XXIV ENCONTRO da ANPOCS

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XXIV ENCONTRO da ANPOCS
Título:
A prestação de contas dos bancos centrais :
O caso da CPI dos Bancos de 1999 no Brasil
Autora: Inês Patrício
FEA-UFF
Introdução
O conceito de confiança política é associado, nas democracias
representativas, á prestação de contas democrática, horizontal e vertical. E
as eleições, ou accountability vertical, não evitam problemas do tipo moral
hazard ou adverse selection1, nem são boas garantias de punição e
recompensa dos políticos por parte dos eleitores.
Precauções auxiliares2, algum tipo de accountability horizontal, ou
seja, o funcionamento dos freios e contrapesos clássicos das democracias
representativas, constituem, em conseqüência, um suplemento de controle
sobre os políticos.
Entretanto, o tipo de prestação de contas que se advoga para os
bancos centrais depende daquilo que se considera determinante da
credibilidade, ou seja dos fundamentos econômicos da análise da
credibilidade.
A escola das expectativas racionais associa a credibilidade á
independência do banco central e á escolha de um objetivo único a ser
perseguido pelo banco, que é o da estabilidade de preços.
Dentro dessa perspectiva, além dos bancos centrais não poderem de
modo algum financiar os deficits do governo, um banco central só deve
responder pela inflação, sendo ilógico que responda por variáveis reais, já
que a moeda no longo prazo só pode afetar os preços.
Os keynesianos não consideram a independência do Banco Central,
nem eficiente nem democrática, e contrapõe-lhe a coordenação das
políticas monetária e fiscal pelo executivo, sob controle do legislativo ou
do judiciário.3 Segundo os keynesianos, a moeda não é neutra e a política
1
ver Stiglitz (1987) para uma explicação do que é o problema do moral hazard e adverse selection no
contexto da literatura agente-principal.
2
Sobre o que significa o termo precauções auxiliares ver Pasquino em Constitutional Adjudication and
Democracy (1997) e ainda Pasquino (1998). Este autor parte do ponto levantado por Sartori em The
Theory of Democracy Revisited para mostrar a importância dos orgãos não-eleitos, ou da constitutional
adjudication nos estados constitucionais, como parte das precauções auxiliares das democracias
constituciomais: "a theory of democracy should also be nowadays a theory of constitutional democracy.
(...) The starting point for such an inquiry would be in any event the classical doctrine of limited
government from the 17th and 18th centuries." (Pasquino, 1997:5). Esta doutrina clássica da moderação
considera que além das eleições, precauções adicionais se fazem necessárias para evitar o despotismo do
rei ou das maiorias. Em Madison, FP n.51, Pasquino mostra que está resumida a tese das precauções
auxiliares "A dependence on the people (repeated elections) is, no doubt, the primary control on the
government; but experience has taught mankind the necessity of auxiliary precautions" A new doctrine of
limited government - a post-democratic, not a pre-democratic one (Montesquieu)- seems to be a central
question for contemporary political theory"(Pasquino, 1997:6).
3
Ver parte II da tese. Ver ainda Carvalho (1996); Blinder (1997); Rymes (1996), Levy (1996) e Shull
(1996).
monetária pode afetar o emprego e a renda4, não havendo razão para os
bancos centrais serem isentos de responsabilidade sobre a variável
emprego, ou outras variáveis como qualidade de vida ou estabilidade
social. Diversos objetivos para um banco central e dependência em relação
ao executivo (sem subordinação necessária da política monetária á fiscal),
seriam nesse caso mais eficientes e mais democrático, que um só objetivo.
Este trabalho discute o conceito de prestação de contas do banco
central e mais especificamente o controle do banco central pelo legislativo.
A seção 1 trata da prestação de contas dos bancos centrais, dos
principais indicadores propostos para mensurá-la e do controle do
legislativo sobre o banco.
Nesta apresento ainda um jogo em que formalizo a interação entre o
legislativo e o banco central, assumindo que estes têm interesses opostos
em pontos relativos á definição de objetivos ou foco da prestação de contas,
ao tipo de prestação de contas e ás consequências do controle legislativo.
Concentro-me em três tópicos: 1) escolha de objetivos ou foco da
política 2) transparência ou revelação de informações e 3) resultados finais
do controle legislativo, ou seja a tomada ou não de uma atitude punitiva,
jurídica, ou simples mudança do estatuto e da lei.
O jogo valeria tanto para a hipótese de banco central independente
quanto para a de banco central submetido ao Tesouro, variando apenas os
pesos atribuídos pelo banco e pelos congressistas aos diversos itens. Da
mesma maneira, seja a independência desejada ou não pelos congressistas,
o que varia são os pesos em cada caso.
Neste trabalho só trato dos controles do legislativo sobre o banco
central, sem tocar no papel do judiciário. Controles, neste caso, são todos
as formas de supervisão, restrição e inquérito que o poder legislativo detêm
sobre as agências e que se exercem tanto sobre os procedimentos quanto
sobre os resultados das ações da agência.
Distingo o controle dos resultados da política monetária, do controle
do tipo de procedimentos adotados pelo banco. A literatura sobre prestação
de contas dos bancos centrais só tem dado importância ao primeiro tópico,
responsabilidade quanto aos resultados, enquanto os procedimentos não são
considerados.
A responsabilidade pelos procedimentos interessa ao eleitor,5
enquanto a agência sempre prefere que se controlem os resultados. Não é a
mesma coisa controlar a inflação via aumento das taxas de juros ou por
meio de controles de preços e salários. Ainda, justificar empréstimos a
4
Rymes diz a este respeito: "central banks always have real effects, since the provision of liquidity
service in Keynes'sense is there in the short and the long run. It is through such real effects... that they are
able to move or prevent undesired movements of nominal magnitudes" (Rymes, 1996:183).
5
Ver a este respeito Ferejohn (1997): Ferejohn desenvolve um modelo em que prova que a agência
sempre prefere a análise dos resultados, enquanto que o principal prefere que se analisem os
procedimentos (isto em termos de ganhos).
bancos falidos, por razões de estabilidade do sistema financeiro pode ser
considerado tanto um favorecimento indevido a um banco específico
quanto uma medida que a situação justifica.
Dado que o princípio que fundamenta a accountability é o da
necessidade de limitar a ambição política, ou seja o de que Ambition must
counteract Ambition,6 a análise da prestação de contas do Banco Central
terá por objetivo identificar o grau em que este princípio é observado nas
democracias, relativamente á política monetária.
A prestação de contas que me interessa analisar, com relação aos
bancos centrais, está dentro do que se chama prestação de contas
horizontal.7 E a teoria de que disponho é a dos constitucionalistas
modernos, sobre os governos moderados, e sobre os mecanismos e
engenharias que garantem a confiança nos governos moderados.8
Á partida deixo de lado a discussão sobre o problema de os
dirigentes dos bancos centrais não serem eleitos. Porque as eleições não são
bons instrumentos de accountability.9
O fato de os diretores dos Bancos Centrais não serem eleitos não é
tão importante quanto a inexistência de freios e contrapesos á vontade dos
dirigentes dos bancos centrais. Interessa, do meu ponto de vista, verificar se
estes mecanismos funcionam e são eficazes, ou seja, dão conta dos
objetivos para que foram criados, ou se pelo contrário apresentam
deficiências comparáveis a outras formas de accountability10.
