A Filosofia no Mundo

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A Filosofia no Mundo
Seja a filosofia o que for, está presente em nosso mundo e a ele necessariamente se refere.
Certo é que ela rompe os quadros do mundo para lançar-se ao infinito. Mas retorna ao finito para
aí encontrar seu fundamento histórico sempre original.
Certo é que tende aos horizontes mais remotos, a horizontes situados para além do mundo, a fim
de ali conseguir, no eterno, a experiência do presente. Contudo, nem mesmo a mais profunda meditação
terá sentido se não se relacionar à existência do homem, aqui e agora.
A filosofia entrevê os critérios últimos, a abóbada celeste das possibilidades e procura, à luz do
aparentemente impossível, a via pela qual o homem poderá enobrecer-se em sua existência empírica.
A filosofia de dirige ao indivíduo. Dá lugar à livre comunidade dos que, movidos pelo desejo de
verdade, confiam uns nos outros. Quem se dedica a filosofar gostaria de ser admitido nessa comunidade.
Ela está sempre neste mundo, mas não poderia fazer-se instituição sob pena de sacrificar a liberdade de
sua verdade. O filósofo não pode saber se integra a comunidade. Não há instância que decida admiti-lo ou
recusá-lo. E o filósofo deseja, pelo pensamento, viver de forma tal que a aceitação seja, em princípio,
possível.
Mas como se põe o mundo em relação com a filosofia? Há cátedras de filosofia nas universidades.
Atualmente representam uma posição embaraçosa. Por força da tradição, a filosofia é polidamente
respeitada, mas, no fundo, objeto de desprezo. A opinião corrente é a de que a filosofia nada tem a dizer e
carece de qualquer utilidade prática. É nomeada em público, mas – existirá realmente? Sua existência se
prova, quando menos, pelas medidas de defesa a que dá lugar.
A oposição se traduz em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a compreendo;
está além de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz respeito. Ora, isso eqüivale
a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar no plano geral
para mergulhar, através de trabalho consciencioso, num capítulo qualquer de atividade prática ou
intelectual; quanto ao resto, bastará ter “opiniões” e contentar-se com elas.
A polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia. Ela é
perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as
coisas a uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente.
E surgem os detratores, que desejam substituir a obsoleta filosofia por algo de novo e totalmente
diverso. Ela é desprezada como produto final e mendaz de uma teologia falida. A insensatez das
proposições dos filósofos é ironizada. E a filosofia vê-se denunciada como instrumento servil de poderes
políticos e outros.
Muitos políticos vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e
funcionários são fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam de uma inteligência de
rebanho. É preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja
vista como algo entediante. Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais vaidades se
ensinem, menos estarão os homens arriscados a se deixar tocar pela luz da filosofia.
Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa
condição. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bem-estar
material como razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em função de sua utilidade
técnica, o ilimitado desejo de poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologia, a aspiração a um
nome literário – tudo isso proclama a antifilosofia. E os homens não o percebem porque não se dão conta
do que estão fazendo. E permanecem inconscientes de que a antifilosofia é uma filosofia, embora
pervertida, que, se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação.
O problema crucial é o seguinte: a filosofia busca a verdade nas múltiplas significações do serverdadeiro segundo os modos do abrangente. Busca, mas não possui o significado e substância da verdade
única. Para nós, a verdade não é estática e definitiva, mas movimento incessante, que penetra no infinito.
No mundo, a verdade está em conflito perpétuo. A filosofia leva esse conflito ao extremo, porém o
despe de violência. Em suas relações com tudo quanto existe, o filósofo vê a verdade revelar-se a seus
olhos, graças ao intercâmbio com outros pensadores e ao processo que o torna transparente a si mesmo.
Quem se dedica à filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa o que ele faz
e se interessa por sua palavra e ação, desejo de partilhar, com seus concidadãos, do destino comum da
humanidade.
Eis por que a filosofia não se transforma em credo. Está em contínua pugna consigo mesma.
Karl Jaspers, Introdução ao Pensamento Filósofo, São Paulo, Cultrix, 1971, p. 138
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