DELINEAMENTOS SOBRE O CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO: em busca de uma definição terminológica Márcio Eduardo da Silva Pedrosa Morais1 Carolina Senra Nogueira da Silva2 RESUMO: Tem-se como objetivo, por intermédio do presente artigo, discorrer sobre o conceito de Constituição, apresentando conceitos antigos e modernos em relação ao tema, entendendo-se por Modernidade como o período histórico contemporâneo, o qual tem como uma de suas características no campo jurídico a égide do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, insta salientar a dificuldade conceitual para se chegar a um conceito unívoco de Constituição, variando o mesmo ao longo do pensamento jurídico. Deste modo, passando-se do constitucionalismo antigo ao constitucionalismo moderno, tal estudo deter-se-á na análise do conceito de Constituição ao longo da história do constitucionalismo, atendo-se à Constituição antiga, à Constituição medieval e à Constituição moderna. PALAVRAS-CHAVES: Constitucionalismo; Constituição; Evolução histórica. 1 INTRODUÇÃO ideias sustentarão o movimento revolucionário francês de 1789, O Constitucionalismo pode ser definido como um movi- culminando na elaboração da Declaração de Direitos do Homem mento histórico que ensejou o início da criação de constituições e do Cidadão de 1789, a qual traz em seu artigo 16 que: “Toda so- como mecanismos para a frenagem dos poderes arbitrários do ciedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem Estado, sendo comum afirmar que o Constitucionalismo surgiu determinada a separação dos poderes não tem Constituição”. com a Revolução Francesa de 1789, afirmação que na verdade Neste sentido, diversas definições existem para o termo não procede, tendo em vista o fato de já existir na Antiguidade “Constituição”, tendo sido durante um longo período um desafio clássica documentos que visavam limitar o poder político, como para a doutrina do Direito Constitucional apresentar uma defini- o Estado teocrático dos hebreus, o qual era regido pela “Lei do ção unânime para o mesmo, o que pode-se afirmar não ter ocor- Senhor”, podendo ser considerado tal Estado a primeira apari- rido devido à citada diversidade conceitual e tendo em vista es- ção do constitucionalismo. tar a Constituição atrelada às características de uma sociedade. Também em 1215 com a Magna Charta Libertatum, os A palavra constituição conforme define os dicionários da lín- ingleses impuseram ao Rei João Sem Terra limites formais ao gua portuguesa3, significa, de maneira ampla, o ato de constituir, arbítrio estatal, garantindo aos súditos direitos e liberdades indi- de organizar, de estabelecer. Desta forma, cabe salientar que viduais. É também importante citar a Petition of Rights de 1628, a noção que se tem hoje de Constituição enquanto lei funda- por intermédio da qual os ingleses conseguiram impor ao Rei mental nasceu, com suas devidas limitações, em Atenas, com Carlos I o respeito a seus direitos seculares. a ideia de configurar, legitimar e limitar o poder. Não obstante, O pacto ou contrato social medieval pode ser também con- é a mudança do Estado Absolutista para o Estado Liberal que siderado um antecedente do movimento do Constitucionalismo. consolida a ideia de Constituição que se tem hodiernamente. Por esse pacto, o povo se sujeitava ao poder do soberano en- Nestes termos, é preciso entender essa passagem do Estado quanto este governasse com justiça, tendo Deus como observa- Absolutista para o Estado Liberal e depois para o Estado Social dor e árbitro do cumprimento do contrato. para assim chegar ao Estado Democrático de Direito, para que Todavia, o iluminismo, também chamado de movimento se possa compreender a temática proposta. iluminista, ou também Idade das Luzes, é, sem dúvida, o grande marco das teorias do Constitucionalismo, principalmente por intermédio dos textos de Montesquieu, Rousseau, Voltaire e Di- 2 AS TRANSFORMAÇÕES DO ESTADO MODERNO derot, os quais pregavam a felicidade e o respeito a direitos ine- Antes de se definir Constituição na esfera do ordenamen- rentes à condição humana, os quais não poderiam ser desrespei- to jurídico, cabe um resgate histórico da transição do Estado tados pelos soberanos, como também pelos próprios pares. Tais Nacional, o qual surgiu a partir dos séculos XV e XVI, com a 46 | PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 1/2012 - EDIÇÃO 5 - ISSN 2176 7785 autoridade dos