1. Filosofia 1. O que é filosofia? Com quais tópicos os filósofos lidaram no passado, e com quais provavelmente lidarão no futuro? Os filósofos antigos às vezes discutiam questões abstratas e metafísicas, mas em geral não se distanciavam da vida, tentando entender o mundo, aconselhando as pessoas sobre como viver bem. Ensinavam-lhes como aceitar a pobreza, as doenças e a morte. Os filósofos antigos tentavam viver de acordo com a sua filosofia. Sua filosofia era relevante à vida, mesmo quando sua percepção dela era pessimista (um filósofo antigo, Hegésias, aconselhava as pessoas a não viver, e muitos de seus seguidores suicidavam-se. O rei Ptolomeu proibiu Hegésias de falar, com medo de que sua terra ficasse desabitada). Durante a Idade Média, a Filosofia não mais dizia às pessoas como viver. A religião começou a desempenhar o papel da Filosofia. A Filosofia ficou reduzida ao papel de “criada da teologia”, não sendo mais relevante à vida; emaranhou-se com a lógica e com o processo de pensamento, como fez no século XX. Durante a Renascença, a Filosofia libertou-se da religião e continuou a desempenhar o papel que tinha na Antigüidade. Um filósofo da Renascença, Montaigne, restituiu a tradição antiga, tentou entender o mundo e discutiu assuntos relevantes à vida. Outro filósofo da Renascença, Bacon, falava sobre a vida e também tinha um interesse muito grande pela ciência. Depois da Renascença, alguns filósofos, como Emerson e Thoreau, levaram em frente a tradição de Montaigne e passaram a discutir a vida. Outros, como Pascal e Kierkegaard, falavam sobre como as pessoas deveriam viver como cristãos. Outros ainda, como Descartes, Leibniz e Kant, lidaram com a metafísica, com a matemática e a ciência. A França produziu vários filósofos – La Rochefoucauld, La Bruyère, etc. – que ignoravam a metafísica e a ciência, oferecendo explicações da natureza humana e da condição humana. Os filósofos modernos mais expressivos, Schopenhauer e Nietzsche, não se preocupavam nem com a defesa da religião e nem com a ciência, mas com a exploração do inconsciente e com a compreensão da natureza humana. No futuro, os filósofos continuarão o trabalho de Schopenhauer e Nietzsche. O futuro da Filosofia está fora da religião, fora da metafísica e fora da ciência. O futuro da Filosofia está na Psicologia, na Ética, na Política, na Estética e na Filosofia da História. 2. Filosofia sem vida. Os filósofos contemporâneos passaram a preocupar-se com a linguagem, com o processo de pensamento e com o processo de definição da verdade. Esses tópicos não estão relacionados com a vida; não aprofundam nosso entendimento da realidade e nem nos ajudam a viver. Se você pedir a um filósofo de hoje para discutir o objetivo da vida e do Estado, ele dirá: “Primeiro temos de definir nossos termos. O que é “objetivo”? O que é “vida”? O que é “Estado”? A seguir esse filósofo estará emaranhado em uma rede semântica e pedirá a você para voltar em uma semana. Quando você voltar, ele dirá: “Estou progredindo na minha definição de ‘objetivo’, mas ainda não comecei a definir ‘vida’ ou ‘Estado’. Volte na próxima semana.” Uma semana depois, ele dirá: “Agora percebo que não tenho uma idéia clara do que é uma definição. Antes de eu ir em frente, terei de definir ‘definição’. Volte na próxima semana.” Depois de ouvir isso, você perceberá que fez a pergunta à pessoa errada, que um filósofo comum não pode nem aprofundar seu conhecimento da realidade e nem aconselhá-lo sobre como viver. Pelo fato de a Filosofia de hoje não lidar com a realidade, ela não tem nenhum papel a desempenhar fora da academia. A Filosofia deveria sair da sala de aula, entrar no mundo e fazer referência às grandes questões que todo o ser humano faz. A Filosofia deveria ocupar-se de questões substanciais e não apenas com questões processuais. Quando a filosofia está apenas voltada ao processo, torna-se estéril, rasa e oca – e é justamente isso o que a Filosofia contemporânea se tornou. Os filósofos de hoje querem tirar filósofos como Thoreau da Filosofia, encaixando-os na Literatura ou na História. Thoreau discutia valores, como um verdadeiro filósofo sempre faz; o filósofo de hoje, por outro lado, não discute valores, não fala sobre a maneira pela qual as pessoas deveriam viver. Thoreau viveu sua filosofia, não apenas a debatia em sala de aula para viver dela; para Thoreau, a filosofia era um modo de vida, não um emprego. Já que Thoreau será sempre lido pelos leigos, sempre terá um lugar no mundo, ao passo que o filósofo burocrata será sempre ignorado, tendo lugar apenas na academia. 3. Filosofia com vida. Montaigne fala abertamente sobre o prazer sexual e também sobre o prazer de comer e beber. Isso aconteceu porque a França, à época de Montaigne, era pouco influenciada pelo protestantismo ascético e pela Contrareforma. Montaigne foi um produto da Renascença e demonstra como o espírito da Renascença está próximo do espírito do paganismo antigo. O Cristianismo teve muito menos influência sobre Montaigne do que teve a cultura antiga. Emerson, espantado com o tratamento que Montaigne dava às questões sexuais, disse: “uma indecência grosseira e semi-selvagem fundamenta o livro (de Montaigne)”. Uma comparação entre Montaigne e Emerson demonstra o quanto foi profundo o efeito do protestantismo ascético, mesmo para um homem como Emerson, que dele estava separado por muitas gerações. Uma comparação entre Shakespeare e Milton também demonstra o efeito do