APELAÇÃO CÍVEL Nº 440684-6, DO FORO CENTAL DA COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA - 22ª VARA CÍVEL APELANTE: SOCIEDADE COOPERATIVA DE SERVIÇOS MÉDICOS DE CURITIBA E REGIÃO METROPOLITANA - UNIMED APELADO: ETELVINO MAFFESONI RELATOR: VITOR ROBERTO SILVA CIVIL. PLANO DE SAÚDE. ATRASO NO PAGAMENTO DE MENSALIDADE. CONDUTA REITERADA. AUTORIZAÇÃO. BOA-FÉ OBJETIVA. RESCISÃO CONTRATUAL. IMPOSSIBILIDADE. APELO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. Por força da boa-fé objetiva, a autorização ou, no mínimo, tolerância ao pagamento das mensalidades com atraso durante cerca de 03 (três) anos, impede o cancelamento do plano de saúde por inadimplência, ao menos até manifestação expressa no sentido de que tal conduta não mais será aceita. Aplicação da figura jurídica denominada surrectio, mediante a qual novo direito é criado em prol de um dos contratantes e que não pode ser repentinamente suprimido. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 440684-6, do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - 22ª Vara Cível, em que é apelante Sociedade Cooperativa de Serviços Médicos de Curitiba e Região Metropolitana - Unimed e é apelado Etelvino Maffesoni. Etelvino Maffesoni ajuizou ação de obrigação de fazer em face de Sociedade Cooperativa de Serviços Médicos de Curitiba e Região Metropolitana - Unimed, objetivando a condenação da requerida a manter o contrato de plano de saúde firmado entre as partes em 1994. (fls. 02/04) Depois de regular tramite processual, sobreveio sentença de procedência do pedido (174/179). Inconformada, a requerida apresentou apelação, alegando, em síntese, que: a) o apelado não adimpliu as mensalidades dos meses de novembro/2005, dezembro/2005 e janeiro/2006, o que a obrigou a cancelar o contrato; b) o item 4.2 do regulamento permite o cancelamento do plano na hipótese de inadimplência de 3 (três) mensalidades; c) notificou o apelado de que haviam três mensalidades em atraso, dando-lhe oportunidade de regularizar os pagamentos; d) o apelado tomou ciência da notificação em 12/01/2006, mas não efetuou o pagamento das referidas mensalidades; e) o fato do contrato ser anterior à Lei 9656/98 não impede a estipulação de cláusula de cancelamento do plano por inadimplência; f) o artigo 607 do Código Civil de 2002 aplicável em razão do artigo 2035 do mesmo codex, reconhece que a inadimplência de uma das partes desobriga a outra e dá ensejo à rescisão contratual. Finalizou pedindo o provimento do apelo para o fim do pedido ser julgado improcedente. (fls. 183/188) O recurso foi respondido. (fls. 195/196) É o relatório. Atendidos os requisitos de admissibilidade, o apelo deve ser conhecido. Trata-se de ação de obrigação de fazer em que o autor objetiva a manutenção de seu contrato de plano de saúde firmado com ré. Conforme alegado na petição inicial, o autor contratou os serviços de plano de saúde da ré há mais dez anos (desde 17/01/1994) e, por ser portador de diversas doenças, demandando gastos relevantes com remédios, necessitou, desde 2003, pagar as mensalidades com atraso, o que sempre foi autorizado pela requerida (fls. 29/62). Frise-se que, ao contestar, a ré nada mencionou sobre essa autorização (fls. 160/166), de modo que se tornou fato incontroverso (artigo 302, caput, da Constituição Federal). Assim, não obstante a previsão do regulamento do contrato de que o não pagamento de três mensalidades acarretaria o cancelamento do ajuste - estipulação absolutamente lícita, a requerida, por quase 03 (três) anos, admitiu o inadimplemento sucessivo do autor, autorizando o pagamento das mensalidades com atraso. Essa conduta não é juridicamente irrelevante. Ora, as duas partes agiram de forma sistemática por considerável lapso temporal, de molde a alterar o teor do ajuste. Com efeito, a repetição reiterada do mesmo padrão de conduta (pagamento das mensalidades com atraso e manutenção do contrato de plano de saúde) gerou a expectativa no consumidor de que o pagamento