monarcas. Durante o Estado Absolutista o rei os direitos individuais, mas também sociais e políticos) passa- era detentor de um poder único e concentrado (Portugal foi o ram a ser contemplados, surgindo o modelo de Estado Demo- primeiro Estado Absolutista a se formar), exercendo este poder crático de Direito. de maneira ilimitada. Com essa concentração de poder exercida O Estado Democrático de Direito caracteriza-se por esta- apenas por um homem (o soberano), os direitos e liberdades belecer a participação da população na esfera pública, o poder individuais eram renegados, inexistentes. vem do povo e para o povo, havendo um vínculo deste com Insta salientar que, pensadores como Thomas Hobbes o processo decisório. Este modelo procedimental de Estado (1588 - 1679) e Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) foram respon- também se caracteriza por aspectos sociais, promovendo jus- sáveis por consolidar a noção de Estado Absolutista, com a ideia tiça social, como também liberais, sobre as égides do capitalis- de que o homem celebra um contrato, transferindo seus direitos mo. Deste modo, as Constituições de vários países passaram a ao ser artificial (o Estado) com poder visível que seria capaz de consagrar esses ideais democráticos, o Estado, assim como os proteger e defender os demais. Essas ideias se mantiveram até cidadãos, passaram a ser submetidos à lei, lei esta fruto da deli- o século XVII, quando então os ideais de John Locke (1632 – beração popular, como salientado. Ainda, conforme a participa- 1704) mudariam a concepção de Estado, reformulando-a. ção popular, Peter Häberle (1997) argumenta e defende o direito Deste modo, surge o Estado Liberal através da doutrina do do povo em participar da interpretação do Direito, das normas liberalismo político sustentada por Locke, por intermédio da qual interpretativas, por intermédio da ideia da sociedade aberta dos o pensador defendia a tese de que o povo não deveria abrir mão intérpretes da Constituição. de seus direitos, apenas de parte deles. Assim, para Locke, o Estado havia nascido para proteger a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, desta feita, o Estado não pode sufocar 3 AS CONCEPÇÕES TERMINOLÓGICAS DE “CONSTITUIÇÃO” AO LONGO DO PENSAMENTO JURÍDICO as liberdades individuais. Assim, notar-se-á que o indivíduo está A concepção moderna de Constituição surgiu com os te- no centro das ideias e dos objetivos do Estado; os governos, óricos iluministas com a divisão dos poderes do Estado, sua que são formados por homens escolhidos através de votos que limitação e as declarações dos direitos e garantias individuais representam os cidadãos, são responsáveis por defenderem dos cidadãos. A Constituição, assim, tem o objetivo de organizar os interesses desses indivíduos, protegendo sua propriedade, e estruturar politicamente o Estado, contemplando a divisão dos privacidade, liberdade, segurança e sua vida, surgindo, ainda, poderes do Estado e a preservação dos direitos dos cidadãos. a ideia de divisão dos poderes (Legislativo, Judiciário e Execu- Um dos conceitos mais elementares de Constituição é o chama- tivo) com os ideais de Montesquieu (1689 – 1755). Com essa do conceito histórico-universal, cuja formulação foi apresentada liberdade total, opondo-se ao controle do Estado Absolutista, a no ano de 1892 por Ferdinand Lassalle quando o mesmo salien- exploração das relações de trabalho foi um problema marcante tou que todos os países possuem, e terão de possuí-la sempre, do Estado Liberal, tendo em vista não haver a intervenção estatal uma Constituição real e efetiva, sendo errado pensar a Constitui- na vida privada. Assim, aos poucos o Estado Liberal entrou em ção como uma prerrogativa dos tempos modernos. (LASSALLE, declínio com diversos problemas sociais e econômicos, surgin- 2001). Para apresentar a definição, Lassalle (2001) distinguia a do, assim, a necessidade de repensar o Estado e sua atuação. chamada Constituição escrita (consubstanciada em um texto, a Foi ao final da Primeira Guerra Mundial, que novos princí- “folha de papel” de Lassalle) da Constituição real. Nesse sen- pios ganharam força moldando o Estado, quando se tornou um tido, a constituição folha de papel, aqui usando a definição de Estado “com cunho social”, intervindo na vida econômica e so- Lassalle4, deve ser reflexo da Constituição real, tendo esta suas cial dos indivíduos, regulando a vida privada de seus cidadãos, raízes