protestantismo ascético; Shakespeare, um espírito do Renascimento, fala muito mais abertamente sobre sexo do que Milton, um espírito puritano. Montaigne é o mais conhecido dos filósofos – todos gostam dele. Emerson, por exemplo, embora deplorasse a “indecência” de Montaigne, disse o seguinte sobre os Ensaios do autor francês: “Nenhum livro foi tão importante para mim quanto este”. Quando Flaubert recebeu uma carta de uma mulher que estava deprimida, escreveu a ela: “Você me pergunta sobre o que deve ler. Leia Montaigne... Ele vai acalmá-la... Você vai adorá-lo, com certeza.” Nietzsche, que admirava Montaigne por sua honestidade, disse: “A alegria de viver neste mundo aumenta pela existência de um homem desses”. Pascal, que foi um cristão devoto, atormentado por uma consciência escrupulosa, intrigava-se com a consciência tranqüila de Montaigne e com o seu amor pela vida. Mas Pascal não deixava de gostar de Montaigne. Será que alguém já deixou? Montaigne é popular ainda hoje e [era o filósofo favorito do filósofo americano Eric Hoffer]. Por que Montaigne é tão popular? Porque ele é honesto, pessoal e íntimo; leva o leitor a seus pensamentos mais íntimos e a suas experiências pessoais. Montaigne trata a literatura como uma forma de amizade; Montaigne disse que um de seus propósitos ao escrever era comunicar-se com espíritos afins e fazer amizades. Discute assuntos fundamentais, como a educação, a morte, a verdade, a amizade e o amor, ilustrando suas observações com citações de escritores da Antigüidade (o seu entusiasmo com a aprendizagem e a sua propensão às citações são típicas do Renascimento). Montaigne não representa escola de pensamento ou teoria alguma – ele escreve como um ser humano que escreve para seres humanos. Não se importa com questões processuais e não tem nenhum interesse pela lógica ou pela metafísica. Montaigne nos apresenta a filosofia sem sofismas. Apesar de bastante conhecido, Montaigne é ignorado pelos professores de hoje, que insistem em transformar a filosofia em uma abstração vazia, em um jogo mental estéril. Esse fato não surpreenderia o autor francês, pois ele conhecia a tendência da academia de remover toda a seiva, todo o sangue, toda a vida da filosofia. “É realmente uma pena que a filosofia seja agora (...) um nome sem sentido e quimérico, algo sem uso ou valor... a causa, eu acho, está nas picuinhas que impedem que dela nos aproximemos.”1 4. Uma síntese das Humanidades (Ciências humanas). A Filosofia se preocupa não só com o que é, mas também com o que deveria ser. Esses dois aspectos têm igual importância. Quando a Filosofia lida com “o que é” no que diz respeito ao indivíduo, ela tem um caráter psicológico; quando lida com “o que deveria ser”, Montaigne, Ensaios, “Da educação das crianças”. As observações de Emerson sobre Montaigne estão em The Heart of Emerson’s Journals, editado por Bliss Perry, nas entradas 12/25/31 e 3/43; Para Flaubert, ver as Cartas, 6/57; Para Nietzsche ver os seus Ensaios extemporâneos, “Schopenhauer como educador”. 1 no que diz respeito ao indivíduo, é ética. Assim, tanto a Psicologia quanto a Ética fazem parte da Filosofia. A Filosofia não se importa apenas com o indivíduo, mas também com a sociedade, com a política. Aqui, também, há dois temas: o que é e o que deve ser. O conhecimento do presente, do que é, exige que se conheça o passado, o que foi. Quando esse conhecimento do passado se relaciona com o indivíduo, temos as biografias; quando se relaciona à sociedade, temos a História. Assim, as biografias e a História também fazem parte da Filosofia. A biografia explica o que foi, e também oferece modelos do que deveria ser. Da mesma forma, a História explica o que foi, e também oferece modelos do que deveria ser. A Filosofia combina a Arte e a Psicologia, a Ética e a Política, a Biografia e a História. A Filosofia é uma síntese das Humanidades e está para elas como o declato está para andar, correr, saltar e lançar. Também poderíamos comparar a Filosofia ao maestro, que sabe como integrar todos os instrumentos de uma orquestra para obter uma unidade. Assim como o maestro tem em geral uma compreensão mais profunda de um instrumento do que aqueles que o executam, também o filósofo tem um conhecimento mais profundo das Humanidades do que aqueles que se especializam em alguma delas. 5. O filósofo como cientista. Embora o filósofo lide com as Humanidades – com o homem – ele tem muito em comum com cientistas como Newton e Einstein, que lidam com a natureza, com o mundo físico. Tanto o filósofo quanto o cientista passam pelo desafio de descobrir a verdade, e pelo prazer de obter uma nova visão do mundo. Os que conseguem fazê-lo compartilham esse prazer, passando a ver o mundo de uma maneira diferente. Muitos, contudo, rejeitam essa nova visão e apegam-se a uma mais antiga; o filósofo e o cientista têm dificuldade em persuadir as pessoas a aceitar suas teorias revolucionárias. O filósofo lida com diferentes ramos da Filosofia – Psicologia, Política, Literatura, etc. Da mesma forma, o cientista em geral lida com diferentes ramos da ciência – Mecânica, Óptica, Astronomia, etc. O filósofo e o cientista geralmente elaboram suas principais idéias quando jovens, por volta dos vinte anos. Os sentimentos vagos de criança evoluem para insights de um adolescente, tornandose, finalmente, a obra madura do adulto. As idéias do filósofo e do cientista parecem ter nascido com eles, como se fossem partes de seu corpo. Suas idéias são as idéias de sua época, e não poderiam ter sido descobertas em um século anterior. Suas idéias tomam como base as idéias de pensadores anteriores ou, então, configuram uma combinação delas. 