ele avançou. Hoje,
se temos juízes discutindo quando julgam no segundo grau a questão de uma
relação homossexual é porque se permite chegar ao judiciário uma demanda como
essa. Há 12 anos sequer os juízes teriam a oportunidade de apreciar isso, pois a
inicial em relação a essa sociedade de fato não seria recebida.
O que estamos tendo é a oportunidade de avançar no nosso sistema
judiciário com relação às questões que passamos a discutir depois que tivemos a
oportunidade de também avançar em relação aos Direitos Humanos e sociais.
Buscou-se avanços que efetivassem transformações.
59
O Ministério Público sabe que quando o legislador formatou a
Constituição, determinando as competências de cada um dos poderes do Estado,
das instituições estatais, determinou que a instituição do Ministério Público não
estaria mais vinculada aos poderes do Estado, mas ao seu lado para lhe controlar.
O legislador quis que a sociedade tivesse um caminho para a efetivação de
direitos.
Mauro Capeletti, um dos maiores pensadores de transformação de avanço
que estudou com profundidade o acesso à Justiça, em determinada oportunidade,
disse que víamos o direito sem conseguir perceber as três ondas que se colocavam
para todos nós, e que era necessário, naquele momento histórico, metade da
década de 80, que conseguíssemos fazer essa identificação.
Dizia Capeletti, que na primeira onda éramos pobres não no sentido
econômico mas no sentido ético. Para nós valia, em determinado momento, a Lei
de Gerson, levar vantagem em tudo. Passamos a ter isso como real e efetivo sem
nunca criticar tal lei. Para nós também valia a Lei do Robertão, do dando que se
recebe. O Ministério Público Brasileiro, há quatro ou cinco anos, tentou investigar
a compra de votos feita para efeitos de aprovação de uma emenda constitucional
que determinava a reeleição do presidente. Isso foi identificado mas foi barrado na
investigação, não chegando sequer a ser discutido no Judiciário. O é dando que se
recebe que nos leva a oportunidades como essa.
A sociedade brasileira, embora a identificação das pessoas, dos
deputado que não voltaram ao parlamento, não chegou a ter claro o
reconhecimento disso em uma sentença. São situações claras que passamos a
aceitar de forma tácita.
Hoje, pelos avanços da cidadania e maturidade do povo brasileiro, não
se permite mais que essas questões fiquem esquecidas ou restritas a livros. Temos
que avançar e transformar. Estamos, de fato, caminhando para a efetivação destes
direitos. O Capeletti disse que somos pobres moralmente e também com relação às
informações. Talvez as informações sejam justamente o grande avanço que
teremos no terceiro milênio. Quem detiver o conhecimento e a informação não
será aquele que exercerá o poder formal mas o poder do conhecimento. Aliás,
Humberto Eco já dizia que quem detém o conhecimento detém o poder e que
quem não detém o conhecimento será escravo daquele que o detiver.
Esta é a grande questão que estamos passando neste momento, segundo
Mauro Capeletti, que disse tudo isso há 15 ou 20 anos em relação a essa primeira
onda que diz respeito à pobreza. Mas, a nossa pobreza refletia, de forma clara,
naquela década, uma situação que era mundial, ou seja, sabíamos que tínhamos os
60
direitos massificados da sociedade, assim como os direitos dos consumidores; das
pessoas portadoras de deficiência; do meio ambiente; direitos referentes às pessoas
que não querem a afirmação da improbidade administrativa e direito com relação
ao mercado de capitais, todos eles igualmente não estavam formalmente
regulamentados.
Passamos a identificar tudo isso e ainda o direito das mulheres; das
minorias – índios, pretos, prostitutas, homossexuais –; etc, enfim direitos que
reconhecíamos mas não tínhamos sequer uma legislação para tentar proteger.
A partir do momento em que passamos a identificar isso, passamos a ter
necessidade de identificar uma segunda onda. Essa era a onda em que se
identificava a necessidade da formalização dos direitos. Não adianta nada dizer
que temos leis, normas constitucionais, e não cumpri-las ou desprezá-las. Quando
tivermos a cultura da obediência à lei ou de que uma decisão judicial tenha que ser
efetivamente cumprida e que se tenha posicionamento crítico, fundamentais para
os avanços sociais, teremos isso como norma para todos nós.
A partir de 1985, o nosso país passa a ter norma constitucional que definiu
direitos dos portadores de deficiência; dos consumidores; do meio ambiente; da
infância e da juventude. Todos esses direitos são supraindividuais, estando acima
dos direitos meramente individuais. Quando digo isso o faço com a clara
convicção de que a nós, que saímos de uma faculdade de direito, foi ensinado
resolver problemas puramente individuais.
O Ministério Público já começou a sair dessa praxe que nos foi ensinada.
A magistratura é esperta em resolver um conflito de interesses individuais. Ou
seja, eu consigo solucionar um conflito que diga respeito a um processo de
execução. Para isso sequer juiz era necessário porque é a força do poder
econômico na mão e na caneta de um juiz. Mas isso se resolve no processo. Agora,
a solução de questões relativas ao Sistema Único de Saúde; ao internamento em
hospitais psiquiátricos; à Febem; ao consumidor; ao meio ambiente etc. não dizem
respeito a interesses individuais mas de uma comunidade inteira, a pessoas que
sequer conhecemos. O resultado desse processo se dará em benefício da
sociedade, do cidadão. Não tivemos ainda uma discussão clara e um avanço em
relação a algumas questões.
Mais do que isso, para evitar a discussão de mérito dessas questões, que
dizem respeito aos direitos de todos nós – por serem Direitos Humanos – ficamos
limitando, por vezes, a discussão da questão formal, puramente processual que
discute a legitimidade ou não de o Ministério Público entrar com essa demanda.
Com isso, terminamos com um processo que discute, por vezes, interesses de
milhões de pessoas.
61
Por que não se quer fazer isso? Porque não se quer discutir isso. Talvez
para se manter uma situação de discriminação, de exclusão e de manutenção de
elites em nosso país. Quando vemos uma regra que diz que o Ministério Público
tutela o interesse da sociedade e é o defensor deles, pela norma constitucional,
sabemos que ele não é o único, ele não tem legitimação exclusiva para isso.
Também o são o Legislativo, o executivo, o Judiciário, os entes estatais, fundações
e a sociedade organizada, aqueles que podem, eventualmente, promover
demandas. Mas são poucos que promovem ações civis públicas embora a lei
permita que se possa eventualmente promover ação civil pública. Quem faz isso,
em 98% das demandas civis públicas postas ao Judiciário, é o Ministério Público.
Temos uma lei, de ação civil pública, de avanço social fundamental, que
contém uma regra que determina que o Ministério Público, como órgão estatal
tutelando interesses da sociedade, está isento de pagar custas processuais. Ele tem
isenção para recorrer sem sofrer os ônus da sucumbência porque o direito material
não é seu mas das pessoas que recebem o benefício ou prejuízo de uma decisão.
Quem tem vantagem com a decisão não é o Ministério Público e sim a sociedade.
É imputado ao Ministério Público, eventualmente, a sucumbência
exatamente para não permitir que ele demande nestas questões. Isso é uma
situação de criação contra legem em prejuízo da sociedade claramente no sentido
de manter uma estrutura de opressão, discriminação e exclusão. Lutamos,
judicialmente, para denunciar exatamente isso que não diz respeito ao Ministério
Público. Se não tivermos legitimidade não promovemos a ação, mas a sociedade
também não terá tutela. Ou seja, se somos o caminho da tutela e me impedem de
tutelar porque não tenho dinheiro para pagar e não tenho que ser condenado – o
Estado que o seja mas não a instituição sob o argumento de que tem orçamento
próprio – mas convenhamos, a lei diz que o Ministério Público está isento e nós
estamos negando tutela, negando o acesso à Justiça, negando a implementação de
direitos fundamentais.
Mas isso tudo quando se passou a trabalhar exatamente essas novas
questões. A grande diferença talvez esteja aí, quando a lei passou a definir direitos
fundamentais e o Ministério Público começou a alcançar esses direitos, ou seja,
tentar implementá-los em juízo.
A terceira onda vai além, diz que não adianta reconhecermos os direitos se
não buscarmos sua efetivação. Os direitos não devem mais ser vistos pela ótica
dos seus produtores, sejam eles juízes, promotores, advogados, doutrinadores,
professores, enfim aqueles que fazem o direito para a manutenção, mas por todos
nós como direito dos seus consumidores, sob a lógica daqueles que necessitam da
sua implementação, que é o cidadão, a sociedade, que é aquele que quer que o seu
62
direito individual e humano se inclua nessa proposta do Deputado Roque
Grazziotin em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais. Ele deve ter
essa amplitude e ser reconhecido. Na medida em que o direito deve ser do
consumidor e não mais do produtor temos que ter formas de fazer com que o
direito seja efetivo. Hoje o direito é efetivo para uma elite brasileira. São poucas as
pessoas que tem acesso à Justiça, que tem condições de implementar os seus
direitos e que sequer sabem ou conhecem plenamente quais são.
Se a grande maioria da população brasileira não tem acesso à Justiça, ela
está excluída da possibilidade de efetivação dos seus direitos. Mais do que isso, se
reconhecemos que 50 milhões de brasileiros estão naquela faixa que ganha menos
do que 1 (um) dólar/dia, ou se tem emprego formal, ou se não o tem, veremos que
essas pessoas estão fora de uma estrutura do direito que é feito para a manutenção
exatamente daqueles que estão dentro do direito. Temos que interpretar
exatamente as questões neste sentido. Quando Capeletti fala dessa questão ele
procura identificar isso para que possamos refletir a respeito.
A norma Constitucional, em seu artigo 98, impôs que tivéssemos, em cada
Estado brasileiro, aquilo que já se experimentava no Rio Grande do Sul antes da
lei ordinária feita no Brasil, com relação aos Juizados Especiais Civis. Ou seja, a
matéria civil, que trabalha basicamente com o patrimônio, nós nos
preocupávamos. Sobre essas nós formamos os nossos juizados especiais. Sobre o
criminal, ficamos discutindo na Câmara dos Deputados sobre sua formalização.