nos fatores reais de poder, sob pena de se não o sendo tornando-se, assim, um Estado com características paternalis- não ser reflexo da sociedade, positivando utopias, ilegitimida- tas. Não obstante, direitos democráticos não foram contempla- des. De acordo com Lassalle (2001): dos neste Estado que intervinha de maneira excessiva na esfera Onde a Constituição escrita não corresponde à real, privada dos indivíduos e não conferia aos seus cidadãos partici- estoura inevitavelmente um conflito que não há ma- pação democrática no processo político. neira de evitar e no qual, passado algum tempo, mais Deste modo, o declínio do Estado Social foi inevitável, por- cedo ou mais tarde, a Constituição escrita, a folha de que princípios como a participação democrática do povo no pro- papel, terá necessariamente de sucumbir perante o cesso político, garantias e direitos fundamentais (consolidados empuxo da Constituição real, das verdadeiras forças com a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, abrangendo vigentes no país. (LASSALLE, 2001, p. 63). PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 1/2012 - EDIÇÃO 5 - ISSN 2176 7785 l 47 mente as constituições medievais eclesiásticas), até ao ConstiAssim, Ferdinand Lassalle (1825 -1864) é o responsável por tucionalismo moderno. Ainda de acordo com Cunha, “o Direito dar à Constituição uma concepção sociológica, ao entender que Constitucional terá tido como uma das suas funções fundadoras a Constituição formal, escrita, não pode ser considerada uma a de substituir o Direito Natural, considerando falido ou em vias Constituição, devendo estar em harmonia com os fatores sociais de falência [...] quer na sua versão clássica, quer na moderna, de poder, sob pena de, não o sendo, ser apenas “uma folha ou jusnaturalista”. (CUNHA, 2007, p. 61). Assim, é de se pensar de papel”, necessitando-se, dessa forma, considerar a realida- que, do mesmo modo que se afirma serem os Direitos Humanos de sociológica e econômica de uma sociedade influenciando o a linguagem atualizada do Direito Natural, “o Direito Constitucio- sistema normativo. nal seria hoje um dos seus ramos de eleição positivadora, uma Hans Kelsen (1881 – 1973), o jurista de Viena, e Konrad Hes- nova fronteira ou uma nova barricada do grande Direito Justo – se (1919 – 2005) são conhecidos por darem à Constituição uma que, como é óbvio, deve ser preocupação de todos os ramos do concepção jurídica. Para Kelsen, com concepção mais rígida do Direito [...]” (CUNHA, 2007, p. 61). Mais sua vez, Paulo Ferreira que Hesse, a Constituição é uma norma pura, puro dever-ser, da Cunha (2007) salienta que: tendo uma superioridade jurídica, sem fundamentações socioló- [...] uma das divisões mais úteis e com mais profundo gicas, políticas ou filosóficas. Para Konrad Hesse, a Constituição sentido no plano histórico, é aquela que divide as consti- deve procurar obter ordem e conformação conforme a realidade tuições em dois tempos, sucessivos (embora possa ha- social e política, a Constituição possui, assim, força normativa, ver resíduos de épocas mais antigas em épocas novas, não sendo autônoma à realidade. e, eventualmente, revivalismos, ou então antecipações: Outra importante concepção conferida à Constituição é a a) o tempo pré-revolucionário e pré-liberal das constitui- concepção política, a qual é defendida expressivamente por Carl ções que se dizem tradicionais, históricas ou naturais; Schmitt (1888 – 1985), com a distinção entre Constituição e Lei b) e o tempo pós-revolucionário e liberal e pós-liberal Constitucional, com sua teoria material oposta à teoria normativa das constituições codificadas, que se dizem do cons- de Kelsen. Para Schmitt, a Constituição é o reflexo das vontades titucionalismo moderno, e voluntário (até “voluntarista”). populares, sua essência não pode ficar limitada à norma. As- (CUNHA, 2007, p. 97). sim, é através da compreensão dos paradigmas de Estado, bem como as concepções de Constituição, que possibilita a análise O primeiro grupo de constituições (natural, histórica, tradi- da formação da Constituição tal como se tem hoje. Moderna- cional, a qual é esparsa, não compilada, geralmente), durante mente, Celso Ribeiro Bastos salienta que: muito tempo, não foi objeto de interesse por parte da doutrina, Da mesma forma que se fala da constituição de um or- preocupando-se a mesma com o segundo grupo (moderna, co- ganismo vivo, pode-se referir a