6. Um leitor. O filósofo escreve principalmente para um leitor, para um discípulo. Esse leitor assemelha-se a ele, é ele mesmo em uma idade mais tenra, ele mesmo transplantado para o futuro. Esse leitor é a única pessoa que entende completamente a obra do filósofo; é o melhor crítico de que ele dispõe, podendo suplantá-lo, levando-a a uma nova condição. Assim, Aristóteles foi o melhor crítico de Platão, e o superou; Nietzsche foi o melhor crítico de Schopenhauer, e o superou. 7. Qual a origem da filosofia? De acordo com Aristóteles, a filosofia se origina com a capacidade de admirar-se, espantar-se. Aristóteles tinha em mente os filósofos pré-socráticos, que especulavam sobre as estrelas, a Terra, etc., e supunha que eles haviam sido levados a filosofar pelo sentimento de admiração e espanto diante do universo. Os filósofos ainda hoje se espantam e admiram, mas esse sentimento é mais provavelmente despertado pelos homens do que pelas estrelas; o filósofo moderno se espanta com o poder do inconsciente, com os fatos históricos, com obras de arte e com outros fenômenos humanos. Mas o filósofo não se motiva apenas pela admiração. Ele também se motiva pelo interesse pelos problemas levantados pelos filósofos que o antecederam. Todo filósofo começa de onde o filósofo anterior parou. Outra força que impulsiona a Filosofia é o sofrimento; o filósofo se motiva pelo desejo de suplantar o sofrimento, pelo desejo de tornar a vida palatável – para ele e para os outros. Finalmente, o filósofo é motivado pelo instinto de vida, uma urgência metade consciente, metade inconsciente, de melhorar o mundo e de beneficiar a humanidade. Essa urgência motiva não só o filósofo, mas também muitos tipos de comportamentos culturais e políticos. 8. Da Física à Psicologia. Os filósofos pré-socráticos observavam o universo e tentaram reduzir a multiplicidade dele a um elemento físico apenas – à água, ao ar ou ao fogo, por exemplo. Os filósofos modernos, por outro lado, voltam-se ao homem e tentam ver a natureza humana em termos de um elemento psicológico – por exemplo, uma vontade de vida, uma vontade de poder ou os instintos de vida e de morte. Enquanto os pré-socráticos lembravam os físicos, os filósofos modernos lembram os psicólogos. Enquanto os pré-socráticos estudavam o mundo exterior, os filósofos modernos estudam o mundo interior. 9. A Metafísica, de Parmênides a Schopenhauer. Todos sabem que a Metafísica desempenhou um papel importante na Filosofia Ocidental, mas poucos sabem o que é Metafísica. O que é Metafísica? Qual a sua finalidade? Como ela surgiu? A Metafísica originou-se com os pré-socráticos, com Parmênides em especial. A história da Metafísica ocidental está prevista em Parmênides, o qual percebeu que todas as coisas mudavam, que todas as coisas existiam e depois deixavam de existir. Parmênides faz com que nos lembremos do rei persa Xerxes, que, ao observar seu imenso exército do topo de uma montanha, chorou pelo fato de que em cem anos nada dele restaria. Parmênides buscava alguma coisa que realmente existisse, alguma coisa sólida, estável e permanente. Parmênides chegou à conclusão de que todas as coisas surgiam de um ser fundamental e que, embora fossem instáveis e flutuantes, o ser em si mesmo era estático e permanente. De acordo com Parmênides, as coisas na verdade não passavam a existir, já que o ser é imutável, e nem deixavam de existir; em vez disso, as coisas tornavam-se manifestas, e depois não mais podiam ser vistas. Parmênides dizia que o ser verdadeiro era permanente e só podia ser conhecido por meio da razão e do intelecto. O mundo das coisas, por outro lado, era ilusório, sendo percebido pelos sentidos. Os sentidos, por serem mortais, percebem apenas aquilo que também o é, enquanto a razão e a inteligência são imortais, percebendo o que é imortal. A teoria de Parmênides é altamente abstrata; se a Filosofia é uma evolução do abstrato ao concreto, como dizia Hegel, Parmênides representa o extremo da abstração, o ponto de partida da Filosofia. Platão, assim como Parmênides, considerava o mundo das coisas como sendo algo ilusório. Platão dizia que o ser verdadeiro está no mundo das idéias; para ele, as idéias são eternas, assim como Deus. A maior parte das pessoas, de acordo com Platão, vive no mundo dos sentidos, das sensações, e não no mundo das idéias. Platão dizia que as pessoas que vivem no mundo das sensações são como prisioneiros de uma caverna, que não conhecem nada do mundo, exceto as sombras que vêem nas paredes da caverna. A Metafísica platônica era poética e metafórica. Aristóteles considerava a Metafísica como “a primeira filosofia”, o mais alto e importante ramo da Filosofia. Aristóteles dizia que o ser verdadeiro era imutável e indivisível, assim como Deus; o conhecimento do ser verdadeiro equivalia ao conhecimento de Deus. Aristóteles equiparou a metafísica à teologia. No centro da filosofia de Aristóteles estava a metafísica, e no centro dessa metafísica, Deus. Dessa forma, Aristóteles foi muito bem aceito pelos pensadores cristãos, para quem Deus era de extrema importância. A metafísica de Aristóteles exerceu uma enorme influência sobre os filósofos medievais, especialmente Tomás de Aquino. Depois da Idade Média, Descartes e Spinoza deram