6
Ver o que diz Madison a este respeito no Federalist 51.
Na parte I da tese defini accountability democrática a partir de Fearon (1996). Ver ainda Laver e
Shepsele (1997) sobre accountability nas democracias parlamentares. Para uma análise detalhada das
relações entre confiança, liberdade e freios e contrapesos ou do que significa horizontal accountability
ver a Parte I desta tese. Ver ainda Finley (1983), Nippel (1994); Manin (1994, 1996) ; Pasquino
(1994;1997; 1999); North e Weingast (1996) ; Hardin (1997); Brown (1998); O'Donnell (1998); Pizzorno
(1996); Fontana (1994; 1996); Dunn (1969; 1990; 1997)
8
A ideia de associar moderação a equilíbrio e a necessidade de construir este equilíbrio á existência de
um poder mais forte é de Madison. Ver Pasquino (998: 247): " l'existence d'un pouvoir plus fort que les
autres justifie la necessite d'etablir une balance, car si les pouvoirs etaient egaux par nature, ils seraient
spontanement dans une position d'equilibre. Cette thése enoncée par Madison est diferente de celle que
l'on trouve chez Locke et Montesquieu". Ver tambem Pasquino (1998:151): "...,Le modéle americain
represente la forme la plus claire et la mieux etablie du gouvernement moderé et anti-absolutiste Qui est á
l'origine de la tradition du constitutionalisme libéral. La formulation du principe des "checks and
balances" par Madison represente la meilleure réponse au probléme Qui consiste á trouver un mecanisme
endogéne ("self-enforcing equilibrium") qui empêche les pouvoirs de l 'Ëtat (ou du gouvernement,
comme on disait á l'epoque) de devenir des pouvoirs exorbitants."
9
ver Parte I da tese e trabalhos citados abaixo, principalmente Manin, Przeworski, e Stokes (1999)
10
Ver (Ferejohn (1986;1995); Przeworski e Stokes (1996), Manin, Przeworski e Stokes (1997) Maravall,
(1997), Cheibub e Przeworski (1997); Zielinski (1997) . Ferejohn resume assim o problema da prestação
de contas vertical ou eleições: "There are at least three impediments to accountability within democratic
institutions. First, and most obvious is the structure of the voting rule itself. Officials in majoritarian
institutions might not be accountable to minorities - at least not to insulated and underprivileged ones but more consensual voting rules are not accountable to majorities. Secondly, the electorate is a relatively
heterogeneous entity which may not have well defined interests or preferences to which officials could,
even in principle, be held accountable. Thirdly (...), elected officials enjoy an immense informational
advantage over the voters which limits how accountable such principals can be to the voters'interests.
7
Uma outra questão diz respeito a serem os bancos centrais um quarto
poder constitucional. Argumento no sentido no sentido de não se considerar
o Banco Central um poder constitucional porque a liberdade não depende
da sua existência. Definida liberdade negativamente, esta depende da
Constituição e a Constituição exige a separação de poderes e a
especialização de funções (como garantias da liberdade).
A relação entre moeda e liberdade não foi levantada na teoria
clássica da separação de poderes, nem encontramos nenhuma possibilidade
de ser a autoridade monetária um quarto poder no modelo MadisonMontesquieu ou em qualquer das interpretações relevantes acerca desta
doutrina.
Mostro ainda que a teoria da escolha racional pode dar origem a duas
versões distintas acerca do comportamento dos congressistas, segundo se
considera que os representantes estão ou não convencidos da importância
da independência do banco central.
Numa das hipóteses (Lohman (1998), Maxfield (1997 )), o
legislativo decide "manietar-se", no caso da política monetária, dando
independência ao banco central, por conta do reconhecimento do problema
da inconsistência no tempo da política monetária. Seria o caso do
Bundesbank, por exemplo.
Na segunda hipótese, o banco central seria apenas mais um caso
clássico da delegação de poder a uma agência, pelo legislativo. Neste caso
o legislativo delegaria poder á agência, sem todavia manietar-se, para
evitar os custos eleitorais de decisões impopulares, ou de informação sobre
matérias complicadas como as de política monetária, mas manteria o
controle sobre as decisões. A análise do caso brasileiro nos anos 90 aponta
para esta tese e não para a versão Lohman-Maxfield.
Trato da teoria da escolha racional aqui, por ser esta a que norteia a
maior parte dos modelos de credibilidade econômica do mainstream e por
ser esta, simultaneamente, que estuda com maior atenção o comportamento
do legislativo, dentro das premissas de maximização de utilidade
individual. Se esta teoria pode originar duas hipóteses divergentes sobre
comportamento legislativo quanto aos bancos centrais, é preciso testar qual
delas se aplica aos diversos casos e porquê.
Na seção 2 trato do caso brasileiro. Discuto o controle do Banco
Central do Brasil (Bacen) pelo Legislativo Brasileiro detendo-me na análise
da CPI dos bancos de 1999.
Em 2.1 mostro de que maneira se tratou da prestação de contas do
Banco Central do Brasil, desde a sua criação pela Lei 4595/64. Com base
em entrevistas realizadas com deputados e especialistas em política
monetária, a maioria destes ex-presidentes do BACEN, dou conta das
These three impediments - each quite imposing - operate together to undermine optimism as to the
possibilities of genuinely accountable democratic rule" (Ferejohn, 1997:2).
principais ideias e teses acerca da prestação de contas do banco e do
relacionamento deste com o congresso brasileiro.
Na segunda seção trato do comportamento legislativo na CPI dos
bancos de 1999. Procuro verificar em primeiro lugar, a hipótese de ser a
interação Legislativo - Banco Central determinada pela compreensão dos
políticos brasileiros das limitações impostas pela necessidade de
credibilidade internacional (hipótese de Maxfield (1997).
Em segundo lugar, quais as variáveis fundamentais para entender o
tipo de controle exercido pelo Legislativo sobre o Banco Central do Brasil,
nos anos 90.
O pano de fundo do capítulo é a discussão em torno da
independência do BACEN - Banco Central do Brasil, e da regulamentação
do artigo 192 da Constituição Federal ( Projeto de Lei Complementar
47/91) que trata da organização do sistema financeiro. A Constituição de
1988, determinou no seu artigo 1992, que se regulamentasse um novo
desenho para o sistema financeiro nacional.
A regulamentação do artigo 192 deu origem a dois projetos, um da
autoria do deputado José Serra, outro da autoria do deputado César Maia.
Outros projetos foram apresentados e discutidos na Comissão Mista do
Sistema Financeiro. Os documentos, atas e publicações relativas á
discussão em torno destes projetos, de 1991 em diante, se tornaram um
ponto de apoio importante da investigação.
A promulgação da Lei 9.069 de 29 de Junho de 1998, a qual dispôe
sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, estabelecendo regras e
condições de emissão do Real, representa um marco neste processo de
reformulação institucional do Banco Central do Brasil e nas suas relações
com o Congresso.
No artigo 6 do Capítulo II, que trata da Autoridade Monetária, fica
estabelecido que o presidente do Banco Central do Brasil irá submeter ao
Conselho Monetário Nacional (CMN), trimestralmente, a programação
monetária, que deverá ser aprovada pelo Senado Federal. Além disso, o
presidente do Banco Central do Brasil deverá enviar, com a mesma
periodicidade, relatório sobre a execução da programação monetária e o
demonstrativo mensal das emissões de Real e das reservas internacionais.