uma determinada cons- dificada, voluntarista, a qual é sistemática, pensada para ser um tituição de um ordenamento jurídico, reportando-se corpus autônomo). Somente com o constitucionalismo moderno ao seu esquema fundamental, à sua ossatura mínima, ter-se-á uma tríade fundante da Constituição estruturada em: 1) determinados pelo conjunto de suas principais institui- um texto sagrado, codificado, ao qual os norte-americanos no- ções. (BASTOS, 1994, p. 26). meiam como sacred instrument; 2) no princípio da separação de poderes, na visão clássica de Barão de Montesquieu (Legislati- Por sua vez, em relação à definição do termo “Constituição”, Paulo Ferreira da Cunha (2007) salienta que: vo, Executivo e Judiciário); e 3) direitos do homem ou fundamentais com consagração constitucional expressa. (CUNHA, 2007). [...] Constituição é palavra que nasce nas línguas latinas, Insta salientar que esses traços característicos do constitucio- tendo como antecedente o vocábulo latino constitutio, nalismo moderno se acham presentes no texto da Declaração que em Cícero acaba por encontrar uma influência se- dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa do século XVIII. mântica com outros significantes tendentes para o mes- No mesmo sentido, de acordo com Antonio-Carlos Pereira mo significado, então: tais como res publica e status. Menaut (2006) pode-se definir Constituição como “limite do po- Correspondendo ao grego politeia. E que alguns tradu- der, por meio do Direito, assegurando uma esfera de direitos e zem por “república”. (CUNHA, 2007, p. 60). liberdades para o cidadão. Quando isso não ocorre não se pode falar de uma verdadeira Constituição, como previa o artigo 16 da Cunha salienta que a expressão “Constituição” aparece ain- Declaração francesa de 1789”. (PEREIRA MENAUT, 2006, p. 20, da incipientemente e para designar coisas diversas (nomeada- tradução nossa5). Neste sentido, a ideia de Constituição é dis- 48 | PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 1/2012 - EDIÇÃO 5 - ISSN 2176 7785 tinta da ideia de “constituir”, tal jogo de palavras recorda que as Esse sistema de organização grego, especificamente no constituições não são pontos de partida que fundam, originam que se refere à forma de governo, ou seja, o que caracterizava a ou “constituem”, em sentido literal, uma sociedade, uma ordem forma política grega, era a forma democrática (ancorada no bi- jurídica, uma comunidade política. As constituições possuem nômio demokratía-isonomía), significado a forma democrática: uma capacidade limitada de constituir, constituem somente o primazia da assembléia de todos os cidadãos atenienses para a sistema político e não todo e nem em todos os casos. tomada de decisões de importância coletiva; direito de palavra Buscando uma definição de Constituição, Maurizio Fiora- e de proposta a todos os cidadãos dentro da assembleia, indis- vanti (2007) distingue a “Constituição dos antigos” (referindo-se tintamente; extração por sorte dos cargos públicos; alternância como “antigos” os povos gregos e romanos) da “Constituição anual de governos; obrigação aos ocupantes de cargos públi- dos modernos”. Neste sentido, Fioravanti afirma que o mundo cos de prestarem contas anualmente. antigo, como qualquer outra época histórica, teve historicamen- Neste contexto de crise e reestruturação, de balanço e va- te determinado seu próprio modo de expressar uma certa ordem loração dos tempos democráticos, toma corpo o uso do con- política, ou seja, sua própria doutrina política, tendo essa dou- ceito de politéia, que os modernos traduzem por Constituição. trina seu momento mais importante com as figuras de Platão Apesar das críticas dirigidas em relação à referida tradução, (428-347 a.C.) e de Aristóteles (384-323 a.C). principalmente em relação ao fato de a expressão possuir sig- Os séculos quinto e quarto antes da Era Cristã abrangeram nificados diversos na língua grega, significando o conjunto dos uma época de instabilidade no mundo antigo, época marcada cidadãos de um lado, de outro a organização política, Fiora- por discórdias e particularismos locais. Nesse sentido, Fioravan- vanti salienta que: ti (2007) salienta que: [...] politéia não é mais do que o instrumento conceitual Para os contemporâneos, em concreto, trata-se de um de que serve o pensamento político do século IV para tempo de decadência política provocada, sobretudo, nuclear seu problema fundamental: a busca