continuidade à tradição aristotélica, buscando uma definição de Deus e a prova de sua existência por meio da razão metafísica, que aspirava a ser tão clara e indiscutível quanto a geometria. Kant argumentou que o homem nada pode provar sobre Deus, sobre o mundo do ser verdadeiro, sobre a coisa-em-si. Kant dizia que o homem somente podia provar aquilo que se relaciona com as coisas particulares, com o mundo aparente, com o mundo fenomênico. Assim, a metafísica kantiana parecia hostil à religião. Porém, se a observamos mais de perto, fica evidente que tal metafísica estava muito próxima da religião. Embora não se possa sustentar a religião com nenhuma espécie de prova, para Kant havia espaço para a crença religiosa. Não se pode provar a existência de Deus, mas não se pode provar também que ele não existe. Para Kant, a religião era uma questão de crença e não de conhecimento racional. Assim, a metafísica ainda se constituía em uma aliada da religião. Mas essa longa aliança entre metafísica e religião, uma aliança que começou com Parmênides, terminou com Schopenhauer. Schopenhauer concordava com os primeiros metafísicos em que o mundo das coisas, o mundo dos sentidos, era ilusório. A diferença era que para o filósofo alemão o mundo do ser verdadeiro, da realidade primeira, não se relacionava a Deus, mas à “Vontade”. Na matéria inanimada, essa Vontade é pura massa, gravidade. Na vida orgânica, essa Vontade é vontade de viver e de reproduzir-se. O que Schopenhauer chamava de Vontade assemelha-se com o que os pensadores posteriores chamariam de inconsciente. Enquanto Kant deixava um espaço para Deus, Schopenhauer dividia o mundo entre a Vontade e idéia, isto é, entre a Vontade e nossas idéias sobre as coisas. Schopenhauer não deixou espaço para Deus. Assim, a metafísica deixou de ser teológica, tornando-se psicológica. Schopenhauer foi o primeiro ateu convicto da Filosofia ocidental. Mas o seu ateísmo não era algo estridente, como foi o de Nietzsche; Schopenhauer simplesmente deixou Deus de fora, colocando o inconsciente em seu lugar. Os primeiros pensadores diziam que o homem era essencialmente consciente e racional; Schopenhauer foi o primeiro a dizer que o homem era essencialmente inconsciente e irracional, que a consciência era apenas algo que encobria o inconsciente. 10. Contradições. Tomás de Aquino usou a Metafísica para provar que Deus criou o mundo a partir do nada por meio de um ato de livre arbítrio. Spinoza usou a Metafísica para provar que Deus não apenas era a força criadora por trás da natureza, mas a própria natureza; de acordo com Spinoza, tudo é Deus. Schopenhauer usou a Metafísica para provar que não há Deus e que a vida é essencialmente sofrimento, um sofrimento sem sentido. Ao longo da história, os filósofos usaram a Metafísica para provar uma ampla gama de hipóteses, para provar qualquer coisa que quisessem. Como é que se pode sustentar que a Metafísica leva à verdade, quando ela chega a conclusões tão contraditórias? 11. O futuro da Metafísica. A Metafísica diz que o “ser verdadeiro” está além das ilusões dos sentidos, além da dança dos fenômenos. A Metafísica busca o “ser verdadeiro” em um mundo de permanência e pureza, de razão e de lógica. Esse mundo do “ser verdadeiro” é ilusório. O único mundo real é o mundo fenomênico. São os metafísicos, e não o resto da humanidade, que estão presos na caverna de Platão, presos em um mundo ilusório. Mas a Metafísica desempenhou um papel importante na história do pensamento ocidental e não pode ser completamente descartada, como se fosse algo inútil. A História tem uma razão e uma lógica próprias, e tudo que tenha desempenhado um papel importante na História, como é o caso da Metafísica, possui um determinado valor e um determinado propósito. Quando o homem ocidental era ainda uma criança em termos intelectuais, sem poder de abstração, a Metafísica treinou-o a olhar para além do particular, fazendo-o pensar no geral. Como a moralidade ascética, a Metafísica contribuiu para a educação do homem do Ocidente. É, contudo, improvável que a Metafísica tenha um lugar no futuro da filosofia. 12. Lógica. A Lógica estabelece as regras do pensamento, assim como a gramática estabelece as regras de um idioma. Mas é possível pensar e filosofar sem estudar lógica, assim como é possível escrever bem sem estudar gramática. Como a Metafísica, a Lógica não é parte essencial da Filosofia. Assim, a Lógica e a Metafísica não serão encontradas em muitos filósofos ocidentais, como Montaigne, Emerson e Nietzsche. Da mesma forma, a Lógica e a Metafísica não estão presentes nos grandes filósofos chineses, como Confúcio, Mencio, Lao-tsé e Zhuangzi. Se a Lógica tem algum valor, este se dá sob a forma de treinamento intelectual. A Lógica está para a Filosofia assim como o levantamento de peso está para o tênis. Algumas pessoas dizem que o levantamento de peso fará com que o tenista jogue um pouco melhor, enquanto outras dizem que o prejudicará – tornando-o menos flexível, etc. Seja como for, muitos dos melhores tenistas jamais levantaram peso. Da mesma forma, algumas pessoas pensam que a Lógica fará com que o filósofo pense melhor, enquanto outras dirão que a Lógica apenas o prejudicará – distraindo-o de estudos mais importantes, tornando-o mais seco etc. Seja como for, muitos dos melhores pensadores jamais estudaram Lógica. Quando se busca entender o mundo, e quando se busca o saber acerca da vida, não se deve apelar para a Lógica, mas