das mensalidades com atraso foi permitido pela ré e, em conseqüência, não acarretaria o desfazimento do ajuste por inadimplência. A rigor, implicou na prorrogação do vencimento das parcelas, as quais, na imensa maioria das vezes, foram pagas 60 (sessenta) dias depois da data prevista para tanto. A validação dessa conduta importa, na verdade, no reconhecimento das figuras conhecidas como "surrectio" e "venire contra factum proprium", ambas decorrentes da aplicação da regra da boa-fé objetiva, positivada em nosso ordenamento jurídico no artigo 422 do Código Civil e mediante o qual "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé". O comportamento repetido por relevante período, ainda que contrário à literalidade do contrato, vincula os contratantes, ao menos até manifestação expressa em sentido contrário, vale dizer, de que tal não mais será aceito, hipótese ausente na espécie. É, noutros termos, a criação de um direito pela vontade das partes que anteriormente não se encontrava previsto em termos jurídicos, ou seja, por meio da lei ou do contrato, mas que foi implementado com ciência e boa-fé de ambos os contratantes. Logo, sem efeito a notificação feita pela ré, porquanto sem levar em conta essa alteração tácita do contrato. Segundo a doutrina alemã, citada por Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, exige-se para a configuração da surrectio: "Um certo lapso de tempo, por excelência variável, durante o qual se actua uma situação jurídica em tudo semelhante ao direito subjectivo que vai surgir; requerer-se uma conjunção objectiva de factores que concitem, em nome do Direito, a constituição do novo direito; impõe-se a ausência de previsões negativas que impeçam a surrectio. Mais preciso, CANARIS aponta: a presença de uma previsão de confiança, a imputação da situação de criar uma vez que a surrectio de um direito vai sempre atingir as situações préexistentes - ao prejudicado, a título de culpa ou de risco, a boa-fé subjectiva do beneficiário, no sentido de este ter, pelo menos como provável, a regularidade da situação fáctica subjacente e ausência de quaisquer outras soluções impostas pelo Direito, como sejam obrigações de indenizar ou de restituir enriquecimentos".1 Ainda, sobre o assunto, decidiu o STJ de Portugal que: "Assim, o beneficiário tem de integrar uma previsão de confiança, ou seja, deve encontrar-se numa conjuctura tal que, objectivamente, um sujeito normal acreditaria quer no não exercício superveniente do direito da contraparte, quer na excelência do seu próprio direito. Subjectivamente, ele deve estar de boa fé, no sentido de não ter consciência de prejudicar outrem e de ter acatado os deveres de indagação que, no caso, ocorressem. Essa situação deve ser imputável ao prejudicado pela surrectio, seja porque este, em directo, lhe deu lugar, seja porque ela acompanha, como concomitância, outras situações relativas ao mesmo prejudicado, em termos tais que fazem surgir a idéia de risco. No concreto, algum ou alguns desses requisitos podem faltar, desde que os restantes assumam uma intensidade tal que supram a sua ausência: integram um sistema móvel. A surrectio, por fim, não deve ser afastada por normas específicas ou pior outros princípios que, pontualmente, se lhe sobreponham e é supletiva, no sentido de postular a inaplicabilidade, ao caso em causa, de quaisquer outros remédios que satisfaçam a necessidade jurídica imperiosa que ele visa completar. A base legal da surrectio reside no preceito que mande actuar de boa fé".2 No mesmo sentido, as seguintes decisões de nossos tribunais: "AÇÃO DE COBRANÇA. SÓCIO QUE DEMANDA A SOCIEDADE. TRAMITAÇÃO, NA JUSTIÇA COMUM, DE AÇÃO DE EXCLUSÃO DE SÓCIO. SÓCIO JÁ AFASTADO DA GERÊNCIA DA EMPRESA MAS QUE, AO LONGO DOS ANOS, VINHA RECEBENDO UMA QUANTIA MENSAL A TÍTULO DE ADIANTAMENTO POR CONTA DE LUCROS FUTUROS. APLICAÇÃO DA FIGURA DA SURRECTIO, UMA DAS FIGURAS QUE EVIDENCIAM A FUNÇÃO DE CONTROLE DA BOA-FÉ, COM LIMITAÇÃO DO EXERCÍCIO DE DIREITOS