de uma for- pela transformação da cidade – a polis – de lugar de ma de governo adequada ao presente, tal que reforce a exercício dos direitos políticos de cidadania, de reco- unidade da polis, ameaçada e em crise desde diferen- nhecimento coletivo de um pertencimento político co- tes frentes. (FIORAVANTI, 2007, p. 19, tradução nossa7). mum, a lugar caracterizado preferencialmente pela economia e pelo intercâmbio, de maneira particular em Para Platão, a boa Constituição política (politéia) não pode relação com o, cada vez mais, intenso tráfico comercial jamais se originar dos vencedores, como também não pode ter e marítimo. A mercantilização da polis produz também, origem violenta, devendo ser a Constituição dos antepassados com freqüência de maneira violenta, um crescente con- (a patrios politéia), uma Constituição que seja pluralista, que se flito entre pobres e ricos, no que os primeiros reivindicam origine da progressiva formação de uma pluralidade de forças e formas cada vez mais amplas de assistência pública e de tendências, tendo suas origens nos antepassados. os segundos lutam para impedir que ao problema da Estas ideias de Platão foram retomadas por seu discípulo indigência se responda com medidas radicais, com o Aristóteles, o qual fortaleceu o mito da “Constituição dos padres” confisco e redistribuição das terras. (FIORAVANTI, 2007, platônica, a Constituição originária, a qual teria por finalidade dar p. 15-16, tradução nossa ). uma resposta adequada aos problemas do presente, salvando a 6 unidade da polis, sendo um fundamento constitucional. Assim: A essa instabilidade social dá-se a nome de stásis. Ao Agora mais do que nunca, em Aristóteles a politéia não conceito de stásis contrapõe-se o conceito de eunomía, o bem é somente um instrumento conceitual para usar em sen- coletivo, a ordem da coletividade, valor positivo almejado pelos tido descritivo e de classificação: aspira, pelo contrário, antigos através da busca por um governo ideal, a melhor de go- a prescrever um futuro político dotado de constituição. verno possível para manter unida e assim desenvolver a comu- O que se quer para o futuro é uma política que possa nidade política. Neste sentido, os antigos não almejavam sua ser traduzida em politéia, em regime constitucional esta- soberania, menos ainda um Estado; os mesmos se referiam ba- velmente fundado. (FIORAVANTI, 2007, p. 22, tradução sicamente a um sistema de organização e de controle dos diver- nossa8). sos componentes da sociedade historicamente situada, construído para dar eficácia às ações coletivas e para que houvesse um pacífico reconhecimento do comum pertencimento político. Aristóteles, antes de reivindicar a Constituição dos antepassados, reivindica a necessidade de se extirpar os males que PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 1/2012 - EDIÇÃO 5 - ISSN 2176 7785 l 49 desestabilizavam a unidade da polis: a mercantilização da vida modernos irá se preocupar com a separação de poderes e com pública, a divisão e conflito entre pobres e ricos, como salienta- a instituição de direitos e garantias fundamentais. Os mesmos do. Neste sentido, Aristóteles considerava todas as formas de pensaram a Constituição como uma exigência a satisfazer como governo potencialmente justas: a monarquia, a aristocracia e a um ideal ético e político a se perseguir, um grande projeto de democracia; o que poderia ocorrer, sendo inaceitável para o Es- conciliação social e política. Por isto, ainda, é correto dizer que tagirita9, era a degeneração dessas formas, transformando-se a o principal inimigo da Constituição dos antigos é o tirano, sobre- monarquia em tirania, a aristocracia em oligarquia e a democra- tudo porque tal é aquele que divide a comunidade, dividindo-a, cia em demagogia. Assim, contra tais perigos, “a primeira tarefa rompendo o equilíbrio, se esquecendo da Constituição dos pa- é a de revalorizar e relançar o significado propriamente político, dres. (FIORAVANTI, 2007). e inclusive ético, da convivência civil” (FIORAVANTI, 2007, p. 23, Doutrinariamente sustenta-se que, durante o período me- tradução nossa ).o que não é somente o tráfico de riquezas ou dieval, ancorado numa concepção teocrática de poder, há o a mera coincidência de interesses econômicos, mas “sobretudo desaparecimento da necessidade de uma lei fundamental, ha- projeto de aperfeiçoamento moral, ademais de material: daqui vendo o eclipse da Constituição, afirmação