CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO CAMILO Mestrado em Bioética José Raimundo Evangelista da Costa RESPEITO À AUTONOMIA DO DOENTE MENTAL NO ATENDIMENTO DE AUXILIARES E TÉCNICOS EM ENFERMAGEM: UM ESTUDO BIOÉTICO EM CLÍNICA PSIQUIÁTRICA São Paulo 2007 14 CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO CAMILO Mestrado em Bioética José Raimundo Evangelista da Costa RESPEITO À AUTONOMIA DO DOENTE MENTAL NO ATENDIMENTO DE AUXILIARES E TÉCNICOS EM ENFERMAGEM: UM ESTUDO BIOÉTICO EM CLÍNICA PSIQUIÁTRICA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário São Camilo – São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Bioética. Orientador: Prof. Dr. Márcio Fabri dos Anjos. Co-orientadora: Prof.ª D.ra Vera Lúcia Zaher. SÃO PAULO 2007 15 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Pe. Inocente Radrizzani Costa, José Raimundo Evangelista da Respeito à autonomia do doente mental no atendimento de auxiliares e técnicos em enfermagem: um estudo bioético em clínica psiquiátrica / José Raimundo Evangelista da Costa. -- São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2007. 87p. Orientação de Márcio Fabri dos Anjos e Vera Lúcia Zaher Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário São Camilo, Curso de Bioética, 2007. 1. Pessoas portadoras de deficiência mental 2. Autonomia pessoal 3. Bioética 4. Humanização da assistência I. Anjos, Márcio Fabri dos II. Zaher, Vera Lúcia III. Centro Universitário São Camilo IV. Título. 16 FOLHA DE APROVAÇÃO José Raimundo Evangelista da Costa RESPEITO À AUTONOMIA DO DOENTE MENTAL NO ATENDIMENTO DE AUXILIARES E TÉCNICOS EM ENFERMAGEM: UM ESTUDO BIOÉTICO EM CLÍNICA PSIQUIÁTRICA Aprovado em: São Paulo, ____ de ____________________________ de 2007. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição: _______________________________ Assinatura: _________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição: _______________________________ Assinatura: _________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição: _______________________________ Assinatura: _________________ 17 Dedico esta dissertação de Mestrado em Bioética a DEUS e a tudo o que Ele representa. 18 AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Prof. Dr. Márcio Fabri dos Anjos, pelas orientações, observações, críticas e sugestões que me levaram ao crescimento e também pela confiança e paciência. À minha co-orientadora, Prof.ª D.ra Vera Lúcia Zaher, pela amizade, carinho, acolhimento e pelas valiosas contribuições ao longo deste trabalho. À minha família, à Ordem Hospitaleira de São João de Deus e à Casa de Saúde São João de Deus, pelo apoio, compreensão, confiança e carinho. Aos colegas e demais professores do Mestrado em Bioética, pelos momentos inesquecíveis nesta trajetória. A todos que de forma direta ou indiretamente me auxiliaram neste sonho. 19 EPÍGRAFE “Entre todas as outras formas de ilusão, a loucura traça um dos caminhos da dúvida dos mais freqüentados. Nunca se tem certeza de não estar sonhando, nunca existe uma certeza de não ser louco.” (FOUCAULT, 2005, p. 47). 20 RESUMO COSTA, J. R. E. Respeito à autonomia do doente mental no atendimento de auxiliares e técnicos em enfermagem: um estudo bioético em clínica psiquiátrica. São Paulo, 2007. 87 p. Dissertação (Mestrado em Bioética). Programa de PósGraduação, Centro Universitário São Camilo. O presente estudo teve como objetivos conhecer o pensamento de auxiliares e técnicos em enfermagem a respeito da autonomia do doente mental e demonstrar a importância do respeito ao doente mental pelo profissional de enfermagem para um cuidado adequado. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, mas aproveitou-se para explorar também alguns dados quantitativos tornados possíveis pelo tipo de formulário que foi aplicado na coleta dos dados. A pesquisa foi realizada numa instituição psiquiátrica de pequeno porte e envolveu 25 profissionais da saúde mental, treze auxiliares de enfermagem e doze técnicos em enfermagem. Não foi utilizado nenhum critério de exclusão. O instrumento utilizado foi uma entrevista semidirigida para a coleta de dados, com um roteiro norteador que constava na apresentação de dois casos e questões abertas que versavam sobre o respeito à autonomia e vulnerabilidade do doente mental. Os dados foram coletados e analisados considerando-se algumas categorias identificadas, como o bem do doente, necessidade de analisar e compreender, a percepção da vulnerabilidade do doente e seus apelos, condutas relacionadas com a autonomia do doente mental, atitudes de “envolvimento solidário”, racionalizações, concepções de políticas sociais no cuidado a doentes mentais, recursos de um bom atendimento, espiritualidade, desconfiança. Os profissionais levam em consideração a necessidade do paciente que é ser respeitado em sua autonomia, pois, no discurso de alguns profissionais, se percebe a preocupação em atender o paciente de forma que ele não se sinta marginalizado e segregado por ser um doente mental. No que se refere à autonomia do doente mental, tomada como um referencial nesta pesquisa, os profissionais parecem reconhecer que o exercício da autonomia não é um valor absoluto isoladamente, mas, um valor partilhado que dignifica tanto a pessoa que cuida, quanto a que está sendo cuidada pelo profissional. Alguns profissionais mostraramse incondicionalmente a favor do confinamento. Diante dos resultados desta pesquisa, pode-se concluir pela importância do reconhecimento dos referenciais da Bioética (autonomia, vulnerabilidade e a dignidade da vida humana), no atendimento de doentes mentais em clínica psiquiátrica. No estudo ficam evidenciadas por meio destes referenciais algumas condutas indispensáveis para que o doente mental possa ser respeitado e correspondentemente cuidado em clínica psiquiátrica. Esta pesquisa procurou contribuir sobre as discussões acerca do respeito à autonomia do doente mental, colocando no centro a ética e a dignidade da vida humana no seu mais amplo sentido; e procurou verificar como tais percepções mais amplas se podiam traduzir em atendimento respeitoso e humanizado. Palavras-chave: Bioética; doente mental; autonomia, vulnerabilidade, dignidade da vida humana. 21 ABSTRACT COSTA, J. R. E. Respect to the mentally ill autonomy in attendance of nurse assistants and technicians: a bioethic study in psychiatry. São Paulo, 2007. 87 p. mastership dissertation (mastership in bioethics). Post-Graduation Program, Universitary Core São Camilo. This study aimed to know how nurse assistants and technicians think about the mentally ill autonomy and explain by examples how important the respect to the mentally ill by the nursing professional is for a suitable treatment. It deals with a qualitative research, but some of the quantitative data was explored due the kind of form that was applied in the data levy. This research was carried out in a small psychiatry establishment and it comprehended 25 mental health professionals, 13 nursing assistants and 12 nurse technicians. It was not utilized any exclusion judgement. A half-guided interview was utilized to gather the data, with a guide route that can be verified in the presentation of 2 cases, and open questions which consist in the respect to the autonomy and the vulnerability of the mentally ill. The data was gathered and analysed taking into consideration some identified categories, such as the mentally ill confort, the necessity to analysis and comprising, the perception of the mentally ill vulnerability and his needs, the behavior connected to the mentally ill autonomy, attitude of the “solidary involvement”, rationalizing, concepts of social politics in the treatment of the mentally ill, possibilities of a good attendance, spirituality and, suspicion. Professionals take into consideration the patient needs which is being respected in your autonomy, therefore, in some professionals words, it is carried out the anxiety in consider the patient in a form that he does not feel separated and segregated due to be a mentally ill. Refering to the mentally ill autonomy, taken as a reference in this research, professionals seem to realize that the autonomy execution is not an absolute isolated valor, but, a shared valor that dignify as the person who cares as the one who is being looked after by the professional. Some professionals felt categorically in behalf of the confinement. All things considered, it may conclude through the recognition of the bioethics references (autonomy, vulnerability and human life dignity), in the mentally ill regard in psychiatry clinics. Through these references, some indispensable conducts becoming evident In this study: stabilish more respect to the mentally ill and make him to be treated in a psychiatry clinic. This research aimed to contribute about the respect to the mentally ill autonomy debate, poiting out the ethics and the human life dignity in a wide purpose; and it was verified how such perceptions could be expressed in a respectful and humanized attention. Keywords: Bioethics, mentally ill, autonomy, vulnerability, human life dignity. 22 LISTA DE ABREVIATURAS CID-10 – Classificação Internacional de Doenças. CRM – Conselho Regional de Medicina. DSM-IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. IPC – Internação Psiquiátrica Compulsória. IPI – Internação Psiquiátrica Involuntária. IPV – Internação Psiquiátrica Voluntária. IPVI –Internação Psiquiátrica Voluntária que se torna Involuntária. OMS – Organização Mundial de Saúde. ONU – Organização das Nações Unidas. SILOS – Sistemas Locais de Saúde. SUS – Serviço Único de Saúde. UTI – Unidade de Terapia Intensiva. 23 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................... 13 2 BIOÉTICA E DOENÇA MENTAL: ALGUNS REFERENCIAIS.......................... 17 2.1 Bioética como “ciência da sobrevivência humana”................................ 17 2.2 Autonomia.................................................................................................... 18 2.3 Vulnerabilidade............................................................................................ 21 2.4 Dignidade da pessoa humana.................................................................... 23 2.5 Bioética como prática de atendimento...................................................... 25 2.6 Conclusão do capítulo................................................................................ 27 3 PARA COMPREENDER A DOENÇA MENTAL................................................. 29 3.1 Loucura......................................................................................................... 29 3.2 Esquizofrenia............................................................................................... 3.3 Hospitais psiquiátricos............................................................................... 3.4 Luta antimanicomial.................................................................................... 3.5 Profissionais da saúde mental................................................................... 3.6 Conclusão do capítulo................................................................................ 24 4.2.2.4 Condutas relacionadas com a autonomia do doente mental..... 46 4.2.2.5 Atitudes de “envolvimento solidário”.......................................... 48 4.2.2.6 Espiritualidade .......................................................................... 51 4.2.2.7 As racionalizações..................................................................... 52 4.2.2.8 Concepções de política social no cuidado a doentes mentais... 53 4.2.2.9 Recursos de um bom atendimento............................................ 54 4.2.2.10 A desconfiança......................................................................... 57 4.2.2.11 A descrença na recuperação................................................... 59 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA BIOÉTICA PARA UM BOM ATENDIMENTO AO DOENTE MENTAL.......................................................................................... 60 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 63 ANEXOS................................................................................................................ 68 ANEXO 1........................................................................................................ 69 ANEXO 2........................................................................................................ 72 ANEXO 3........................................................................................................ 73 ANEXO 4........................................................................................................ 74 ANEXO 5........................................................................................................ 76 ANEXO 6........................................................................................................ 80 ANEXO 7 ....................................................................................................... 83 25 1 INTRODUÇÃO Bioética, doença mental e o ser humano são três realidades que podem ficar distantes das percepções humanas, mas que, de fato, devem ser vistas como muito próximas e entrelaçadas por quem se propõe a procedimentos éticos. A bioética é um dos novos saberes da contemporaneidade que tem evoluído significativamente. A sua história é recente, ao menos desde o momento em que foi explicitada nestes termos em 1970, quando Van Renselaer Potter, oncologista norteamericano, introduziu o neologismo “bioética” (PESSINI, 2005). Neste sentido, a bioética surge como uma renovada consciência do dever nas circunstâncias do acelerado progresso biotecnológico. Ela surge primeiramente no mundo ocidental, científico e tecnologicamente mais desenvolvido. De fato, a bioética poderá confirmar sua contribuição à ciência da preservação da identidade do homem e da sobrevivência da vida, se persistir em ser uma ética, um aprofundamento do sentido do bem ou do dever na ação humana. Assim, não se pode prescindir da bioética sob o risco de sucumbir-se diante dos novos poderes e de demitir-se do próprio destino (NEVES, 2001). A doença mental ao longo da história recebeu, por sua vez, diversas interpretações; durante muito tempo foi explicada por meio de paradigmas précientíficos, suposições infundadas e pressupostos mágico-religiosos. Atribuíam-se, por exemplo, as doenças mentais ao castigo dos deuses e a possessões demoníacas. Com a abordagem científica da loucura, já no século XVII, os médicos começam a revelar seus conhecimentos a respeito dos indivíduos desviantes com descontrole emocional. A psicopatologia ainda não estava suficientemente desenvolvida para oferecer uma fundamentação sobre as diferentes formas de loucura. A partir deste simples aceno, já se pode pontuar o encontro com a vulnerabilidade humana. E esta se mostra de duplo modo, ou seja, enquanto todos os seres humanos se encontram expostos à loucura e, conseqüentemente, às formas de tratamento em instituições psiquiátricas; e que são todos limitados a compreender e lidar com tal limitação humana. 26 Assim se justifica este estudo bioético em clínica psiquiátrica, pela importância de entender-se como os doentes mentais são tratados pelos profissionais auxiliares e técnicos em enfermagem. É importante ressaltar que a doença mental, aqui entendida como esquizofrenia é um sofrimento concreto, manifesta-se em distintos níveis de gravidade, gerando uma maior ou menor alteração na relação consigo mesmo, no desenvolvimento das suas capacidades e na relação com o seu circulo envolvente. Sabe-se que desde o advento da psiquiatria cientifica o doente mental foi afastado do seu ambiente doméstico e encaminhado a hospitais psiquiátricos. Muitos anos se passaram e hoje se fala da reforma psiquiátrica e que no Brasil a reforma tem como referência a Lei n.