SUBJETIVOS. IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO UNILATERAL E IMOTIVADA DO PAGAMENTO, UMA VEZ QUE PERMANECE A CONDIÇÃO DE SÓCIO DO AUTOR. Dentre as funções desempenhadas pelo princípio da boa-fé objetiva, sobressai a de controle, que limita o exercício de direitos subjetivos. Dentre as várias figuras que se incluem nessa categoria, uma delas é a da surrectio, que impede a supressão imotivada de uma vantagem que tenha sido concedida por período de tempo razoável, ainda que em desconformidade com os estatutos, regulamentos ou contrato social, gerando no beneficiário a convicção de que pode contar com aquela vantagem. RECURSO PROVIDO, A FIM DE SER JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE A AÇÃO." (Recurso Cível Nº 71000867416, Terceira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Eugênio Facchini Neto, Julgado em 27/06/2006). "APELAÇÃO. ALIMENTOS. EXONERAÇÃO. DECISÃO JUDICIAL. SITUAÇÃO FÁTICA. CONFRONTO. REPETIÇÃO SISTEMÁTICA E CONTINUADA DE UM COMPORTAMENTO. SURRECTIO. Preliminar. Embora o processo tenha sido extinto sem julgamento do mérito, houve modificação de situação fática que trouxe prejuízo ao apelado. O apelante (réu na ação) tem interesse recursal, na medida que seu status jurídico foi atingido pela decisão. Mérito. O apelado, mesmo com decisão judicial favorável a desonerá-lo da pensão alimentícia paga ao apelante, continuou a pagar-lhe pensão por largo período de tempo. E, se a despeito da decisão judicial, continuou a pagar alimentos, surge uma nova obrigação alimentar, diversa da anterior. A repetição sistemática e continuada de um determinado comportamento cria direito, consubstanciado na expectativa de que esse comportamento, pelo menos, continuará se repetindo. É a surrectio. Assim, o feito comporta julgamento de mérito, com o exame do trinômio alimentar (necessidade, possibilidade e proporcionalidade). Análise da verba honorária prejudicada. REJEITARAM A PRELIMINAR. UNÂNIME. DERAM PROVIMENTO, POR MAIORIA . (SEGREDO DE JUSTIÇA)" (Apelação Cível Nº 70009037631, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 12/08/2004) Já a denominada "venire contra factum proprium" consiste "uma regra de coerência, por meio do qual se veda que se aja em determinado momento de uma certa maneira e, ulteriormente, adote-se um comportamento que frustra, vai contra aquela conduta tomada em primeiro lugar" (in Ronnie Preuss Duarte, Questões Controvertidas no Novo Código Civil, vol. 2, 2004, pg. 425). Noutras palavras, veda-se a conduta que vem a quebrar a confiança do contratante em função de comportamento anterior e reiterado em sentido diverso. Portanto, como o autor agiu com boa-fé ao efetuar o pagamento das mensalidades de seu plano de saúde com atraso e tendo a requerida conscientemente admitido essa conduta, criou-se uma nova relação obrigacional entre as partes, de modo a incorporar ao patrimônio jurídico do apelado, ao menos até manifestação expressa em sentido contrário, o direito de quitar as mensalidades depois dos vencimentos inicialmente ajustados, daí porque ilícito o repentino cancelamento do contrato firmado por conta da inadimplência, a qual, repita-se, fora permitida ou, no mínimo, tolerada pela apelante. Do exposto, voto no sentido de conhecer e negar provimento ao apelo. Nessa conformidade: ACORDAM os integrantes da Décima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade, em conhecer e negar provimento ao apelo, nos termos do voto do relator. Presidiu o julgamento o Excelentíssimo Desembargador Ronald Schulman, sem voto, e dele participaram o Desembargador Marcos de Luca Fanchin e a juíza Astrid Maranhão de Carvalho Ruthes. Curitiba, 06 de março de 2.008. VITOR ROBERTO SILVA = Relator = 1 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, "Da Boa Fé no Direito Civil", Livraria Almedina: Coimbra, 2001, p. 821/822. 2 Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, "Da Boa Fé no Direito Civil", Livraria Almedina: Coimbra, 2001, p. 824.