para um tipo diferente de filosofia, ou para a Literatura, ou para a Psicologia, ou para a História. A Literatura e a História estão mais próximas da realidade, mais próximas da verdade do que a Lógica e a Metafísica. Muitas pessoas, contudo, acham a realidade algo detestável e sentem-se felizes em ignorá-la, voltando-se à Lógica e à Metafísica. Quando Freud diz que todo homem tem um desejo inconsciente de assassinar o pai e de manter relações com a mãe, muitas pessoas se assustam e abandonam a Psicologia, não porque isso seja falso, mas porque lhes é desagradável. A verdade sempre tem algo de desagradável, como a própria realidade. São poucos os que buscam entender a realidade independentemente do quanto ela seja desagradável, mas são esses os verdadeiros filósofos. Eles não buscam a sabedoria na Lógica e nem na Metafísica. 13. Schopenhauer e Hegel. Schopenhauer é importante porque instaurou o problema do ateísmo e do inconsciente, preparando, assim, o caminho para Nietzsche e Freud, os pensadores recentes mais profundos. Durante o começo do século XIX, quando Schopenhauer era jovem, Hegel era indiscutivelmente o rei da filosofia alemã. Hegel pensava ter atingido o ápice da sabedoria filosófica, mas, no mesmo local em que fazia suas conferências, onde discutia como a filosofia havia atingido o seu último estágio, estava um jovem filósofo, Arthur Schopenhauer, que descobriu um continente de cuja existência Hegel jamais suspeitou. Enquanto Schopenhauer preparava o caminho para Nietzsche e Freud, Hegel não teve influência alguma sobre esses pensadores. Embora Hegel fosse famoso por sua Metafísica e por sua Lógica, sua importância reside na sua teoria da sociedade como um organismo. Essa teoria influenciou aqueles que, no século XX, dedicaram-se à Filosofia da História. Enquanto Hegel preocupava-se com a história, Schopenhauer dedicava pouca atenção a ela; Schopenhauer não tomou muito conhecimento da história, assim como Hegel não deu muita atenção ao problema do ateísmo e do inconsciente. Schopenhauer considerava a história como uma cadeia de fatos aleatórios, carentes de significado filosófico. Schopenhauer defendia a posição de que a preocupação de Hegel com a história era um desvio da verdadeira filosofia. O filósofo geralmente pensa que descobriu toda a verdade (e seus seguidores com ele concordam), mas apenas descobriu parte dela. A importância de um filósofo é em geral mal interpretada por seus contemporâneos, e também pelo próprio filósofo. A importância de um filósofo torna-se mais clara quando sua influência sobre os pensadores seguintes se torna evidente. 14. Nietzsche. Quando tinha cerca de vinte e poucos anos, Nietzsche idolatrava Schopenhauer. Por volta de seus trinta e poucos anos, contudo, quando escreveu Humano, demasiado humano, passou a discordar de muitas opiniões de Schopenhauer. Por exemplo, enquanto Schopenhauer criticava o embate, Nietzsche o apreciava, enquanto Schopenhauer louvava o estudo de línguas estrangeiras, Nietzsche o criticava, e enquanto Schopenhauer achava o barulho algo insuportável, Nietzsche achava o barulho uma distração agradável. A razão pela qual Nietzsche discordou de Schopenhauer foi a de emancipar-se, a de tornar-se um filósofo, alguém que estivesse no mesmo nível de Schopenhauer. Depois de emancipar-se de Schopenhauer, Nietzsche não mais se sentia inclinado a discordar dele. Porém, Nietzsche realmente acusou Schopenhauer de construir uma elaborada postulação metafísica para sustentar suas opiniões pessoais sobre a moralidade e o mundo em geral, assim como também acusou Kant de construir um elaborado postulado metafísico para sustentar sua própria crença em Deus e na moralidade cristã. Para Nietzsche, os postulados metafísicos eram construídos não para chegar à verdade, mas para sustentar opiniões pessoais. E as opiniões pessoais de um filósofo, para Nietzsche, eram a expressão dos instintos desse filósofo. Nietzsche criticou Kant e Schopenhauer não pela construção de maus postulados, mas por terem opiniões decadentes e instintos decadentes, por esconderem suas opiniões sob a fachada de um pensamento elaborado. Quando Nietzsche optou por escrever aforisticamente, passou a rejeitar a metafísica alemã, adotando, no lugar dela, a tradição dos aforistas franceses. 15. A idéia de tempo. Durante a época de Cristo, uma das idéias que prevalecia era a repressão do inconsciente; outra idéia foi a do fim do mundo e a do começo de uma época de ouro, que muitos achavam que chegaria logo. Durante a Renascença, a idéia da época foi a de que o homem, pela observação e pela experimentação, poderia entender o mundo natural; assim encontramos a fascinação pelo mundo natural em Bacon, Descartes, Leonardo e Montaigne. Durante o final do século 18 e o século 19, uma idéia da época foi o ateísmo: os revolucionários franceses, Schopenhauer, Marx e Nietzsche são exemplos disso. Outra idéia da época do século 19 foi a evolução das espécies: Goetehe, Wallace e Darwin são exemplos disso. Ao final do século 19, a idéia da época era a psicologia e o inconsciente: Schopenhauer, Nietzsche, Charcot, Janet e Freud são exemplos disso. Durante o século 20, a idéia da época é a Filosofia da História; Spengler, Sorokin, Toynbee e Ortega são exemplos disso. 