Aula 2 (28/02/07) – Introdução ao Estudo do Direito Penal Assunto: Controle Social, Sistema Penal e Direito Penal. 1) Controle Social e Sistema Penal 1.1) O delito como “construção” e como “realidade” Acaso prescindíssemos do código e das leis penais e lançássemos uma pergunta indiscreta à realidade social, não necessitaríamos de muita sabedoria para percebemos que não há nada de comum entre a conduta de quem emite um cheque sem provisão de fundos e a de quem ataca e estupra uma mulher, isto é, que se trata de duas ações com significado social completamente distinto. E qual é o traço comum entre as duas condutas se considerássemos o código penal e as leis penais? É que ambas estão previstas no diploma penal, ameaçadas legalmente por uma pena e submetidas a um sistema institucionalizado de verificação prévio por meio de funcionários públicos, conforme o qual os seus autores podem ser privados de liberdade em uma prisão. Em síntese apertada, isso basta para comprovar que o “delito” não existe sociologicamente se prescindimos da solução institucional comum. Não é só isso que observamos, pois o curioso é que na maioria dos casos, temos a imprensa noticiando os estupros e seqüestros, mas não noticiando as emissões de cheques sem provisão de fundos. Ademais, na imensa maioria dos casos a solução institucional não tem lugar, pois, o receptor do cheque quer cobrá-lo, mas se não consegue, freqüentemente se dá por satisfeito ou a vítima do estupro pode não querer denunciar para não se submeter ao constrangimento ou à desonra pública. Na realidade, se cada cidadão brasileiro realizasse rápido exame de consciência, comprovaria que por diversas vezes em sua vida já infringiu as normas penais: não devolveu o livro emprestado dentro do prazo para a biblioteca, assinou a lista de chamada em nome de outro, levou uma toalha de lembrança do hotel, apropriou-se de um objeto perdido, emitiu um cheque sem provisão de fundos, cometeu uma lesão corporal durante a prática desportiva, bebeu mais do que a legislação de trânsito permite, etc. Em consciência, cada cidadão tem “volumoso prontuário” de crimes. Poderá até afirmar-se que alguns dos exemplos são condutas insignificantes no contexto social. Porém, há inúmeros exemplos, inclusive com condenações penais, ainda mais insignificantes: furto de uma xícara de café por parte da empregada; apropriação de 1 latas de pêssego por uma funcionária do supermercado; negativa do motorista do ônibus a deter-se em uma parada; furto de uma folha de cheque de uma conta vencida, etc. Chama também atenção que, na grande maioria dos casos, os que são chamados de “delinqüentes” pertencem aos setores sociais de menores recursos. Em geral, as prisões estão povoadas de “pobres”. Isso pode significar que há um processo de seleção de agentes e não, como se pretende, um mero processo de seleção de condutas. De outro lado, verifica-se que o sistema penal não apresenta soluções para todas as condutas sociais. Assim, por exemplo, ações nada desejáveis ou imorais e conflitivas são resolvidas de outra forma, ou mesmo, sem apoio da via institucional. Por exemplo: manter relações sexuais com uma prostituta e não pagar o preço combinado. Neste caso, a solução institucional não tem lugar, pois não há previsão do delito. Outro exemplo: não pagar o salário ao empregado. Neste caso, a solução será dada pela justiça trabalhista. Isso apenas quer significar que a solução de um conflito nem sempre é punitiva, embora seja uma das soluções possíveis, em outros casos. Vejamos: numa república moram cinco estudantes de direito e um deles, em certo momento, golpeia e quebra o televisor. Cada um dos restantes analisará o comportamento de sua maneira e adotará uma solução diversa. O primeiro, furioso, declarará que não quer mais viver com o primeiro (eliminação). Um outro, reclamará que pague o dano ou compre outro televisor (reparatória). Um terceiro, afirmará que o agente não está em seu juízo mais perfeito (terapêutico). O último observará que, para que tenha um fato dessa natureza, algo deve andar mal na comunidade (conciliatório). Deve-se ressaltar que nem todos os conflitos que são resolvidos pela via punitiva têm sido sempre resolvidos de uma única maneira. Ademais, a solução punitiva possui um inquestionável efeito negativo, que consiste na exclusão das outras soluções possíveis. Em síntese: ações conflitivas de gravidade e significado social muito diversos se resolvem por via punitiva institucionalizada, mas não todos os que as realizam sofrem essa solução, e sim unicamente uma minoria ínfima deles, depois de um processo de seleção que quase sempre seleciona os mais pobres; outras ações conflitivas se resolvem por outras vias institucionais e outras carecem de solução institucional; ademais, a via punitiva é somente uma alternativa de solução que, aplicada, exclui a possibilidade das outras formas de resolver o conflito (reparatória, terapêutica e conciliatória). 2 Nestas condições, tem-se toda a impressão de que o “delito” é uma construção que se destina a cumprir certa função sobre algumas pessoas a respeito de outras, e não uma realidade social individualizável. 