O mesmo tipo de disposição se encontra na Lei de Responsabilidade
Fiscal, onde a prestação de contas do Banco Central é estabelecida de modo
rígido, e que se encontra em processo de votação. É então o período que
medeia entre a promulgação da Lei 9.069 e a aprovação da Lei de
Responsabilidade Fiscal que serve de moldura para este estudo de
comportamento legislativo.
A independência do BACEN neste período, embora não formalmente
definida, existiu na prática, já que o Presidente da República e o ministro
da fazenda agiram no sentido de dar toda a liberdade ao banco na execução
da política monetária.11 Esta independência não teve expressiva oposição
dos deputados, os quais continuaram todavia a exercer um tipo de controle
que se aproxima do "fire-alarm" descrito por McCubbins (1987).
As razões para a referida independência do BACEN, segundo se
conclui do estudo de caso, apesar da anuência do congresso, não se devem
ao fato de que todos os congressistas, ou a maioria, aderiram ás teses de
Cukierman (92), abdicando de interferir na política monetária.
Como ponto de partida para a análise do comportamento legislativo e
do ambiente institucional do período, tomo os estudos sobre as relações
Executivo-Legislativo no Brasil, sobretudo aqueles que tornaram mais clara
a importância do processo decisório no comportamento parlamentar e as
características especiais do presidencialismo no Brasil.
O caso da CPI dos bancos, embora não possa ser usado para generalizar
nenhuma conclusão ou provar qualquer tese sobre o controle do banco
central pelo legislativo, em diferentes tipos de presidencialismo, pode
entretanto contribuir para a verificação de alguns das hipóteses levantadas
anteriormente:
1) a hipótese de que o controle do banco central pelo legislativo aumenta a
transparência da política monetária e induz os "policy-makers" a não
violarem os objetivos da delegação;
2) A hipótese de ser a prestação de contas ao congresso a mais efetiva das
modalidades de prestação de contas das atividades do banco,
principalmente se confrontada com outras formas típicas, tal como
relatórios anuais ou divulgação de resultados intermediários. A
efetividade deste controle depende, por sua vez, de um conjunto de
variáveis que afetam o comportamento dos congressistas e dos
diferentes jogos possíveis entre os poderes;
3) A hipótese de que a credibilidade da política monetária não é afetada, e
a confiança política aumenta, se o presidente e os diretores da política
monetária se submeterem regularmente e não apenas de forma
extraordinária a este controle.12 Inversamente, uma CPI pode diminuir
11
Rigolon (1993) estudou a independência do BACEN. Segundo ele, a independência legal do BACEN
era, em 1993, significativamente inferior á da maioria dos países desenvolvidos e só maior que a de 13
países em desenvolvimento. Mas a partir de 1988 houve avanços consideráveis, como por exemplo a
aprovação prévia pelo Senado do presidente e diretores do BACEN, os quais são como sempre foram
indicados pelo presidente da República. A proibição de que o BACEN financie direta ou indiretamente o
Tesouro Nacional e qualquer orgão ou entidade que não seja instituição financeira.
12
O conceito de credibilidade que aqui se utiliza pode ser tanto o dos
modelos de expectativas racionais quanto qualquer outro, pois a prestação de
contas ao congresso se aplica a todos os casos, mesmo aqueles em que o
banco possui mais de um objetivo. Isto é, caso o banco seja independente e só
tenha um objetivo, nenhum dos defensores deste modelo se oporia a controle
do congresso como desestabilizador da credibilidade. Apenas, este controle
teria de ser feito com relação a um único objetivo. Caso haja mais de um
objetivo, não é a prestação de contas que desestabiliza, segundo o modelo,
esta confiança e ter algum impacto sobre a credibilidade da instituição,
caso não haja cooperação do banco e se não houver uma regularidade na
prestação de contas efetiva;
4) A hipótese de que a prestação de contas é mais efetiva que a
independência do banco central em tornar este responsável aos eleitores.
A incapacidade de maior controle do Congresso sobre o Banco
Central é explicada 1) pela dificuldade de obter informação e pela
deficiência técnica dos congressistas 2) pela especificidade do período
estudado, em que a presidência usou recursos para obter dos deputados
tolerância para aprovação de medidas de política monetária em caráter de
urgência, e 3) pela organização interna do Congresso.
Por essa razão, a eliminação do déficit de democracia depende mais
do controle efetivo do legislativo e do judiciário sobre o banco do que da
legislação e dos estatutos dos bancos centrais.
1.1
Esta seção tem dois objetivos.
O primeiro deles é examinar a literatura existente sobre prestação de
contas dos bancos centrais e fazer alguns comentários sobre os conceitos de
accountability propostos.
O segundo objetivo é mostrar que os indicadores que se baseiam nos
estatutos legais existentes, podem dar conta de alguns aspectos da prestação
de contas dos bancos centrais mas não conseguem explicar as diferenças de
accountability entre países com legislação e objetivos de política monetária
semelhantes.
Por essa razão, mais do que quantificar o grau de accountability de
um banco central com base em estatutos e formalidades é necessário
verificar de que maneira se exercem os controles sobre as atividades dos
dirigentes dos bancos centrais.
A minha proposta é que se analise o Banco Central como uma
agência da esfera do executivo, a quem se delegou a política monetária,
com um ou vários objetivos predeterminados e que pode ter maior ou
menor autonomia estatutária em relação ao governo. Esta agência presta
contas (direta ou indiretamente) ao legislativo e está submetida, conforme o
sistema jurídico em que se insira, ás demais instâncias constitucionais.
mas a própria existência desse novo objetivo, pois este implica num trade-off,
trade-off implica em escolha, e escolha implica em política. Política implica em
inflação.
Uma vez que a forma e os instrumentos de prestação de contas se
alteram conforme o tipo de concepção de política monetária e de acordo
com as atividades exercidas pelo banco será necessário tratar de cada modo
de prestação de contas em relação aos objetivos e políticas escolhidos. Em
1.2 discuto o conceito de prestação de contas a partir das versões de
diferentes autores e mostro como esta prestação de contas é praticada em
diferentes países. Na seção 1.3 trato da questão de ser o Banco Central um
quarto poder constitucional. Na seção 1.4 mostro alguns dos indicadores
propostos de accountability e a classificação atribuída por meio destes
indicadores a diversos países.
I.2 O conceito de prestação de contas de um banco central
Não existe uma definição precisa do que seja prestação de contas de
um banco central. A literatura existente ainda é escassa, mas tem
aumentado exponencialmente, sem que haja um acordo quanto ao conceito.
Tratarei desta literatura com detalhe, por ser especialmente
importante neste momento de definição de um campo teórico prestar
atenção aos conceitos e seu uso.
Alguns pontos podem ser aclarados desde já.
Primeiro, o sentido em que é usado o termo accountability quando
nos referimos a bancos centrais.
Há dois pontos de vista principais sobre política monetária e
credibilidade e, em consequência, dois pontos de vista sobre independência
e prestação de contas dos bancos centrais.
Por essa razão, para facilitar a compreensão da literatura sobre
prestação de contas dos bancos centrais, divido os autores em dois grupos.
Os que são a favor e os que são contra a independência destes.
No primeiro grupo há autores que endossam completamente a ideia
de independência e vêm a prestação de contas, como complemento da
independência ou como corolário desta.13 Neste grupo estão Haan,
Amtenbrink e Eijffinger (1999), Bini Smaghi (1998), Eijffinger e de Haan
(1996) ou Blinder (1998) e Mischkin (1999).