Então, vamos fazer a lei: aí então o Judiciário brigava para manter sua jurisdição,
o Ministério Público brigava para manter a titularidade da ação penal, a polícia
brigava para manter o inquérito policial. Passamos quatro ou cinco anos
discutindo no Congresso Nacional até que se chegou a uma lei que criava os
Juizados Especiais Criminais e que é claramente o neoliberalismo no direito penal.
Tudo se resolve por dinheiro, se tiver dinheiro não responde processo, se não tiver
dinheiro será processado.
Então esta é a regra prevista na norma constitucional com relação aos
Juizados Especiais. Mas, quando falamos na terceira onda temos que achar formas
de solução de conflitos que, por vezes, sequer passa pelo juiz. Tínhamos que ter
oportunidades de, em quarteirões, em bairros, em comunidades, ou em cidades
pequenas, de permitir que aquelas pessoas que servem à comunidade, líderes
comunitários, possam resolver os conflitos normais da comunidade sem a
participação do judiciário, do Ministério Público, deixando que aqueles que
trabalham com direito formal trabalhem nas questões maiores, como por exemplo
os problemas que envolvem os consumidores, os problema da infância e da
juventude, questões que dizem respeito aos interesses do meio ambiente e outros.
63
Creio que este é o grande caminho rumo à solução, que está previsto na
terceira onda do Capeletti. Mas, com esse recado que foi dado em meados da
década de 80, passamos então, com os compromissos constitucionais impostos ao
Ministério Público, a organizar a instituição e a ter, por exemplo, promotores que
não trabalham com juízes. Temos promotorias que trabalham com a comunidade.
Não temos um juiz do consumidor, mas quatro promotores em Porto
Alegre que são os promotores do consumidor. Não temos um juiz de defesa dos
direitos do cidadão e dos Direitos Humanos, mas quatro promotores, que aqui
estão, que trabalham com essa matéria. Não temos um juiz do meio ambiente, mas
quatro promotores que trabalham com as questões que envolvem essa questão.
Não temos um juiz que trabalhe a matéria do crime organizado, mas sete
promotores que trabalham com ele. Assim por diante.
Temos procurado trabalhar assim. Esses são os colegas que trabalham
diretamente com a comunidade e que levam as demandas perante o juiz, embora
ele seja especializado na matéria. Proponho que tivéssemos juízes que estudassem
a matéria dos direitos não individuais e sim supraindividuais. Ou seja, teríamos um
juiz expert em conflito coletivo e difuso, que saberia o significado de cada um dos
atos que tem repercussão geral e não individual.
Sendo assim teríamos, por exemplo, um juiz expert em crime organizado,
que tem um resultado que agride a própria sociedade. Quando trabalhamos a
improbidade administrativa, seja na área criminal ou na civil, e temos exemplos
disso em nosso Estado, passamos a ter um resultado efetivo. Chegamos a ter uma
câmara especializada, no Tribunal, para analisar os crimes praticados por
prefeitos. Passamos a estudar a legislação de forma clara e específica com relação
a algumas situações. Exemplo disso foi que o Ministério Público se especializou
na matéria. Com isso, a sociedade passou a acreditar na punição dos homens
públicos, como prefeitos que há muito tempo praticavam delitos e que hoje estão
foragidos. Passamos a dar respostas para a sociedade.
Teríamos mais avanços se tivéssemos juízes especializados em
improbidade administrativa, civil; juízes trabalhando com questões do meio
ambiente, direito do consumidor etc. A especialização nestas matérias permitiria
que os Direitos Humanos fossem implementados exatamente nos resultados que se
buscaria em demandas colocadas em juízo.
Não tenho nenhuma dúvida que para o Ministério Público avançar nas
questões dos Direitos Humanos temos que, de fato, querer e ter isso como
prioridade e como proposta de ação. Se o Ministério Público não quiser fazer isso
pode ficar como não sendo prioritário na ação. Sendo assim, teremos muitas outras
64
demandas que poderão ser prioritárias e que, exatamente, estarão permitindo que
se mantenha uma sociedade em que não se possa discutir questões, por exemplo,
de quilombos no Estado, sobre as quais temos colegas trabalhando. Temos 36
quilombos identificados. Temos colegas trabalhando diretamente na questão
indígena, não só do Ministério Público Estadual como também do Federal. Alguns
colegas trabalham com questões relativas à saúde, à educação.
Segunda-feira, estaremos aproximando os Município do Estado na
tentativa de resolvermos a questão do transporte escolar, que é obrigação do
Estado, por termo de ajustamento.
Se não tivermos isso como prioridade, poderemos trabalhar em um
processo em que a intervenção – por exemplo em um processo de usucapião, onde
as partes são legítimas e estão bem representadas, tem advogadas etc. – do
Ministério Público se daria apenas por um parecer no processo, sem reflexo maior
com relação à sentença. Ou teremos a opção. Ou nós vamos ter a opção para
afirmação da cidadania ou dos Direitos Humanos ou teremos a opção de mais uma
vez passarmos – e digo isso porque fui reconduzido, pelo voto dos meus colegas –
porque isso passou a ser prioridade dentro do Ministério Público.
Há um reconhecimento da nossa instituição no sentido de que nós e não o
Procurador quer isso. A instituição quer avançar e, de fato, transformar. O
Ministério Público tem sido uma instituição de ponta neste país, o tem sido
reconhecido pela sociedade. Hoje todo mundo sabe o que faz o Ministério Público.
A instituição, com todos os defeitos que possa ter, principalmente os individuais –
porque ela é o resultado de todos nós – é reconhecida pela sociedade.
Coloco-me à disposição para um debate sobre a instituição, sobre nós, e o
que podemos fazer para transformar uma sociedade que precisa, de fato, de graves
transformações sociais.
65
Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul
A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos,
sociais e culturais, na visão do Executivo
Mozar Artur Dietrich
– Discutimos, na Secretaria, a partir do convite que nos foi formulado,
para falarmos a respeito da dimensão humana e sua dignidade com relação aos
direitos humanos sociais, econômicos e culturais, e nos perguntamos, por que não
falávamos dos direitos políticos e civis.
O Governo do Estado tem como uma questão muito cara a questão dos
direitos humanos políticos e civis.
É a partir da afirmação dos direitos civis e políticos, bem mais do que
simples garantias individuais do Estado, direitos muito mais amplos de
participação e de controle social, assim como a partir da garantia da efetivação
desses direitos, que o Estado dá condições para a sociedade exercer tais direitos.
Sendo assim conseguiremos caminhar em direção a garantia dos direitos sociais,
econômicos e culturais.
Nosso Governo tem como concepção muito cara, e princípio básico de toda
66
a nossa ação, a construção da cidadania e a garantia dos Direitos Humanos de toda
população. Vivemos, como já foi dito aqui, em uma sociedade com grandes
distorções e problema. Avançamos muito como humanidade, como nação, na
garantia dos direito, pelo menos em leis, mas muitas conquistas que foram obtidas
por nós, pela luta das instituições que aqui estão representadas e outras, estão se
perdendo, em função de na última década o nosso país ter se subordinado a uma
globalização econômica que traz no seu rastro transformações profundas nos
processos produtivos da sociedade e no papel do Estado.
Toda essa situação tem provocado uma perda gradativa e crescente dos
direitos sociais, com a deterioração dos serviços público e uma precarização nas
relações de trabalho, com desemprego etc. Tudo isso vem agravando, dia-a-dia, a
exclusão social. O contingente de excluído em nossa sociedade é crescente,
resultado deste processo econômico global que privilegia o capital em detrimento
da vida humana.
Entendemos que as ações de Governo que executamos devam ser
prioritariamente voltadas para aqueles segmentos que estão excluídos social,
econômica e culturalmente ou que sequer, até hoje, chegaram a ser incluídos para,
então, serem excluídos.
Para a caminhada em direção a esse objetivo, evidentemente, somos
contrários à concepção de um Estado mínimo, mas, também, não somos
defensores de um Estado total e absoluto, pois pensamos que o Estado deve ter o
tamanho necessário para desenvolver as ações que lhe cabe.
Não consideramos, também, que o Estado seja o único elemento
alavancador e gestor de processos, pois entendemos que a sociedade deve
trabalhar solidariamente. Hoje pela manhã, durante uma palestra, o Professor José
Carlos Moreira falou na questão do direito da colaboração democrática, que, para
nós, é uma concepção bastante cara, pois entendemos que o poder está, de fato,
espalhado pela sociedade em milhares de instâncias, não somente nas do Estado,
mas em coletivas, comunitárias, sindicais, empresariais e nos movimentos sociais,
e que o Estado deve, sim, garantir a participação de todas essas instâncias em
todos os processos decisórios da nossa sociedade.
Portanto, partimos da concepção da soberania popular, envolvendo toda a
sociedade nesse processo de colaboração democrática, como foi referido, e
pensamos que esse é o caminho para se conceber e construir uma nova sociedade
participativa e democrática, que tenha em suas próprias mãos, e não nos gabinetes,
o poder de decidir em todos os níveis, principalmente no econômico.
Não parto de uma visão economicista na qual a sociedade se insira, girando
em torno do econômico, pois entendemos que a sociedade tem muitos outros
67
aspectos, mas não podemos negar a importância e a força da economia na nossa
sociedade.
Nós, do Governo do Estado, também não entendemos que esse projeto de
sociedade seja uma concepção exclusiva nossa; ao contrário, como já foi referido
hoje de manhã, há toda uma luta histórica da participação popular na construção
dos Direitos Humanos, e pensamos que estamos no Governo exatamente para
levar adiante esse projeto, que tem sido gestado há séculos pela humanidade na
busca da soberania do povo e que está tão bem consubstanciado na nossa
Constituição Federal, dita cidadã porque busca a participação popular, bem como
na Constituição Estadual e nos pactos internacionais, que exigem a participação
das comunidades e da sociedade em geral nas decisões acerca das políticas
públicas que os Governos devem desenvolver para a sociedade como um todo.