16. Intuição. Não há pensadores inteiramente originais. Uma idéia é sempre plantada pelos predecessores. Uma vez completamente desenvolvida, torna-se a idéia de sua época, e é comum que mais de um pensador tire proveito dessa colheita. As idéias mais profundas de um filósofo são alcançadas pela intuição, não pela razão. As idéias mais profundas de um filósofo em geral lhe surgem quando ainda é jovem. O filósofo é alguém que, enquanto jovem, tem uma percepção intuitiva da idéia de sua época. Os primeiros pensadores nos levam em direção à verdade. A intuição, o dom do gênio, descobre a verdade. 17. Como podemos superar Nietzsche. A não ser que a civilização entre em uma era obscura, as idéias sempre progridem, o conhecimento sempre avança e a consciência sempre se expande. Assim, a filosofia mais recente tende a suplantar as filosofias anteriores, fazendo-as obsoletas; como Schopenhauer disse: “Tem ocorrido com a filosofia o que ocorre em uma sala de audiências, onde aquilo que a última pessoa diz anula o que foi dito antes.”2 Schopenhauer gozou de fama internacional na segunda metade do século 19, quando parecia ter suplantado os filósofos anteriores. Ao final do século 19, contudo, Nietzsche eclipsou-o, e Schopenhauer começou a afundar na obscuridade. Ninguém ainda conseguiu eclipsar Nietzsche; mais do que qualquer outro filósofo, ele inspira os jovens e é o modelo a que os jovens filósofos tentam chegar. Nietzsche não só não foi suplantado, como ainda não foi entendido; ninguém ainda entendeu sua teoria da decadência, ou sua teoria da moralidade como sendo algo decadente. Antes de ser suplantado, o filósofo precisa ser entendido. O reinado de Nietzsche acabará logo, tão logo quanto um filósofo entender a filosofia de Nietzsche, e depois superá-la com a ajuda de outros pensadores. Nossa época pode suplantar Nietzsche com a ajuda dos grandes psicólogos que vieram depois dele. Podemos ver além de Nietzsche, apoiando-nos nos ombros de gigantes. 18. Dois tipos de filósofo. Quando superarmos Nietzsche, seus livros serão considerados dispensáveis? Quando Nietzsche superou Schopenhauer, os livros deste foram considerados dispensáveis por ele? Que valor a obra de um filósofo tem depois de ter sido superada por um filósofo posterior? Ela tem apenas interesse histórico ou valor duradouro? A obra de um filósofo tem valor duradouro, diferentemente do trabalho de um cientista, que em geral tem apenas interesse histórico depois de ser superada. 2 Citado em H. Zimmern, Schopenhauer: His Life and Philosophy, ch. 5. Alguns filósofos, como Schopenhauer e Nietzsche, estabelecem uma idéia central e ampliam os limites do conhecimento humano. Mas suas obras não consistem apenas nessa idéia central, contendo muitas outras idéias. Muitas delas têm um valor duradouro, mesmo quando a idéia central é superada por outros pensadores. As observações de Schopenhauer sobre estilo, por exemplo, têm valor duradouro, mesmo que sua teoria do inconsciente tenha sido superada por pensadores posteriores. Outros filósofos, como Emerson e Thoureau, não estabelecem uma idéia central, e não ampliam os limites do conhecimento humano. Suas obras são atemporais e não podem ser superadas, mas não são tão originais como as obras de filósofos como Schopenhauer e Nietzsche. 19. Quem é filósofo? Quando Thoreau estava vivo, e publicava artigos sobre as maçãs selvagem e o Monte Katahdin, quem o considerava um filósofo? Quando Kierkegaard estava ficando conhecido por seus escritos sobre Mozart e o drama francês, quem o considerava um filósofo? Os melhores filósofos em geral só são considerados filósofos muito tempo depois de morrerem. Além disso, os melhores filósofos em geral têm pouco interesse pelos grandes filósofos. Nietzsche, por exemplo, pouco se interessava por Aristóteles; interessava-se muito mais pelas óperas de Wagner e pelos romances de Dostoievski. Montaigne se interessava mais por Virgílio e Tácito do que por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Thoreau prestou pouca atenção em Kant e Hegel; ele preferia ler sobre uma expedição que buscava a fonte do Nilo ou sobre uma viagem ao Pacífico Sul. Mas Nietzsche leu Schopenhauer com muita atenção, e Thoreau assim também leu Emerson; Filósofos como Nietzsche e Thoreau talvez tenham pouco interesse pela história da filosofia, mas tem um interesse especial por um Filósofo, e seu trabalho o considera como ponto de partida. 20. Jung. O pensador filosófico mais importante do século 20 é Jung, mas não é ainda reconhecido como filósofo, não recebe um capítulo na História da Filosofia e não é discutido nos departamentos acadêmicos de Filosofia. Muito da obra de Jung explora a essência da vida que Parmênides chamou de ser, que Kant chamou de coisa-em-si e que Schopenhauer chamou de Vontade. Schopenhauer havia dito que a Vontade é cega e sem propósito, como um cachorro que corre atrás do próprio rabo; Schopenhauer era pessimista. Mas Jung disse que o inconsciente tem uma meta, Jung disse que o inconsciente contém arquétipos (imagens, padrões), e o mais importante deles é o arquétipo do ser, que nos puxa para a totalidade e para o equilíbrio, assim como o Pólo Norte atrai a agulha de uma bússola. Jung disse que o arquétipo do ser é idêntico a Deus e que nos referirmos a ele como “arquétipo do ser’ ou “Deus” trata-se simplesmente de uma questão de escolha. Jung não era pessimista como Schopenhauer foi; Jung vê chances de crescimento espiritual. Enquanto Schopenhauer e Nietzsche desdenhavam a religião, Jung respeitava a tradição religiosa e apontava o caminho para novas idéias religiosas. Enquanto Nietzsche dizia “Deus está morto”, Jung diz