1.2) Conceito e Formas de Controle Social O homem, como é sabido, vive em sociedade como ser social, e aparece, nesta sociedade, relacionando-se com outros homens. Há de predominar a isonomia, contudo, numa reunião de homens, percebe-se a tendência contínua de concentração de privilégios e poderes para uma minoria (Beccaria, p. 11). O fato de viver em sociedade gera, não raro, vários conflitos, em que uns buscam impor suas vontades, interesses ou necessidades em relação aos outros. Todo o bem estar a uma minoria leva a constatação de que a sociedade apresenta uma estrutura de poder, com um grupo dominante e outro dominado, um mais próximo das decisões do que o outro. Há uma estrutura centralizada (proprietários do capital) e outra marginalizada (possuidores de força de trabalho), as duas controladas socialmente, contudo com objetivos distintos, pois o controle exercido sobre a última classe objetiva mantê-la no lugar no qual se encontra e o controle sobre a primeira classe visa gerenciar suas condutas para que não resulte por ventura debilitada (Zaffaroni, p. 61; Cirino dos Santos, p. 6). E esse é exatamente o objetivo de parte da sociedade, isto é, mantê-la estável, na medida em que ela é, em geral, em face da preponderância do interesse de uns sobre os interesses de muitos, recalcitrante a mudanças. Contudo, a sociedade não é estática. Neste universo social existe sim um centro de poder dominante, mas também uma periferia que gravita em torno dele com menor brilho e como fonte de poder, que procura, ao sabor de seus interesses e necessidades, influenciar no sentido que melhor lhes apraz. Em outras palavras, se se impõe reconhecer que é difícil alterar a lógica do social, é inegável, por outro lado, que a vida da relação registra uma constante busca de reformas nas estruturas sedimentadas, principalmente por parte da periferia social que almeja uma satisfação do que imagina ser suas necessidades. Com a luta de classes manifestam-se as contradições e os antagonismos políticos que determinam ou condicionam o desenvolvimento da vida social (Cirino dos Santos, p. 6). 3 Porém, a busca da igualdade não se faz por imposições, mas sim, por conclusões. A tentativa de influenciar ou opor-se ao poder dominante, na busca de espaço e atendimento às demandas, sabe-se hoje, é muito mais eficaz quando é realizado de modo organizado e apoiado em verdade filosóficas. De uma forma geral, os sistemas jurídicos e políticos de controle social conduzem a uma proteção dos interesses e necessidades dos grupos sociais hegemônicos, com a exclusão ou redução dos interesses e necessidades dos grupos sociais subordinados (Cirino dos Santos, p. 7). Este controle social é amplo, ou seja, a influência da sociedade delimitadora do âmbito de conduta do indivíduo se faz por diversas formas ou por meio do controle estatal (institucionalizado ou instância formal) e não-estatal (difuso ou instância material). Entre os primeiros está o próprio sistema penal, representado pelos controles policial e judicial. Nos últimos estão as organizações não governamentais, as instituições religiosas, a família, a escola, a imprensa e a política. Mais, o controle social institucionalizado apresenta-se sob uma tríplice divisão: a) sem discurso punitivo: é o direito privado, por exemplo; b) punitivo sem discurso punitivo: sedimenta-se na hipocrisia, porquanto abarca qualquer outro meio de controle social que na prática opera punitivamente, em que pese o discurso não punitivo, como, por exemplo, os tratamentos psiquiátricos com a utilização de choques elétricos ou os centros de reabilitação de menores ou as casas de recuperação de idosos ou drogados; c) punitivo com discurso de punição: é o sistema penal propriamente dito e dentro dele localiza-se o direito penal. Em síntese, os objetivos reais do Direito revelam também o significado político do direito penal como instituição de garantia e de reprodução da estrutura de classes da sociedade, da desigualdade entre as classes sociais, da exploração e da opressão das classes sociais subalternas pelas classes sociais hegemônicas nas sociedades contemporâneas 1.3) Os Direitos Humanos e o Controle Social No auge do horror bélico, em 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, como ideal comum a ser alcançado por todos os povos e por todos os homens. A Declaração e também todos os alicerces configuram o limite positivado do que a consciência jurídica universal pretende impor as ideologias (conjunto de idéias, como as atrocidades que se verificaram 4 nas duas guerras mundiais em nome da humanidade e da justiça). Por certo que ainda se está longe de aperfeiçoar-se, porém, indiscutivelmente, vai-se criando uma baliza jurídica positivada que serve de referência. A Declaração Universal se complementa com outros instrumentos internacionais que contribuem para o aperfeiçoamento de sua função de limite ideológico. Dentre muitos, segue-se como principal: Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica de 1969. Este último documento também tem criado uma base positiva para uma consciência jurídica universal. 