Entre os autores deste grupo, alguns como Verdun, (1999), embora
adiram á tese da necessidade da independência do banco central, põe a
hipótese de ocorrerem conflitos distributivos, ou de um trade-off entre
crescimento e inflação, o que é particularmente grave no caso do Banco
Central Europeu, por neste caso os conflitos serem entre países.
13
Um dos ex-presidentes do Banco Central Brasileiro entrevistado para esta tese, concorda com a
necessidade da independência para o Banco Central , mas acha impossível adotá-la se a sociedade não
estiver unanimamente de acordo com ela, como no caso da Alemanha. (ver entrevista com Francisco Gros
feita em Agosto de 1999).
No segundo grupo, alguns autores consideram anti-democrática ou
desnecessária, a independência ((Schull (1996) Levy (1996)), Carvalho
(1996); Rymes (1996)), sugerindo que se aumentem os controles sobre os
bancos centrais, ao invés de se lhes aumentar a autonomia.
A maioria dos autores, sejam a favor ou contra a independência dos
bancos centrais tratam de legitimá-la, ou criticá-la, com base em
argumentos "majoritários".14 Se a democracia se define pela existência de
eleições, é óbvio que qualquer orgão não-eleito padece de deficit
democrático.
O sentido que mais frequentemente se dá á prestação de contas, na
literatura política sobre independência dos Bancos Centrais é considerá-la
um pré-requisito da independência.
Neste caso, a prestação de contas constitui-se num conjunto de
práticas, em que diretores de bancos centrais independentes seriam
avaliados em relação ao seu desempenho no que respeita ao único objetivo
da estabilidade de preços.
Bini Smaghi (1988) define prestação de contas dos bancos centrais
da seguinte maneira:
"accountability can be seen as part of a commitment technology by
which the central bank provides economic agents with symmetric
information, and thus deprives itself the possibility of following a policy
different from the one it has announced, thus enhancing the credibility of
its action" (Bini Smaghi, 1998: ).
Repare-se que esta definição de prestação de contas como uma
tecnologia de compromisso, é típica, como se viu, de uma determinada
concepção de credibilidade monetária: a de que esta última depende do
grau em que os agentes econômicos acreditam na exequibilidade de uma
política anunciada ser implementada e cumprida até ao fim.
Demertzis, Hallet e Vigi (1998) mostram bem esta relação entre
prestação de contas de um banco central e desempenho econômico. Eles
centram-se no desempenho e definem prestação de contas como a
responsabilidade dos policy makers em relação ás metas que lhe são
atribuídas. Isto é, os policy-makers são julgados em relação á proximidade
das metas estabelecidas que o desempenho real atinge.15
O que fundamenta a maioria destes autores, teóricamente, é a tese de
que a moeda é neutra e que os agentes agem seguindo expectativas
14
Ver por exemplo Haan, Amtenbrink e Eijffinger (1999:170) : " Parliament represents the views of the
electorate. Therefore it is crucial that either the central bank is directly accountable to Parliament, or that
the central bank is accountable to Government who in turns is, of course, accountable vis-á-vis
Parliament. In the latter case, government should have instruments to influence the central bank as it
otherwise cannot be held responsible for monetary policy (e.g. the possibility to override policy decisions
of the central bank."
15
Nisto reside em parte a diferença entre accountability e transparência. Esta última diz respeito á
visibilidade que o principal dá ao agente quanto ás suas ações.
racionais, considerando que os Bancos Centrais, além de estabilizarem os
preços, não afetam variáveis reais. Adiciona-se a esta a tese da escola da
"escolha pública" de que governos discricionários, a quem se permita que
controlem os bancos centrais, deixarão sempre os seus cidadãos em
situação pior do que aquela em que se encontravam, porque obedecem a
preferências de curto prazo com objetivos eleitorais.
O resultado destas teses poderia ser, lógicamente, a eliminação dos
bancos centrais, e sua substituição pelo free banking ou laissez-faire, mas
a maior parte dos autores de que falo a seguir acreditam que os bancos
centrais devam continuar existindo, impedidos, de alguma maneira, de
provocarem equilíbrios inflacionários inconsistentes no tempo. O
impedimento está no estatuto de independência do Banco Central.
De acordo com estes autores, "o produto" do Banco Central
independente é a estabilidade de preços e o Banco deve ser julgado pela
capacidade demonstrada de produzir este produto. O Banco Central não é
responsável pela definição da estabilidade de preços em si, enquanto
objetivo de política, (este último sendo responsabilidade do governo), mas
sim pela produção desta estabilidade. O governo determina o que significa
estabilidade de preços e o banco deve ser capaz de alcançar esta meta.
Dado que se assume que os bancos centrais agem apenas sobre a
oferta de moeda, "fiat" e sem custos, e as variáveis reais no longo prazo não
são afetadas, não faz sentido responsabilizar os Bancos Centrais por
eventos reais.16
O conceito de deficit democrático
Bini Smaghi (1998)17, Amtenbrink (1998) e Haan, Amtenbrink e
Eijffinger (1999), Blinder (1988) e Cotarelli (1993) e de alguma maneira
Mishkin (1999) não consideram a independência dos bancos centrais
geradora de deficits democráticos, se houver mecanismos previstos de
accountability.
16
Ver Levy, 1996:179: "To charge, therefore, central banks with governance over real events is
inconsistent with the underlying quantity theory of money, when the money is costless fiat money (grifo
do autor). Charging them with responsibility for real events is therefore perverse, is logically going to
lead them to engage in policy error, and will cause them defensively to mask the fact that they cannot
deliver by allowing how complex and difficult the conduct of monetary policy is. This will lead to
economic inefficiencies in na economy whose monetary affairs are incorrectly governed, and will leave
one of the principal ministries of a modern polity unaccountable for its conduct. Thus independent and
accountable central banks are the ultimate institutions stemming from the proper application of modern
economic and political theory. All this rests on the ultimate argument that central banks do nothing
"real"."
17
Á frente, quandos e tratar de indicadores de prestação de contas ver-se-á que Bini Smaghi propõe como
critério ex-ante de accountability, que o banco central mostre de que maneira a política monetária afeta
outros objetivos que não meramente os inflacionários. Incorências á parte, o argumento próindependência mantém-se.
Estes autores partem de um conceito de déficit democrático dos
bancos centrais independentes, que a prestação de contas, em tese, tenderia
a evitar.18 O déficit poderia ser reduzido com relatórios e audiências
regulares ao congresso ( a representantes eleitos) por parte dos dirigentes
dos bancos centrais e outros tipos de controles que variariam de país para
país.19
Ignoram desse modo os aspectos contra-majoritários da democracia
que a meu ver são tão importantes quanto os majoritários no que respeita a
alguns aspectos da política monetária20.
Numa concepção majoritária de democracia, qualquer maioria pode,
com maior ou menor facilidade, mudar a lei. Nas democracias
constitucionais não só isto é verdade como também se supõe que os juízes,
em qualquer situação, podem declarar que a lei não se aplica.21
Por exemplo, um Banco Central cujo corpo diretor fosse eleito pelo
povo e prestasse contas ao Legislativo, mas contra cujas determinações não
possa haver apelo ao judiciário, seria menos democrático que um corpo não
eleito que respeitasse a constituição e se submetesse ao exame da
constuticionalidade dos seus atos.