essa rechaçada por que a obra aristotélica recorra continuamente ao grande tema da Fioravanti, para quem houve efetivamente uma Constituição me- virtude, da cidadania ativa”. (FIORAVANTI, 2007, p. 23, tradução dieval, diferente da Constituição dos antigos como também da nossa11). Constituição dos modernos, Constituição essa com característi- 10 Nestes termos, com esta defesa de Aristóteles e de Platão: cas próprias de uma era que durou mais de dez séculos, deste a necessidade de se instituir uma Constituição, ou seja, um fruto modo, uma era na qual não houve somente uma forma típica do de uma composição paritária dos interesses presentes na so- exercício do poder. ciedade, contrapondo-se a um regime instituído pela força, de Dentre as formas de poder, há que se salientar principal- modo violento, começa a tomar forma a chamada Constituição mente os poderes imperiais, os poderes dos senhores feudais dos antigos, à qual também os romanos prestarão contribuições e, principalmente, o poder eclesiástico. A característica comum à sua estruturação e gênese. Assim, pode-se afirmar que na destes centros de poder era a não-existência de nenhuma pre- Grécia antiga, especificamente em Atenas, está presente o pri- tensão totalizadora de poder entre os bens, ordens, desenvol- meiro precedente de uma ideia que perseguirá todo e qualquer vendo-se a vida econômica, patrimonial e social fora de previ- modelo de uma Constituição moderna, ou seja, uma forma de são normativa estatal, mas sim a força normativa e primária dos se configurar, limitar e legitimar o poder, ou seja, um governo costumes. de leis e não de homens, apontando o poder de uma estrutura objetiva e não da vontade de homens. Já no que se refere às funções da Constituição moderna, Francis Hamom, Michel Troper e Georges Burdeau (2005) afir- Por sua vez, os romanos elaboraram e defenderam o con- mam que a mesma possui funções jurídicas e funções políticas. ceito de Constituição Mista, a qual se traduz em uma teoria dos Ou seja, a Constituição deve, além de trazer os elementos es- cargos (magistraturas) e no equilíbrio dos poderes, tendo sido truturantes do Estado, fornecer os elementos essenciais à con- Marco Tulio Cícero (106-43 a.C) um de seus primeiros e prin- cretização dos direitos fundamentais. Deste modo, num Estado cipais defensores. Para Cícero toda a ordem estatal deve se Constitucional os direitos fundamentais são positivados no texto resumir na res publica (coisa do povo), sendo esse povo não constitucional, como acontece no Brasil contemporâneo, o qual uma multidão de indivíduos agregados a um território, mas sim o possui um documento constitucional que institui um Estado De- conjunto de indivíduos reunidos sob um consenso sobre aquilo mocrático de Direito, modelo inclusivo de Estado, que não privi- que consideram de direito e com interesses comuns. legia nenhum projeto de vida em detrimento a outro, prevalecen- Neste sentido, uma res publica forte somente pode se es- do o governo das leis sobre o arbítrio dos homens, ao mesmo truturar sob um fundamento pacífico e consensual, não podendo tempo em que se reconhecem e garantem as liberdades dos estar a mesma sustentada por um governo tirânico ou aristo- cidadãos. Em relação a tal ideia, Agustín Ricoy Saldaña (2001) crático. Para Cícero, a res publica necessita de uma particular salienta que: forma de união, à qual o mesmo denomina “forma mista e mo- [...] um Estado de Direito não se dá por geração espon- derada”, sendo esta forma evocada com a palavra constitutio tânea nem depende somente da vontade ou decisão como também frequentemente com a expressão status civitatis. de algum ator político em particular. Sua construção é Com isso, deflui-se que os antigos não haviam pensado a um processo que abrange a todos os atores políticos Constituição como uma norma, norma que durante os tempos relevantes e à cidadania, e não se esgota na edificação 50 | PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 1/2012 - EDIÇÃO 5 - ISSN 2176 7785 de um sistema jurídico ou constitucional. (SALDAÑA in ZEPEDA, 2001, p. 7, tradução nossa12). Modernamente, Antonio-Carlos Pereira Menaut (2006) define Constituição como “limite do poder, por meio do Direito, assegurando uma esfera de direitos e liberdades para o cidadão. Assim, o Estado de Direito se realiza e se expressa na norma Quando isso não ocorre não se pode falar de uma verdadeira legal, como também na