Portanto, entendemos que estamos fazendo nada mais do que se levar
adiante um projeto que a humanidade há muitos séculos já está criando.
Mais concretamente, quando falamos na dimensão humana e na
consolidação dos direitos econômicos, sociais e culturais, temos basicamente
quatro dimensões, que são um ponto de partida para alavancar as nossas ações.
A primeira dimensão, como não poderia deixar de ser, é a participação
popular. Entendemos que o controle social e a participação do povo são a base do
Governo democrático e popular do Estado. O Orçamento Participativo é, para nós,
o maior instrumento de gestão pública do Governo e de uma participação direta e
universal de toda a sociedade, para se debater e decidir acerca de todas as grandes
questões que envolvem o Estado, desde a sua receita orçamentária, a matriz
tributária – insistimos no sentido de continuar a fazer essa discussão com a
sociedade –, o planejamento e o controle dos investimentos até a prestação de
contas.
Estamos, agora, em pleno processo do Orçamento Participativo em todo o
Estado, sendo que, mais uma vez, centenas de assembléias estão acontecendo e
vão ocorrer durante todo este semestre, onde reunir-se-ão centenas de milhares de
pessoas a exemplo dos anos anteriores. Pelo que temos visto nos últimos dias, está
crescendo cada vez mais a participação popular, pois a população, de fato, está
descobrindo, por meio do Orçamento Participativo, um instrumento muito forte
para exercer a cidadania e o controle e para tomar decisões.
Além do Orçamento Participativo, outros instrumentos muito importantes
para a participação e o controle social são as conferências estaduais, que são muito
mais do que meios simples de consulta popular, proporcionando um debate amplo
e profundo na nossa sociedade, que envolve determinados segmentos e políticas
sociais. No nosso entender, essas são instâncias, também, deliberam políticas.
68
Temos a absoluta certeza de que todas as ações que o Governo do Estado
está desenvolvendo e que todos os seus programas estão legitimados em
conferências estaduais, não só no Orçamento Participativo, que já foram
realizadas. Houve várias nesses dois anos de Governo, como a Conferência da
Assistência Social da Criança e do Adolescente, a Conferência do Meio Ambiente,
a Conferência da Segurança e a Constituinte Escolar.
Para este ano, está prevista a realização de várias conferências. Teremos a
1ª Conferência Estadual da Comunidade Negra, um momento importante e
histórico do nosso Estado, a 1ª Conferência Estadual do Idoso, a 1ª Conferência
Estadual dos Direitos do Consumidor e a 4ª Conferência da Criança e do
Adolescente.
Haverá a 1ª Conferência Crianças e Adolescentes do Estado, que também
terá o apoio do nosso Governo, pois as crianças e os adolescentes reclamam
sempre durante os encontros que as conferências que lhes dizem respeito são, de
fato, de adultos, já que as conversas são muito complicadas. Então, o Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Ruas e outras entidades, com o apoio do
Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – Cedica – e do
Governo do Estado, já estão preparando essa Conferência, que será realizada com
a participação das crianças e dos adolescentes.
O 3º Fórum Estadual dos Povos Indígenas acontecerá neste ano. Em 1999
houve o 2º Fórum, que trabalhou na reestruturação do Conselho e na definição das
políticas do Governo do Estado com relação à comunidade indígena.
Um outro elemento importante da participação e do controle social dessa
primeira dimensão, para a garantia e a construção dos direitos econômico-sociais,
são os conselhos estaduais de direitos. Desde o início do Governo, temos
reafirmado a sua importância e temos incentivado, reestruturado e apoiado todos
esses conselhos, que, atualmente, estão num processo crescente e bastante
vigoroso de elaboração, de discussão e de deliberação de políticas de ação, de
fiscalização, de cobrança e de instigação do Governo. Entendemos que esses
órgãos são supra-estatais, já que têm a participação de representantes do Governo
do Estado e da sociedade civil.
Entendemos que esses conselhos também são instâncias de participação
legítimas da sociedade. Temos o Conselho Estadual da Comunidade Negra, dos
Povos Indígenas, da Criança e do Adolescente, do Idoso, o Conselho de
Assistência Social, o Conselho Estadual de Educação, o Conselho Estadual de
Saúde e vários outros.
O Governo trabalha no sentido de dar garantia para que essas instâncias, de
69
fato, sejam de envolvimento e de articulação desses segmentos sociais e de
deliberação.
Trouxe, para ser distribuído, um caderno do Orçamento Participativo, que
contém todos os programas e ações que estão sendo votados pelas suas
assembléias no nosso Estado. São mais de cem programas e ações, todos, como já
disse, discutidos e deliberados por todas essas instâncias, e a sociedade, como um
todo, tem a oportunidade de conhecer o que foi decidido, por exemplo, pelo
Conselho Estadual da Comunidade Negra e de, na sua comunidade, votar com
relação a esse programa, propor alterações ou ainda um outro projeto. Esse
caderno é muito interessante porque contém, de forma resumida, praticamente
todas as ações e programas, o que nos dá uma idéia do conjunto da política que o
Governo do Estado desenvolve para todas as suas áreas. Para quem ainda não o
conhece, o caderno está à disposição.
Uma segunda dimensão, que para nós também é muito cara, quando
pensamos na consolidação da dignidade humana e dos Direitos Humanos, diz
respeito ao fato de que partimos da concepção do ser humano como prioridade.
Combatemos a lógica neoliberal, que privilegia o capital e os grandes
investimentos e investidores, porque entendemos que o ser humano deve ser o
centro, o objetivo e o ponto de partida de toda a idéia do Estado, e essa também
não é uma concepção nossa, mas da própria Constituição e dos pactos
internacionais.
Mas, infelizmente, na nossa sociedade neoliberal temos que chegar ao
ridículo de todo o dia reafirmar isso, quando achamos que devemos defender
pequenos projetos de economia popular e solidária em contrapartida a grandes
investimentos de milhões de reais, que outros Governos insistem em fazer.
Pensamos que o ser humano, que muitas vezes tem pequenos projetos, dos quais
vive, deve ser a prioridade.
Uma terceira dimensão, de vital importância para a execução de um projeto
de sociedade como esse, é a valorização local. Não somos contrários à
globalização, mas somos críticos com relação à globalização econômica da forma
como está sendo desenvolvida, porque ela vem, de fato, destruindo as pequenas
globalizações locais, que devem ser, ao contrário, fortalecidas.
Trabalhamos nesse sentido a partir, também, das decisões e das instâncias
da sociedade, pois devemos privilegiar as matrizes produtivas locais. Em termos
de projetos maiores, já temos várias ações com relação, por exemplo, ao Vale do
Sapateiro, ao setor moveleiro, mas, mais do que isso, o nosso Estado é muito rico
culturalmente, pois abriga inúmeras matrizes produtivas próprias, que se
constituíram historicamente há décadas ou séculos e que não se podem perder,
70
devendo ser valorizadas. A não-valorização dessas economias é uma agressão a
essas pessoas. Portanto, temos que ter muito cuidado na proteção das matrizes
produtivas locais do nosso Estado.
Uma quarta dimensão muito importante com relação à concepção dos
Direitos Humanos é exatamente o aumento dos investimentos nas áreas sociais.
Estamos trabalhando dentro do Governo do Estado no sentido de garantir maiores
recursos para estas áreas, como a da saúde, da educação, da assistência social e da
habitação, retomando-se as atividades da Cohab.
Também queremos assegurar investimentos em políticas de meio ambiente,
de geração de empregos e de renda, e tem sido nessas assembléias do Orçamento
Participativo, que já estão acontecendo no interior do Estado, que a população está
elegendo a geração de emprego e renda como uma das prioridades das ações que o
Estado deve desenvolver.
Trouxe para os Senhores, também, um caderno contendo o resumo das
ações que o Executivo estadual desenvolveu nos primeiros dois anos, que são
resultado de um esforço do Governo em sistematizar as suas ações. No ano
passado, quando se procurou e lutou para a elaboração do relatório das ONGs para
a ONU sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, o Governo do Estado do
Rio Grande do Sul teve a coragem de apresentar também o seu relatório, mas
como era um relatório das ONGs, ele não foi, evidentemente, incluído nesta
publicação que agora vocês receberam através da Comissão de Direitos Humanos.
Mas, mesmo assim, insistimos em fazer a publicação porque precisamos ter
coragem de mostrar à sociedade o que estamos fazendo, até para podermos receber
críticas e sugestões. Durante a Conferência Estadual dos Direitos Humanos do ano
passado foi apresentado um relatório bem completo.
Inicialmente seriam essas as questões que gostaria de fazer, reafirmando
aquilo que já disse no início desta reunião, no sentido de que entendemos que as
políticas do Governo do Estado do Rio Grande do Sul devem garantir este espaço
de participação, de articulação e controle da sociedade civil. A sociedade tem o
conhecimento e as condições necessárias para propor políticas e ações, fiscalizálas e lutar para que sejam efetivadas.
Muito obrigado.
71
Diretor do Departamento de Cidadania da Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência
Social/RS
A dimensão humana e a consolidação dos direitos econômicos,
sociais e culturais, na visão de uma Organização Não-Governamental
Valdevir Both
– Farei uma reflexão do ponto de vista da sociedade civil, mais
especificamente do Movimento Nacional de Direitos Humanos do Estado.
Quando falamos em Direitos Humanos, falamos em papéis, ou seja, em
alguém que deve garantir e promover esses direitos, e para isso temos aqui dois
atores fundamentais: o Estado e a sociedade civil, principalmente a partir da
72
conferência de Viena realizada em 1993.
Segundo Vitório Trevisol, vivemos uma emergência da sociedade civil, um
fenômeno político muito recente, cada vez mais fortalecido, mas ainda pouco
conhecido, que é o trabalho da sociedade civil. Conhecida como o fenômeno
ONGs, ou Organizações Não-Governamentais, são os novos e mais criativos
atores políticos da atualidade, tanto no âmbito interno como externo. Entretanto, o
tema na sociedade civil é histórico, e já foi abordado por Aristóteles, Hobbes,
Locke, Kant e Rousseau. Mais tarde, o tema foi bem aprofundado por Hegel,
Torqueville, Marx e, principalmente, Gramsci.