º 3.657/89 do deputado federal Paulo Delgado (Minas Gerais), que prega o fim dos hospitais psiquiátricos e a liberdade aos doentes mentais. Com tal desinstitucionalização o doente, antes excluído do mundo dos direitos e da cidadania, torna-se livre, longe dos muros que o prendia no hospital psiquiátrico. Entretanto, algumas questões podem surgir com a desinstitucionalização como, por exemplo, para onde vão os doentes mentais que não têm família ou são rejeitados pela família e pela sociedade? Quem vai acolher aqueles que necessitam de cuidados especiais? Percebe-se uma situação conflituosa entre o desejo da desinstitucionalização do doente mental e a realidade em que se está inserido, em que a sociedade exclui e abandona doentes mentais, restando-lhe como único caminho a solidão e como morada as ruas e praças. Corroborando com este fato, a bioética tem papel relevante neste trabalho, pois ela vai transitar no campo do conflito e da dúvida em relação ao doente mental. Nesse sentido, o princípio da autonomia requer que o profissional da saúde respeite a vontade do paciente, assim como seus valores morais e crenças. O respeito, diferentemente da responsabilidade legal, deve ser estendido a todos os pacientes, independentemente da sua capacidade de tomar decisões. Este é um contexto amplo em que se insere o presente estudo. Dentro das indispensáveis delimitações, ele estará focado no estudo de exigências da bioética relacionadas com a autonomia do doente mental em clínica psiquiátrica. 27 Mais precisamente, o presente estudo tem como objetivos: conhecer o pensamento de auxiliares e técnicos em enfermagem a respeito da autonomia do doente mental e contribuir para ressaltar a importância do respeito ao doente mental por parte do profissional de enfermagem em um cuidar adequado. Embora, como se verá, os resultados finais não tenham confirmado inteiramente, tomou-se como hipótese de trabalho que a qualidade dos serviços prestados pelos auxiliares de enfermagem e técnicos em enfermagem pode ser significativamente melhorada à medida que se levem mais em consideração a subjetividade, a afetividade e a vulnerabilidade do doente mental e também que os profissionais da saúde mental (auxiliares de enfermagem e técnicos em enfermagem) prestam assistência aos doentes mentais internados em psiquiatria, mas encontram dificuldade em respeitar a diferença e são inundados de preconceitos que excluem e segregam o doente mental. E que, portanto, a bioética pode contribuir significativamente para a melhoria da qualidade moral do atendimento dispensado por profissionais ao doente mental em clínica psiquiátrica; o que não quer dizer que os referenciais da bioética já não estejam presentes no desempenho de muitos profissionais, como se perceberá mais adiante. No procedimento deste estudo, foram adotados três passos básicos. Primeiramente procurou-se recolher referenciais da bioética que pudessem iluminar a aproximação adequada do doente mental hoje. Tratou-se, portanto, de uma leitura seletiva de alguns referenciais da bioética voltados para a questão do respeito ao doente mental. Um segundo passo foi dedicado especificamente para se colherem elementos de compreensão do doente mental, de modo a delinearem-se formas adequadas da inclusão deste nas relações de atendimento e cuidado, como se verá adiante. Em um terceiro e último passo, com elementos levantados nas etapas anteriores, assumiu-se um estudo de campo, em que se analisaram percepções e atitudes de profissionais no atendimento a doentes mentais em clínica psiquiátrica. Em cada um dos capítulos desta dissertação vão sendo dados, portanto, passos gradativos no estudo. No segundo capítulo dissertou-se sobre alguns referenciais, como o respeito pela autonomia do doente mental que se conjuga com o principio da dignidade do ser humano, sua vulnerabilidade inerente aos seres humanos e a bioética como prática de atendimento. 28 No terceiro capítulo discorreu-se, com a contribuição de alguns autores, sobre a compreensão da doença mental. Considerou-se particularmente o conceito de loucura, a esquizofrenia que é uma doença mental, entre outras, e os profissionais da saúde mental em questões relacionadas com suas condutas em clínica psiquiátrica. O quarto capítulo foi dedicado ao estudo do próprio atendimento em clínica psiquiátrica, como desafio bioético, por meio de uma pesquisa de campo. Assim, apresenta-se neste capítulo uma adequada descrição dos procedimentos nesta pesquisa, como o método utilizado, o campo da pesquisa e as entrevistas. Procedeu-se em seguida à análise quantitativa e qualitativa dos dados da pesquisa, tecendo por fim algumas considerações finais, em que se procurou recolher alguns frutos de todo o percurso desta dissertação. Como é de esperar-se, muitos limites deste estudo são inevitáveis. Deve-se reconhecer, entre tantos outros, que a amostra da pesquisa de campo se refere a uma instituição de pequeno porte, e por isto mais fácil de ser monitorada. Não se escondeu a inquietação sobre o que se passa em clínicas de maior porte e correspondentemente com maior fluxo de doentes e de profissionais. É importante ao mesmo tempo reconhecer a complexidade de um estudo bioético em clínica psiquiátrica, seja pela amplitude do tema, seja pelo constante desafio em traduzir referenciais teóricos em práticas concretas, para o que a bibliografia específica ainda se mostre exígua. Entretanto, com este estudo bioético em clínica psiquiátrica, acredita-se lançar, nesta própria trajetória reflexiva, algumas bases para desenvolver a bioética na área e, ao mesmo tempo, em que se oferece este estudo para incentivar o aproveitamento da contribuição da bioética para a própria qualidade do atendimento a ser dispensado aos doentes mentais em clínica psiquiátrica pelos profissionais da saúde mental. 29 2 BIOÉTICA E DOENÇA MENTAL: ALGUNS REFERENCIAIS Para se saber se a autonomia do doente mental é respeitada pelos profissionais da saúde auxiliares e técnicos em enfermagem, parece adequado proceder ao estudo bioético em clínica psiquiátrica. Isto exige inicialmente esclarecer alguns referenciais que permitem compreender adequadamente o doente mental e os valores de referência que a Bioética defende nas relações de cuidado com a sua saúde. Assim, entre as várias possibilidades para definir o marco teórico norteador da pesquisa, fez-se a opção por utilizar alguns referenciais, fundamentados na literatura, que têm relação direta com o tema estudado. Neste sentido, a explicitação dos referenciais aqui assumidos se faz estritamente em seu direcionamento para a compreensão do respeito dirigido ao doente mental. Estes conceitos versam sobre: bioética, autonomia, vulnerabilidade, dignidade da pessoa humana incluindo a bioética como prática de atendimento. Deixou-se para o próximo capítulo a explanação de noções indispensáveis para esclarecer quem é o próprio doente mental. 2.1 Bioética como “ciência da sobrevivência humana” A bioética surgiu há 37 anos. Foi Van Rensselaer Potter, quem primeiro usou o termo bioethics (bioética). Chamou a bioética de “ciência da sobrevivência humana”, traçou uma agenda de trabalho para a mesma que vai desde a intuição da criação do neologismo em 1970, até a possibilidade de encarar a bioética como uma disciplina sistêmica ou profunda em 1988. (PESSINI, 2005). Uma breve análise da “pré-história” da bioética pode esclarecer acerca dos problemas que desde a origem da bioética persistem até os dias de hoje. Entretanto, as questões da bioética conquistaram o pensamento contemporâneo porque representam conflitos de primeira grandeza no campo da tecnologia e dos valores humanos básicos, de modo especial aqueles que têm a ver com a vida e a saúde. Observa-se que há um crescimento rápido do campo da 30 bioética, isso graças à abertura ao trabalho multidisciplinar, especialmente em matérias que dizem respeito a aspectos individuais e sociais do comportamento humano. Sabe-se que uma das correntes da bioética é o principialismo. Beauchamp e Childress (2002) procuraram construir um modelo de ação que pudesse evitar o dilema: uma impostação deontologica e o consequancialismo. Os princípios apresentados pelos autores acima são: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Neste capítulo, discorrer-se-á sobre o princípio da autonomia que tem relação direta com o tema estudado. Assim, o respeito à autonomia das pessoas relaciona-se com a maneira de guiar-se nos juízos sobre como tratar agentes autodeterminantes. No entanto, o respeito à autonomia exige o direito de não ser interferido e, correlativamente, a obrigação de não constringir uma ação autônoma. Não determina o que se deve fazer, mas apenas expõe as condições. 2.2 Autonomia O termo “autonomia” deriva do grego auto-nomia (lei própria), significando autodeterminação, autogoverno; o que, sendo referido às atividades pessoais, pode significar o poder da pessoa humana de tomar decisões que afetam sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais. São vários os significados possíveis que se podem conferir à autonomia, variando de acordo com o olhar que se propõe a estudá-la, ou como respeitá-la nas pessoas. De acordo com Cohen & Marcolino (2002), o respeito a um indivíduo autônomo acontece quando se reconhecem as capacidades e as perspectivas pessoais, incluindo o direito de ele examinar e fazer escolhas, para tomar atitudes baseadas em suas convicções e valores pessoais. A partir dos anos 70, os códigos de Ética Médica juntam cada vez mais o respeito pelas decisões autônomas dos doentes aos princípios clássicos, reconhecendo o direito soberano do doente para decidir sobre todos os assuntos que envolvam o seu corpo (respeito pela “pessoa” do doente). O valor crescente da 31 autonomia surge como conseqüência dos movimentos pelo respeito dos direitos dos doentes após a denúncia de vários abusos na investigação de novas terapêuticas, a que não é alheio o papel da enfermagem como ponte entre o doente (com as suas dificuldades de expressar a vontade de ser considerado nas decisões que dizem respeito ao seu corpo) e os médicos (numa tradição paternalista da medicina). Neste sentido, a autonomia é uma decisão racional, expresse ou não a preferência, a autonomia é uma decisão que exprime a preferência, seja ou não racional. A este princípio fica associado o consentimento informado no contexto da consulta profissional. De acordo com Charlesworth (1996, apud CAUTELLA JR., 2003), “ninguém está capacitado para desenvolver a liberdade pessoal e sentir-se autônomo se está angustiado pela pobreza, privado da educação básica ou se vive desprovido da ordem pública”. Entretanto, além da liberdade de optar, a ação autônoma também pressupõe a liberdade de ação, requer que a pessoa seja capaz de agir conforme as suas escolhas feitas e as decisões tomadas. Desta forma, a pessoa autônoma é aquela que tem liberdade de pensamento, livre de coações internas ou externas, para escolher entre as opções que lhe são apresentadas. A conquista do respeito à autonomia é um fenômeno histórico bastante recente, que vem deslocando, pouco a pouco, os princípios da beneficência e da não maleficência como prevalentes nas ações de assistência à saúde. O respeito pela autonomia da pessoa conjuga-se com o princípio da dignidade da natureza humana. Existem pessoas, porém, que, de forma transitória ou permanente, tem sua autonomia reduzida, como no caso as crianças, os doentes mentais entre outros. Neste sentido, o doente mental é estigmatizado, e por carregar o rótulo de “louco” deixa de exercer sua autonomia, pois esta não é reconhecida pela sociedade. Neto (1998) faz uma reflexão analisando o conto de Márquez “eu só vim telefonar”: Maria de la Luz Cervantes, a personagem central, é uma atriz mexicana, casada com um prestidigitador de salão, a quem acontece o acidente imprevisível de ter o carro quebrado na estrada, numa tarde de chuvas primaveris. Ao fazer sinais na estrada, em busca de socorro, surge mais um imprevisto: o único veículo que atende ao seu sinal e pára, para lhe dar uma carona, é um ônibus estranho, repleto de mulheres sonolentas, todas 32 envoltas em cobertores. Maria ainda não sabe, mas acaba de entrar num ônibus que carrega as loucas de um hospício; sabe ainda menos que essa é uma porta que possui somente entrada, nenhuma saída. Enrola-se num cobertor e adormece; quando o ônibus chega ao seu destino, Maria nota coisas estranhas: ao tentar chegar ao edifício, um guarda manda-a entrar numa fila. Quando pergunta por telefone, respondem-lhe de um jeito dissimulado: "Por aqui, gracinha, o telefone é por aqui", como que seguindo aquele velho preceito de que não se deve negar nada a um louco, confrontando-o diretamente [...] (NETO, 1998, p. 81–87). No trecho acima se pode observar como o doente mental é tratado pelos profissionais do hospício. “Entre todas as outras formas de ilusão, a loucura traça um dos caminhos da dúvida dos mais freqüentados. Nunca se tem certeza de que não se esteja sonhando, nunca existe uma certeza de não ser louco” (FOUCAULT, 2005). Percebe-se que Maria, que antes fazia parte do mundo dos “normais”, agora carregava consigo o rótulo e o estigma da loucura. Em nome da “santa” beneficência, os profissionais da saúde muitas vezes despersonalizam os internos “loucos”, reduzindo-os a meros objetos manipuláveis e não levando em consideração seus direitos, suas vontades, sua autonomia. “[...] a instituição psiquiátrica o condena ao internamento por toda a vida, ou podemos dizer a morte em vida, pois impossibilita qualquer forma de retorno ao convívio social [...]” (GRADELLA JR., 2002). Entretanto, Maria agora faz parte do “mundo” dos excluídos, marginalizados e estigmatizados. Depara-se com um ambiente cercado de muros e pessoas pouco afetivas, “os muros, quando a ausência de terapias impossibilitava a cura, serviam para excluir e isolar a loucura, a fim de que não invadisse o nosso espaço. Mas até hoje eles conservam essa função” (BASAGLIA, 2005). Assim, há que se concordar que “o nosso existir é realmente muito incerto, pois se desenvolve num processo cheio de ambigüidades e de riscos, cuja imprevisibilidade nos impede de ter segurança” (FORGHIERI, 1983, apud CAMPOS, 1995). O doente mental tem sua autonomia reduzida, e esta deve ser respeitada. É muito fácil dizer que os profissionais da saúde só podem administrar a liberdade e direitos do paciente respeitando sua totalidade. Este respeito ao doente mental no ambiente psiquiátrico às vezes é esquecido. 33 De fato, a autonomia exprime a dignidade da pessoa, porque franqueia sua liberdade autocontrolada e responsável, mas, ao mesmo tempo, pode tornar-se terrível arma contra o próprio bem do paciente, pois a decisão geralmente vale, conforme o grau de esclarecimento e informação do sujeito que decide, e é motivada essencialmente pelo medo, ou seja, pela emotividade. Essa noção de consentimento esclarecido, que garante a autonomia do doente, é a pedra angular de toda a ética (LEPARGNEUR, 1996). 