edificação e no funcionamento efetivo Constituição, como dizia o famoso artigo 16 da Declaração fran- das instituições, assim como na cultura e nas práticas políticas cesa de 1789”. (MENAUT, 2006, p. 20, tradução nossa13). Neste dos atores, (SALDAÑA in ZEPEDA, 2001), sendo a Constituição sentido, a ideia de Constituição é distinta da ideia de “consti- o lócus das garantias e direitos fundamentais do sujeito. tuir”, tal jogo de palavras recorda que as Constituições não são pontos de partida que fundam, originam ou “constituem”, em 4 CONCLUSÃO sentido literal, uma sociedade, uma ordem jurídica, uma comuni- Como cediço, o Direito Constitucional ocupa-se do estudo dade política, assim as Constituições possuem uma capacidade sistemático das normas integrantes da Constituição do Estado, limitada de constituir, constituem somente o sistema político e principalmente de suas normas estruturantes: como a forma de não todo e nem em todos os casos. governo, o sistema político, a forma de Estado, os direitos fundamentais, a organização dos poderes estatais, a separação de REFERÊNCIAS poderes. O fundamento ideológico do surgimento das Constitui- ARANGO, Rodolfo. El concepto de derechos sociales fundamentales. Bogotá: Legis, 2005. ções é o pensamento liberal dos filósofos iluministas dos séculos XVII e XVIII, como Rousseau, Montesquieu e Locke, sendo as Constituições atuais inspiradas pelas Constituições dos séculos XVII e XVIII, fruto das revoluções de então: Revolução Inglesa, Revolução Francesa e Revolução Norte-Americana. Costuma-se também apresentar como antepassado da Constituição a Magna Charta Libertatum, documento imposto pelos nobres ao Rei João Sem Terra em 1215 na Inglaterra, como também a Petition of Rights de 1628, imposta ao rei inglês Carlos I. Assim, a Constituição como documento maior de um ordenamento jurídico pode ser apresentada por diversas concep- BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. BRASIL. Constituição (1988) Constituição da república federativa do Brasil. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2008. ções: política, jurídica e sociológica. A concepção política foi apresentada por Carl Schmitt na sua obra Teoria de la constitución, para quem a Constituição é a decisão política fundamental, apresentando o autor uma diferenciação entre Constituição e leis constitucionais. Assim, a Constituição disporia sobre as CUNHA, Paulo Ferreira da. Direito constitucional geral: uma perspectiva luso-brasileira. São Paulo: Método, 2007. FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: de la antiguedad a nuestros días. Madrid: Trotta, 2007. normas fundamentais, enquanto que as demais normas contidas em seu texto seriam leis constitucionais. Já a concepção jurídica foi apresentada pelo jurista de Viena, Hans Kelsen, em sua obra Teoria pura do direito, para quem a Constituição é o vértice, topo, de todo o ordenamento jurídico de um Estado, devendo as leis inferiores guardar consonância com a mesma, sob pena de serem declaradas inconstitucionais. HAMON, Francis; TROPER, Michel; BURDEAU, Georges. Direito constitucional. 27. ed. Barueri: Manole, 2005. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constitução: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1997. Assim, a Constituição tem como sustentáculo lógico-jurídico a norma hipotética fundamental. Por sua vez, a concepção sociológica, apresenta por Ferdinand Lassalle na obra O que é uma constituição, traz que a verdadeira Constituição é decorrente da soma dos fatores reais de LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001. MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. poder, não passando a Constituição escrita de uma mera “folha de papel”, podendo a mesma ser rasgada a qualquer momento, caso a mesma fira os fatores reais de poder. NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Teoría y dogmática de los derechos fundamentales. Cidade do México: UNAM, 2003. PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 1/2012 - EDIÇÃO 5 - ISSN 2176 7785 l 51 PEREIRA MENAUT, Antonio-Carlos. Lecciones de teoría constitucional. Madrid: Colex, 2006. PIMENTA, Marcelo Vicente de Alkmim. Teoria da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. RODRÍGUEZ ZEPEDA, Jesús. Estado de derecho y democracia. Cidade do México: Instituto Federal Electoral, 2001. SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. de manera particular en relación con el cada vez más intenso tráfico comercial y marítimo. La mercantilización de la polis produce también, con frecuencia de manera violenta, un creciente conflicto entre pobres y ricos, en el que los primeros reivindican formas cada vez más amplias de asistencia pública y los segundos luchan por impedir que al problema de la indigencia se responda con medidas radicales, con la confiscación y redistribución de las tierras. (FIORAVANTI, 2007, p. 15-16). 