Na atualidade, principalmente, depois dos anos 80 e da grandes ditaduras
no mundo, tivemos a volta reinventada do conceito de sociedade civil para
representar e entender o significado político e social de uma série de
acontecimentos novos e políticos que emergiam tanto nos países do Oeste,
América Latina e Europa. Temos, portanto, um fenômeno novo que começa a ser
tematizado, principalmente, a partir de Gramsci, que é a sociedade civil, e que, na
verdade, vai contemplar esses novos fenômenos.
Temos também expressões políticas diferentes como os movimentos pela
democracia nos países da América Latina, a rede de levantes populares no Leste
Europeu que desejava o fim do socialismo real, também os movimentos sociais, a
criação e o surgimento de milhares de ONGs que representam o fortalecimento de
um setor, até então, reprimido e negligenciado pela modernidade.
Em 1839, tivemos a formação da primeira ONG e, em 1986, contávamos
com mais de 4.649 ONGs, organizações que aos poucos ganham formato de rede,
se ampliam, adquirem um caráter internacional, dando visibilidade às lutas sociais.
Podemos dizer que essas ONGs e os movimentos sociais, conforme a tradição
teórica, distinta entre eles, aprimoram uma distinção proposta por Gramsci entre
Estado, mercado e sociedade civil. Essa última ficou conhecida como terceiro
setor, a partir do qual os cidadãos arregimentariam recursos materiais e simbólicos
para implementarem suas lutas em defesa das liberdades civis e políticas dos
Direitos Humanos, do meio ambiente, na promoção da cidadania, do
desenvolvimento sustentável etc. Portanto, conforme Souza Santos, a sociedade
civil é um amplo, heterogêneo e complexo número de movimentos, entidades
iniciativas civis, que tomam forma de rede, coalizões e alianças não-estatais e nãoeconômicas, que ultrapassam os limites geopolíticos dos estados nacionais, com
relativa autonomia em relação aos governos, e se ligam às necessidades locais,
com os interesses globais, no intuito de preservar e realizar valores, princípios ou
interesses públicos.
Ou seja, a sociedade civil lança-se para além das fronteiras para tematizar
73
globalmente novas problemáticas que os Estados, muitas vezes, por limitações,
não respondem ou até se abstém de fazê-lo. Conforme Habermas, a sociedade civil
capta o eco dos problemas sociais que vão ressoar nas esferas privadas,
condensando e transmitindo-os, a seguir, para a esfera pública política, isto é,
dando voz às demandas sociais. Há, então, um movimento da sociedade civil de
alavancar, explicitar e legitimar, conforme vimos pela manhã, os problemas que,
depois, serão levados para a esfera pública.
A luta recente pelos Direitos Humanos no Brasil tematiza este aspecto, ou
seja, a importância da sociedade civil na construção dos Direitos Humanos.
Tivemos um Programa Nacional de Direitos Humanos que já pecou na sua
essência, ao enfatizar os direitos apenas civis e políticos, esquecendo-se da
universalidade, da indivisibilidade e interdependência, tão proclamados na
Conferência de Viena. Além disso, não conseguiu sequer garantir as limitadas
ações a que se propôs, e sequer entregou o seu relatório oficial para a ONU.
Diante disso, a sociedade civil brasileira cumpriu função fundamental ao
denunciar o limite do Estado e o descumprimento do seu papel primordial,
apresentando um relatório paralelo, hoje referência para a ONU.
Cumpre à sociedade civil não assumir as funções do Estado, muito menos
ser a calibradora da pressão social, como muitos dizem, mas manter viva a
consciência dos Direitos Humanos da sociedade, o que significa organizar a
cidadania no sentido de capacitá-la para exigir os seus direitos, a partir da
construção de espaços públicos que ensejem a formação e o controle social de
políticas públicas. Deste modo, estará efetivando o seu importante papel na
construção e implementação dos Direitos Humanos, conforme a Declaração de
Viena, que lhe confere papel fundamental no esforço conjunto entre governo e
sociedade civil.
Conforme o § 25, a Conferência Mundial de Direitos Humanos reconhece
a importante função que cumprem as organizações não-governamentais, na
promoção de todos os Direitos Humanos e nas atividades humanitárias em nível
nacional, regional e internacional. A Conferência aprecia a contribuição que essas
organizações trazem à tarefa de aumentar o interesse público nas questões de
Direitos Humanos. As atividades de ensino, capacitação e investigação nesse
campo e a promoção e proteção dos Direitos Humanos e das liberdades
fundamentais. Apesar de reconhecer a responsabilidade primordial no que se
refere à adoção de normas correspondentes aos Estados, a Conferência também
aprecia a contribuição que as organizações não-governamentais trazem a esse
processo.
74
A Conferência insiste na importância de que prossigam o diálogo e a
cooperação entre governos e organizações não-governamentais. As organizações
não-governamentais e os membros dessas organizações, que verdadeiramente se
ocupam na esfera dos Direitos Humanos, devem gozar dos direitos e das
liberdades reconhecidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e da
proteção das leis nacionais. Esses direitos e liberdades não podem ser exercidos de
forma contrária aos propósitos e princípios das Nações Unidas. As organizações
não-governamentais devem ser donas de realizar suas atividades de Direitos
Humanos, sem ingerências no marco da legislação nacional e da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Aqui no Estado, a partir dessa perspectiva, o desafio atual significa
intensificar o processo de construção do Plano Estadual e do Conselho Estadual de
Direitos Humanos, já iniciado pelo conjunto da sociedade e governo, através das
conferências. Isso significa uma luta conjunta entre Governo e sociedade civil,
sem a troca de papéis, na promoção dos Direitos Humanos, a partir de ações
estruturais, capazes de garantir a todos os Direitos Humanos, processo que, como
dissemos pela manhã, requer maior aproximação entre os diferentes poderes aqui
representados e a sociedade civil, principalmente, entre o Ministério Público e o
Judiciário. Muito obrigado.
Coordenador Estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos/RS
Debate
Presidente Roque Grazziotin – Pergunto aos presentes se gostariam de fazer
alguma abordagem ou questionamento sobre este painel que foi colocado a partir
de diversos ângulos do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público, do
Executivo e da Organização Civil sobre o tema da Dimensão humana na
consolidação de direitos econômicos, sociais e culturais, que é um grande desafio
75
para a construção de uma nova sociedade.
Essa dimensão vai-se tornando cada vez mais crítica, na medida em que
vamos nos desempermeabilizando e, ao mesmo tempo, nos questionando a
respeito do que nos cerca. Isso vai-se somando às nossas utopias para a construção
de uma sociedade que seja possível, porque em muitas ocasiões, por intermédio da
mídia ou de outros órgãos, ou de filosofias que vão sendo impostas, parece que
não conseguimos sair de um mercantilismo, de um consumismo e não
encontramos mais alternativas. O fato de estarmos aqui demonstra que é possível
construirmos algo diferente para a conquista de uma sociedade humana mais justa
e mais fraterna.
Concedo a palavra ao Sr. Dorvalino Filippini, da Fundação de
Atendimento ao Deficiente e ao Superdotado do Estado do Rio Grande do Sul –
Faders.
Sr. Dorvalino Filippini – Farei um comentário e espero que possamos encontrar
uma forma de enquadrá-lo nesta discussão. Trabalho com pessoas portadoras de
deficiências, como surdez, cegueira e outras, e de altas habilidades. A deficiência
que é mais discriminada em toda a sociedade é a mental. Percebi que essa
discriminação maior parte dos meios de comunicação. O jornal Zero Hora, quando
foi decretada a regulamentação da Lei nº 7.853, noticiou o fato sem fazer constar o
número da lei, a data e utilizou o termo: deficiente físico.
Diante disso, entramos em contato com a empresa responsável e
solicitamos que ao publicarem uma matéria o fizessem corretamente, porque foram
vários os telefonemas para a Prefeitura e para o Estado querendo esclarecimentos
sobre a referida lei. Além do mais, alertamos que estavam utilizando a
terminologia incorreta, porque ao referirem-se a deficiente físico, estavam
determinando um tipo específico de deficiência, e que o termo correto é Pessoa
Portadora de Deficiência. Obtivemos a resposta de que somos um segmento muito
pequeno e que não temos o direito de nos manifestar quanto ao termo com o qual
queremos ser referidos.
O Correio do Povo também utilizou a expressão: deficiente físico e,
quando reclamei, alegaram que o termo era muito comprido e que não o
utilizariam por que não caberia na reportagem.
No Fantástico, contaram o caso de uma menina que ficou de cadeira de
rodas e a trataram como se fosse uma criminosa, utilizando o termo: Condenada a
viver confinada em uma cadeira de rodas. Não sei como faríamos para inverter
esse quadro. A mídia tem grande culpa, porque, quando apontamos a terminologia
correta, se acham no direito de dizer que não temos o direito de escolher o termo
76
com o qual queremos ser referidos. Não sei qual a lógica nisso.
Quando uma pessoa comum – não uma pessoa portadora de deficiência –
vai comprar um carro, conta com financiamento, mas se preciso fazer um
financiamento para adquirir uma cadeira de rodas ou um aparelho ortopédico, eles
me negam. Por quê? Muito obrigado.
Presidente Roque Grazziotin – Concedo a palavra ao Representante do
Judiciário, Dr. Rui Portanova, que poderá fazer um comentário sobre esse assunto.
Dr. Rui Portanova – O engraçado é que não é difícil fazer um comentário.
Acontece que a gente, no Judiciário, para qualquer coisa que as pessoas falem, fica
imaginando que ação poderia ser inventada ou como o juiz poderia intervir para
obrigar a imprensa a usar a expressão inteira, qual seja, Pessoa Portadora de
Deficiência. E se essa expressão não for utilizada, vamos fixar uma multa ou o
quê? É uma situação um pouco complexa.
Acredito que o Padre Roque me passe essa questão exatamente para que eu
seja chato no sentido de pensar em uma forma de a burocracia judiciária poder
intervir no procedimento do meio jornalístico e até da área financeira. Vejo que
talvez não estejas preocupado em pagar juro de 12% ao dia, mas, sim, numa forma
de conseguir um financiamento para poder comprar a cadeira de rodas.