que Deus evolui, assim como a mente humana. Jung não elaborou uma distinção aguda entre espírito e matéria. Achava que havia uma conexão entre ambos, entre o homem e a natureza, entre o mundo interior e o mundo exterior. Um arquétipo, no ponto de vista de Jung, não era nem puramente psíquico nem puramente físico, era tanto um quanto outro – “psicóide” (para usar o termo de Jung). Da mesma maneira que os romanos viam uma conexão entre o vôo dos pássaros e o resultado de uma batalha, da mesma maneira que os chineses viam uma conexão entre um terremoto e a morte de um imperador, Jung também via conexões entre o mundo humano e o mundo natural. Ele se referia a essas conexões como “sincronicidade” – isto é, coincidência significativa; ele chamava a sincronicidade de “princípio de conexão acausal”. Jung era fascinado pelos fenômenos ocultos de todos os tipos e acreditava que tais fenômenos mereciam ser estudados. Kant havia dito que o espaço, o tempo e a causalidade eram meras categorias da mente humana, pertencendo apenas ao mundo das aparências, e não a coisa-em-si. Os fenômenos ocultos violam as leis do espaço, do tempo e da causalidade. Schopenhauer e Jung, que estudaram Kant, tentaram explicar os fenômenos ocultos em termos da relatividade do tempo e do espaço. Quando, por exemplo, um dos pacientes de Jung se matou e Jung sentiu uma dor na parte posterior da cabeça, ele viu esse incidente à luz da teoria de Kant. E quando Jung teve uma visão da Primeira Guerra Mundial antes de que ela começasse, ele disse que o futuro pode ser previsto porque se prepara adiantadamente – o tempo é relativo, não absoluto. As idéias de Jung em geral estão de acordo com crenças antigas, e também com crenças orientais. As idéias de Jung também estão de acordo com as dos alquimistas ocidentais. Como Jung, os alquimistas acreditavam que o psíquico e o físico estão sobrepostos. Os alquimistas falavam em unus mundus, um mundo só, a união da matéria e do espírito. Também falavam de “corpos sutis” (ou “corpos etéreos”), que são em parte físicos, em parte psíquicos. O conceito de “corpos sutis” é usado pelos junguianos para explicar fenômenos psíquicosomáticos no campo da medicina. O poder da mente não tem limites; a mente não só causa mudanças no corpo, mas também no mundo exterior. Como um alquimista disse, a mente pode trazer à luz “muitas coisas da mais extrema profundidade para fora do corpo” 3 Corpo e mente se sobrepõem; não há um “espírito puro”, divorciado da matéria, e não há “matéria morta”, desprovida inteiramente de espírito e energia. O universo inteiro está coberto de energia, com um tipo de consciência. Muitos anos passarão até que Jung seja discutido nos departamentos acadêmicos de filosofia. Jung lida com o mundo invisível, o misterioso, ao passo que os acadêmicos preferem lidar com aquilo que se pode colocar no quadronegro; Jung lida com o não-racional, enquanto os acadêmicos se dedicam ao 3 Michael Sendivogius, citado em Aniela Jaffé, From the Life and Work of C. G. Jung, ch. 2, p. 75 pensamento racional; Jung lida com o oculto, enquanto os acadêmicos evitam o oculto e o consideram com uma mistura de medo e aversão. 21. Zen. Como Jung, o Zen é uma parte importante do pensamento moderno, também negligenciada nos departamentos de filosofia. O Zen é altamente prático, e fala diretamente aos nossos valores e vida cotidiana. Não se volta aos livros ou à abstração, e não pode ser colocado em um quadro-negro. Não se pode entender o Zen lendo a respeito dele; deve-se praticá-lo, senti-lo. O Zen tem a atitude positiva e afirmativa que se encontra em Nietzsche, a desconfiança na razão que se encontra em Jung e o sentimento de afinidade para com a natureza, que se encontra em Thoreau. Como Jung, o Zen aponta o caminho para o crescimento espiritual e para novas idéias religiosas. 22. Há muito tempo e longe daqui. Muitas pessoas acreditam que o conhecimento não se move para a frente, que ele caminha para trás, como um caranguejo. Muitas pessoas acreditam que o tipo mais importante de conhecimento, o conhecimento que leva à sabedoria, não pode ser encontrado nos tempos modernos, mas na antigüidade – em sábios antigos, como Buda, Sócrates, Lao Tsé e Confúcio. Da mesma forma que se pensava que por muito tempo se pensou que a utopia residia no passado distante, em uma Idade dourada mítica, também se pensa com freqüência que a sabedoria existe em um passado mítico. As pessoas do Ocidente, especialmente as gerações mais jovens, rejeitam o que vêem no Ocidente; rejeitam a Guerra Mundial, as armas nucleares, a poluição do meio ambiente, a feiúra das cidades, o materialismo e o egoísmo, o estresse e a ansiedade. Eles acham que o Ocidente está profundamente doente, glorificando assim civilizações não-ocidentais. Acham que a sabedoria não está no Ocidente moderno, mas em algum lugar distante e antigo; acham que quanto mais se afastarem do Ocidente, mais se aproximarão da sabedoria. Gostariam de passar 20 anos aprendendo chinês para ler Lao Tsé no original. Mas os chineses não acreditam nisso, pois sabem que o mundo da redenção não se encontra em Lao Tsé; os chineses não dedicariam sequer 20 dias para ler Lao Tsé. Os chineses estão mais aptos a buscar o mundo da redenção em um sábio ocidental – em Jesus ou Sócrates, por exemplo – do que em um sábio oriental. Os chineses tendem a superestimar o Ocidente tanto quanto os ocidentais tendem a superestimar o Oriente. Há dois séculos, a situação era diferente: tanto os ocidentais quanto os chineses pensavam que suas civilizações estavam no caminho certo, que eles tinham a sabedoria, que suas civilizações eram únicas, que todas as outras eram bárbaras. A tendência atual de glorificar outras civilizações é tão tola quanto a tendência anterior de desprezá-las. Tanto o Oriente quanto o Ocidente passaram de um extremo a outro, do desprezo ao apreço. Talvez agora o Oriente e o Ocidente possam começar a fazer uma avaliação mais modesta, sóbria e razoável de si próprios. Talvez o Oriente e o Ocidente possam começar a reconquistar o respeito que uma vez tiveram por suas próprias civilizações. 