2) Sistema Penal e Direito Penal 2.1) Conceito de Sistema Penal Por sistema penal entenda-se controle social punitivo institucionalizado. Ele pode ter um sentido limitado, englobando a atividade do legislador (que cria a lei), das pessoas (que devem observar os ditames da lei), das polícias e dos órgãos judiciários. Em sentido mais amplo, nele se incluem ações controladoras e repressoras que aparentemente nada têm a ver com o sistema penal (ações que se encobrem sob a ideologia psiquiátrica). Ficaremos limitados ao conceito mais estrito. Na realidade, em que pese seu discurso jurídico, o sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas mais que contra certas ações. Mais uma vez abandona-se a democracia coletiva em prol da comunidade dos nobres centralizados. Aos marginalizados o rótulo de delinqüentes. Assim, se nada tem, nada vale; se tudo tem, vale tudo. É a chamada criminalidade sistêmica. Há alguns grupos hegemônicos há crimes que não produzem conseqüências penais: não geram processos de criminalização, ou os processos de criminalização não geram conseqüências penais; ao contrário, a criminalidade individual violenta e fraudulenta de autores dos segmentos sociais subalternos, especialmente dos contingentes marginalizados no mercado de trabalho, produz conseqüências penais: gera processos de criminalização, com conseqüências penais de rigor punitivo com progressões (Cirino dos Santos, p. 13). 2.2) Setores do Sistema Penal Os três segmentos estáveis do sistema penal são: policial, judicial e executivo. Em que pesem possuírem um predomínio em sua etapa, atuam ou interferem nos restantes, como, por exemplo, o judicial controlando a execução. Aos três, conforme uma tendência 5 moderna, somam-se organismos do Poder Executivo (o inquérito policial), os legisladores e o público (mediante a queixa ou a notícia de um crime tem condição de colocar em marcha o sistema). 2.3) Discursos do Sistema Penal No sistema penal existe uma pluralidade de ideologias traduzindo a multiplicidade de discursos. No Brasil costumam-se combinar o discurso policial (predominantemente de cunho moralizante) e o discurso penitenciário (predominantemente de cunho terapêutico). Esses dois discursos proclamam o fim e a função preventiva do sistema penal. Isto pode ser entendido em dois sentidos: o sistema penal teria uma função preventiva tanto “especial” como “geral”, isto é, por um lado daria lugar à “ressocialização” do apenado e por outro advertiria ao resto da comunidade sobre a inconveniência de imitar o delinqüente. Porém, os dois discursos apresentam incoerências em relação à desproporção na dosimetria da pena, embora procurem substituir a idéia retributiva da pena. No que diz respeito ao discurso de prevenção especial, sendo o fundamento da pena a tentativa de “ressocialização” (prevenção especial positiva), a prolongada privação de liberdade pode acarretar maior prejuízo ao condenado, inclusive com o cometimento de outros delitos enquanto estiver segregado (prevenção especial negativa). Uma quantidade excessiva de penalização pode não ser a quantidade exata do remédio para a cura do agente. Caso o discurso preventivo geral fosse levado a “ferro e fogo” também teríamos uma desproporcionalidade na aplicação da resposta penal. A ingenuidade das estatísticas ou da crença de que aumentando as penas ocorrerá a diminuição da criminalidade é que faz com que ocorra uma desproporção cada vez maior, pois de modo algum está provado que o sistema penal previna condutas criminais em relação àqueles que não tenham delinqüido aplicando aos condenados penas consideráveis (prevenção geral intimidatória ou prevenção geral negativa). Basta verificar o exemplo da Lei dos Crimes Hediondos trabalhado em sala de aula. Hoje, ao contrário da concepção tradicional (Beccaria, Feuerbach) se ressalta em primeiro lugar, os efeitos da pena sobre as pessoas respeitadoras do direito (prevenção geral positiva ou de integração), que tem sua confiança na vigência fática das normas e dos bens jurídicos reafirmada. Ao lado dessa finalidade, continua vigendo a prevenção especial. 6 2.4) Condicionamentos do Sistema Penal Três são os condicionamentos: a) criminalização: observa-se que é possível o sistema penal condicionar a profissionalização criminosa, sendo que essa condição nasce, em especial, da separação social em camadas de privilegiados e de marginalizados. Estes vestem as camisetas listradas e, como o sistema penal promove condições para uma carreira criminosa (Zaffaroni, p. 76; Foucault, p. 239), as condenações sucessivas conduzem o agente a sua autodestruição; b) fossilização: uma vez encarcerado, a pessoa acaba por perder sua identificação com o grupo a que pertencia e se torna desconfiado de tudo, acabando por corromper-se; neste momento, torna-se presa fácil ou bode espiatório do sistema penal (de outros grupos dominantes), pois se torna solidariamente incondicional para um grupo artificial, e, assim, mais exposto à violência que esse sistema cria; c) burocratização: seleciona-se os segmentos de magistrados, representantes do Ministério Público e funcionários judiciais que não são convidados a inovar, pois resultam problemas da inovação, identificando-os unicamente com as funções e isolando-os dos dois setores acima mencionados: os criminalizados e os fossilizados. 7