Lembro que os movimentos têm essa importância muito grande de luta e
de formação de uma consciência diferente. Creio que nunca há de se cansar de
fazer essa luta nas suas diversas facetas, inclusive essa do politicamente correto do
ponto de vista da linguagem. Sem dúvida, essa é uma idéia que tem de perpassar
sempre. Vejo que o Judiciário lida – aproveito a tua questão para abordar isso –
com um dos termos que o Capelleti usou e que o Cláudio referiu de passagem,
chamado O acesso ao Judiciário, ou seja, sempre podemos pensar em ir buscar no
Judiciário aquilo que queremos, pois esse Poder está de portas abertas. Costumo
dizer o seguinte: não tenha dúvidas de que podes entrar no Judiciário. O que não
sei é como vais sair dali. Os negros sabem bem disso também. Aliás, não se trata
de saber como vai sair. Tu não sabes como vai andar ali dentro, porque são tão
intricados os processos.
Imagino sempre essa perspectiva: que o Judiciário seja também
considerado um local de luta, nem que seja para tencioná-lo, para que ele saia de
sua neutralidade, porque poder tem. Na perspectiva do politicamente correto, do
ponto de vista do Judiciário, creio que há como pensar isso. As Pessoas Portadoras
de Deficiência devem ir ao juiz e, de alguma maneira, mostrarem que se sentiram
ofendidas pela forma como a Zero Hora publicou, a fim de fazer o juiz se
movimentar.
Na palestra que chamo de O Poder do Poder Judiciário, tento mostrar
77
exatamente a questão de que podes entrar no Judiciário. O problema é sair. Mas tu
infernizas a vida daquele que está ali se tiveres uma boa causa, mesmo que não
ganhes a ação, porque às vezes as vitórias dentro do Poder Judiciário não se dão
com a procedência ou a improcedência de uma ação, mas com a infernização da
vida do opressor. Essa é que me parece a grande vitória.
Costumo dizer ao pessoal do Movimento Negro: não sei se vocês já
notaram que para nós não basta ganhar uma ação. Ao negro não adianta muito
entrar com uma ação de dano moral contra o racista e ganhá-la, se o juiz não fez a
investigação do racismo e condena a tanto tempo alegando que realmente foi
provado. Ganhar a ação assim, não tem graça nenhuma. Só o tem, quando o juiz
revela que somos um País racista e, na sua sentença, mostra que aquela atitude é
comum a tantas pessoas. Nesse caso, é o gol de placa. Para nós, nos movimentos,
não basta fazer só um gol. Tem de ser um gol do Ronaldinho. Um gol de placa.
Por isso afirmo a você, que trabalha com o Movimento das Pessoas
Portadoras de Deficiência, que dá para pensar na perspectiva de buscar o Poder
Judiciário. Não pense que vais ganhar, mas a Zero Hora é capaz de refletir.
Vamos ser bem claros: Nós, da esquerda, somos os perdedores. O
neoliberalismo ganhou, mas o nosso sonho continua. Ninguém mata o nosso
sonho. O que sobra do nosso sonho é infernizar a vida da direita nas suas
contradições. Estão nos deixando o Judiciário aberto? Então vamos entrar ali, nem
que seja para infernizar.
Quanto à questão do financiamento, lembro-me de que o Judiciário
obrigou os bancos a refinanciar as dívidas dos agricultores. Há decisões nesse
sentido. Não conheço nenhum financiamento específico que possas fazer para
adquirir uma cadeira de rodas ou outro equipamento, mas pode-se pensar numa
vinculação, em criar um tipo de empréstimo bancário com alienação fiduciária,
assim como existem para os automóveis, eletrodomésticos e outros, pois, no
fundo, a agência financeira é um comércio, e quando o comércio oferece, é
obrigado a vender. Acredito que dá para se pensar em alguma forma de fazer isso.
Agora, nunca contar com o Judiciário, porque aí você precisa trabalhar
com um outro tipo de situação.
Presidente Roque Grazziotin – Dr. Rui, obrigado. Acredito que o Senhor nos
abre uma perspectiva no sentido de que a sociedade civil, na prática, utiliza muito
pouco o Judiciário e tem até medo dessa instituição. Creio que esse é um dos
desafios que temos de nos propor nesta caminhada.
Concedo a palavra à Psicóloga e Agente de Direitos Humanos, Sra. Ana
Paula.
Sra. Ana Paula – Boa-tarde, sou psicóloga e agente de Direitos Humanos. Atuo
78
em um projeto, ainda em implantação e discussão pela Coordenação de Direitos
Humanos da Prefeitura de Porto Alegre, que propõe que existam núcleos de
Direitos Humanos regionais e descentralizados que possam fazer a ponte, a
interlocução com as comunidades locais. Esse projeto é vinculado ao Conselho
Municipal de Direitos Humanos, que substitui o Conselho maior que tratava das
discriminações e violações.
Trabalho também na Fundação de Assistência Social e Cidadania na
Região Glória, Cruzeiro e Cristal. Gostaria que o representante do Movimento
Nacional de Direitos Humanos pudesse falar um pouco mais acerca desse assunto.
Ele disse que o movimento de Estado coloca duas diretrizes: o Plano Estadual de
Direitos Humanos e a criação do Conselho Estadual. Gostaria que o Senhor
esclarecesse como que um Conselho de Direitos Humanos, a partir da idéia de
indivisibilidade dos direitos, interage com os outros. E gostaria de saber também
como vem sendo pensado esse Conselho e que o Senhor comentasse o plano
estadual.
O representante do Ministério Público referiu a importância da apropriação
da discussão dos Direitos Humanos pelas comunidades, para, enfim, para melhorar
a participação dos indivíduos. O representante do Ministério Público abordou esse
tema dando ênfase à visão do Judiciário, mas o que eu gostaria de saber é se essa
questão vem sendo pensada com um enfoque político. Os adultos é que definem,
num plano teórico, as questões relativas às crianças e adolescentes. E isso limita o
acesso das pessoas pela falta de informação e conhecimento, causada pela nossa
linguagem. E gostaria de saber também o que tem sido feito pela ASTCS para
aproximar a comunidade dos projetos que estão sendo realizados em termos de
cidadania e Direitos Humanos.
Sr. Valdevir Both – Na verdade, a pergunta é importante e se coloca num
contexto atual no Estado para todos os movimentos. Ou seja, o contexto atual da
luta pelos Direitos Humanos vai abordar essas duas questões. Por que o
movimento discute como duas diretrizes gerais a questão do Plano Estadual e a
criação do Conselho Estadual de Direitos Humanos? Primeiro, porque entendemos
– e a Conferência de Viena, reforça essa idéia – que a garantia, a promoção dos
Direitos Humanos passa por planos consistentes, estruturais que os Estados
adotam para implementação dos Direitos Humanos.
Agora, esses planos devem ser construídos junto à sociedade e não em um
círculo restrito. A sociedade civil tem o papel de elaborar o plano, de fiscalizá-lo e
de avaliá-lo junto com o Governo. De nada adiantará fazermos um plano de
direitos humanos como o de 1996, em nível nacional, pois sequer conseguiram
79
implantar as ações que aquele plano previa. Portanto, não vale a pena investir, se
for para realizar um plano dessa forma. O que queremos – e o Estado está dando
um passo importante nesse sentido – é construir um plano estadual de Direitos
humanos em que estejam previstos os princípios básicos, ou seja, a universalidade,
a interdependência, e a indivisibilidade.
Portanto, para nós é importante que se construa esse plano com essas
diretrizes junto com a população. E nessa perspectiva já realizamos duas
Conferências Estaduais de Direitos Humanos, um pouco, com esse objetivo. A
última conferência, se recordarmos, teve exatamente esse objetivo, ou seja,
rediscutir, a partir das conferências regionais, as grandes diretrizes que deverão
fazer parte do Plano Estadual de Direitos Humanos que iríamos construir a partir
deste ano.
Com relação ao Conselho Estadual de Direitos Humanos posso dizer que
atualmente temos um Conselho muito restrito, pois ele está vinculado à Secretaria
da Justiça e da Segurança. Entendemos que a questão dos Direitos Humanos não
passa só pelos direitos civis e políticos. A vinculação dos Direitos Humanos a uma
secretaria específica configura uma certa concepção de Direitos Humanos.
Portanto, o Governo assumiu na Conferência – e isso é importante – que iria
reformular a lei que abarcaria, além dos direitos civis e políticos, o direitos
econômicos, sociais e culturais.
E assumiu até metade do ano a implantação desse novo Conselho. Ele teria
um papel intrasecretarias, ou seja, pensar junto com o Governo a política geral dos
Direitos Humanos no Estado. E esse Conselho vai ter que ser representativo,
legítimo junto à sociedade civil. Obviamente, se vamos construir um Plano
Estadual de Direitos Humanos, sem dúvida nenhuma, um Conselho legítimo, com
todas as instâncias a partir dessa nova concepção de Direitos Humanos, terá um
papel fundamental de acompanhar a execução de uma política geral de Direitos
Humanos no Estado.
Por isso essa é uma grande questão para a sociedade, nesse contexto atual,
ou seja, a construção de um Plano estrutural que é na verdade a garantia dos
Direitos Humanos e depois, obviamente, acompanhá-lo e monitorá-lo.
Presidente Roque Grazziotin – Há também um questionamento para o Sr. Mozar
Dietrich.
Sr. Mozar Artur Dietrich – Com relação ao que já foi dito sobre a criação do
Conselho Estadual dos Direitos Humanos podemos dizer que esse compromisso já
foi assumido pelo Governador. Portanto, essa questão já está encaminhada em
nível de Governo. É verdade que ela ainda está meio truncada. E existe a questão
dos demais conselhos. Por exemplo, o Conselho Estadual do Idoso discute,
80
encaminha e delibera a partir dos pactos internacionais e da Política Nacional do
Idoso, as políticas que o Governo do Estado deve executar com relação à
população idosa do Estado. Evidentemente, que todos os conselhos devem
cumprir o que determina os pactos dos Direitos Humanos. Essa é uma discussão
que os próprios conselhos irão travar buscando a solução dos problemas.