Ainda um país, uma união de países, em que um banco central
independente se submetesse a formas regulares de prestação de contas a um
Parlamento eleito, não padeceria, segundo estes autores, de nenhum deficit
democrático, mesmo que por exemplo, não existisse um tribunal ou corte
constitucional com poder de julgar as decisões do banco. O fato de que o
parlamento é eleito e a prestação se faça regularmente na base de relatórios
e audiências a representantes eleitos, é que conta aqui.
Há uma unanimidade nestes autores em considerar que a
independência é legítima por ser resultado de um ato do congresso, mas
que esta não substitui mecanismos de accountability22.
“Still, delegation of power to an unelected authority might be interpreted as a dilution of democracy: an
empowered, but unaccountable central bank gives rise to a democratic deficit” (Briault, Haldane and King
1996).
19
Ver Haan, Amtenbrink e Eijffinger (1999)
20
O confisco da poupança durante o plano Collor é paradigmático.
21
Veja-se o que diz Brown (1998) a este respeito: "An accountable government with no independent
judiciary is perfectly imaginable. It would lead to a majoritarian system in which individuals and political
minorities would shoulder whatever burdens the political majority chose to impose upon them, with
nothing but political remedies. An independent judiciary with no accountable government, however, is
unimaginable. (...). But as long as the Constitution persists in holding on to the loyalty of most
Americans, we would be well advised to think about the principles that it purports to carry forward for
this polity. It places a high premium on liberty, defined to mean the protection of citizens from
government, which is promoted by both majoritarian and nonmajoritarian means. It places a high
premium on judgement that of representatives and that of judges, both of whom are entrusted with the
duty to protect liberty (Brown, 1998:578).
22
"Indeed, the basic argument for the democratic accountability of central banks is that delegation of
powers to unelected officials can only be acceptable in a democratic society if central banks are in one
way or another accountable to democratically elected institutions. In a democratic society, Parliament
represents the view of the electorate. Therefore it is crucial that either the central bank is directly
18
O argumento é que um banco central independente que conduza uma
política monetária que não tenha apoio político, perderá mais tarde ou mais
cedo a independência. Esta é a razão do êxito da independência do
Bundesbank, o qual entretanto está inserido num ambiente institucional em
que os freios e contrapesos funcionam efetivamente.
Blinder (1998) considera que a independência e a prestação de contas
não estão em conflito, antes são simbióticas: “To me, public accountability
is a moral corollary of central bank independence. In a democratic society,
the central bank’s freedom to act implies a obligation to explain itself to the
public. Thus independence and accountability are symbiotic, not in
conflict. The latter legitimizes the former within a democracy (Blinder,
1998:69).
O que importa, para Blinder, é que representantes eleitos delegam a
política monetária e nomeiam os presidentes do Banco Central.
Para Cotarelli (1993), a independência só é viável se houver
prestação de contas: "...é necessário lembrar que uma independência
completa não seria um instrumento adequado contra a inflação. Para ser
efetiva, esta independência deve ser pelo menos complementada por um
mandato claro para alcançar a estabilidade de preços e pela prestação de
contas dos diretores do Banco Central, das suas ações. Este mandato e esta
prestação de contas tornam a independência do Banco Central consistente
com as regras de uma sociedade democrática." (Cotarelli, 1993: ).23
Note-se que Cotarelli considera a democracia funcional á
estabilidade de preços (não se pronuncia sobre a hipótese oposta).
Mischkin (1999) supõe que a transparência e a accountability são
fundamentais para constranger a política monetária discricionária de forma
a que ela produza os efeitos desejados. O autor examina experiências
internacionais com quatro tipos de regimes monetários básicos, todos
utilizando algum tipo de âncora nominal24: 1) âncora cambial 2) meta
accountable to Parliament, or that the central bank is accountable to government who in turn is, of course,
accountable vis-a-vis Parliament.” (Haan, Amtembrink and Eijffinger, 1999: 170).
23
A respeito da democracia ser funcional á estabilidade de preços, Cotarelli afirma que alguns autores
não estão convencidos de que uma definição estatutária de um mandato e regras de prestação de contas
sejam suficientes para garantir políticas anti-inflacionárias, propondo soluções institucionais alternativas.
Entre estas ele cita o "free-banking", ou seja a disciplina de mercado com muitos bancos competitivos em
vez de um banco central, ou então o "currency-board", ou seja uma instituição que apenas trata da
"currency" doméstica em troca da "currency"estrangeira, a uma taxa fixa e de acordo com a demanda.
Ver também Goodhart, Cukierman e Selgin (1994).
24
Uma âncora nominal é qualquer restrição imposta sobre a moeda doméstica que ajuda a estabilizar
preços, via expectativas. Como afirma Mischkin : " McCallum (1995) points out that the timeinconsistency problem by itself does not imply that a central bank will pursue expansionary monetary
policy which leads to inflation. (...) However, even if the central bank recognizes the problem, there still
will be pressures on the central bank to pursue overly expansionary monetary policy by the politicians.
Thus, ovely expansionary monetary policy and inflation may result, so that the time-inconsistency
problem remains: the time-inconsistency-problem is just shifted back one step. Thus even if the source of
monetária 3) meta inflacionária e 4) política monetária e chega á conclusão
que o grau de transparência e accountability alcançados em cada uma
destas estratégias depende das instituições políticas, culturais e econômicas
de cada país e de seu passado histórico.
Trata-se mais de uma legitimização política da independência do que
de necessidade técnica. Formalmente, como se viu na parte II da tese, os
modelos econômicos de credibilidade dispensam este requisito, bastando a
independência formal para que o perigo da inconsistência temporal na
execução da política monetária seja evitado. Na verdade a teoria da escolha
pública admite que as preferências de curto prazo de qualquer político
determinam as suas ações, não havendo possibilidade de o política escapar
á ditadura das preferências de curto prazo, ou seja, o desejo de reeleição. O
único remédio é eliminar a política, independentemente de mecanismos de
prestação de contas.
Bini Smaghi tenta mostrar que não existe trade-off entre
independência e accountability dos bancos centrais, se os dois conceitos
forem definidos de forma apropriada. Neste caso, a prestação de contas
seria vista como um complemento, ou até como um requisito necessário da
independência. O autor afirma que a independência deve vir sempre
acompanhada de um alto grau de prestação de contas, a qual deve ser tanto
maior quanto maior for a independência do banco central.
Há entre este autor e Cukierman, por exemplo, uma diferença
crucial. Cukierman, ao tratar da credibilidade jamais se refere á prestação
de contas como requisito para a sua obtenção.
Não há entretanto consenso, entre os autores, sobre as relações entre
accountability e independência, as quais mudam conforme o indicador de
independência utilizado: Nolan e Schaling (1998), por exemplo, utilizando
um indicador de prestação de contas desenvolvido em Haldane e King
(1996) e o indice de independência de Eijffinger-Schaling chegaram á
conclusão de que existe uma correlação negativa significativa entre
independência dos bancos centrais e accountability. Já De Haan (1997)
mostra que se se utilizam os indicadores de Grilli-Tabellini-Masciandaro e
de Cukierman para a independência dos bancos centrais, esta relação
desaparece.