2.3 Vulnerabilidade Acredita-se que os doentes mentais são ou podem ser pessoas vulneráveis, podendo muitas vezes não reconhecer os seus direitos e assim não lutar e reclamar por eles. Os doentes mentais fazem parte de um grupo vulnerável tanto dentro como fora das instituições psiquiátricas; sabe-se que mesmo dentro da própria família muitos indivíduos são tratados de forma desumana. Neste sentido, sujeitos vulneráveis têm que ser protegidos, enquanto os predispostos à vulnerabilidade precisam de assistência para remover a causa da sua fraqueza. Além da vulnerabilidade básica, que é intrínseca a todos os seres humanos, alguns indivíduos, que é o caso dos doentes mentais, são afetados por circunstâncias não favoráveis que os tornam ainda mais vulneráveis (KOTTOW, 2003, apud GONÇALVES ; VERDI, 2005). Anjos (2005), considera que “a vulnerabilidade se apresenta na bioética atual fortemente marcada pelos limites dos sujeitos em suas autonomias”. Para Kottow (2003), “o vulnerável sofre de necessidades não atendidas, o que o torna frágil, predisposto a sofrer danos. É também propenso a ser facilmente atingido, dada sua baixa resistência ao mal”. De modo geral e mais sinteticamente se pode dizer que “Pessoas vulneráveis são pessoas relativa ou absolutamente incapazes de proteger seus próprios interesses” (CIOMS, apud MACKLIN, 2003). Lévinas (apud Torralba, 2003, p. 195) coloca em evidência a exigência que se dá em ética, de passar-se da simples verificação ou descrição da vulnerabilidade para a responsabilidade e o cuidado diante da pessoa vulnerável: 34 La idea de vulnerabilidad no es solamente la descripción neutral de la condición humana, sino uma prescripción normativa que nos impele a tener cuidado biológico, social, cultural y espiritual de la vulnerabilidad de los seres que viven em el mundo tecnológico. Esta responsabilidad es inherente a todo ser humano y no puede delegarse em “especialistas” de la vulnerabilidad. O ser humano é vulnerável porque está exposto, ou seja, pode ser ferido por outro. Dizer que o ser humano é vulnerável significa afirmar que é um sujeito que padece de algum tipo de carência. A carência não é algo que se tenha, mas, ao contrário, a carência é uma ausência de ser. Os doentes mentais são indivíduos vulneráveis, necessitam de auxilio para conviver com as incertezas e os perigos do seu meio ambiente. Campbell (2003) fala da essência da humanidade e da vulnerabilidade e cita o poeta Robert Shannon: Como é delicada e perfeita a flor viva, Que conhece tanto nascer como morrer: Enquanto a flor plástica que dura mil anos, É sempre brutal em sua imutabilidade... É a vulnerabilidade que nós faz abertos e belos. (SHANNON, apud CAMPBELL, 2003, p. 88). Neste sentido, não se pode simplesmente fechar os olhos e “fingir” que o ser humano não é vulnerável, uma vez que é a vulnerabilidade é inerente aos seres humanos. Entretanto, como os profissionais da saúde mental que trabalham em hospitais psiquiátricos e como os auxiliares e técnicos em enfermagem podem ajudar os doentes mentais que são considerados vulneráveis? “Só ajudaremos as pessoas vulneráveis se nos dispusermos a participar do seu sentido de isolamento e pudermos ajudá-las a recuperar um sentido de valor como participantes de nossa comunidade humana” (CAMPBELL, 2003). De acordo com Torralba (2003), a ética aparece no cenário do mundo quando o ser humano deixa de preocupar-se somente com a sua vulnerabilidade e se ocupa com a vulnerabilidade do outro e passa a responder solidária e responsavelmente por ela. Por outro lado, há que se considerar ainda que os profissionais da saúde carregam suas próprias vulnerabilidades, como assinala Anjos (2006), observando, 35 porém, a dificuldade em reconhecer-se isto, pois freqüentemente “se entende a vulnerabilidade como sendo ‘dos outros’ e raramente do próprio agente”. Assim, acredita-se que a experiência de vulnerabilidade é um processo marcado por contínuos acontecimentos no cotidiano, com fases de maior ou menor intensidade, provocando às vezes muito sofrimento na vida do profissional da saúde, contemplado neste estudo, seja o técnico, seja o auxiliar de enfermagem. Assim, quando se reconhece a vulnerabilidade do outro pensa-se sobre a própria vulnerabilidade, neste sentido, começa-se a compreender a condição humana. Portanto, “o reconhecimento da própria vulnerabilidade é ponto de partida para uma construção maior. Possibilita o encontro construtivo com o outro e os passos de superação das próprias fragilidades” (ANJOS, 2006). 2.4 Dignidade da pessoa humana A palavra “dignidade” vem do latim: dignitas, que significa honra, virtude ou consideração. Entende-se que dignidade é uma qualidade moral inata. Para Rizzatto (2002) a “dignidade nasce com a pessoa. É-lhe inata. Inerente à sua essência”. Entretanto, “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem” (SILVA, 1997). Aprofundando o conceito de dignidade da pessoa humana, pode-se dizer que a pessoa é um bem e a dignidade, o seu valor. Como princípio da “dignidade humana” entende-se a exigência enunciada por Kant (apud ABBAGNANO, 1982), “age de forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um meio”. Entretanto, é importante pontuar que o aprofundamento do conceito de dignidade da pessoa leva a ultrapassar qualquer conotação de simples dogma religioso. “Desta forma, o tema da dignidade da pessoa humana não permanece um tema da exclusividade dos direitos eclesiais, mas um conceito politicamente correto entre nações civilizadas” (LEPARGNEUR, 2003). A dignidade da pessoa humana envolve aspectos das mais variadas realidades. Trabalha pelo direito de igualdade entre os homens na condição de seres humanos. Por isso, Dallari (2004) afirma que “as pessoas são diferentes, mas 36 continuam todas iguais como seres humanos, tendo as mesmas necessidades e faculdades essenciais”. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), tanto em seu primeiro "considerando" quanto em seu primeiro artigo afirma: "Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo". E art. 1.º: "Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade". Neste sentido pode-se admitir a pertinência da expressão religiosa que diz: “o homem não é dono da própria vida, mas recebe-a em usufruto; não é proprietário dela, mas mero administrador, pois somente Deus é que é o Senhor da Vida” (JOÃO PAULO II, 1985). A dignidade é atributo intrínseco da essência da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente. A universalidade é o anseio profundo dos atos humanos mais genuínos. O ser humano age com vistas ao reconhecimento, por todos, de que sua ação é a melhor, a mais justificada. Mas conversar sobre universalidade é deveras muito difícil, visto que implica numa questão muito complexa, a diversidade. Enfim, encerra um problema espinhoso, que é o de estabelecer o que, efetivamente, está em condições de ser reconhecido como universal, e se isto implica necessariamente abrir mão do particular, de alguma forma o problema que se identifica na questão ética. As raízes da dignidade humana, em uma percepção judeo-cristã, são encontradas na Bíblia Sagrada já nos primeiros capítulos do livro de Gênesis: O homem foi criado por Deus e recebeu o fôlego de vida. Era a coroa da criação: Então disse Deus, “Façamos o homem à Nossa imagem, conforme a Nossa semelhança; e domine ele sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a Terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a Terra”. E criou Deus o homem à Sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou. (GÊNESIS 1:26 e 27). 38 Como foi o meu dia Levantei da cama, escovei os dentes Ainda na hora do café, cantei duas músicas alto Depois disso senti um vazio enorme, querendo voltar ao passado e entrar no túnel do tempo Agora vêm pensamentos soltos Tan, tan, tan, tan, eu estou quase morrendo de saudades de você Eu te amo, eu te amo, eu te amo Eu quero amar ao próximo Eu não nasci para sofrer. (ROMANO, 1995, apud ROCHA, 2005, p. 97), Entretanto, quando se fala da autonomia na assistência de enfermagem em 39 sofrimento, nas dimensões física, psíquica, social e espiritual com competência tecnocientífica e humana (BETTINELLI et al., 2003, p. 233). É importante destacar o que Pessini adverte sobre os cuidadores: Quem cuida e se deixa tocar pelo sofrimento humano torna-se um radar de alta sensibilidade, se humaniza no processo e para além do conhecimento científico, tem a preciosa chance e privilégios de crescer em sabedoria. Esta sabedoria nos coloca na rota da valorização e descoberta de que a vida não é um bem a ser privatizado, muito menos um problema a ser resolvido nos circuitos digitais e eletrônicos da informática, mas um dom, a ser vivido e partilhado solidariamente com outros. (PESSINI, 2002, apud BETTINELLI et al., 2003, p. 234). Assim, quando aqui se fala de bioética como pratica de atendimento, deve-se ter em conta que a bioética é interdisciplinar, possui uma abordagem necessariamente pluralista imposta pela complexidade e diversidade das sociedades que levantam questões, embora reconheçam que elas dizem respeito a toda a humanidade e não se lhes pode dar resposta suscetível de ser legitimamente monopolizada por um grupo ou pessoa. Entretanto, um outro ponto que não deve ser esquecido no atendimento ao doente mental é o princípio da dignidade da pessoa humana, pois exerce sua influência, sobretudo nos chamados direitos humanos fundamentais. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana engendraria, portanto, os direitos ligados àquilo que constitui a qualidade do humano no homem. 2.6 Conclusão do capítulo Com base nas argumentações conceituais aqui levantadas pode-se inferir que o princípio da dignidade da pessoa humana expressa nitidamente aquele que há de ser considerado como fonte suprema, o ser humano. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) prescreve ainda que “o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo consiste no reconhecimento da dignidade de todos os seres pertencentes à família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis”. Neste sentido, uma vez que os doentes mentais são vulneráveis à exploração e injustiças, cabe aos profissionais zelar pelo melhor interesse dos pacientes. Entretanto, mesmo sendo defendida a autonomia do doente mental baseada no seu próprio pensamento acerca de si e do meio que o circunda, às vezes se torna 40 impossível, pois estes têm às vezes percepções violentas, hostis e opressivas da realidade. Assim, é importante atentar-se para as palavras de Bettinelli et al. (2003): o “profissional da saúde deve ampliar sua compreensão, perceber os elos que unem as pessoas em sua volta, captar seus desejos, vontades e sentimentos”. 41 3 PARA COMPREENDER A DOENÇA MENTAL Neste capítulo, abordar-se-ão questões relacionadas ao processo de compreensão da doença mental em vista de se delinear o respeito que pode ser atribuído à sua autonomia, durante tratamentos em hospitais psiquiátricos. Dentro de tal objetivo, este trabalho ater-se-á a conceituações consideradas indispensáveis. Nesse sentido, alguns conceitos serão abordados. Procurar-se-á esclarecer alguns elementos básicos sobre doença mental e sobre esquizofrenia, que entram especificamente neste estudo. Torna-se também indispensável anotar alguns dados sobre os hospitais psiquiátricos, a luta antimanicomial e os profissionais da saúde mental, que são os cuidadores, para que se possa situar com mais propriedade o 42 para estabelecer com ele relações humanas, isto exige a busca do saber e a abertura em aprender. A internação é uma criação institucional própria do século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão (FOUCAULT, 2005). O mesmo autor diz que o internamento pode ser justificado de duas maneiras, a primeira seria pela beneficência e a segunda seria para punir o individuo louco. Deste modo, procurou-se saber o que a Lei fala a respeito do louco. O Código Penal cria ou determina uma medida de segurança indefinidamente, podendo-se manter uma pessoa em uma instituição psiquiátrica de custódia estatal pelo resto de seus dias; acredita-se que esteja afrontando a Constituição no artigo 5.º, XLVII, b, que determina expressamente: a medida de segurança é uma pena imposta pelo Estado contra um indivíduo que delinqüiu e que, por apresentar um quadro psiquiátrico de doença mental, não irá para a cadeia; será absolvido pela sua condição psíquica, e receberá uma medida de segurança que poderá perdurar indefinidamente, o que estaria afrontando a Constituição, que proíbe penas de caráter perpétuo. Igualmente o mesmo inciso XLVII, letra c, do art. 5.º proíbe que as penas sejam cruéis, mas os hospitais psiquiátricos custodiais são instituições que, pela sua condição na realidade, dispensam tratamento cruel a seus pacientes. Assim, o Código Civil, ao tratar no Livro I Das Pessoas, Título I Da Divisão das Pessoas e Capítulo I Das Pessoas Naturais, ao mencionar que são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os loucos de todo o gênero, emprega terminologia pouco adequada pela forma agressiva e até parcial de identificar a incapacidade apenas nos diversos tipos de loucura, o que já se constata hoje não ser uma realidade. Levando-se em consideração todos os avanços no que se refere aos direitos humanos do indivíduo, parece agredir a Constituição especialmente pela forma como as pessoas são tratadas. O objetivo fundamental da legislação de saúde mental é proteger, promover e melhorar a vida e o bem-estar social dos cidadãos. Toda sociedade necessita de leis para alcançar seus objetivos, a legislação de saúde mental não poderia ser diferente de nenhuma outra legislação. A base para a legislação de saúde mental são os direitos humanos. Direitos e princípios fundamentais incluem a igualdade e a não- 43 discriminação, o direito à privacidade e autonomia individual, direitos à informação e à participação (OMS, 2005). O “louco”, ao qual se refere este trabalho é o esquizofrênico. O estereótipo de loucura é claramente observado no doente mental esquizofrênico. 3.2 Esquizofrenia A esquizofrenia, um termo criado por Breuler (1911), é uma doença mental, uma psicose de origem desconhecida pela ciência. A CID-101 apresenta a esquizofrenia como o transtorno mais comum das doenças mentais. Caracteriza-se pela distorção do senso da realidade, inadequação e falta de harmonia entre pensamento e afetividade. Alucinações2 e idéias delirantes3 são freqüentes. O comportamento pode ser de isolamento, regressivo ou bizarro4, seu humor às vezes pode ser ambivalente nas respostas emocionais, perde a empatia por outras pessoas, principalmente as pessoas mais próximas: [...] a esquizofrenia diversifica-se em formas aparentemente muito dessemelhantes, em que se distingue habitualmente as seguintes características: a incoerência do pensamento, da ação e da afetividade, o afastamento da realidade com um dobrar-se sobre si mesmo e predominância de uma vida interior entregue às produções fantasísticas, a uma atividade delirante mais ou menos acentuada e sempre mal sistematizada. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2000, p. 158). É suposta a dificuldade que esses doentes encontram, a comunicação tornase muito difícil, pois o indivíduo é impossibilitado de manter seu pensamento em ordem, tornando assim os métodos terapêuticos tradicionais ineficazes ou pouco eficazes. O filme norte-americano “Uma Mente Brilhante”, lançado em 2001 e dirigido por Ron Howard, pode ilustrar um pouco o conceito de esquizofrenia. O filme conta a 1 Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, revisada pela Organização Mundial de Saúde, a versão mais recente é a CID-10. 2 Percepções sensoriais alteradas, que podem durar de segundos a dias, e pode ser: AUDITIVA; VISUAL; TÁTIL; GUSTATIVA (sente sempre o mesmo sabor); OLFATIVA (mesmo cheiro); PROPRIOCEPTIVA (sente que tem algo dentro dele). 3 Perde a referência da realidade, o indivíduo transforma a realidade, geralmente são: DE GRANDEZA; ERÓTICO; MÍSTICO ou RELIGIOSO; PARANÓIDE; DEPRECIATIVO; DEPRESSIVO; TRANSITIVISTA (assume outra identidade) 4 Comportamento estranho, diferente. 44 história do matemático “John Nash”, que ficou famoso pelo desenvolvimento de uma tese e chegou a ser indicado a receber o prêmio Nobel de Economia, mas, no intervalo entre sua tese e o Nobel, John foi diagnosticado como esquizofrênico. Suas alucinações visuais são apresentadas como fatos “reais”. O filme possibilita uma reflexão acerca do sofrimento psíquico do doente mental, que muitas vezes é esquecido num hospital psiquiátrico, marginalizado e excluído. A esquizofrenia geralmente se manifesta no indivíduo na adolescência ou com atraso na idade adulta. “Situa-se na primeira metade da faixa dos vinte anos para homens e final da faixa dos 20 para as mulheres (...) variedade de sinais e sintomas: retraimento social, perda do interesse pela escola ou trabalho, deterioração da higiene e cuidados pessoais, comportamento incomum e ataques de raiva” (DSM-IV, 2002)5. No tratamento da esquizofrenia é aconselhável que seja feita uma combinação entre: psicofármacos, orientação psicológica e mudanças no seu ambiente. A internação em hospitais psiquiátricos só é aconselhável em casos de urgência. As medicações mais utilizadas são: clorpromazina (amplictil), haloperidol (haldol) e flufenazina (anatensol Depot). É importante enfatizar que o trabalho do psicólogo deve ser com terapias corporais, como jogo e manifestações artísticas. Também são indicados trabalhos com pinturas e colagens. A orientação familiar também é muito importante para modificar o ambiente onde o individuo está inserido. 