PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS: Formação, Atuação e Compromisso Social PRÁTICAS E CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS EM UM PROGRAMA POPULAR DE TELEVISÃO Maria Gabriela de Queiroz* (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC/CNPqFA-UEM, Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil); Murilo dos Santos Moscheta (Grupo de Estudos em Processos Grupais e Comunicação, Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, Brasil). contato: [email protected] Palavras-chave: Discurso. Mídia. Saúde Mental. Os estudos do filósofo Michel Foucault (1926 – 1984) destacam o modo como a ciência moderna participou na produção de modos de vida nas sociedades ocidentais por meio da instituição de um saber/poder construídos, sustentados e disseminados em discursos. Com o nascimento de um Estado Moderno durante o século XVIII, criou-se uma matriz moderna de individualização. Nesse processo, o Estado Moderno suscitou uma forma de poder descentralizada e pulverizada, tornando-a disciplinar. O poder disciplinar é sustentado por diversos mecanismos sutis, entre eles está a produção discursiva, que possui grande impacto na vida de cada indivíduo e na sociedade como um todo. O saber, de acordo com Foucault (apud Revel, 2005), está em íntima relação com o poder e se manifesta através de dois caminhos diferentes: por um lado se faz presente o poder de extrair do sujeito algum saber, e por outro emerge a extração de determinado saber sobre sujeitos já controlados. Sendo assim, o estudo de Foucault não se foca somente em analisar como os indivíduos tornam-se detentores de objetos de conhecimento, mas também de que modos os indivíduos produzem um discurso sobre si mesmo, no espaço de seu trabalho, existência, sexualidade ou saúde, fazendo com que sua própria vida se transforme em inúmeros objetos de saber englobados pelo campo de aplicação de um biopoder. Segundo Burr (2003) entende-se por discurso um conjunto de representações, metáforas, significados, histórias e imagens produzidas pela versão de cada pessoa. O que as pessoas escrevem, falam e produzem pode vir a ser uma ocasião particular em que os discursos têm a possibilidade de serem suscitados enquanto construções sociais que perpetuam ou extinguem determinadas práticas. Nesse contexto, as mesmas palavras, expressões ou imagens podem embasar de inúmeras formas, diferentes discursos, produzindo então, diferentes narrativas. A partir da criação e disseminação de novos discursos, torna-se clara a configuração de narrativas que perpetuam modelos de relações sociais, familiares, institucionais e de saberes vigentes. O discurso não se refere a ideias abstratas, caminhos ou representações de PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS: Formação, Atuação e Compromisso Social fatos e objetos, mas está intimamente relacionado com as práticas sociais e institucionais que produzem efeito na vida de indivíduos, em como eles e elas vivem, o que são ou o que podem ser. De acordo com Foucault (1979), o discurso tem a capacidade de regular nosso conhecimento sobre o mundo e é por meio dele que cada pessoa tem a capacidade de exercer seu poder. É válido destacar que para Foucault (1979), o poder não se refere à uma força repressora, mas se manifesta de forma sutil em todas as relações, tornando-se legítimo quando tem a capacidade de produzir conhecimentos. Esse poder, quando exercido por indivíduos que se modelam e se encaixam nas normas da sociedade contemporânea, delimita-se como disciplinar. Um exemplo estudado por Foucault (1979), diz respeito ao nascimento e consolidação da medicina e psiquiatria. Com o nascimento e a consolidação da medicina e psiquiatria, os discursos vigentes se embasaram na prática científica, em que uma verdade oculta deveria ser desvendada pelo cientista por meio de seus melhores instrumentos e técnicas. Antes do século XVIII, os discursos científicos consideravam a loucura somente como uma forma de erro ou ilusão. No século XIX, ela passa a ser percebida mais como uma desordem no modo de sentir, querer, agir e tomar decisões, dando espaço para o fomento de diagnósticos, classificação de patologias, tratamentos morais e soberania do