23. Prático, místico. Pode-se ver a história da Filosofia em termos práticos e místicos, em termos mundanos ou não-mundanos. Os chineses descreviam essa dicotomia com a frase “Kong-Meng, Lao-Zhuang”, isto é, os pensadores práticos como Confúcio e Mêncio, e os pensadores místicos, como Lao Tsé e Zhuang Zi. Entre os gregos, Aristóteles e Platão voltavam-se ao mundo e tentavam entendêlo, enquanto os estóicos e os epicuristas o negavam e buscavam a paz interior. Podem-se também ver as religiões em termos práticos e místicos. O budismo, o taoísmo e o cristianismo favorecem o místico, as tendências não mundanas, ao passo que o paganismo e o confucionismo são práticos e mundanos. A Cristandade originalmente atraía os escravos, os oprimidos e as classes mais baixas; tais pessoas não tinham sucesso no mundo e, portanto, sentiam-se atraídas por religiões não mundanas. O paganismo e o confucionismo, por outro lado, eram adequados à classe dominante, ao establishment. Se a sabedoria consiste na tranqüilidade, na paz interior e na quietude, então os místicos são mais sábios do que os pensadores práticos. Mas se a sabedoria consiste na aprendizagem, na busca e nas realizações, então os pensadores práticos são mais sábios do que os místicos. O mais sábio é aquele que consegue combinar o prático e o místico. 24. Culturas de empréstimo e transplantadas. Roma foi à escola na Grécia, e depois produziu poetas de primeira linha, mas nunca produziu um filósofo semelhante aos grandes filósofos gregos. O Japão foi à escola na China, e então produziu poetas e escritores de ficção de primeira linha, mas nunca produziu um filósofo semelhante aos grandes filósofos chineses. A Rússia foi à escola na Europa Ocidental, e depois produziu grandes escritores de ficção, mas nunca um filósofo semelhante aos grandes filósofos da Europa Ocidental. Pode-se inferir desses três exemplos que as culturas de empréstimo podem chegar a uma grande riqueza e criatividade, mas não podem produzir filósofos de primeira linha. As culturas transplantadas – tais como as das Américas, Austrália e outras colônias – são em geral menos saudáveis do que as culturas de empréstimo. As culturas transplantadas em geral não conseguem atingir a riqueza e a criatividade das culturas de empréstimo. A fraqueza da cultura transplantada é aparente, tanto na arte quanto na filosofia. A cultura não pode florescer em um local rústico e não civilizado; quando os colonizadores chegam em tal local, preocupam-se em primeiro lugar com a sobrevivência, com questões práticas, com a exploração e controle da terra. Não se interessam pela cultura, que requer estabilidade e lazer. À medida que a terra começa a ser dominada, o interesse pela cultura cresce; os melhores frutos da cultura norte-americana vieram da Nova Inglaterra, onde a terra havia sido tratada e civilizada há mais tempo. As culturas não continuam imaturas para sempre; tanto as culturas de empréstimo quanto as culturas transplantadas um dia atingem a maturidade. 25. Renascimento filosófico. A Filosofia floresce quando a sociedade carece de um sistema de crenças, quando as pessoas não sabem em que acreditar. A filosofia na Grécia antiga, por exemplo, floresceu quando o sistema de crenças politeísta não era mais aceito. A Filosofia também floresceu na China durante os períodos de guerra, quando a aristocracia se esfacelava e as pessoas não sabiam no que acreditar. Embora a Filosofia floresça quando as pessoas não sabem no que acreditar, ela fica estagnada quando há um sistema de crenças estabelecido, um sistema que oferece respostas às maiores perguntas filosóficas. Quando a visão de mundo de Confúcio era aceita na China, por exemplo, a filosofia estagnou-se. Da mesma forma, na Idade Média, quando a visão de mundo cristã era aceita no Ocidente, a filosofia também se estagnou. A desintegração da visão de mundo cristã nos tempos modernos é um estímulo à Filosofia. A desintegração da visão de mundo cristã deixou as pessoas no Ocidente sem nada para acreditar, com uma sensação de vazio. Renan assim descreveu esse estado de espírito por volta de 1850: “No momento em que a cristandade deixou de ser verdadeira para mim, tudo se tornou indiferente. Tudo parecia trivial, indigno de interesse... Tinha uma sensação de vazio, de colapso completo.”4 A desintegração da visão de mundo cristã criou uma atitude niilista, um vácuo filosófico. A obra de Nietzsche é uma tentativa de preencher este vácuo; Nietzsche foi estimulado pelo niilismo. Pelo fato de o mundo moderno carecer de um sistema de crenças estabelecido, podemos esperar que a Filosofia floresça em nossa época. Como Nietzsche, os filósofos de hoje serão estimulados pela falta de um sistema de crenças estabelecido, vendo o mundo sob uma nova luz. 4 Ernest Renan, Memoirs, “Farewell To St. Sulpice”.