3.3 Hospitais psiquiátricos Curiosamente, revendo-se um pouco da história dos hospitais, constata-se que a palavra “hospital” vem do latim hospes, que significa hóspede, deu origem a hospitalis e hospitium, que significavam o lugar onde se hospedavam na Antigüidade, além de enfermos, viajantes e peregrinos (GONÇALVES et al., 1983, apud CAMPOS, 1995). 5 Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais. 4. ed., textos revisados em 2002. 45 O hospital não deve perder sua missão de ser hospitaleiro e hospedar pessoas doentes que necessitem de ajuda; pode-se chamar a esses doentes de hóspedes e os profissionais da saúde, de hospitaleiros, de anfitriões. Qualquer pessoa pode ser um hóspede; reconhecê-la como hóspede pressupõe que se dê um passo muito importante no sentido do reconhecimento de todos os seres humanos como hóspedes virtuais. [...] o hóspede não é recebido apenas como um determinado indivíduo, mas também como embaixador substituível, como representante de outros; uma vez que os seres humanos constituem grupos, comunidades, sociedades e nações, cada indivíduo está inserido nesses agrupamentos. A hospitalidade confronta-nos por isso, com algo que tem um significado ético e político notável: o acolhimento do estranho, do outro, daquele que não pertence “aos meus”. A hospitalidade é reconhecimento “dos diferentes”: aceitamos que o hóspede seja diferente de nós. [...] o anfitrião deve estar preparado, pois no momento mais imprevisto o hóspede pode chegar. (Caminhos de Hospitalidade Segundo o Estilo de São João de Deus 46 de si, em alguns casos mantendo-os longe do discurso, mas infelizmente perto do cuidar”. Assim, “quando nos propomos tratar da doença mental, utilizamos conceitos preestabelecidos e soluções que homogeneízam as diferenças; temendo ousar e romper fronteiras que nos separam do universo da loucura” (BARROS, 2002, apud REINALDO, 2004). 3.4 Luta antimanicomial Acredita-se que a luta antimanicomial busca levar os profissionais da saúde mental a fazerem uma reflexão acerca de novas formas de pensar, de agir, de perceber e de cuidar dos doentes mentais. De acordo com Bezerra Jr. (1994, apud KANTORSKI, 2001), no campo da saúde mental têm-se, em 1989, dois marcos importantes que ajudaram a compreender o processo de resistência à psiquiatria tradicional: o primeiro foi a intervenção realizada pela Prefeitura de Santos na Casa de Saúde Anchieta na cidade de Santos – estado de São Paulo –, hospital particular da região que representava o universo manicomial, e o segundo foi o Projeto de Lei n.º 3.657/89, apresentado ao Congresso Nacional pelo deputado federal Paulo Delgado, que previa a reestruturação da assistência psiquiátrica brasileira com a substituição dos manicômios por dispositivos novos de tratamento e acolhimento. De acordo com Maia e Fernandes (2002), o Projeto de Lei Paulo Delgado, que sugere mudanças na legislação psiquiátrica, tornou-se catalizador dos debates acerca da questão antimanicomial, provocando polêmicas entre diversos setores e grupos sociais. Inspirado na Lei Baságlia italiana, de autoria do psiquiatra Franco Baságlia, o Projeto de Lei Paulo Delgado, apresentado ao Congresso Nacional, somente foi aprovado recentemente, em abril de 2001. Assim o projeto propõe: 1. O restabelecimento dos direitos civis e políticos dos doentes mentais. 2. A extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por hospitaisdia. 3. A internação em hospitais gerais, por períodos mínimos. 47 4. A regulamentação da internação compulsória, ou seja, aquela que se dá sem a aprovação do paciente, e que poderá ocorrer por, no máximo, 24 horas, com o conhecimento do juiz e de uma junta médica. 5. A regulamentação do uso de terapias perigosas, como o “eletrochoque”. Esta aprovação constitui um avanço histórico, culminado pelo empenho de uma série de segmentos sociais engajados no “Movimento Nacional da Luta Antimanicomial”, embora signifique que o caminho pela frente ainda é muito longo, a fim de incorporar as alterações decorrentes da lei nas ações de saúde. O Movimento Antimanicomial luta para rever os critérios de distinção dos cidadãos e conseguir qualificar o doente mental entre eles, legalmente. Desta forma, a internação psiquiátrica quando necessária, recomenda-se que esta seja feita em enfermaria especializada em um hospital geral. Assim facilita-se o tratamento de problemas físicos que possam advir, ao mesmo tempo em que se que o doente seja discriminado, estigmatizado pela sociedade afastando-se dela, tornando-se crônico. (ROCHA, 2005, p. 46). 3.5 Profissionais da saúde mental Existe muitas formas de definir a saúde mental, mas acredita-se que saúde mental é ter projetos próprios e partilhados para desfrutar e transformar o mundo. É a capacidade de viver, trabalhar as perdas e as situações dolorosas da vida. É ter a capacidade para expressar, dar e receber afeto, na medida e de acordo com as pessoas e as circunstâncias. Quando se fala neste estudo de profissionais da saúde mental são, sobretudo, os profissionais da enfermagem que surgiram com Florence Nightingate na Inglaterra, em 1853. Em 1862, surgiram as missionárias da saúde, precursoras das visitadoras de saúde. No entanto, na época a enfermagem atuava na psiquiatria como repressora, punitiva, além de vigia do doente mental. Assim, a assistência dos profissionais da enfermagem desde os primórdios foi sempre marcada por atitudes agressivas de alguns profissionais que exercem poder sobre os doentes (ZERBETTO; PEREIRA, 2005). Ainda de acordo com as autoras, “o enfoque da saúde mental visa à reconstrução do sujeito, preservando sua 48 subjetividade, sua história de vida e suas relações interpessoais, buscando romper com mecanismos que podem perpetuar a marginalização”. Fala-se muito em humanização e qualidade de vida do doente mental, mas pode-se pensar que muitas famílias e muitos profissionais não estão preparados para auxiliar esses doentes a resgatarem seus direitos, sua cidadania. Acredita-se que humanização e qualidade de vida do doente podem ser iniciadas pelo bom 49 Acredita-se que “o cuidar humanizado implica, por parte do cuidador, a compreensão do significado da vida, na capacidade de perceber e compreender a si mesmo ao outro situado no mundo e sujeito de sua própria história” (PESSINI et al., 2003). De acordo com Martin (2003), os hospitais não são humanizados suficientemente, onde o doente se sinta bem em vez de diminuído, despersonalizado e isolado. A ética sonha com um mundo mais humano, mais fraterno e procura desvendar a lógica dos mecanismos que tornam realizável o sonho. No que tange ao cuidar, parece ser prevalente a visão da enfermagem vocacional, sustentada mais pelo pilar ético da caridade que da solidariedade. A humanização do cuidado é obtida pelo estabelecimento de relações amigáveis com a clientela e, não, pelas transformações nos conteúdos das práticas (FONSECA, 2000). Assim, os cuidados prestados pelos profissionais da enfermagem são freqüentemente realizados com improviso, desde que a necessidade do doente seja atendida. Portanto, o cuidado respeitoso consiste em escutar a voz daqueles que sofrem, escutar essa voz que clama não é fácil; não se entende o que o outro diz, o que ele sente. O cuidado respeitoso acontece quando, mesmo sem entender, se coloca no lugar daquele que sofre. Para escutar o outro, antes se tem que escutar a si mesmo. De acordo com as idéias de Perbalt (1990) “sobre o significado concreto da utopia de se construir uma sociedade em que os loucos não estariam mais nos asilos, discriminados e segregados, o autor afirma que não basta destruir os manicômios e acolher os loucos”. Desta forma, compreende-se que a construção da reforma psiquiátrica pode proporcionar o exercício teórico-prático de lidar com o desconhecido, com novas formas de assistência aos doentes mentais. O sofrimento e a vulnerabilidade do doente mental oferecem momentos de reflexão para os profissionais da saúde mental em torno da relação “eu–outro”. Entretanto, o profissional descobre-se a si mesmo quando vai ao encontro de outras pessoas. Quando aqui se refere aos “loucos”, abundam as idéias de como 50 aproximar-se dessas pessoas, como se fossem de “quinta classe”, de quem se abusa, a quem se humilha e aos quais se trata como “objetos e cobaias” em muitos casos. Neste sentido, respeitar o outro não se refere apenas ao respeito pela dignidade e pela vida, exige o compromisso de promovê-la. Assim, quando se fala de doente mental, o respeito pela autonomia nos diversos graus é um aspecto que se pode considerar um dever ético para com estes indivíduos vulneráveis que sofrem de incapacidade e não se adaptam aos padrões que se tem por “normais”. Os doentes mentais não podem ser simplesmente consumidores de cuidados e medicamentos, o doente é co-responsável pelo seu tratamento. Neste sentido, acredita-se que doente mental internado não necessita apenas ser visto e examinado, é um doente que precisa ser ouvido e compreendido na sua linguagem muitas vezes incompreensível. Sabe-se que a linguagem do doente com suas máscaras e defesas esconde seu sofrimento. 3.6 Conclusão do capítulo Considera-se, diante dos padrões conceituais aqui levantados que a evolução dos conceitos de saúde e doença, a representação da doença mental e as estratégias de cura estão relacionadas com os correspondentes paradigmas de cada época ao longo dos tempos e têm suas origeor 51 Para que os profissionais da saúde mental possam exercer sua profissão com dignidade e respeitar o seu cliente e sua condição humana, dentre outros, necessitam manter sua condição humana também respeitada, trabalhando em condições apropriadas e recebendo uma remuneração justa pelos trabalhos prestados. Por fim, a humanização na instituição de saúde mental, como espaço ético, requer o fomento de relações profissionais saudáveis, de respeito pelo diferente, além do reconhecimento dos limites profissionais. 52 4 ATENDIMENTO AO DOENTE MENTAL COMO DESAFIO BIOÉTICO: UMA PESQUISA DE CAMPO Neste capítulo é apresentada a metodologia traçada para a pesquisa, ilustrada por alguns dados que caracterizam o processo da trajetória percorrida ao longo do estudo, bem como são apresentados seus principais resultados. Trata-se de uma pesquisa qualitativa cujo objetivo é conhecer o pensamento de auxiliares e técnicos em enfermagem a respeito da autonomia do doente mental e demonstrar a importância do respeito ao doente mental pelo profissional de enfermagem para um cuidado adequado. Entretanto, aproveitou-se para explorar também alguns dados quantitativos tornados possíveis pelo tipo de formulário aplicado na coleta dos dados. Serão comentados inicialmente a metodologia empregada, em seguida, alguns dados quantitativos e, por fim, os elementos mais qualitativos obtidos na pesquisa. 4.1 Metodologia A pesquisa foi realizada numa instituição psiquiátrica de pequeno porte. A finalidade dessa instituição passa por um atendimento humanitário, que pressupõe internações psiquiátricas de curta duração. A instituição localiza-se na zona oeste da cidade de São Paulo. A instituição atende pacientes neuróticos graves, psicóticos e toxicofíilicos, exclusivamente para adolescentes e adultos do sexo masculino. Na instituição, o serviço de enfermagem preocupa-se com os cuidados primários e genéricos de saúde, valorizando a integridade do ser humano e diferencia sua assistência de acordo com os diagnósticos dos pacientes e conforme suas necessidades básicas, acompanhando-os desde a admissão até a alta com o registro de todos os procedimentos técnicos em prontuário. O quadro de enfermagem conta com treze auxiliares de enfermagem e doze técnicos em enfermagem. Foram convidados todos os 25 auxiliares de enfermagem 53 e técnicos em enfermagem que atuam na instituição, sem discriminação de sexo, idade ou etnia. Não foi utilizado nenhum critério de exclusão. O instrumento utilizado, como se pode ver no anexo 1, foi uma entrevista semidirigida para a coleta de dados, com um roteiro norteador que constava de apresentação de dois casos e questões abertas que versavam sobre o respeito à autonomia e vulnerabilidade do doente mental. Optou-se por dois casos e questões abertas, pois assim os profissionais podiam desenvolver melhor suas respostas em cima dos casos. Para a elaboração dos casos e do questionário tiveram-se presentes duas hipóteses: a primeira é que a qualidade dos serviços prestados pelos auxiliares de enfermagem e técnicos em enfermagem pode ser significativamente melhorada à medida que levem mais em consideração a subjetividade, afetividade e a vulnerabilidade do doente mental; e a segunda é que os profissionais da saúde mental (auxiliares de enfermagem e técnicos em enfermagem) prestam assistência aos doentes mentais internados em psiquiatria, mas encontram dificuldade em respeitar a diferença e são inundados de preconceitos que excluem e segregam o doente mental. Assim, num primeiro momento, uma carta-convite foi entregue à instituição em que se solicitava autorização para a pesquisa (Anexo 2). Após a aprovação da instituição, os auxiliares e os técnicos em enfermagem foram convidados verbalmente para participar da pesquisa e foi-lhes solicitada uma hora para a entrevista. Posteriormente, foi entregue àqueles profissionais que aceitaram o convite para participar da pesquisa um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo 3). Em seguida, foi feita a entrevista da seguinte forma: apresentou-se um caso e depois foram feitas as perguntas e assim sucessivamente com os dois casos. A entrevista foi acompanhada de gravação de voz. É importante registrar que todos os profissionais aceitaram participar da entrevista de forma livre e esclarecida. A pesquisa foi realizada na primeira quinzena de julho de 2006. Pode-se notar uma participação interessada, em que as respostas foram dadas com gosto e espontaneidade. 54 4.2 Apresentação dos resultados Embora esta seja uma pesquisa qualitativa, sabe-se que “algumas pesquisas qualitativas não descartam a coleta de dados quantitativos” (CHIZZOTTI, 2005). Neste sentido, inicialmente são apresentados os resultados globais quantitativos e, seguidamente, os qualitativos. 4.2.1 Resultados globais quantitativos A pesquisa foi realizada numa instituição psiquiátrica com todos os profissionais técnicos e auxiliares de enfermagem, com um total de 25 profissionais. Dos 25 profissionais doze são técnicos em enfermagem e treze são auxiliares de enfermagem; observa-se que a diferença entre ambos é considerada irrelevante. Quando comparados os técnicos por distribuição de sexo, seis são do sexo feminino e seis do sexo masculino; já os auxiliares: cinco são do sexo feminino e oito do sexo masculino. Dos doze técnicos, oito são casados; oito têm filhos; oito dizem não trabalhar em outro emprego; seis dizem trabalhar com doente mental por prazer em ajudar essas pessoas; e quatro têm parentes com diagnóstico de doença mental. No grupo dos treze auxiliares, dez têm filhos, quatro são casados e sete são solteiros. Sete profissionais dizem que trabalham em mais de um hospital e nove têm parentes com diagnóstico de doença mental. Sobre o principal motivo da escolha de trabalhar com doente mental, seis profissionais dizem que foi por prazer e sete dizem que foi a oportunidade de trabalho que tiveram. Ainda no grupo dos auxiliares há certa predominância de parentes com diagnóstico de doença mental; eles têm mais de um emprego, são solteiros e a grande maioria tem filhos. 55 4.2.2 Resultados globais qualitativos Para o desenvolvimento da temática, preocupou-se com a construção de uma abordagem dos “resultados globais qualitativos”, que fosse esclarecedora de modo que não ficasse enfadonho e incompleto, mas, que esclarecesse o proposto. Procedeu-se da seguinte forma: após um contato global com o conjunto dos conteúdos das entrevistas, foram identificadas algumas categorias que facilitassem a organização da leitura do tipo de conduta dos profissionais técnicos e auxiliares de enfermagem diante do atendimento dado ao doente mental. As categorias identificadas foram: o bem do doente, necessidade de analisar e compreender, a percepção da vulnerabilidade do doente e seus apelos, condutas relacionadas com a autonomia do doente mental, atitudes de “envolvimento solidário”, racionalizações, concepções de políticas sociais no cuidado a doentes mentais, recursos de um bom atendimento, espiritualidade, desconfiança. Assim, dentro de cada categoria procedeu-se a leitura dos dados. Considerando que as conjunturas pessoais não parecem interferir diretamente para diferenciar condutas e atitudes, nos resultados qualitativos serão consideradas as respostas dos 25 sujeitos pesquisados, sem distinção entre os profissionais. 