médico. A partir desse momento, surgem os espaços terapêuticos, locais de classificação e diagnóstico em que o médico encarna o papel de detentor da verdade e do saber científico, daquele que conhece todas as patologias. Desse modo, o poder da medicina abre portas para que o médico produza a realidade de uma doença mental, reproduzindo fenômenos completamente acessíveis ao conhecimento. Consequentemente, torna-se clara a construção e perpetuação de algumas práticas da medicina e psiquiatria consolidadas por meio dos discursos que ecoam e apregoam a primazia de um saber científico em detrimento ao indivíduo supostamente louco, frágil e incapaz de gerir a própria vida. Um dos inúmeros dispositivos de produção e disseminação discursiva que ganha grande destaque nas últimas décadas do século XX, diz respeito à televisão. No contexto contemporâneo, a televisão é um importante produto cultural com alto impacto na sociedade. Segundo o IBGE, em 2011, 59,4 milhões de casa tinham televisão, 96,9% do total de brasileiros. Assim, a televisão não somente traduz acontecimentos, mas os próprios acontecimentos são encenados por ela. Os fatos e acontecimentos de hoje, pressupõem uma PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS: Formação, Atuação e Compromisso Social mediação da televisão, quando não são produzidos pela própria rede televisiva ou com forte influência da mesma. Neste contexto, este trabalho busca contribuir com a identificação dos discursos que cooperam na construção de sentidos sobre a saúde e doença mental, lançando luz sobre os efeitos que tais discursos têm na legitimação de determinados dispositivos de poder e controle social. Nos focamos em compreender quais discursos sustentam a produção de sentidos sobre saúde mental e de que maneira tais discursos participam da construção de sentidos e suas reverberações nas possibilidades identitárias na série televisiva “Males da Alma” (2013) apresentada pelo programa “Fantástico”. Destacamos os discursos que contribuem para a construção da noção de saúde mental com base na perspectiva do Construcionismo Social, que de acordo com Kenneth e Mary Gergen (2010), busca compreender como as pessoas explicam e descrevem o mundo em que estão inseridas. Para Spink (2004), o conhecimento é socialmente construído e possui implicações práticas no modo como organizamos a vida. Assim, a partir desta perspectiva, um discurso é uma condensação de sentidos historicamente e culturalmente situados que ordenam o modo como um determinado grupo de pessoas se relacionam com um fenômeno em específico. Analisar discursos é, portanto um caminho para compreensão dos modos instituídos de ordenação, controle e produção do lugar social de um determinado fenômeno. No que se refere aos estudos discursivos, Iñiguez (2004) aborda um variado leque de teorias e práticas referentes à Análise do Discurso. Apesar dos estudos diversificados, tornouse possível a compreensão de que a Análise Crítica do Discurso assume uma posição destoante, se comparada com outras vertentes da Análise do Discurso, uma vez que as práticas discursivas possuem o papel de construir realidades, e não somente de representa-las. Assim, utilizamos a Análise Crítica do Discurso e os aportes foucaultianos para analisar as produções discursivas sobre saúde mental construídas em um programa popular de televisão. No primeiro momento deste trabalho, foram gravados em vídeo os episódios semanais do quadro “Males da Alma” (2013) e em seguida as falas foram transcritas com registro descritivo das cenas. Esta transcrição constituiu o corpus deste trabalho e sua análise foi realizada por meio da construção de um mapa discursivo. Como um norte para a construção do mapa discursivo, buscamos analisar pontos específicos referentes a cada episódio do quadro, além de sua transcrição detalhada: 1) produção; 2) duração total do episódio; 3) exibição; 4) assunto; 5) indivíduos participantes; 6) tempo em minutos; 7) descrição das PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS: Formação, Atuação e Compromisso Social cenas; 8) objetos; 9) música e sons. Logo em seguida, como forma de unificar questões em comum que perpassam todos os episódios, foi criada outra tabela contendo: 