7 [...] politéia no es más que el instrumento conceptual del que se sirve el pensamiento político del siglo IV para enuclear su problema fundamental: la búsqueda de una forma de gobierno adecuada al presente, tal que refuerce la unidad de la polis, amenazada y en crisis desde distintos frentes. (FIORAVANTI, 2007, p. 19). NOTAS DE RODAPÉ 1 Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Gama Filho/RJ. Mestre e Doutorando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas. Professor no Curso de Direito da Faculdade Asa de Brumadinho/MG, da Faculdade de Pará de Minas/MG e da Faculdade de Direito da Universidade de Itaúna. Advogado. 8 Ahora más que nunca, en Aristóteles la politéia no es solo un instrumento conceptual para usar en sentido descriptivo y de clasificación: aspira por el contrario a prescribir un futuro político dotado de constitución. Lo que se quiere para el futuro es una política que pueda traducirse en politéia, en régimen constitucional establemente fundado. (FIORAVANTI, 2007, p. 22). 2 Graduada em Relações Internacionais pela Universidade de Itaúna. Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Discente do Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Itaúna. 9 Alcunha de Aristóteles, tendo em vista ter o mesmo nascido na cidade de Estagira na Macedônia. 3 O Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa traz a seguinte definição para o verbete “Constituição”: “Constituição: (do latim constitutione): s. f. 1. Ato de constituir, de estabelecer, de firmar. 2. Modo pelo qual se constitui uma coisa, um ser vivo, um grupo de pessoas; organização, formação. 3. Lei fundamental e suprema dum Estado, que contém normas respeitantes à formação dos poderes públicos, forma de governo, distribuição de competências, direitos e deveres dos cidadãos, etc.; carta constitucional, carta magna. 4. Conjunto de normas reguladas de uma instituição, corporação, etc.; estatuto. 5. Biotip. O conjunto das características anatômicas, funcionais, reacionais e psíquicas que marcam um indivíduo.” (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986). 4 Concepção apresentada por Ferdinand Lassalle em conferência pronunciada diante de um agrupamento de cidadãos de Berlim em abril de 1862. 10 [...] la primera tarea es la de revalorizar y relanzar el significado propiamente político, e incluso ético, de la convivencia civil. (FIORAVANTI, 2007, p. 23). 11 [...] sobre todo proyecto de perfeccionamiento moral, además de material: de aquí que la obra aristotélica recurra continuamente al gran tema de la virtud, de la ciudadanía activa. (FIORAVANTI, 2007, p. 23). 12 “[...] un Estado de derecho no se da por generación espontánea ni depende sólo de la voluntad o decisión de algún actor político en particular. Su construcción es un proceso que involucra a todos los actores políticos relevantes y a la ciudadanía, y no se agota en la edificación de un sistema jurídico o constitucional.” (SALDAÑA in ZEPEDA, 2001, p. 7). 13 “[...] límite del poder, por medio del Derecho, asegurando una esfera de derechos y libertades para el ciudadano. Cuando esto no se da no puede hablarse de verdadera Constitución, como decía el famoso artículo 16 de la Declaración francesa de 1789.” (PEREIRA MENAUT, 2006, p. 20). 5 “[...] límite del poder, por medio del Derecho, asegurando una esfera de derechos y libertades para el ciudadano. Cuando esto no se da no puede hablarse de verdadera Constitución, como decía el famoso artículo 16 de la Declaración francesa de 1789.” (PEREIRA MENAUT, 2006, p. 20). 6 Para los contemporáneos, en concreto, se trata de un tiempo de decadencia política provocada, sobre todo, por la transformación de la ciudad – la polis – de lugar de ejercicio de los derechos políticos de ciudadanía, de reconocimiento colectivo de una pertenencia política común, a lugar caracterizado preferentemente por la economía y el intercambio, 52 | PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 1/2012 - EDIÇÃO 5 - ISSN 2176 7785