Não me parece pois muito produtivo, depois de examinar as
conclusões destes estudos, insistir em testes econométricos das relações
entre accountability e independência. Parece-me útil, entretanto, que se
assuma que a democracia representativa se fundamenta em mecanismos de
prestação de contas e nos incentivos legais ao exercício democrático da
política monetária. E que uma das dificuldades práticas de quem quer
quantificar a accountability dos bancos centrais é construir indicadores que
time inconsistency is not within central banks, a nominal anchor may be needed to limit political
pressures to pursue overly expansionary, time-inconsistent, monetary policies." (Mischkin, 1999:2).
representem de forma realista esses incentivos, dado que os estatutos legais
não são garantias efetivas de uma prática democrática.
Quanto á transparência, é um requisito crucial da accountability
embora não haja muita precisão no que se considera que seja um banco
central transparente. A preocupação da literatura econômica com a
transparência da política monetária, muitas vezes, é mais operacional que
democrática.
O consenso se dá em torno de que o público deve ser informado por
minutas e relatórios das principais decisões quanto á política monetária e
que a transparência aumenta a credibilidade do Banco Central,
especialmente quando este não tem histórico de reputação capaz de induzila por si só.
Embora se possa abdicar da prestação de contas na maioria dos
modelos de credibilidade estudados, os aspectos relativos á transparência
na exibição de indicadores intermediários e na disponibilização de
informações relativas á política monetária vêm assumindo um papel muito
importante nestes modelos.
A prestação de contas passa a ter um duplo papel para os autores que
absorvem estes modelos: de um lado é fundamental á credibilidade
monetária, de outro diminui o deficit democrático.
Seja por necessidade de legitimar a independência, seja porque a
transparência se associa cientificamente á credibilidade, há uma tendência
dos autores que tratam da prestação de contas a incorporarem esta última á
independência, como corolário. Assim, como mostrarei á frente, o universo
dos eleitores passa a adicionar-se ao universo do mercado, e aquilo que se
considera relevante como informação para o mercado é também relevante
para o eleitor.
Características da Accountability
Bini Smaghi vai tratar do tema da prestação de contas a partir de três
elementos.
O primeiro, é a distinção entre controle democrático e prestação de
contas democrática. O controle democrático referir-se-ia, segundo ele, á
capacidade de se exercerem pelo menos três restrições ao exercício do
governo:
1) a existência de controles ex-ante ( a definição de regras e
princípios por agentes eleitos democraticamente);
2) a capacidade de ouvir críticas e responder sobre o passado e o
futuro do comportamento que pode ser posto em prática por uma
agência eleita; e
3) mandato popular (a atribuição de poder através de procedimentos
democráticos).
O autor distingue controle democrático de prestação de contas
democrática, para mostrar que os bancos centrais não possuem uma das
características que ele considera fundamental para o controle democrático,
e que é o mandato popular: “... as concerns the third one, it cannot be
agreed that independent central banks receive a popular mandate to conduct
policy and select policy objectives, since this would imply that they would
become a complete separate branch of democratic power. The legitimation
of central banks is instead obtained through the appointment, by the
government, to perform specific objetives, in a independent manner.
Independent central banks are nevertheless subject to ex ante control and
answerability, since they must give account of their performance, within
the limits of the delegation of power specified by the law” (Bini Smaghi,
1998:121).
Esta distinção parece-me relevante na medida em que chama a
atenção para o fato de que o banco central não pode ser um quarto poder,
tese difundida na academia por alguns autores que defendem a associação
estrita entre independência e estabilidade de preços.
Vejam-se agora com mais detalhe os três pontos tratados por Bini
Smaghi.
O primeiro ponto diz respeito á forma como a prestação de contas é
exercida. O segundo ponto diz respeito ao que Bini Smaghi chama
resposta, (answerability) e o terceiro á transparência.
A forma como a prestação de contas é exercida, depende de ser o
banco central independente ou não. Se um banco central não é
independente, este submete-se ao controle ex ante assim como toda a
política do governo, de um modo geral. As regras e princípios que
fundamentam este tipo de controle podem ser periódicamente revistas,
dependendo dos objetivos do governo, sem necessidade de precisar
antecipadamente quais os objetivos do governo para a política monetária.
O mesmo não acontece quando o banco é independente. A
independência, exige regras claras e princípios estabelecidos com
antecipação que definam os limites de atuação do banco. Smaghi afirma
que se as regras e princípios são deixadas a critério do Banco Central, este
seria um corpo político com a possibilidade de escolher objetivos e
políticas, e portanto teria dificuldades de manter a credibilidade.
A este respeito pode ser feita a seguinte crítica a Bini Smaghi:
mesmo um Banco Central independente, amarrado a objetivos, metas e
instrumentos específicos, terá sempre de fazer escolhas que afetam grupos
e indivíduos, o que portanto não inviabiliza a característica política da
instituição. É impossível imaginar que os dirigentes dos Bancos Centrais
sejam autômatos, obedecendo a regras estipuladas anteriormente pelo
legislativo, sem nenhuma capacidade nem possibilidade de escolha. Nesse
caso, a teoria supõe que o público ignora que o banco escolhe o tempo
todo, entre diferentes instrumentos e políticas e que o poder dos bancos
centrais é muito maior do que o simples executar de uma meta.25
Com respeito á "resposta", ou "answerability", esta tem como
objetivo verificar se houve respeito aos princípios e regras estabelecidos
para o Banco Central e, segundo Bini Smaghi, depende da forma como o
controle ex-ante foi exercido: se não se especificou claramente que o
objetivo do banco é o controle de preços, a prestação de contas será vaga e
não permitirá que se associem decisões específicas de política monetária ao
efetivo desempenho da inflação. Se o mandato do Banco for, ao contrário,
precisamente definido, o público pode concentrara a atenção na
performance da política monetária em relação aos objetivos primários.
Por outro lado, se se admitem clausulas de escape que permitem aos
bancos centrais em algumas ocasiões, desviarem-se das metas, como estas
circunstâncias não podem ser precisadas ex ante, estas cláusulas podem
representar uma desculpa para justificar desvios ex post das metas.26 O
público não conseguirá julgar a contribuição efetiva do banco central á
consecução daquele objetivo.
Há três problemas principais de transparência, que estão associados,
segundo Bini Smaghi, ao exercício da accountability:
1) O problema de choques temporários inesperados pelos quais o banco
não pode ser responsabilizado e que resultam no não cumprimento das
metas, ou a ocorrência de quaisquer fatores não monetários que afetem
os preços.
Com relação a este ponto, não há forma de os participantes do mercado
saberem se estes desvios são temporários ou se são ou não causados por
fenômenos monetários, sob a alçada do banco central. Quanto maior a
reputação de um banco central maiores podem ser os ganhos deste se
desviar temporariamente dos objetivos de longo prazo.
É nesta situação que o segredo ou a ambiguidade do banco central se
faz sentir com mais intensidade. Aqueles bancos centrais que aderem a um
único objetivo, tendem a ter vantagens em abrir informações aos
participantes do mercado.
Já os bancos centrais que não aderem a um único objetivo, como por
exemplo o FED, podem preferir que a informação sobre alguns temas ou
decisões não seja tornada pública.27 Bancos sem histórico de reputação,
25
Levy (1996) diz, a esse respeito : On the other hand, any central bank has at least some discretion in
monetary policy, unless it is either in the pocket of a dictator, or required by mandate to follow a
mechanical rule, such as the central bank in Argentina where monetary policy is effectively determined
by the currency board." (Levy, 1996:189).