56 É importante que o profissional adote uma conduta de acolhimento e um vocabulário que o doente se interesse em compreender os motivos que o levaram a uma clínica psiquiátrica: O paciente solicita alta constantemente, e é uma coisa que a gente tem que saber falar com ele, como ele deve conversar com a médica, o procedimento que ele deve fazer sobre tentar conseguir a alta. A gente tenta conversar e se ele não aceita, a gente pede para a médica conversar. (TEY22–A2). Ainda pensando no bem do doente mental: “Se o paciente estiver desorientado, confuso, não sabe nem o que ele está fazendo, cabe a avaliação do médico” (TEY23-B3). Assim, os profissionais devem se manter próximos ao paciente para orientar ou intervir quando for necessário. 4.2.2.2 Necessidade de analisar e compreender Percebe-se que grande parte dos sujeitos entrevistados foi analítica, ou seja, procedeu analisando o doente mental. O profissional da enfermagem “dada a sua proximidade mais constante com os pacientes, tem a possibilidade de compartilhar de seus anseios em relação a determinados tratamentos e possui o poder paralelo de influência em relação a eles” (BOEMER et al., 1997). Note-se que a análise tem destinações diferentes. Alguns visam à compreensão da situação do doente mental, em vista de um atendimento adequado, a partir de tal situação: “Os psicóticos não sabem o que fazem, eles ouvem vozes. Quando ele está em crise, não adianta você falar, porque se ele diz que está vendo alguma coisa, ele está vendo [...]“ (AEX08–A1). Tal análise nos depoimentos dos profissionais sugere que os doentes mentais sentem a necessidade de projetar nos profissionais suas “dores”. Como, por exemplo, a culpa: “Geralmente, eles acham alguém para jogar o que seria a culpa deles. Então, eles culpam alguém e passam o que é deles para outras pessoas [...]” (TEY23–A1). A importância do referencial para compreender o doente mental é enfatizada de modo a estabelecer como uma espécie de jogo entre dois mundos, que, entretanto, se relacionam: 57 Eles nunca aceitam a patologia, nunca aceitam que aquilo que eles estão vivendo é o irreal. A patologia por si só já diz que é um mundo de fantasia, um mundo de sonho, de coisas que não são reais para quem está do lado de fora, mas para ele é real. Então ele não vai aceitar que está doente, não vai aceitar que aquilo que eu falei para ele que não existi, não exista mesmo. Ele vê, ele toca, ele sente. Ele vai tentar te convencer e não você convencê-lo, na verdade, ele vai tentar te convencer de que aquilo acontece, mesmo você sabendo que não acontece [...]. (TEY25–B2). Existe, por outro lado, uma conduta analítica sobre a situação do doente mental que vem associada a uma crítica a quem não entende ou não leva em conta tal situação: É um paciente esquizofrênico, aparentemente, porque ouve vozes, tem delírios e a gente percebe que ele tem dificuldade de se socializar com os outros pacientes, não é entendido pela equipe de enfermagem e está se sentindo um pouco rejeitado do mundo [...]. (TEX02–A1). 4.2.2.3 A percepção da vulnerabilidade do doente mental e seus apelos O ponto central da atuação profissional é saber articular a técnica com a afetividade do encontro interpessoal em que as pessoas em situações de máxima vulnerabilidade necessitam. Saber equilibrar a razão e a emoção, velando pelo seu desenvolvimento, autonomia e vida digna: O paciente está ali para ouvir coisas boas e ter o tratamento. Por mais que os meus pacientes estejam agitados, eu converso, dou atenção, tanto que é difícil um paciente agitar comigo. Tem que ter paciência e saber o que fala porque qualquer palavrinha, para um paciente psiquiátrico, derruba mais ainda [...]. (AEY19–A3). Contudo, o profissional necessita ser cauteloso com o que diz para não dificultar o tratamento do paciente: “Você pode considerar o paciente louco, mas ele sabe muito bem o que você está dizendo e isso pode agravar o tratamento dele [...]” (TEX18-A3). Considerando a vulnerabilidade do doente mental, o profissional deve zelar para tratar os doentes “respeitando suas necessidades intrínsecas; e considerando sua autonomia nas escolhas” (BETTINELLI et al., 2003). 58 4.2.2.4 Condutas relacionadas com a autonomia do doente mental Por meio das respostas dos entrevistados pode-se inferir que alguns profissionais não reconhecem a autonomia do doente mental. Assim “a autonomia do doente corre risco é quando decisões são assumidas por familiares sem consultar o paciente e, mais ainda, quando isso é feito com a conivência dos profissionais da saúde” (MARTIN, 2003). Assim, há profissionais que acreditam que “[...] tem que conter o paciente, e não dizer nada [...]” (AEY05–A3). Outro comentário em que se percebem claramente a desconfiança do profissional e sua incerteza diante do tratamento do doente mental: O doente mental, a gente nunca sabe o que ele pode fazer depois que sair. É por isso que ele deve ser acompanhado. Jamais ele pode sair desacompanhado. Aqui, ele pode falar que está bem, mas sai e, lá fora, ele pode se matar ou alguma coisa assim [...]. (TEY07–B3). Neste sentido, o cuidado do profissional aparece como um domínio sobre o doente mental: “Ele precisa de auxílio da enfermagem, porque nós somos as vozes deles aqui dentro do hospital [...]” (TEY17–A2). Os profissionais da saúde técnicos e auxiliares de enfermagem têm papel importante na vida do doente mental, que é acolher o paciente, prestando-lhe cuidados e atendendo às suas necessidades, mas alguns arriscam em opinar sobre quem tem ou não condições de internar-se sozinho: Eles têm um lado que eles acham que é importante para eles. Tem uns que sabem da doença [...] o G., a gente sabe que é crônico, mas ele tem algo de especial. Ele quer ir embora, ele fala que tem muitas coisas para fazer lá fora. Eu acho que ele não teria condições de vir e se internar, mas eu acho que ele tem condições de conversar com alguém e falar: “Eu não estou bem” [...]. (AEX24–B2). Assim, no cotidiano, os profissionais vão percebendo a resistência dos pacientes em aceitar a internação em clínica psiquiátrica. Neste sentido, a resistência do paciente não deveria distanciar o profissional do paciente, pois há profissionais que acreditam que: “É muito difícil um esquizofrênico procurar uma clínica porque é muito difícil ele aceitar uma internação [...]. Geralmente eles não aceitam [...]” (TEY22–B2). 59 Entretanto, um outro grupo reconhece a autonomia do doente mental, e de acordo com Martin (2003), mesmo colocando bastante ênfase sobre o respeito à autonomia, reconhece-se que a liberdade não é um valor absoluto, mas é um valor que dignifica a pessoa e a promoção da autonomia do doente, neste caso o doente mental. Veja o exemplo que segue: Infelizmente, pela quantidade de pacientes que nós temos na unidade, não dá para dar o atendimento que eles merecem. A verdade é essa. Por exemplo, o paciente recusa a medicação naquele momento; “Eu não quero porque essa medicação não está me fazendo bem”; “Eu não quero essa comida porque eu não me sinto bem com ela, eu não estou bem, meu estômago não está legal”. O que eu vou fazer? “Tudo bem, você não quer agora, eu vou chamar o médico e ele vai conversar com você” [...] (TEX20– A2). Assim, quando se fala de direitos humanos universais, estes são para todos, e devem ser reconhecidos esses direitos ao doente mental, assim, como relata um profissional: [...] cada um tem o seu espaço. Desde que não invada o espaço do outro ou do profissional, desde o momento em que não seja imposta alguma coisa. Ninguém gosta de trabalhar sob pressão, ninguém gosta de agir sob pressão. Todo mundo tem direito à liberdade, o paciente tem direito à liberdade, o colega de quarto tem direito à liberdade, o profissional tem direito de agir com liberdade. O paciente tem liberdade de escolha do seu tratamento, se ele não quiser o tratamento, não quiser tomar o remédio, participar da terapia é um direito dele, tem que ser respeitado. Essa é a minha opinião. (TEY25–A2). Ao mesmo tempo, a inclusão torna-se essencial, o fato de o individuo ser esquizofrênico não quer dizer que ele não seja humano, não tenha direitos, e seja um cidadão: “Ele pode ser esquizofrênico daqueles mais controlados, daqueles mais compulsivos, daqueles que sabem se organizar melhor. Nesse caso, se ele estiver em casa e se sentir mal, ele pode procurar ajuda sim [...]” (TEY17–B2). Da mesma forma, relata outro profissional: “Muitos pacientes esquizofrênicos têm muita insônia, outros têm muitos pesadelos à noite, isso já começa a incomodar. Eu creio que eles podem sim procurar ajuda, internar [...]” (TEX04–B2). 60 4.2.2.5 Atitudes de “envolvimento solidário” Observou-se, portanto, e vale destacá-lo que alguns dos sujeitos da pesquisa se identificaram com o doente mental. Neste sentido, destaca-se como exemplo: “Quando a gente trabalha com pacientes que tenham algum problema mental, a gente precisa se colocar no lugar deles [...]” (TEX04–A1). Da mesma forma, aparece no relato de outro profissional, ambos usam a mesma expressão, “se colocar no lugar”: “A gente tem que procurar, como profissional, se colocar no lugar do paciente, independente de qual seja a patologia dele [...]” (AEY09–A2). Entretanto, deve-se concordar com Bettinelli (2003), que afirma: “é necessário que os profissionais da saúde possam ir além das aparências, valorizando aspectos qualitativos dos fenômenos presentes na vida humana”. Um dado interessante que aparece na pesquisa é a valorização do cuidado respeitoso pelo profissional da saúde que trabalha diretamente no dia-a-dia com o doente mental. Segundo Leone (1998), “Muitos estudiosos que se dedicam à bioética entendem o respeito ao ser humano como o princípio máximo, do qual devem emanar os princípios éticos de tudo e de todos que este ser lidam”. O mesmo autor ainda afirma que “fica implícito, assim, o respeito à autonomia do indivíduo é um dos pontos básicos em que necessariamente se deve fundamentar toda relação entre os seres humanos”. Neste sentido pode-se observar o relato deste profissional: Muitas vezes o paciente está aqui, a auto-estima dele está baixa e qualquer comentário pode ser muito depreciativo para ele [...] Eu acho que a gente tem que tomar cuidado com os comentários, porque o paciente está numa situação emocional muito abalada [...].” (TEX02–A3). Além disso, é importante lembrar que a enfermagem psiquiátrica, mesmo não exigindo técnicas especificas, não se resume a um simples cuidado, é importante compreender os diferentes comportamentos patológicos do individuo (ROCHA, 1994). Quando se fala de atitudes de “envolvimento solidário”, pode-se dizer que é uma expressão que faz parte da cultura da vida, que é preciso defender e promover. Respeitar e atender o paciente na sua totalidade é um bom começo: “A gente deve 61 atendê-lo porque isso ajuda no tratamento. Imagina se ele está com um problema, vem até o posto de Enfermagem e recebe um não, isso faz com que ele fique mais irritado [...]” (TEX21–A2). Neste sentido, os profissionais da saúde devem ser educados para respeitar o outro como ser humano, apenas porque o é, assim, um profissional acredita e afirma que o paciente tem que ser bem tratado pelos cuidadores: “Na escola você não aprende a tratar o paciente assim [...] a gente não gosta de ser ofendido, nem o paciente. Tem que tratá-lo bem [...]” (AEY16–A3). Entretanto, alguns profissionais acham que o doente mental deve ficar sob constante vigília, é como se o doente mental apresentasse perigo constante para ele e para aqueles que fazem parte do seu ambiente. Assim, um profissional afirma que: “Às vezes, a gente não dá muita importância no que ele fala, por exemplo, quando ele fala ‘eu vou me matar’, é um paciente que você tem que prestar muita atenção no que ele diz. Às vezes, realmente ele faz [...]” (AEY09–A1). Em alguns casos o excesso de vigília pode aparecer por medo de ser agredido pelo paciente, como relata um dos profissionais: “É [...] um paciente que a gente tem que ficar de ‘olho aberto’ com ele e pode ter reações por causa das vozes que ele ouve. Ele pode tentar agredir a qualquer hora [...]” (TEY22–A1). Como já foi observado anteriormente, o respeito pela dignidade é um conceito ético, pertencendo mais apropriadamente à ética dos valores. Assim, observou-se que grande parte dos sujeitos entrevistados respeita a dignidade do doente mental, reconhece o doente mental como ser humano, com direito a ser livre como qualquer outro ser humano e não ficar trancado numa instituição psiquiátrica para o resto da vida como se fosse um animal selvagem perigosíssimo. Neste sentido, nota-se o respeito pela dignidade: “O ser humano não tem que viver o resto da vida trancado em um hospício [...] tem família que pega o paciente, interna e esquece o paciente lá. Isso é errado [...]” (TEX04–A3). Entretanto, o doente mental internado, quando aceita o tratamento, numa busca constante de sentido para o mundo em que se insere, interpreta constantemente o que observa em seu redor atribuindo invariavelmente significados, o que é muito bom para ele nesse sentido: “Uma vez que o paciente, na psiquiatria, aceita o tratamento, a continuar tomando a medicação quando sai do hospital, é muito bom para ele [...]” (AEY05–B1). Ainda neste sentido: “Ele ajuda, colabora, faz 62 serviço voluntário e ele vê uma possibilidade de alta. Então, o foco é o tratamento, não pode parar o tratamento [...]” (AEY12–B1). Ao mesmo tempo, grande parte dos doentes mentais assume uma atitude de passividade diante dos profissionais e aos cuidados que lhes são prestados; neste sentido os profissionais acreditam que: “Apesar dele ser um paciente psiquiátrico, ele é um ser humano [...]” (TEY11–A3). Contudo, acredita o profissional: “Nós não estamos aqui para julgar ninguém, apenas para poder ajudar e acolher. O paciente tem que ser tratado com mais respeito [...]” (TEY17–A3). Neste sentido, acredita-se que o doente mental necessita de cuidado e proteção, principalmente quando se encontra no estado mais grave da doença. Muitos pacientes encontram dificuldade para lidar com a doença mental; alguns dos profissionais reconhecem a dificuldade do paciente, e procuram ajudá-lo de forma atenciosa e humanizada. Contudo, alguns profissionais acreditam que: No hospital, eles tomam os remédios regularmente, mas, quando sai de alta, o paciente acaba deixando o tratamento ambulatorial e acaba regredindo. Quando o paciente se interessa em cuidar dos outros pacientes, ocupando a cabeça dele, a tendência de melhora dele é muito maior [...] (AEY09–B1). É ainda importante lembrar a importância do trabalho humanizado no atendimento ao doente mental, que, segundo Pessini et al. (2003), “a humanização no atendimento exige essencialmente dos profissionais da saúde o compartilhar com seu paciente experiências e vivências que resultem na ampliação do foco de suas ações”. O autor ainda esclarece que “humanizar a saúde é dar qualidade à relação profissional da saúde–paciente”. Assim, O paciente chega a parar de tomar a medicação por faltar recurso financeiro, mesmo. Não são todas as medicações psicotrópicas que o Estado fornece [...] Aqui dentro, a gente tem os horários, “está na hora do remédio, está na hora disso e daquilo”, e, às vezes, chega lá fora e parece que sente falta dessa cobrança, desse acompanhamento. A gente tem paciente aqui nesse caso. Aqui dentro, flui ótimo, mas quando sai, passou uma semana, parou de tomar o remédio, volta tudo e ele volta para a clínica [...]. (TEX18–B1). 