Em nível de Governo também tomamos uma decisão. Existia a discussão
acerca da criação de uma Secretaria dos Direitos Humanos e de uma
Coordenadoria dos Direitos Humanos. Tomamos a decisão, com base em muita
conversa, de não criar esse órgão agora e ao contrário reforçar nas secretarias e em
todos os agentes políticos desse Governo a política dos Direitos Humanos como
transversal e plural. Dessa forma torna-se exigência de toda e qualquer secretaria,
como a da Saúde e a de Transporte, a questão dos Direitos Humanos.
E é muito melhor que o Governo como um todo em todas suas instâncias,
em seus órgãos políticos e de execução, entenda essa dimensão, essa concepção de
Direitos Humanos do que criarmos uma secretaria específica que demandaria
questões de Direitos Humanos e começaria a entrar em enfrentamento com as
demais secretarias. Então a nossa decisão por enquanto é essa. Agora seria
importante a criação de um Conselho que pudesse congregar todos os segmentos
da sociedade e fazer a discussão desse assunto.
Fazemos a discussão sobre o Plano Estadual para o Idoso. Essa é uma
atribuição do próprio Conselho Estadual do Idoso, em conjunto com os órgãos do
Governo. Então temos que pensar isso também como atribuição do Conselho
Estadual dos Direitos Humanos. Com relação a outra questão que levantaste, uma
das diretrizes do Departamento da Cidadania, da Secretaria do Trabalho,
Cidadania, e Assistência Social é exatamente trabalhar no sentido da capacitação,
do fomento do que chamamos de controle social de descentralização. Temos
portanto um programa de realização de encontros, seminários, palestras, materiais
para que as pessoas possam estar-se capacitando e não só as lideranças.
Por exemplo, temos um programa de capacitação de lideranças indígenas
que já está em desenvolvimento através de vários órgãos do Governo Estado,
Saúde, Educação, Agricultura. Estamos iniciando esse processo e indo ao encontro
das comunidades remanescentes de quilombos, com a participação de
representantes da sociedade civil. O Governo iniciou no ano passado, em conjunto
com o movimento negro organizado, um processo de capacitação, inicialmente de
algumas lideranças. E o segundo passo, agora, é ir ao encontro das comunidades
remanescentes no sentido de capacitá-las para que possam exercer a cidadania, a
participação.
Além disso, hoje, está acontecendo no município de Santo Cristo um
81
encontro que está reunindo cerca de 150 grupos de terceira idade da região, no
sentido de capacitar essas pessoas no que diz respeito aos Direitos Humanos, de
cidadania, de participação, de conselhos municipais de direitos, de controle social,
de política estadual de idoso.
Estamos participando desse encontro com os representantes da Secretaria
da Saúde, da Educação, da Assistência Social. Temos para este ano programado
dezenas de seminários e encontros. Queremos congregar a comunidade e
conselheiros de praticamente todos os tipos de conselhos que existem e realizar
seminários regionais e municipais. Queremos congregar conselhos como os
tutelares, de agricultura, de desenvolvimento, de educação, de saúde, comissões
municipais de emprego, enfim, todos os agentes organizados da sociedade.
O objetivo é trabalhar a capacitação em Direitos Humanos, em
participação, em controle social e em cidadania. Percebemos exatamente isso, que
as pessoas tem uma sede de formação e querem participar, mas sequer sabem quais
as instâncias que existem, quais os mecanismos e como acessá-las. Portanto, essa é
uma preocupação nossa.
Presidente Roque Grazziotin – Obrigado, Sr. Mozar Detrich pela sua
participação. Está com a palavra a Sra. Heraida Cyreli Raupp.
Sra. Heraida Cyreli Raupp – Sou assistente Social e atualmente estou na
coordenação do movimento da Secretaria Municipal de Administração.
Primeiramente, gostaria de parabenizar a Mesa pela organização desse evento.
Confesso que sinto uma grande pena pelo fato de poucas pessoas estarem ouvindo
o que os Senhores falaram para que possamos debater em outros espaços. Quero
manifestar o meu encantamento com o Dr. Rui, porque ele conseguiu dar uma
escrachada na questão da ideologia dominante.
Até porque nós, nos nossos movimentos dos quais participamos,
precisamos a todo momento repensar, reconstruir os conceitos, porque quando
falamos em machismo parece distante, mas nos movimentos vemos que muitos
homens ainda não dividem suas tarefas com as suas companheiras, porque ainda
pensam que são elas que têm que realizar três, quatro, cinco turnos de trabalho.
Com relação ao racismo, quantos de nós até acredita que o negro é um
grande amigo, é um grande companheiro, mas quanto ao fato de ser juiz, prefeito
ou prefeita, ocupar realmente um cargo já é demais? Quantos de nós crê ser
favorável ao homossexualismo, mas quanto ao fato de se aproximar e dar um
abraço numa mulher que convive com outra do mesmo sexo ou sentar à mesa de
bar com um homem que vive com outro do sexo masculino aí já estão pedindo
demais? Essa manifestação do Dr. Rui Portanova nos motiva a analisarmos as
dificuldades que temos. Atualmente, com a reestruturação positiva, buscamos
82
resultados, quer dizer, cada vez mais um processo permanente de aumentar os
lucros não importando os meios. Quais os resultados disso no nosso dia-a-dia?
Vou trazer aqui uma questão a mais do Movimento de Mulheres, do qual
também faço parte: com a reestruturação produtiva temos um violento aumento do
assédio sexual, que não está aparecendo. Recentemente estivemos participando de
uma assembléia nacional sobre essa questão, na CUT, e percebemos o quanto os
sindicatos estão preocupados com tal questão. O fato de não termos mais emprego
formal, uma carteira de trabalho, faz com que cada vez mais as mulheres precisem
se submeter a essas questões para permanecer no emprego.
Além do aumento do assédio sexual, temos o crescimento do assédio
mental – na Europa já é conhecido como Mowik –, que é quando os trabalhadores
tem de ficar quietos para se segurarem no emprego. Eles têm que, cada vez mais,
fazerem-se de surdos, de mudos, têm que agüentar no tranco. Mesmo com
problemas, não falam, para mostrar que estão bem e assim manter-se no emprego.
Essas questões estão vindo à tona.
Temos que saber, quanto aos movimentos, que não é somente uma questão
de quem é favorável ao projeto capitalista e quem faz uma defesa de um projeto
socialista, mas de que nós, no nosso movimento, temos muitos preconceitos e
muitas dificuldades. Quando fazemos o debate do empoderamento da mulher,
temos de lembrar que ela está, inclusive, votando nos movimentos sindicais. O
próprio movimento de esquerda tem resistência a essa questão, porque ainda se
entende que o trabalhador é aquele que está direto no serviço. A companheira dele,
que está num outro trabalho, não deveria se envolver, logo, sem direito a voto nas
assembléias sindicais, congressos etc.
As questões da reestruturação produtiva, da ideologia dominante, são
muito forte no nosso meio. Precisamos estar a todo momento repensando o nosso
fazer e as nossas ações.
Fiquei um pouco preocupada e gostaria de entender melhor o assunto que o
Deputado Roque Grazziotin expôs a respeito do voluntariado qualificado. Penso
que o compromisso com as políticas públicas são necessárias, assim como são as
ONGs que os nossos colegas dos movimentos estão trazendo com clareza.
Presidente Roque Grazziotin – Quando discorro a respeito de voluntariado
qualificado falo de militantes sociais que se engajam dentro de um processo. O
voluntário, ao meu ver, é um militante social que pode estar muito bem empregado
ou desempregado, mas é alguém que desperta para a construção de um novo tipo
de sociedade. O que é divulgado na mídia é um voluntariado que faz parceria com
empresas que visam somente o marketing através de propagandas. Creio que há
uma distorção muito grande, por isso citei sem explicitar.
83
Sr. Marcelo Ferrão – Meu nome é Marcelo Ferrão e faço parte dos Movimentos
Sociais de Base. Não sei se é um comentário, ou se é uma pergunta, ou se é para
esclarecer a minha grande confusão, mas quanto mais falamos em Direitos
Humanos, mais confuso fico. Ouvi o Dr. Rui Portanova dizer que somente a lei
não basta e ouvi outro representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos
dizer que é importante a participação da sociedade civil.
Vou falar do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, da qual faço
parte na executiva municipal de Porto Alegre. Quanto às questões de ética e de
legalidade, existem vários tratados que falam da habitação, do Direito Humano
social à moradia adequada. Podemos nos basear nas diretrizes de Mastrid, na nossa
Constituição Federal e na Declaração Universal de Direitos Humanos, mas
sabemos que, atualmente, não existe na esfera federal nenhuma política
habitacional entrando em funcionamento – isso constou do nosso encontro
estadual, há algum tempo, em Esteio. No campo estadual, essa iniciativa também é
tímida. Quanto ao município de Porto Alegre, é desastroso dentro do campo do
Demhab, que hoje se resume tão-somente a apagar incêndios, assim como os
bombeiros. Posso falar isso tranqüilamente, assim como criticar, porque fui um
dos que construiu tanto o Governo Estadual quanto o Municipal.
Quando o representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos
questionou a questão do Plano Nacional de Direitos Humanos, disse ele que foi
criado somente abrangendo aspectos de direitos civis e políticos e ficaram de fora
os DESC – Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Fui um dos relatores do
Plano Nacional de Direitos Humanos na área de moradia adequada para o Rio
Grande do Sul e não faria uma crítica tão contundente desta porque não
precisamos ir muito longe para censurar, podemos fazê-lo dentro da nossa casa
também.
De acordo com a I Conferência Nacional de Direitos Humanos, de cuja
organização fiz parte, a II Conferência Municipal, a I e a II Conferência Estadual,
podemos verificar que não foi implementado nem 20% do que estava na I
Conferência Municipal e nem 20%, talvez, do que vai ser implementado da II
Conferência Municipal, nem 20% da Conferência Estadual e assim por diante,
porque a nossa luta dos Direitos Humanos se assemelha a Dom Quixote e a uma
formiguinha. Talvez por acreditarmos que a nossa Cidade seja muito grande é que
o processo está vagaroso.