26
"There is thus the risk when the target is not precisely defined, that the public is presented with a broad
picture of the economic situation but is not in a position to assess the effective contribution of the action
conducted by the central bank to the achievement of the specific objective.
27
Segundo Bini Smaghi "this line of reasoning has been used, in particular, by the FED, to justify the fact
that information about the FOMC (Federal Open Market Commitee) meetings should not be disclosed, as
requested by some market participants." (Bini Smaghi, 1998:125).
como os que mudaram os estatutos há pouco tempo tendem a ser mais
transparentes, evitando dessa maneira terem de ser mais ortodoxos do que o
necessário.
2) o problema dos efeitos distributivos produzidos pela política monetária.
Bini Smaghi afirma que estes efeitos podem ser exacerbados, se
diferentes grupos da sociedade tiverem informação diferente sobre as
intenções ou comportamento dos Bancos Centrais. Dado que os Bancos
Centrais Independentes não têm efeitos distributivos, deve evitar-se,
segundo o autor, que alguns grupos tenham informação privada e
outros não, para evitar perda de credibilidade.
3) o problema da cooperação entre agentes econômicos: esta cooperação é
mais fácil de se conseguir em presença de incerteza, quando há mais
informação acerca do comportamento do banco central.28
Este critério de transparência de Bini Smaghi do meu ponto de vista
é mais técnico que político, no sentido que a transparência se relaciona a
metas de política monetária adstritas ao objetivo da estabilidade de preços,
sem se referir á necessidade de especificar de que maneira tais metas e as
tarefas a elas relacionadas afetam a economia e os não-participantes do
mercado, que são a maioria da população. Também não se pensa em
procedimentos que vão além do simples combate á inflação, como as
tarefas de supervisão do sistema financeiro.
Blinder trata da "transparência" como um direito dos eleitores
(certamente Bini Smaghi não se oporia a esse direito, embora esteja mais
concentrado nos efeitos de mercado da transparência): a política monetária,
segundo Blinder, tem efeitos profundos na vida das pessoas, o que sugere
que o banco deva explicar ás pessoas o que está fazendo, porque está
fazendo as coisas dessa maneira e o que espera em consequência.
Esta abertura permitiria ao público julgar as políticas adotadas tanto os
que fossem afetados por elas imediatamente quanto os que fossem afetados
por seus resultados.29
28
Bini Smaghi diz: "In the presence of uncertainty, the availability of information
from the central bank enables economic agents to extract information not only
on aggregate developments but also on their own behaviour, relatively to the
rest of society. Agents can thus modify their own behavior, in particular if they
observe that is deviant from, and less profitable than, the others, or to influence
that of the other component of society." (...) "In summary, central bank
transparency favours the achievement of a co-operative equilibrium between
economic agents, which is a Pareto improvement" (Bini Smaghi, 1998:127).
“Because monetary policy actions have profound effects on the lives of ordinary people, a central
bank in a democracy owes these folks an explanation of what it is doing, why and what it expects to
accomplish. As I often said while I was on the Fed, it’s their economy not ours. By offering a reasonably
full and coherent explanation of its actions, the bank can remove much of the mistery that surrounds
monetary policy, enable interested parties to appraise its decisions contemporaneously, and then –
importantly – allow outsiders to judge its sucess or failures after the fact” Blinder (1998: 68-6)
29
De Haan, Amtenbrink e Eijffinger (1999) associam o grau de
transparência de um Banco Central á quantidade e ao período de tempo em
que os corpos decisórios do Banco são obrigados a publicar minutas das
reuniões e das decisões que tomaram.30
Os autores admitem que possa haver "sound policy reasons not to reveal
everything", como por exemplo as intervenções no mercado de capitais.
Quando isto ocorre, seria conveniente que regras explícitas constituissem
uma base legal para que certas minutas e decisões pudessem ser mantidas
secretas (como por exemplo no novo Ato do Banco de Inglaterra)
No extremo oposto destes autores encontram-se autores como o
keynesiano Levy (1996) para o qual a independência dos bancos centrais
deve ser limitada para não se afastar da vontade da maioria.
Levy aponta dois elementos nos bancos centrais independentes que
tornam esta independência antidemocrática31:
1) permitir a um grupo de homens e mulheres que pese trade-offs e
faça escolhas que afetam profundamente as vidas dos cidadãos é
antidemocrático, na medida em que os presidentes do Fed que
servem no Federal Open Market Commitee são nomeados por
corpos diretivos em grande parte eleitos por banqueiros e não por
cidadãos.
2) Os critérios que se aplicam ás nomeações feitas pelo Presidente e
confirmadas pelo Congresso são muito menos amplos que o
conjunto de temas que é afetado pela política monetária.
O Presidente e o Congresso avaliam os governadores do Federal
Reserve apenas como guardiães da estabilidade de preços, do crescimento
econômico geral e do sistema financeiro. Na verdade, os governadores
tomam decisões que direta ou indiretamente afetam um conjunto muito
vasto de políticas públicas. E os questionamentos nas audiências de
confirmação destes governadores não refletem esta amplitude de temas.
Para Levy um banco central independente só é consistente com a
democracia se dois requisitos forem cumpridos:
1) As ações de política monetária só afetam os preços, não
envolvendo nenhum trade-off social. Ou seja um Banco Central
Independente não afeta o emprego nem outros aspectos
importantes da economia ou da sociedade. Em qualquer outra
hipótese, se o FED, em lugar dos representantes eleitos, escolher
entre várias combinações de desemprego, inflação e crescimento
estará violando a democracia.
30
"Where the reasons for a certain monetary policy decision lay open, it is easier to make a judgement
and to hold central bank officials and or/government officials accountable for their behavior." De Haan,
Amtenbrink and Eijffinger (1999:174).
31
O autor refere-se ao FED.
2) O Banco Central possui um método sistemático e objetivo de
selecionar a política correta para obter o objetivo de estabilidade
da moeda e de um sistema financeiro saudável. Se, ao contrário, o
Banco Central puder somente perseguir políticas subjetivas e
arbitrárias, como poderá a remoção de influências políticas
melhorar o seu desempenho? 32
A conclusão do autor é que nenhuma destas condições está presente.
A política monetária tem efeitos profundos na economia e na sociedade e a
formulação da política monetária está longe de ser científica e objetiva.33
Por essa razão, argumenta que o governo dos Estados Unidos não deveria
conceder ao Fed, nem maior independência, nem objetivos mais estreitos,
mas ao contrário aumentar os seus níveis de accountability e fazê-lo
justificar as suas ações em termos de todas as implicações da política
monetária. Quanto ao Congresso e á Presidência deveriam ter maior
controle sobre as escolhas políticas e sociais implícitas na política
monetária, de forma a que estas políticas reflitam o desejo do povo.34
O autor discute primeiro a influência da política monetária no
emprego, no deficit público, no deficit em conta corrente, no nível de vida,
e algumas outras consequências sociais da política monetária, mostrando
que a política monetária tem influência profunda em muitos aspectos da
vida social. Em seguida o autor discute a ausência de um método
consistente no Fed, concluindo que não há razão para acreditar que o Fed
pode administrar a inflação sem causar ou agravar inúmeros problemas.35
32
Levy discute esta arbitrariedade com exemplos: " For example, if the Fed is inclined to risk a deep
recession in na effort to lower inflation from 2.5 percent to 0, our ellected officials may not feel that the
United Chances should take that chance" (Levy, 1996:191).