63 vezes, a gente acha que a pessoa está bem, mas em minutos ela se transforma, agride. Não que ele queira, mas é da própria doença [...]” (AEX10–A1). A doença mental pode gerar no paciente sentimentos como incapacidade, dependência, insegurança e sensação de perda do controle sobre si mesmo. Com as perturbações de sua enfermidade, tem alucinações visuais, auditivas e às vezes chega a agredir colegas e profissionais: A partir do momento que ele escuta vozes, que ele agride uma pessoa, não é porque ele queira. É porque ele está ouvindo vozes, ele está sendo perturbado e, muitas vezes, ele pede desculpas depois que pratica o ato [...] ele não faz porque ele quer. Ele tem uma doença [...]. (TEX21–A1). Entretanto, a internação psiquiátrica é angustiante, podendo evidenciar a fragilidade do doente mental. Assim, pode-se observar no discurso do profissional que o doente “não é feliz”, não aceita sua patologia: “Nenhum doente mental é feliz por ser doente mental, porque, eu acho que uma das doenças mais complicadas que existe é a doença mental [...]” (AEY15–A3). Assim, é importante reconhecer, que o exercício da autonomia não é um valor absoluto isoladamente, mas, um valor partilhado que dignifica tanto a pessoa que cuida quanto a que está sendo cuidada pelo profissional. Um dos profissionais entrevistados reconhece suas limitações e de seus colegas, dizendo: Eu gostei das perguntas; foram bastante introspectivas porque você reflete muito sobre isso no dia-a-dia. É legal você está pondo para fora esse tipo de coisa que você pensa. Eu acho “desabafante” porque é o dia-a-dia da gente e muitas vezes ninguém faz essas perguntas, mas a gente pensa com a gente mesmo porque aquele determinado paciente bateu naquele funcionário, porque deram alta para aquele paciente sem acompanhante. São coisas que a gente pensa com a gente mas não conversa porque, até que entre aquele funcionário que trabalha com a gente sim, mas não existe uma conversa lá fora. Parece que não sai daquele mundinho da enfermagem essa conversa. Então é legal por isso para fora [...]. (TEY25– B3). 4.2.2.6 Espiritualidade Um dos profissionais entrevistados valoriza a espiritualidade no atendimento ao doente mental. Segundo João Paulo II (1986), a doença e o sofrimento assumem uma extraordinária fecundidade espiritual. Em seu discurso, o profissional afirma: 64 Eu vejo a Psiquiatria muito relacionada, além da questão da doença mental, à questão da parte espiritual. Acho que é uma coisa que anda muito lado a lado. Eles são inteligentes, eles sabem o que a gente fala. Fica difícil julgar. Julgar nunca, ouvir sim. Ouvir e anotar e procurar ajudar da melhor maneira possível, mas não julgar, falar qualquer bobagem para o paciente [...] a Enfermagem leva muito para o lado “isso não é doença, ele está simulando, está fingindo”, mas não é. Acho que ninguém entra aqui porque quer, ninguém está aqui porque gosta [...].” (TEX20–A1). Neste sentido, o que não se deve esquecer é da dignidade do doente mental, pois, quando se fala de ética em psiquiatria, fala-se de respeito pelo outro. 4.2.2.7 As racionalizações As racionalizações aparecem quando os profissionais justificam suas atitudes, como se isso fosse trazer o reconhecimento dos outros. A justificativa às vezes pode ser um mecanismo que encobre sentimentos agressivos contra aquele sujeito que só traz trabalho e angústia. É o que pode ser observado nos discursos dos profissionais entrevistados, como: Quando é um paciente que ele toda hora, toda hora, toda hora pede alguma coisa, nós como profissionais, temos que ver até que ponto ele quer aquilo mesmo ou ele está sentindo falta de alguma coisa. Às vezes não tem o preenchimento de alguma coisa, porque seria bom que ele tivesse um monte de atividade [...] Eu penso que por eles não terem uma atividade, eles ficam solicitando aquele cigarro. Aquele cigarro os preenche. Existe paciente que a gente tem que cortar, tem que conversar [...] eu sinto aquele vazio, aquela coisa, eles ficam no corredor para lá e para cá. Alguns pacientes ficam lá na enfermagem, eu quero aquilo, eu quero, eu quero roupa. (AEX24–A2). Neste sentido, os profissionais da saúde mental deparam-se com situações aparentemente simples do seu cotidiano, mas às vezes se torna difícil fazer as vontades dos pacientes por motivos diversos, justificados por aqueles: Muitas vezes eles querem usar o orelhão fora de hora, à noite, para ligar para a família e é difícil a gente deixar e, muitas vezes, isso cria revolta neles [...] a gente não tem só um paciente, são vários e é difícil atender a todos. A gente atende dentro do possível [...]. (TEX02–A2). 65 Neste sentido, alguns profissionais defendem que o paciente só deve sair acompanhado da instituição psiquiátrica; isso, pensando no “bem dele”, mas também, pensando no seu próprio bem: A gente só libera o paciente, aqui, acompanhado, por uma questão de segurança para ele e para nós também. Mas, existe paciente que faz o tratamento sozinho, no ambulatório, vai sozinho, organiza suas medicações, ele tem todos os horários. Não são todos que tem a necessidade de ter um acompanhamento 24 horas. Depende muito de doença e da gravidade [...]. (TEX18–B3). Neste sentido, o sofrimento acompanha a doença mental; a paciência e a compreensão deveriam acompanhar a formação dos profissionais, assim se falaria sempre de instituições e cuidados humanizados: “Um paciente que vem de instante em instante, na porta, pedir Dipirona, ou pedir Buscopan, se a gente, a todo instante, for dar Dipirona para ele, a pressão dele vai aos pés e a gente sabe que ele vai passar mal [...].” (AEY 14–A2). 4.2.2.8 Concepções de política social no cuidado a doentes mentais No Brasil, a reforma psiquiátrica vem se desenvolvendo há algumas décadas, mas, precisamente a partir dos anos 70. O movimento aponta as inconveniências do modelo que fundamentou os paradigmas da psiquiatria clássica e tornou o hospital psiquiátrico a única opção de tratamento, facilitando a cronicidade e a exclusão dos doentes mentais, os quais são vulgarmente conhecidos como “loucos”. Neste sentido, quando se fala de política social no cuidado a doentes mentais, lembra-se de formas de atendimento em que o doente é respeitado como ser humano. No entanto, observa-se que muitos profissionais da saúde mental valorizam o confinamento. Acham que no hospital eles estão bem, comem, dormem e tomam a medicação: Alguns pacientes, por exemplo, passam por várias internações e quando saem que recebem alta, saem chorando. Então, você está acostumado com o tratamento, porque lá fora é diferente. O tratamento que ele tem aqui, ele não vai receber lá fora, até mesmo em outras clínicas [...]. (TEY07–B2). 66 Ainda, neste sentido, pode-se observar o discurso de outro profissional, que afirma: “Esse paciente não pode ficar na sociedade, ele tem que ficar em tratamento [...] tem que ficar sob constante vigília dos profissionais de saúde [...].” (TEY11–A1). 4.2.2.9 Recursos de um bom atendimento Alguns dos entrevistados valorizam o diálogo; estes acreditam que uma boa conversa pode ajudar na relação profissional–paciente: A gente acaba de dar banho no paciente, trocou e em cinco minutos ele quer tomar banho de novo, ele quer se trocar. Então, você tem que ter uma conversa, um diálogo com ele, tem que tentar fazer com que ele entenda que já tomou banho, já se trocou [...]. (AEY19–A2). Entretanto, a doença não ocorre de um dia para o outro; o adoecer é um processo que se desenvolve no tempo, mas o paciente pode chegar a ficar desorientado, sem saber ao certo onde está e o que faz numa instituição psiquiátrica: Há casos de pacientes que entra e você percebe que eles estão desesperados, assustados e perguntam “Onde eu estou, o que vão fazer comigo?” [...] Muitas vezes, o que mais deixa a gente triste é a questão de você não ter muito tempo para dialogar com o paciente. Às vezes você está conversando com o paciente e um chama, o outro chama e são vários também. (TEX20–A3). Mas com o diálogo e a paciência do profissional os pacientes se sentem mais tranqüilos, ele só quer ser ouvido e às vezes ouvir uma palavra que o motive a continuar “lutando”: ”Você ouvir, conversar com ele, ameniza muita coisa e, com diálogo, a gente acaba ajudando o paciente” (TEX21–A3). A esquizofrenia produz alterações tanto no pensamento, como na linguagem, no comportamento e nos afetos, modificando a vida social e pessoal do indivíduo. Neste sentido, alguns pacientes podem perder a calma e até chegar a ponto de agredir os profissionais cuidadores: “Ele deveria ter falado para o paciente se acalmar, que quando ele estivesse mais calmo iria conversar com ele” (TEX01–A3). 67 Entretanto, quando se fala do vínculo que o profissional estabelece com o doente mental, observa-se que, a partir desse relacionamento, se cria uma margem, que se chama limite ou respeito pelo outro e por si próprio. No entanto, “o vínculo entre o profissional e o usuário deve possibilitar o respeito ao querer deste, que pode não ser o querer da equipe, lhe proporcionado um espaço para que possa exercer sua autonomia nessa relação com os que estão assistindo”. (BOEMER; SAMPAIO, 1997, apud ZOBOLI; MASSAROLLO, 2002). A doença mental é mais uma circunstância da pessoa, vale lembrar que sua dignidade permanece íntegra, do mesmo modo que as suas capacidades de decisão e ação, sempre que estas não estejam claramente influenciadas por sintomas psicóticos. Assim, pode-se destacar: “O paciente chega em crise e, conforme vai normalizando, conforme vai tomando a medicação, chega a um ponto, que ele estabiliza [...]. Num hospital, o paciente age de uma forma. Em casa, às vezes, ele age totalmente diferente [...]” (TEX04–B1). Ainda neste sentido, à medida que o doente mental vai conseguindo formar um vínculo mais saudável, no qual as diferenças podem se expressar por meio do diálogo, diminui o risco de o paciente isolar-se, excluir-se: É um esquizofrênico e não deve ser excluído da sociedade, deve seguir o tratamento e ter ajuda. Quando ele estiver muito isolado, procurar puxar conversa com ele, tentar se aproximar dele. Com alguém ele vai ter um vinculo, se tiver dez pessoas, uma delas vai ter um bom vínculo com ele [...]. (AEX13–A1). Entretanto, a ética pode contribuir significativamente para melhorar o ambiente psiquiátrico, para práticas que respeitem a condição de sujeito dos seres humanos; neste sentido, um profissional afirma: Na nossa área, nós temos que saber o que falar, ter ética, ter uma postura porque, nem todos que estão internados em uma Psiquiatria, têm o mesmo distúrbio. Uma pessoa normal pode ter um surto, ela pode ter um surto de repente. Às vezes tem pessoas que são muito caladas, vêm de muito sofrimento, vêm passando por muito sofrimento e elas são caladas, mas tem um tempo da vida que não suportam e têm esses tipos de coisas. (AEX24–A1). Ainda, neste sentido, a ética torna-se necessária no atendimento em clínica psiquiátrica, pois entre paciente e profissional acontecem “coisas”, e neste momento o profissional necessita ter como base os princípios éticos e de aspectos intrínsecos 68 ao significado da vida do paciente: “São lamentáveis as coisas que acontecem, não só na Psiquiatria. Isso acontece no cotidiano [...]. É antiético, é desumano, é inaceitável” (TEY25–A1). Entretanto, apareceu no discurso de grande parte dos profissionais que o doente mental tem limites. Alguns acreditam que o “limite” é importante para reeducar o doente mental, mas em psiquiatria o limite é imposto na maioria das vezes em forma de punição, neste sentido, o profissional afirma: “Tudo tem que ter limite e na psiquiatria não deixa de ser assim [...]. Nós temos um paciente agora que, quando ele não consegue o que quer, ele quebra os vidros, manipula e vive agitado também” (AEY05–A2). Assim, um dos limites estabelecido pelo profissional é a punição: “Ele tem que ter um limite [...]. O paciente vai ter que ficar sem telefonar à noite” (AEX06–A2). No entanto, acredita-se que o limite só deve ser estabelecido em situações de necessidade e por pessoas especialmente preparadas, e sempre com o objetivo de limitar manifestações de comportamento: Nem sempre tudo o que ele solicita tem que ser atendido. Principalmente o doente mental tem que ter limites. Geralmente, o doente mental fica em vários hospitais e cada hospital tem um ritmo, uma rotina [...]. O limite é importante para reeducar o doente mental naquele momento que ele está em crise. Eu acho que existe a educação e existe a doença. Muitos são educados e muitos não. Muitos se aproveitam da doença para fazer o que querem e não se ajudam, não colocam limites nos problemas, acham que tudo se resolve na agressão, se são contrariados, xingam, agridem. (AEY15–A2). Entretanto, o profissional da enfermagem deve estar preparado para agir diante das situações como conhecer as normas da instituição e os limites da sua profissão: Se o paciente pede alguma coisa que não está dentro do serviço, a gente não pode abrir mão de uma coisa que vai deixá-lo cada vez pior. Um vai ser o bonzinho, outro sempre vai ser o ruim, então deve todo mundo falar a mesma língua para o mesmo paciente. (TEY23–A2). Mas é importante pontuar que profissional e paciente devem respeitar as normas estabelecidas pela instituição: “Tem que respeitar as normas e rotinas da instituição [...]” (TEX18–A2). 69 4.2.2.10 A desconfiança Nota-se com a leitura dos questionários que grande parte dos profissionais não confia no doente mental. Neste ponto, é como se o doente não fosse humano, tudo o que ele diz não é levado em consideração, afinal, ele é um louco. No discurso do profissional podem-se destacar palavras como: “a gente tem que avaliar realmente”, “está manipulando”; suspeita-se, ainda, que o paciente reclama do atendimento: Você tem que atender a todas as solicitações do paciente, mas existem algumas que nós não podemos fazer [...] o paciente fala “eu quero tomar uma medicação agora, eu estou nervoso”. A gente tem que avaliar se realmente ele está nervoso ou se ele está manipulando. Se ele estiver manipulando, a gente tenta conversar, explicar que daqui a pouco ele vai ser avaliado e vai acompanhando o paciente. Se realmente ele estiver nervoso, a gente chama o médico e ele avalia. A manipulação é assim, por exemplo, quando chega a família para visita. O paciente está bem com a enfermagem, passou o dia tranqüilo. Quando ele vê a família, começa a ficar choroso, fala que a gente maltrata, que a gente não deu a roupa, não deu sapato e por aí começa. (TEX01–A2). Entretanto, quando um paciente deixa a instituição psiquiátrica geralmente encontra dificuldade em enfrentar a vida lá fora, às vezes ele se sente forte, promete mudar de vida, mas se não segue as recomendações dos profissionais, o caminho é retornar e começar de novo: “O paciente se recupera, se sente forte, que já está pronto para mudar, e depois ele volta para o hospital [...]. Voltam as crises e ele volta a se tratar porque ele também não acompanha a medicação” (AEX06–B1). Assim, gera insegurança nos profissionais cuidadores, chegam a não acreditar na melhora do paciente: “A gente não sabe a conduta dele após sair do Hospital. E se ele estiver simulando? Às vezes, o paciente está bem uma semana, duas semanas, mas na terceira semana, entra em surto” (AEY14–B3). Neste sentido, os profissionais defendem que o doente mental não pode sair desacompanhado quando recebe alta da instituição psiquiátrica, alguns profissionais acreditam que é pelo bem do paciente: “O paciente está indo embora, é acidentado e quem assume a responsabilidade? Se a família quiser ‘cair em cima’ do médico que deu alta, que o autorizou a ir embora sozinho, pode até dar um processo” (TEX04–B3). No mesmo sentido, o discurso de outro profissional revela certa preocupação com o paciente e também com o hospital: “Um doente sempre tem que 70 estar acompanhado, até no ônibus. Ele pode ter uma crise e, de repente, ele pode praticar uma coisa que venha a trazer sérios problemas até mesmo para o hospital” (AEX06–B3). Ainda neste sentido, outro profissional justifica-se pensando na medicação do paciente: “Um doente mental não deveria sair de alta desacompanhado porque é um paciente que aqui está estabilizado devido às medicações que ele toma constantemente” (AEY09–B3). Uma observação importante, relativa às entrevistas é que alguns profissionais relatam situações que denigrem a imagem do doente mental, como se todo louco (esquizofrênico) apresentasse perigo para a sociedade, justificando o confinamento num hospital psiquiátrico. Vale também assinalar o preconceito de alguns profissionais no atendimento ao doente mental. Assim, “um caminho possível e adequado para a humanização se constitui, acima de tudo, na presença solidária do profissional, refletida na compreensão e no olhar sensível” (BETTINELLI et al., 2003). Neste sentido, em relação ao preconceito no atendimento pode-se observar na fala do profissional: “A maioria das coisas que o doente mental pensa é negativa. Eles querem se matar, se jogar [...]” (TEY07–A2). O doente mental é merecedor da mesma consideração e respeito que qualquer outra pessoa, por que nenhuma doença, por pior que seja tira a dignidade da pessoa. Assim, “o cuidado humanizado implica, por parte do cuidador, a compreensão do significado da vida, na capacidade de perceber e compreender a si mesmo e ao outro, situando no mundo o sujeito de sua própria história” (PESSINI et al., 2003). 