Não é necessário nos encaminharmos até o Governo Federal, que é o nosso
grande inimigo, enquanto temos problemas aqui dentro, não resta dúvida quanto a
isso, mas também não podemos colocar peso em cima da Prefeitura e muito menos
em cima do Governo do Estado, porque penso que a implementação das leis
84
depende das pessoas. Acredito que essa crítica é válida, mas penso que já deve
estar pronta a reformulação do plano. Temos, então, que ir devagar com o andor,
porque o santo é de barro. Estamos avançando lentamente.
Quanto à moradia, entramos na questão da lei e da jurisprudência. O Dr.
Rui Portanova falou que somente a lei não basta, mas complementou dizendo que
devemos infernizar por intermédio do Judiciário, com o qual concordo.
Existe uma Lei, prevista em vários códigos, que nos garante direito à
moradia adequada. Vimos, no entanto, que não é praticada, conseqüentemente, não
temos direito à moradia.
O que é legal e o que é ético? É legal promovermos ocupações
requisitando o uso social da terra frente à nossa necessidade de moradia? É ético
pessoas morando embaixo da ponte, enquanto temos direitos que nos asseguram a
moradia?
Quanto ao movimento nacional, não temos política habitacional no campo
federal, nem estadual e nem municipal, então, vamos ocupar. Essa é a nossa
determinação. A partir de 3 de junho vamos deflagrar ocupações no Estado e no
Município, articulados com o Brasil inteiro. Isso causou-nos um profundo
questionamento. Há pouco tempo eu estava dando instrução na Secretaria de
Estado da Justiça e da Segurança, na parte de movimentos sociais, para a Polícia
Civil, Brigada Militar etc., e eles me questionaram alarmados o fato de eu ser um
defensor dos Direitos Humanos e da Lei e agora estar querendo fazer ocupação.
Como fica isso? Qual é o conflito?
Dr. Rui Portanova, o que podemos fazer? Ou continuamos aceitando o
descumprimento da Lei que nos garante moradia ou ocupamos, correndo o risco de
sermos taxados de invasores ou contraventores, enquanto que o Estado é o
contraventor maior? Ocupamos ou esperamos a Lei? Requisitamos o nosso direito
à moradia adequada no Judiciário tentando forçar uma jurisprudência? Acredito
muito nisso. Por exemplo, quanto à questão da sexualidade, pode estudar o caso
tanto um juiz preconceituoso quanto à homossexualidade como podem ser o Dr.
Roger Rios e a Dra. Berenice. Será que o caminho não seria o exercício da
jurisprudência, o exercício da Lei? Como resolvemos esta questão: ocupamos ou
não?
Sr. Rui Portanova – Ocupamos e rezamos. O Senhor fez a pergunta para a pessoa
errada. Em Esteio, eu e o Prefeito estivemos no local onde houve uma ocupação,
parece-me que de moradia, e após uma negociação as pessoas foram desocupando
o local devagar. Houve uma ocupação de moradia também em São Leopoldo, que
tinha tudo para dar certo. A reivindicação não era do pessoal do Movimento Sem
Terra, era do pessoal da moradia e tinha tudo para dar certo, mas infelizmente
85
fizeram um acordo de desocupação. De qualquer maneira, solicitei para a juíza que
continuasse investigando a função social. Dois processos de ocupação rural –
Movimento Sem Terra – acabaram em minhas mãos, e nessas duas oportunidades
entendi que os ocupantes deveriam permanecer na terra.
Quando o Estado tirou o monopólio da violência das pessoas com o intuito
de resolver a questão, também achou por bem esclarecer que entrariam no
Judiciário e dentro dele teriam que se submeter a um determinado tipo de
processo. O que está acontecendo, atualmente, nessas questões coletivas? O que
está bem claro é esse embate de ordem política e ideológica, que está sendo
trazido para dentro do Judiciário.
Sinceramente, não acredito que algum juiz vai te deixar morando o resto da
vida ali. Não acredito, é difícil, mas ali é um degrau da luta. Não sei se vais ganhar
o processo, mas se as pessoas do movimento estão entendo que o momento é de
fazer ocupação e de ir ao Judiciário recorrer, ou seja, correr riscos, penso que é
isso que deve-se fazer.
Agora, sejamos bem claros. Não pode ser o Judiciário que irá fazer isso.
Não podemos contar com o Judiciário para essa finalidade, nem com o Direito. É
aquela questão de que só a lei não basta.
Não tenho dúvida de que esse tipo de movimento é formado pelas pessoas
que até agora têm sofrido opressão, e digo bem claramente, não me referindo a
pobres, porque nem todos os devedores de bancos são pobres, às vezes, são
grandes empresas. Nessa altura, a gente começa a fazer a defesa do empresário,
porque a luta, apesar de não ser por moradia, também acaba sendo uma luta por
trabalho. Eles terminam sendo explorados por alguém que é maior do que eles.
Isso resulta em envolvimento do empresariado brasileiro. Sem dúvida, sou a favor
dessa posição do movimento. Não conta com o Judiciário, mas não deixa de
pressioná-lo.
Acredito que devem ingressar com as ações, reunir os companheiros na
frente do Tribunal. São atitudes importantes. O Poder Judiciário, principalmente o
do Rio Grande do Sul, precisa sofrer esse espraiamento democrático que se origina
dos movimentos e que neste Estado é bastante desenvolvido. Desde que mais tarde
não venham me cobrar, dizendo que fizeram tudo o que eu tinha recomendado e
perderam a ação, do ponto de vista da legitimidade, podem ter a certeza de que a
têm. Vocês dispõem da lei, existe a Constituição, garantindo o direito à moradia.
Há todas as possibilidades, mas vai entrar em questão a perspectiva ideológica e,
corre-se esse risco. Porém essa luta é bem maior do que simplesmente obter um
ganho de causa dentro do Poder Judiciário.
Sr. Valdevir Both – Quero fazer um rápida manifestação com relação aos
86
questionamentos que o companheiro mencionou.
Em minha avaliação, penso que necessitamos ser duros com o nosso plano
nacional em relação àquilo que se propôs a fazer, até porque, repito, ele peca na
sua essência, ou seja, no início, foi elaborado por um grupo dentro da
universidade. Na nossa avaliação isso é muito complicado. Claro que no ano
passado, tivemos uma má avaliação no plano nacional que o ministro assumiu em
fazer. Inclusive, em Porto Alegre, tivemos um fórum de discussão, quando foram
incluídos direitos econômicos, sociais e culturais. Agora, não podemos admitir que
tenhamos um plano simplesmente para ter um status internacional. Por exemplo,
se formos observar as ações a que o Governo se propôs na área dos Direitos
Humanos, para resolver de uma melhor forma a questão dos presídios, muito
pouco daquilo foi realizado.
Então, não podemos ter um plano simplesmente para desfrutar de um
status internacional. Agora, esse relatório paralelo denunciou isso para fora do
País. Antes disso a questão dos Direitos Humanos tinha um status muito grande.
Em relação à questão local, estadual, penso que nós, como movimento, não
podemos perder nossa essência. Concordo com o Senhor quando diz que a
promoção, conquista e implementação dos Direitos Humanos constitui-se de um
processo, ou seja, não se sai de um estado hoje e se passa para outro amanhã. Digo
isso para qualquer dos governos. Não podemos perder a nossa essência de fazer
pressão para a garantia dos Direitos Humanos. Acredito que esse é um ponto
fundamental, por isso repito que é importante que participemos e façamos o nosso
Plano Estadual de Direitos Humanos, assim como planos municipais, que
constituem a base de que disporemos depois para uma política de Direitos
Humanos.
Em hipótese alguma, nós, como movimento social, não podemos perder a
noção de que essa grande luta pelos Direitos Humanos é um processo.
Sra. Ana Elusa Rech – Mudei de profissão há 12 anos, em função da
Constituição Federal. Investi concretamente na consolidação de movimentos
sociais.
Tenho hoje uma preocupação muito grande, porque no Rio Grande do Sul,
salvo melhor juízo, contamos aproximadamente onze conselhos estaduais.
Algumas das pessoas que fazem parte desses conselhos, desde o primeiro, são as
mesmas. Temo que, nessa nossa capacidade de organização e no avanço que a
globalização e as privatizações têm obtido neste País, acabemos entrando em um
processo autofágico de descrédito da mobilização, da consolidação de planos que
se efetivem. Digo isso com um fundamento muito concreto em minha experiência
bastante sofrida e vivenciada.
87
Nessa semana participei de um evento, que era a assinatura de um
protocolo de intenções de um sonho que conta pelo menos seis anos. Fiquei feliz
com a assinatura do protocolo. Refere-se à construção de repúblicas para os
meninos de 16 a 21 anos em situação de vulnerabilidade social, ou seja, sem casa,
sem família, sem condições de se auto-sustentarem. Sabemos que precisaremos
esperar por, pelo menos, mais seis meses. Alguns desses meninos que entrarão na
república nem estavam na rua, quando iniciamos a sonhar. Vejo que as
emergências sociais são muito grandes e que as dificuldades de organização do
serviço são maiores ainda.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que consolidamos a burocracia
organizacional do movimento, por meio dos conselhos, assistimos placidamente,
de mãos amarradas, a perda de direitos civis, como o trabalho, que os
trabalhadores têm sofrido. É nesse sentido que gostaria de ver de que forma, além
da mobilização, podemos de fato concretizar alguns sonhos.
Sr. Mozart Artur Dietrich – Acredito muito na mobilização dos movimentos
sociais. Vemos essa força na história. Hoje, pela manhã, foi relatado um pouco dos
históricos. É uma força crescente que tem evidentemente em todos os seus
momentos de quedas, de perdas de energia, mas logo adiante percebemos que os
movimentos retomam.