1) construção narrativa; 2) cenários e contextos; 3) construção de cenas, músicas e objetos; 4) fala dos pacientes; 5) fala dos especialistas. A partir do mapa e da tabela, denominamos qual concepção de saúde mental está articulada nestes discursos. Em todos os episódios do quadro, quando abordadas formas de tratamento para o tema em questão, dá-se maior ênfase em um tratamento medicamentoso. Percebemos uma inclinação da preferência das sugestões a esse modo de tratamento. Na maioria dos episódios da série, foi citado o tratamento psicológico, mas sempre de modo secundário, como um “acompanhamento” ou mesmo algo que “pode ajudar”, mas raramente como algo indispensável e fundamental como quando comparado ao medicamento. Ocorre algo semelhante quando se fala no profissional que o paciente deve procurar. Dráuzio Varella, o médico responsável pela apresentação do programa, em suas orientações cita primeiramente a “consulta a um psiquiatra”. Quando deveriam ser abarcadas as funções do psicólogo, cita-se a figura do psiquiatra, retirando assim, a importância e capacitação do primeiro profissional, bem como o reconhecimento fidedigno da sociedade sobre o quê de fato, é o seu serviço. Com relação aos profissionais da Psiquiatria, seus sentidos construídos sobre prescrição e medicamentos (como solução mais confiável para os tratamentos de ordem psicológica) são reforçados. Sendo assim, vemos que o quadro reproduz um entendimento pouco dinâmico quando diz respeito às reais capacidades alcançadas pela área da Psicologia. Tanto a considera secundária no tratamento dos quadros de ordem psicológica, quanto retira a importância do aspecto psicológico nas causas dos transtornos. Quando a compreensão de que remédios são os recursos mais indicados no tratamento de qualquer sofrimento, também se subentende que a origem dos transtornos remonta somente ao biológico e ao fisiológico. Entendemos que os elementos componentes do conjunto discurso verbal e visual apontam para uma noção de saúde mental muito atrelada a cura medicamentosa, sendo a Psiquiatria e Medicina supervalorizadas. O discurso difundido é de uma Psicologia incipiente e que atua apenas como complemento, desconsiderada em seu papel fundamental, parecendo coadjuvante onde poderia ter papel protagonista. Deste modo, a partir de Foucault (1979), podemos compreender que o programa televisivo coopera com a instituição do saber médico- PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS: Formação, Atuação e Compromisso Social psiquiátrico enquanto um dispositivo capaz de responder às inquietações sociais relacionadas à tristeza, a noção de saúde mental, possíveis sintomas e tratamentos. Para além da valorização da psiquiatria com ênfase biológica e do posicionamento da Psicologia em segundo plano, os programas destituem outras formas de saber que poderiam incluir as crenças religiosas, agenciamentos coletivos e todo um conjunto de práticas de cuidado e de cultivo da vida. Uma vez que saber e poder estão intimamente ligados, esta ordenação discursiva parece favorecer a construção de agenciamentos sociais direcionados à medicalização da vida entendida tanto como ampliação do consumo de medicamentos quanto como substituição da lógica de cultivo coletivo da vida pela lógica clínica-individual focada na doença. REFERÊNCIAS: BURR, V. Social Constructionism. Londres: Routledge, 1995. FOUCAULT, M., Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GERGEN, K. J.; GERGEN, M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Tradução de Gabriel Fairman. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2010. IÑIGUEZ, L., A análise do discurso nas ciências sociais: variedades, tradições e práticas. In:______. L. IÑIGUEZ, Manual de análise do discurso em Ciências Sociais. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p 105-160. NÚMERO de casas com TV supera o das que têm geladeira. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/noticia/2012/09/numero-de-casas-com-tv-supera-o-das-que-temgeladeira.html> . Acesso em: 29 mar. 2015. REVEL, J., Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. SPINK, M. J., Práticas discursivas e produção dos sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2004.