71 Tendo como base as idéias de Goldberg (2001), o grande desafio da enfermagem é conseguir uma mudança de atitudes, para que “escutar o paciente, se torne mais importante do que ministrar remédios”. Assim, quando o profissional da enfermagem demonstra ao paciente que se interessa por ele, pode evitar uma fuga, uma agressão, suicídio, e assim por diante: “Muitos pedem alta e falam para a médica ‘eu estou bom, eu quero sair, se você não deixar, eu pulo daqui, fujo’. Se ele estiver desse jeito, falando que vai pular, que quer fugir, ele não tem condições de sair” (TEY11–B3). Entretanto, o doente mental deve ser estimulado a participar das atividades promovidas pela instituição, e ajudar os outros é dever de todo ser humano: “É esquizofrênico, mas gosta de ajudar os outros. Aqui tem paciente assim, que gosta de ajudar” (TEY11–B1). 4.2.2.11 A descrença na recuperação Um dado relevante que aparece na pesquisa é que vários profissionais apresentam descrença na recuperação plena do doente mental. Mas parece sensato associar os limites da recuperação com necessidade persistente de tomar-se medicação por toda a vida, como consta na fala deste profissional: “A pessoa que tem esquizofrenia tem que tomar a medicação o resto da vida, não pode parar. Tem que continuar com a medicação, vai diminuindo com o tempo, mas não pode parar de tomar remédio [...]” (TEX02–B1). Por outro lado, pode-se afirmar que a doença mental é mais uma circunstância do indivíduo como já mencionado, sua dignidade permanece íntegra, assim, fica difícil concordar com que o profissional afirma do esquizofrênico: É um paciente que vai ficar em Psiquiatria o resto da vida porque ela vai regredindo cada vez mais e mais. Cada médico tem um tipo de medicação, tem um acerto de medicação para paciente. Tem paciente que você dá uma medicação e não melhora e você tem que passar para outro. Então, eu acho que ela não tem mais jeito, não [...]. (AEX24–B1). 72 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA BIOÉTICA AO BOM ATENDIMENTO A DOENTES MENTAIS Reconhecer a importância do respeito à autonomia do doente mental é inevitável. Neste estudo, buscou-se conhecer o pensamento de auxiliares e técnicos em enfermagem a respeito da autonomia do doente mental e contribuir para ressaltar a importância do respeito ao doente mental por parte do profissional de enfermagem em um cuidar adequado. O objetivo acima exposto foi atingido, na medida em que os profissionais envolvidos no estudo expressaram suas opiniões a respeito do tema proposto. Por outro lado, a verificação das hipóteses propostas a estudar trouxe alguns dados. De fato, tinham-se como hipóteses de trabalho as seguintes afirmações: A qualidade dos serviços prestados pelos auxiliares de enfermagem e técnicos em enfermagem pode ser significativamente melhorada à medida que levem mais em consideração a subjetividade, a afetividade e a vulnerabilidade do doente mental. E uma outra hipótese era que: Os profissionais da saúde mental (auxiliares de enfermagem e técnicos em enfermagem) prestam assistência aos doentes mentais internados em psiquiatria, mas encontram dificuldade em respeitar a diferença e são inundados de preconceitos que excluem e segregam a doente mental. Foi possível notar que as percepções dos profissionais, no que se refere às referidas categorias de bioética, o bem do doente, necessidade de analisar e compreender, a percepção da vulnerabilidade do doente e seus apelos, condutas relacionadas com a autonomia do doente mental, atitudes de “envolvimento solidário”, racionalizações, concepções de políticas sociais no cuidado a doentes mentais, recursos de um bom atendimento, espiritualidade, desconfiança, para o atendimento a doentes mentais, são percepções mais ricas do que inicialmente se imaginava. Mesmo que se devesse descontar certa dose freqüente de representação dos profissionais em suas respostas, parece que os referenciais da bioética, a autonomia, vulnerabilidade e dignidade da vida humana se mostram presentes em suas asserções. De fato, no conjunto dos conteúdos das entrevistas, algumas categorias colhidas dos referenciais da bioética e identificadas nas respostas obtidas nas entrevistas contribuíram para a organização da leitura dos dados da conduta dos 73 profissionais técnicos e auxiliares de enfermagem diante do atendimento dado ao doente mental, como por exemplo, que treze dos 25 profissionais têm parentes com diagnóstico de doença mental. Grande parte dos sujeitos envolvidos no estudo demonstra respeito à autonomia do doente mental. Por outro lado, um pequeno grupo não reconhece a autonomia do paciente e acredita que o doente mental deve ficar sob constante vigília, pois não confia no doente. No que refere à autonomia do doente mental, tomada como um referencial nesta pesquisa, os profissionais parecem reconhecer que o exercício da autonomia não é um valor absoluto isoladamente, mas, um valor partilhado que dignifica tanto a pessoa que cuida quanto a que está sendo cuidada pelo profissional. De fato, o doente mental é merecedor de idêntica consideração e respeito que qualquer outra pessoa, porque nenhuma doença, por pior que seja, tira a dignidade da pessoa. Entretanto, os profissionais levam em consideração a necessidade do paciente de ser respeitado em sua autonomia, pois, no discurso de alguns profissionais, percebe-se a preocupação em atender o paciente de forma que ele não se sinta marginalizado e segregado por ser um doente mental. Assim, o ponto central da atuação profissional é saber articular a técnica com a afetividade do encontro interpessoal de que as pessoas em situações de máxima vulnerabilidade necessitam. Saber equilibrar a razão e a emoção, velando pelo seu desenvolvimento, autonomia e vida digna. Um dado que cabe pontuar é que alguns profissionais se mostraram incondicionalmente a favor do confinamento. Alguns relataram situações que denigrem a imagem do doente mental, como se todo louco (esquizofrênico) apresentasse perigo para a sociedade, justificando o confinamento em clínica psiquiátrica; assim, o preconceito de alguns profissionais no atendimento ao doente mental pode ser observado. Pode-se concluir pela importância dos referenciais da bioética, como a autonomia, a vulnerabilidade e a dignidade da vida humana para o atendimento de doentes mentais em clínica psiquiátrica. Ficam evidenciadas por meio destes referenciais algumas condutas indispensáveis para que o doente mental possa ser respeitado e correspondentemente cuidado em clínica psiquiátrica. 74 Ao se colherem os principais frutos deste estudo, primeiramente ficam ressaltadas as interrogações que a bioética levanta sobre o atendimento ao doente mental de modo geral; e a seguir se colocam algumas principais linhas de compreensão do doente mental, que facilitem a sua inclusão nas relações humanas, não obstante suas vulnerabilidades. A partir dos frutos conseguidos no estudo destes dois primeiros passos, foi possível colher também alguma verificação em torno dos procedimentos de profissionais no atendimento a doentes mentais em clínica psiquiátrica. A bioética pode contribuir significativamente para melhorar o ambiente psiquiátrico, por práticas que respeitem a condição de sujeito dos seres humanos, podendo ser feitas por meio de formação continuada e grupos de reflexão. Esta pesquisa procurou contribuir sobre as discussões acerca do respeito à autonomia do doente mental, colocando no centro a ética e a dignidade da vida humana no seu mais amplo sentido; e procurou verificar como tais percepções mais amplas podiam traduzir-se em atendimento respeitoso e humanizado. 75 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Ju, 1982. ANJOS, M. F. A vulnerabilidade como parceira da autonomia. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, v. 2, n. 2, p.173–186, 2006. ANJOS, M. F. O corpo no espelho da dignidade e da vulnerabilidade. Revista O Mundo da Saúde. São Paulo, v. 29, n. 3, p. 325–335, jul./set., 2005. APPOLINÁRIO, F. Dicionário de metodologia científica: um guia para a produção do conhecimento cientifico. São Paulo: Atlas, 2004. BASAGLIA, F. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Princípios de ética biomédica. 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Tem filhos? ( ) Sim ( ) Não – Quantos? _______ 5. Profissão: ( ) Auxiliar de Enfermagem ( ) Técnico em Enfermagem 6. Tempo de profissão? 7. Há quanto tempo trabalha com doente mental? 8. Há quanto tempo trabalha na Casa de Saúde São João de Deus? 9. Trabalha em mais algum lugar? ( ) Sim ( ) Não – Onde? ________________ 9. O que o motivou a trabalhar em Instituição Psiquiátrica? 10. Você já foi internado em Psiquiatria? ( ) Sim ( ) Não 11. Tem parente com diagnóstico de doença mental? ( Parentesco? ___________________ ) Sim ( ) Não – 82 CASO A B. B. B., 25 anos, masculino, solteiro, foi internado porque agrediu a mãe com uma cadeira. B. bateu na mãe que foi internada e está na UTI de um hospital geral. B. ouve vozes e quebra tudo em casa, sendo muito agressivo com todos os familiares. Já foi internado outras vezes. Diz ao psiquiatra e à enfermagem que ouve vozes, mas não sabe especificar melhor o fenômeno. Na clínica é um paciente isolado, não tem nenhum tipo de contato com os outros pacientes. Quase não participa dos grupos de psicoterapia e quando vai não fala nada. Chora muito e diz que sente saudades da mãe. Durante a internação, agrediu verbal e fisicamente duas auxiliares de enfermagem e um médico, depois pedia desculpas e dizia que só obedecia a uma voz que ficava azucrinando-o o tempo todo. Reclama do atendimento da clínica, principalmente dos profissionais da enfermagem. B. diz que estes o tratam mal, suas solicitações não são atendidas, todas as vezes que pede alguma coisa recebe um sonoro “depois”. B. fica nervoso e logo é medicado e contido. B. também diz que já ouviu um profissional da enfermagem dizer que “s’eu fosse sua mãe quando saísse da UTI, te matava ou então te deixava trancado num hospício o resto da vida, pois louco não pode viver na sociedade”. B. diz que não teve culpa e em seguida chora. Fica a maior parte do tempo isolado em seu quarto. 1. Que comentários gostaria de fazer sobre este caso? 2. Até que ponto você acha que devem ser respeitadas as escolhas e recusas do doente mental? Como lidar com elas? 3. O que você acha da fala do profissional neste caso? 83 CASO B V. B., 30 anos, masculino, casado, três filhos, vários episódios de internação desde os 18 anos. Procurou a clínica porque nas últimas duas semanas não vem se sentindo bem; começou a ver e ouvir coisas que ninguém mais vê ou ouve. Na última internação foi medicado com nova terapêutica e passou os últimos três anos bem. V. B. parou por conta própria a medicação, percebeu que não estava bem, procurou a clínica e foi internado. V. B. foi medicado e participa regularmente dos grupos de psicologia e terapia ocupacional. Contacta bem e ajuda em algumas atividades na clínica, como, por exemplo, auxilia na locomoção dos pacientes mais necessitados. Oferece-se para fazer trabalho voluntário na clínica. Diz que de agora em diante vai continuar o tratamento no ambulatório com psicólogos e psiquiatras. V. B. pede alta; uma equipe discute e entende que o paciente está pronto para receber alta, mas sua história pregressa levanta dúvidas. 1. O que você acha deste caso? 2. Um doente mental (esquizofrênico) pode procurar uma clínica psiquiátrica por estar incomodado com os sintomas da doença? Por quê? 3. Você acha que o doente mental pode solicitar alta médica e sair desacompanhado? Por quê? 84 ANEXO 2 São Paulo, 3 de junho de 2006. Prezado senhor, Eu, José Raimundo Evangelista da Costa, abaixo assinado, psicólogo – CRP 06/75134, mestrando em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo, solicito, por intermédio desta, autorização para fazer uma pesquisa cientifica na Casa de Saúde São João de Deus com auxiliares e técnicos em enfermagem, com o título provisório de “RESPEITO À AUTONOMIA DO DOENTE MENTAL NO ATENDIMENTO DE AUXILIARES E TÉCNICOS EM ENFERMAGEM: UM ESTUDO BIOÉTICO EM CLÍNICA PSIQUIÁTRICA”. O objetivo da pesquisa é conhecer a representação desses profissionais a respeito da autonomia do doente mental. Serão entrevistados todos os auxiliares de enfermagem e técnicos em enfermagem que atuam na Casa de Saúde São João de Deus da Ordem Hospitaleira de São João de Deus. Os dados individuais serão mantidos em sigilo, mas o trabalho final estará à disposição da instituição. José Raimundo Evangelista da Costa Pesquisador AO DR. AÍRTON CIMMINO MARINI DIRETOR CLÍNICO E TÉCNICO CASA DE SAÚDE SÃO JOÃO DE DEUS SÃO PAULO – SP 85 ANEXO 3 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Titulo: “RESPEITO À AUTONOMIA DO DOENTE MENTAL NO ATENDIMENTO DE AUXILIARES E TÉCNICOS EM ENFERMAGEM: UM ESTUDO BIOÉTICO EM CLÍNICA PSIQUIÁTRICA”. Grau: Dissertação de Mestrado. Pesquisador: José Raimundo Evangelista da Costa. Orientador: Prof. Dr. Márcio Fabri dos Anjos. Co-Orientadora: Prof.ª D.ra Vera Lúcia Zaher. Caro (a) colaborador (a), Você está sendo, convidado(a) a participar de uma entrevista que integra um projeto de pesquisa sobre o atendimento profissional a doentes mentais. Sua participação é voluntária e, portanto, sinta-se livre para recusar a participar deste estudo e tenha a liberdade para retirar sua participação a qualquer momento, como igualmente se sinta à vontade para não responder a alguma das questões. Suas respostas serão mantidas como confidenciais. Não haverá nenhum nome colado ao questionário e apenas eu (José Raimundo Evangelista da Costa), terei acesso direto a seus conteúdos. Os dados obtidos com a sua colaboração serão usados apenas para os objetivos da pesquisa, garantida a não-identificação de quem fala. A sua sinceridade nas respostas será muito importante. Conforme o projeto da pesquisa, não entra em questão um julgamento sobre a ética dos comportamentos individuais. Assim sendo, não se preocupe em dar a resposta socialmente correta, mas, sim, aquela que corresponde a suas reais práticas e convicções. Se, portanto, se sentir suficientemente informado(a) e livremente disposto(a) a participar desta pesquisa, queira, por favor assinar o presente TERMO DE CONSENTIMENTO: Eu, abaixo assinado(a), declaro participar desta pesquisa, com inteira liberdade, após esclarecimento sobre seus objetivos e condições, como consta acima. Nome:___________________________________ Assinatura: _________________ Local: ____________________________________ Data: _____/ _____/ _________ Pesquisador responsável: Eu, José Raimundo Evangelista da Costa, responsável pelo projeto “Respeito à autonomia do doente mental no atendimento de auxiliares e técnicos em enfermagem: um estudo bioético em clínica psiquiátrica”. Declaro que obtive espontaneamente o consentimento deste sujeito de pesquisa para realizar este estudo. Tels.: (037) 9119 5625 – E-mail: [email protected] _______________________________ Assinatura do pesquisador _______/________/_______ 86 ANEXO 4 DECLARAÇÃO DE CARACAS* As organizações, associações, autoridades de saúde, profissionais de saúde mental, legisladores e juristas reunidos na Conferência Regional sobre a Restauração da Atenção Psiquiátrica no contexto dos Sistemas Locais da Saúde, Notando, 1. que a atenção psiquiátrica convencional não permite alcançar os objetivos compatíveis com uma atenção comunitária, descentralizada, participativa, integral, contínua e preventiva; 2. que o hospital psiquiátrico, como única modalidade assistencial, impede a consecução dos objetivos antes mencionados ao: a) isolar o doente de seu meio, gerando dessa maneira maior incapacitação social; b) criar condições desfavoráveis que põem em perigo os direitos humanos e civis do paciente; c) consumir a maior parte dos recursos financeiros e humanos destinados pelos países aos serviços de saúde mental; d) prover uma aprendizagem insuficiente vinculada com as necessidades de saúde mental da população, dos serviços de saúde e de outros setores. Considerando, 1. que a atenção primária de saúde é a estratégia adotada pela Organização Mundial da Saúde e referendada por todos os países-membros para atingir a meta de Saúde para Todos no ano 2000; 2. que os sistemas locais de saúde (SILOS) foram estabelecidos pelos países da região para facilitar a consecução dessa meta, porquanto oferecem melhores condições necessidades da para desenvolver população, com programas, características baseados nas descentralizadas, participativas e preventivas; 3. que os programas de Saúde Mental e de Psiquiatria devem adaptar-se aos princípios e orientações que fundamentam essas estratégias e modelos de organização da atenção à saúde. 