Cito dois exemplos que estão ocorrendo agora no Estado e que nos estão
deixando bastante contentes. Um é o Conselho de Participação e Desenvolvimento
da Comunidade Negra no Estado – CODENE. Penso que ele se encontrava nessa
situação mencionada. Foi institucionalizado um conselho antigo, que talvez até
devido ao tempo e ao fato de as pessoas serem sempre as mesmas, estava perdendo
a força. Mas, houve uma reação substancial em grande parte do Estado do Rio
Grande do Sul que decidiu tomar o poder para si. Houve uma organização de
vários municípios. O CODENE era muito centrado na Região Metropolitana. Em
novembro do ano passado, aconteceu a eleição para o novo CODENE. Agora esse
conselho possui nove representantes de nove regiões do Estado, somente um de
Porto Alegre.
O pessoal se encontra bastante motivado. Estão bastante ativos dentro do
Conselho. Isso reflete talvez um refluxo da força da comunidade durante algum
período, mas que agora está retomando. É importante que o Estado não seja aquele
que vai inibir isso, ou tentar conter essa força. A própria comunidade negra
conquistou esse espaço.
Outro exemplo que podemos mencionar refere-se à comunidade indígena.
Quando reestruturamos o Conselho da Comunidade Indígena, em 1999, o
Conselho anterior contava nove representantes indígenas e nove do Estado.
88
Atualmente, esse conselho possui 20 representantes indígenas e dez do Estado. Os
índios não aceitaram a imposição de um conselho paritário, a qual defendíamos,
pois o Governo precisaria do mesmo número de votos. Não houve aceitação desse
argumento. O Governo terminou por aceitar até para não obstaculizar ou impedir
essa força do movimento indígena e estamos convivendo muito bem com essa
situação. Os índios atualmente são a absoluta maioria dentro do Conselho que está
funcionando muito bem, com bastante participação.
Penso que, de modo geral, percebemos que essa renovação está ocorrendo
em outros conselhos também. Considero que isso é da natureza dos movimentos
sociais. Historicamente eles possuem essa característica. Às vezes, sofrem
momentos de desarticulação, como o que ocorreu no início do Governo Fernando
Henrique contra o Movimento Sindical Brasileiro, quando praticamente
arrebentou com os petroleiros. Todos lembramos disso. No entanto, não extinguiu
o movimento. Estes sempre se articulam e fortalecem e retornam.
Sra. Tereza Polleto Porto – Desejo formular uma pergunta. O Desembargador
Portanova disse que no Ministério Público, o difícil não era entrar e, sim, sair.
Penso que tudo é muito difícil, principalmente no nosso Estado.
Sou Tereza Polleto Porto. Luto pela libertação da minha família e, lutarei
sempre. Quero perguntar se o magistério público enquadra-se naquele ditado
gaúcho que diz que tem que pagar uma carrada de gado para entrar, ou para não
sair? Muito obrigada.
Presidente Roque Grazziotin – Dona Tereza, penso que a luta continua. Com a
palavra o Sr. Dorvalino Fillipini.
Sr. Dorvalino Fillipini – Meu nome é Dorvalino. Existe algo que venho
observando há muito tempo. Não sei se a culpa cabe à mídia, ou à escola, ou à
sociedade, porque toda pessoa, quando busca atendimento em qualquer lugar, seja
público seja privado, que versa sobre o direito do ser humano, só é respeitada, na
maioria das vezes, se está sabendo como funciona a legislação. Se não sabe sobre
o que versa a lei que a protege, é pisada. Teria que se inverter isso. Não sei se é
culpa da sociedade ou de quem.
Conheço vários casos como, por exemplo, o de uma menina portadora de
deficiência, lá de Nova Prata que, quando ia conversar com um vereador disse que,
se ela continuasse incomodando-o, ela iria parar na cadeia. O vereador tratou-a
bem assim. Então ela ligou para mim que a orientei para que, na próxima vez que
ele dissesse aquilo, ela perguntasse a ele se conhecia o art. 8º da Lei nº 8.753.
Orientei-a para que só falasse isso, e não dissesse mais nada. Na próxima vez, ela
seguiu a minha orientação, e ele nunca mais a xingou e hoje a atende com todo o
respeito. Por quê? É porque viu que ela conhece a lei.
89
Então, não sei se se começaria o esclarecimento pela escola ou pela
faculdade, ou pelos meios de comunicação, pelos jornais ou não sei por onde.
Teríamos de ter um começo para esclarecer a população para saber onde está
mexendo, e não precisar sempre buscar um advogado, um professor, sei lá para
esclarecer para chegar no ponto comum para defender o seu direito como cidadão,
como pessoa, como ser humano. Muito obrigado.
Presidente Roque Grazziotin – Vamos, a partir de agora, conceder um minutinho
para cada painelista apresentar, não a sua conclusão porque este tema não conclui,
pois é o início de um processo que nunca termina.
Sr. Valdevir Both – O companheiro levanta mais uma vez essa problemática que,
na minha avaliação e na avaliação do Movimento Nacional de Direitos Humanos,
que inclusive foi tratado pela manhã, é fundamental e temos de enfrentá-la. Ou
seja, hoje enfrentamos uma grande mídia que simplesmente detona os direitos
humanos.
Na verdade, temos programas que simplesmente não dá para assistir. Daí
entramos num problema muito grande que é o da censura. Somos logo acusados de
que queremos implantar novamente a censura, pois lutamos por esse direito
durante muito tempo. Então essa é uma problemática que foi levantada duas vezes
hoje. Pela manhã, já discutimos esse tema com o pessoal da Assessoria Jurídica e
Estudos de Gênero – Themis. Temos de enfrentá-lo de qualquer maneira, ou seja,
nós nos sentimos pequenos em frente de um programa que, por exemplo, fica, à
noite, durante duas horas, catequizando milhões de pessoas do Brasil.
A problemática que temos de começar a enfrentar é como vamos trabalhar
mídia e Direitos Humanos, para que, em primeiro lugar, não se deteriorem os
Direitos Humanos e, em segundo lugar, que ela promova os Direitos Humanos.
Com isso quero dizer que temos muito a fazer. Agradeço a participação e até uma
próxima oportunidade.
Sr. Rui Portanova – Quero dizer uma palavrinha à Dona Tereza: não é só no
Judiciário que se dá um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não
sair dela. A vida é assim e no Judiciário é assim também. Isso também vale para o
companheiro que trouxe a problemática da moradia. Temos de ser eternos
inconformados e eternos revoltados. Essa é a lógica que tem de ser mudada no
Direito, que sempre trabalhou muito com a ordem e com o medo do caos. No
entanto, sabe-se que essa é a ordem burguesa, e o caos que o Direito teme não é o
caos que nos legaram. Temos de viver, pois é essa a situação que se tem.
Em relação à mídia que não é a minha especialidade, há algo que gostaria
de falar para podermos repartir algumas idéias. A mídia, principalmente o pessoal
de rádio, tem uma expressão que chamam de virar o fio, que quando se bate muito
90
no mesmo tema vira o fio. Não sei se os Senhores têm o mesmo sentimento que
eu. Por exemplo, na RBS, há determinadas pessoas que são de tal forma ranzinzas
e rancorosas que viraram o fio. Ninguém acredita mais neles. Quanto mais eles
falarem é até melhor. Então, nessa idéia de mídia, pode-se ter esse pensamento,
enquanto nós, como movimento, sabemos bem como minar essas estruturas.
Volto a agradecer ao Deputado Roque Grazziotin pelo convite. Estou à
disposição para debates. Confesso, sinceramente, que estou muito cansado de ler
livros de Direito. Já os li e reli e, infelizmente, não aprendi nada. Os Senhores
viram aqui como não aprendi nada de Direito. Falo tudo ao contrário do que o
Direito afirma. Os locais de aprendizagem mesmo são os movimentos populares. É
com os Senhores que quero aprender. Por favor, me convidem para as reuniões
que estarei à disposição. Muito obrigado.
Sr. Mozar Artur Dietrich – Também quero agradecer mais uma vez o convite
que a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e Movimento Nacional de
Direitos Humanos fez ao Governo do Estado. Para nós foi uma satisfação estarmos
aqui, trazendo o nosso ponto de vista sobre essa temática tão importante. Estamos
à disposição. Como já disse, vou encaminhar ao Governo as questões que foram
levantadas aqui, principalmente com relação ao plano e ao Conselho de Direitos
Humanos.
Finalmente, como cidadão, quero dizer que me senti de alma lavada ao
escutar o Dr. Rui Portanova. É bom muito escutar palavras de quem sabe bastante,
de quem já tem uma história. Sobre tudo que ele falou, temos vontade de falar
também, mas não se consegue. Muito obrigado, Dr. Rui Portanova, por ter podido
ouvi-lo nesta tarde.
Presidente Roque Grazziotin – Queremos agradecer a participação de todos e, de
modo especial, aqueles que ajudaram a organizar este Seminário: todos os técnicos
da equipe da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos aqui da Assembléia
Legislativa, assim como os participantes do Movimento Nacional de Direitos
Humanos. O nosso agradecimento especial também aos painelistas: Dra. Flávia
Piovesan e Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho. Neste painel da tarde sobre a
Dimensão Humana na Consolidação de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
agradecemos ao Dr. Rui Portanova, ao Dr. Cláudio Barros e Silva, representando o
Executivo, ao Mozar Artur Dietrich e ao Professor Valdevir Both, do Movimento
Nacional de Direitos Humanos.
Gostaria de concluir, recordando uma pequena frase de Brecht que, desde
que a ouvi pela primeira vez, animou-me muito. Ele diz que nesta luta pelos
Direitos Humanos, pela caminhada por este processo, há gente que luta um dia e é
boa, há gente que luta uma semana e é melhor e há gente que luta um ano e é
91
muito boa, mas são necessários aqueles que lutam toda a vida e são
imprescindíveis. Por isso há um processo permanente e um processo dos
imprescindíveis. Todos nós somos convocados e reconvocados para nos
aperfeiçoar principalmente neste novo milênio. Nas funções que cada um vai
exercendo, muito temos a contribuir. Portanto, obrigado pela contribuição de
todos que participaram deste Seminário no dia de hoje.
Muito obrigado.
Download