87 DECLARAM 1. que a reestruturação da atenção psiquiátrica ligada à atenção primária de saúde no contexto dos sistemas locais de saúde permite a promoção de modelos alternativos centrados na comunidade e em suas redes sociais; 2. que a reestruturação da atenção psiquiátrica na região implica a revisão crítica do papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico na prestação de serviços; 3. que os recursos, cuidados e tratamentos fornecidos devem: a) salvaguardar, invariavelmente, a dignidade pessoal e os direitos humanos e civis; b) basear-se em critérios racionais e tecnicamente adequados; c) propender a manutenção do doente em seu meio comunitário; 4. que as legislações dos países ajustar-se-ão de maneira a: a) assegurar o respeito dos direitos humanos e civis dos doentes mentais, b) promover uma organização de serviços comunitários que garantam seu cumprimento; 5. que a capacitação de recursos humanos em Saúde Mental e em Psiquiatria deve ser feita de acordo com um modelo cujo eixo passa pelo serviço de saúde comunitária e recomenda a internação psiquiátrica – quando necessária – em hospitais gerais, de acordo com os princípios básicos que fundamentam esta reestruturação; 6. que as organizações, associações e demais participantes desta Conferência se comprometem conjunta e solidariamente a advogar e desenvolver, nos distintos países, programas que promovam a reestruturação dos serviços de saúde mental e psiquiátricos, bem como se comprometem a defender os direitos humanos dos doentes mentais, de acordo com as legislações nacionais e os compromissos internacionais respectivos, e a fiscalizar seu cumprimento. *Adotada por aclamação pela Conferência sobre reestruturação de atenção psiquiátrica na América Latina, em Caracas, Venezuela, 11–14 de novembro de 1990. 88 ANEXO 5 LEI N.º 10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001 Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1.º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra. Art. 2.º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo. Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental: I – ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II – ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando a alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III – ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV – ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V – ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; VI – ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII – receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; 89 VIII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. Art. 3.º É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais. Art. 4.º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. § 1.º O tratamento visará, como finalidade permanente, á reinserção social do paciente em seu meio. § 2.º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros. § 3.º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2.º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2.º. Art. 5.º O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário. Art. 6.º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: 91 Art. 12. O Conselho Nacional de Saúde, no âmbito de sua atuação, criará comissão nacional para acompanhar a implementação desta Lei. Art. 13. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 6 de abril de 2001; 180.º da Independência e 113.º da República. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Jose Gregori José Serra Roberto Brant (DOU 09/04/2001) 92 ANEXO 6 LEI N.º 10.708, DE 31 DE JULHO DE 2003 Institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1.º Fica instituído o auxílio-reabilitação psicossocial para assistência, acompanhamento e integração social, fora de unidade hospitalar, de pacientes acometidos de transtornos mentais, internados em hospitais ou unidades psiquiátricas, nos termos desta Lei. Parágrafo único. O auxílio é parte integrante de um programa de ressocialização de pacientes internados em hospitais ou unidades psiquiátricas, denominado “De Volta Para Casa”, sob coordenação do Ministério da Saúde. Art. 2.º O benefício consistirá em pagamento mensal de auxílio pecuniário, destinado aos pacientes egressos de internações, segundo critérios definidos por esta Lei. § 1.º É fixado o valor do benefício de R$ 240,00 (duzentos e quarenta reais), podendo ser reajustado pelo Poder Executivo de acordo com a disponibilidade orçamentária. § 2.º Os valores serão pagos diretamente aos beneficiários, mediante convênio com instituição financeira oficial, salvo na hipótese de incapacidade de exercer pessoalmente os atos da vida civil, quando serão pagos ao representante legal do paciente. § 3.º O benefício terá a duração de um ano, podendo ser renovado quando necessário aos propósitos da reintegração social do paciente. 93 Art. 3.º São requisitos cumulativos para a obtenção do benefício criado por esta Lei que: I – o paciente seja egresso de internação psiquiátrica cuja duração tenha sido, comprovadamente, por um período igual ou superior a dois anos; II – a situação clínica e social do paciente não justifique a permanência em ambiente hospitalar, indique tecnicamente a possibilidade de inclusão em programa de reintegração social e a necessidade de auxílio financeiro; III – haja expresso consentimento do paciente, ou de seu representante legal, em se submeter às regras do programa; IV – seja garantida ao beneficiado a atenção continuada em saúde mental, na rede de saúde local ou regional. § 1.º O tempo de permanência em Serviços Residenciais Terapêuticos será considerado para a exigência temporal do inciso I deste artigo. § 2.º Para fins do inciso I, não poderão ser considerados períodos de internação os de permanência em orfanatos ou outras instituições para menores, asilos, albergues ou outras instituições de amparo social, ou internações em hospitais psiquiátricos que não tenham sido custeados pelo Sistema Único de Saúde – SUS ou órgãos que o antecederam e que hoje o compõem. § 3.º Egressos de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico poderão ser igualmente beneficiados, procedendo-se, nesses casos, em conformidade com a decisão judicial. Art. 4.º O pagamento do auxílio-reabilitação psicossocial será suspenso: I – quando o beneficiário for reinternado em hospital psiquiátrico; II – quando alcançados os objetivos de reintegração social e autonomia do paciente. Art. 5.º O pagamento do auxílio-reabilitação psicossocial será interrompido, em caso de óbito, no mês seguinte ao do falecimento do beneficiado. Art. 6.º Os recursos para implantação do auxílio-reabilitação psicossocial são os referidos no Plano Plurianual 2000–2003, sob a rubrica “incentivo-bônus”, ação 0591 do Programa Saúde Mental n.º 0018. § 1.º A continuidade do programa será assegurada no orçamento do Ministério da Saúde. 94 § 2.º O aumento de despesa obrigatória de caráter continuado resultante da criação deste benefício será compensado dentro do volume de recursos mínimos destinados às ações e serviços públicos de saúde, conforme disposto no art. 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 7.º O controle social e a fiscalização da execução do programa serão realizados pelas instâncias do SUS. Art. 8.º O Poder Executivo regulamentará o disposto nesta Lei. Art. 9.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 31 de julho de 2003. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Humberto Sérgio Costa Lima Ricardo José Ribeiro Berzoini 95 ANEXO 7 PORTARIA N.º 2.391, DE 26 DE DEZEMBRO DE 2002 MINISTÉRIO DA SAÚDE GABINETE DO MINISTRO Regulamenta o controle das internações psiquiátricas involuntárias (IPI) e voluntárias (IPV) de acordo com o disposto na Lei 10.216, de 6 de abril de 2002, e os procedimentos de notificação da Comunicação das IPI e IPV ao Ministério Público pelos estabelecimentos de saúde, integrantes ou não do SUS. O Ministro de Estado da Saúde, no uso das atribuições que lhe confere o inciso II do parágrafo único do art. 87 da Constituição, e Considerando as determinações da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental; Considerando a Carta de Princípios sobre a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental, da ONU, de 17 de dezembro de 1991; Considerando as resoluções do Seminário "Direito à Saúde Mental – regulamentação e aplicação da Lei 10.216", realizado em 23 de novembro de 2001, pelo Ministério da Saúde, Ministério da Justiça e Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados; Considerando as consultas realizadas pelo Ministério da Saúde, em articulação com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, junto ao Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça; Considerando as deliberações da III Conferência Nacional de Saúde Mental, e 96 Considerando as consultas realizadas pelo Ministério da Saúde junto às instâncias municipais e estaduais do SUS, na área de Saúde Mental, resolve: Art. 1.º Determinar que os estabelecimentos de saúde, integrantes ou não do Sistema Único de Saúde, observem o disposto nesta Portaria para efetuarem as internações psiquiátricas voluntárias ou involuntárias, conforme o disposto na Lei n.º 10.216, de 6 de abril de 2001. Art. 2.º Definir que a internação psiquiátrica somente deverá ocorrer após todas as tentativas de utilização das demais possibilidades terapêuticas e esgotados todos os recursos extra-hospitalares disponíveis na rede assistencial, com a menor duração temporal possível. Art. 3.º Estabelecer que ficam caracterizadas quatro modalidades de internação: – Internação Psiquiátrica Involuntária (IPI); – Internação Psiquiátrica Voluntária (IPV), – Internação Psiquiátrica Voluntária que se torna Involuntária (IPVI), – Internação Psiquiátrica Compulsória (IPC). § 1.º Internação Psiquiátrica Voluntária é aquela realizada com o consentimento expresso do paciente. § 2.º Internação Psiquiátrica Involuntária é aquela realizada sem o consentimento expresso do paciente. § 3.º A Internação Psiquiátrica Voluntária poderá tornar-se involuntária quando o paciente internado exprimir sua discordância com a manutenção da internação. § 4.º A Internação Psiquiátrica Compulsória é aquela determinada por medida judicial e não será objeto da presente regulamentação. Art. 4.º Estabelecer que as internações involuntárias, referidas no art. 3.º § 2.º, deverão ser objeto de notificação às seguintes instâncias: I – ao Ministério Público Estadual ou do Distrito Federal e Territórios onde o evento ocorrer, II – à Comissão referida no art. 10.º. Art. 5.º Estabelecer que a Comunicação de Internação Psiquiátrica Involuntária deverá ser feita, no prazo de 72 horas, às instâncias referidas no artigo anterior, 97 observado o sigilo das informações, em formulário próprio (Termo de Comunicação de Internação Psiquiátrica Involuntária, modelo constante do Anexo desta Portaria), que deverá conter laudo de médico especialista pertencente ao quadro de funcionários do estabelecimento de saúde responsável pela internação. Parágrafo único. O laudo médico é parte integrante da Comunicação de Internação Psiquiátrica Involuntária, a qual deverá conter obrigatoriamente as seguintes informações: I – identificação do estabelecimento de saúde; II – identificação do médico que autorizou a internação; III – identificação do usuário e do seu responsável e contatos da família; IV – caracterização da internação como voluntária ou involuntária; V – motivo e justificativa da internação; VI – descrição dos motivos de discordância do usuário sobre sua internação; VII – CID; VIII – informações ou dados do usuário, pertinentes à Previdência Social (INSS); IX – capacidade jurídica do usuário, esclarecendo se é interditado ou não; e X – informações sobre o contexto familiar do usuário; XI - previsão estimada do tempo de internação Art. 6.º Estabelecer que ao Ministério Público caberá o registro da notificação das internações psiquiátricas involuntárias (IPI), bem como das voluntárias que se tornam involuntárias (IPVI), para controle e acompanhamento destas até a alta do paciente. Art. 7.º Determinar que, se no decurso de uma internação voluntária o paciente exprimir discordância quanto à sua internação, após sucessivas tentativas de persuasão pela equipe terapêutica, passando a caracterizar-se uma internação involuntária, o estabelecimento de saúde envie ao Ministério Público o Termo de Comunicação de Internação Involuntária, até 72 horas após aquela manifestação, devidamente assinado pelo paciente. 98 Art.8.º Definir que caberá à instituição responsável pela internação involuntária a comunicação da alta hospitalar, conforme modelo de formulário anexo, do qual deverão constar, obrigatoriamente, as seguintes informações: I – numeração da IPI; II – data; III – condições da alta; IV – encaminhamento do paciente. Art. 9.º Estabelecer que nas internações voluntárias deverá ser solicitado ao paciente que firme o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, modelo em anexo, que ficará sob a guarda do estabelecimento. Art. 10. Estabelecer que o gestor estadual do SUS constituirá uma Comissão Revisora das Internações Psiquiátricas Involuntárias, com a participação de integrante designado pelo Ministério Público Estadual, que fará o acompanhamento dessas internações, no prazo de setenta e duas horas após o recebimento da comunicação pertinente. § 1.º A Comissão deverá ser multiprofissional, sendo integrantes dela, no mínimo, um psiquiatra ou clínico geral com habilitação em Psiquiatria, e um profissional de nível superior da área de saúde mental, não pertencentes ao corpo clínico do estabelecimento onde ocorrer a internação, além de representante do Ministério Público Estadual. É relevante e desejável que dela também façam parte representantes de associações de direitos humanos ou de usuários de serviços de saúde mental e familiares. § 2.º Se necessário, poderão ser constituídas Comissões Revisoras das Internações Psiquiátricas Involuntárias, em âmbito microrregional, municipal ou por regiões administrativas de municípios de grande porte. Art. 11. Definir que o Ministério Público poderá solicitar informações complementares ao autor do laudo e à direção do estabelecimento, bem como realizar entrevistas com o internado, seus familiares ou quem mais julgar conveniente, podendo autorizar outros especialistas a examinar o internado, com vistas a oferecerem parecer escrito. Art. 12. Estabelecer que a Comissão Revisora efetuará, até o sétimo dia da internação, a revisão de cada internação psiquiátrica involuntária, emitindo laudo de 99 confirmação ou suspensão do regime de tratamento adotado e remetendo cópia