33
Neste ponto, Levy e Blinder têm opiniões quase coincidentes. Blinder diz a este respeito: "some
economists take this idea a little too far and write models in which central bankers can control, say,
nominal GDP, the inflation rate, or the unemployment rate on a period by period basis. Believe me, they
cannot. If they could, monetary policy would be a good deal simpler than it is" (Blinder, 1998:6).
34
"Inflation is not so great or obvious a danger that Americans should be willing to undermine their
democracy by giving the Federal Reserve more independence. Nor is it clear that doing do would improve
economic performance. On the contrary, the Fed should be held more closely accountable for its actions.
Congress should reject the arguments of those who would exclude unemployment from the monetary
policy debate. It should also insist on the inclusion of numerous other important issues in the monetary
policy debate: the national debt, the nation's international indebtedeness, U.S. competitiveness, the
standard of living, social stability, the quality of life, and a broader consideration of what constitutes an
inflation threat and what alternatives might exist to chronic monetary drag. Finally, Congress must take
the Federal Reserve to task for aggravating problems in all ares affected by monetary policy. More
independence for the Federal Reserve is about the last thing the American people need." (Levy,
1996:209).
35
Levy argumenta com dados de autores como Papadimitriou e Wray (1994): "Papadimitriou e Wray
(1994) retrace the history of modern Fed intervention and observe that every method tried or seriously
considered - targeting M1, M2, M3, P-star, gold and so on - has turned out to have serious problems,
leaving the Fed, in the candid words of Governor Lawrense B. Lindsey, to "look at a whole raft of
variables - we ignore nothing and focus on nothing" (Bradsher, 1994). Yet it is advantageous for the Fed
to provide a rationale for its actions to Congress, and Chairman Greenspan emphasized real interest rate
targets in 1994. Papadimitriou and Wray apply Mr Greenspan's suggested rule in their paper and find that
it produces notably poor policy decisions" (Levy, 1996:205).
O argumento de Levy tem um componente majoritário forte quando
se refere ao Banco Central, distinguindo os diretores deste dos juízes da
Suprema Corte : "Supreme Court justices are even more independent and
powerful than governors, but they are not supposed to be concerned with
the will of the people; rather, their responsibility is to represent and protect
the U.S. Constitution, against, among other things, the "tyranny of the
majority". (...). Federal reserve governors are in part regulators, and in such
roles should enjoy considerable independence, but they also make
monumental policy choices for the nation, choices that should be
democratically determined. Reducing the accountability of those making
these decisions would be a step in the wrong direction." (Levy, 1996: 191)
O Banco Central Europeu, o Bundesbank e o Federal Reserve
Bank
Ás concepções majoritárias levantadas até agora, vale a pena
contrapor a versão moderadamente contra-majoritária de Verdun (1999)
sobre prestação de contas.
O autor considera que a política monetária deve ser executada por
uma forma de governo contra-majoritária. Segue uma interpretação de
Majone (1996: 2, 1997a, 1997b) segundo o qual " When the need to create
police credibility is at stake, a non-majoritarian mode of government is in
fact the most likely way to achieve the desired policy outcome.".
Verdun argumenta que a organização não-majoritária dos Bancos
Centrais não trará problemas de accountability se a sua criação for
compatível com um bom exemplo de governo "responsável" e
"responsivo"36.
Segundo o autor, existe na União Econômica e Monetária Europeia
(EMU) um deficit democrático moderado. O que está em causa não é a
independência do Banco Central Europeu em si, e o mandato de perseguir
com exclusividade a estabilidade de preços, mas a ausência de algumas
características que limitam bancos centrais também independentes em
economias nacionais, como por exemplo o Bundesbank.
O problema da União Monetária Europeia, está, conforma assinala
Verdun, em ter desenhado o Banco Central Europeu á semelhança do
Bundesbank, esquecendo o arcabouço institucional em que este está
inserido: " It would also need to be accountable to the national and/or
European political body, in that it showed that it was fulfilling its mandate"
(Verdun, 1999:115).
Embora construído á semelhança do Bundesbank, o BCE é ainda mais
independente, uma vez que o Bundesbank está inserido num sistema de
36
Ver parte I da tese para entender diferença entre responsible and responsive
checks and balances e o Parlamento Alemão tem o poder de mudar-lhe os
estatutos. Mudanças no BCE só por tratado e se houver unanimidade de
todos os Estados Membros da União Europeia. No Bundesbank não foi
incorporado á constituição, mas sim ao estatuto do banco, que a
estabilidade de preços é o objetivo único, enquanto que no Banco Central
Europeu este objetivo está contido no Tratado de Maastricht 37, o que é um
compromisso muito mais forte.
Ao estudar o deficit democrático na União Econômica e Monetária
Europeia, o autor constata ser este deficit democrático causado por três
fatores: primeiro, o resultado da ausência de accountability parlamentar;
segundo, o resultado da falta de transparência no processo de tomada de
decisão; terceiro, o desenvolvimento assimétrico do processo de integração
monetária comparado ao processo de integração política, orçamentária e
fiscal. 38
O ponto levantado por Verdun, e que me interessa analisar, porque
mostra que a maioria dos autores embora tenha endossado a tese da
independência reluta em admitir que a moeda seja "neutra", é a distinção
que Verdun entre "política eficiente" e política "redistributiva" (seguindo
uma ideia de Majone, (1996)): a primeira tem como objetivo aumentar o
bem-estar agregado, ou seja as condições de todos, ou de quase todos,
indivíduos e grupos da sociedade, enquanto a segunda teria como objetivo
melhorar as condições de um grupo ás custas de outro.
No caso da União Econômica e Monetária da Europa parte-se do
princípio que a política monetária tem por objetivo beneficiar a todos, o
que significa, segundo Verdun, que é necessário garantir o objetivo
primário da estabilidade de preços e ao mesmo tempo compatibilizar este
objetivo com os princípios da Comunidade Europeia, (como está no Artigo
2 do Tratado da União Europeia).
Neste se estabelece que a Comunidade tem como tarefa, além de
criar um mercado comum e uma união econômica e monetária, promover
um desenvolvimento harmonioso das atividades econômicas, um
crescimento econômico sustentado e não-inflacionário, um alto nível de
emprego e proteção social, a elevação da qualidade de vida, etc.
Caso a estabilidade de preços não seja compatível sempre com
crescimento econômico equilibrado na EU, terá de ser decidido, segundo
Verdun, qual dos objetivos é prioritário. E como o Banco Central Europeu
37
O Tratado de Maastricht (o Tratado da União Europeia) foi assinado na cidade alemã de Maastricht em
Dezembro de 1991
38
"This democratic deficit of EMU results from a lack of Parliamentary accountability, lack of
transparency, na assymetrical development of monetray integration on the one hand, and lack of
budgetary, fiscal and policy integration on the other hand." (...) EMU developed as a monetarist project
as a result of the presence of widespread agreement on monetary policy objectives (i.e. price stability, and
stable exchange rates) and the need for solid institutional provisions for the independent monitoring of
monetary policies. There was no support for the establishment of a European "economic government"
which would be responsible for the conduct of macro-economic policies." (Verdun, 1999:123).
provavelmente será favorável a manter a estabilidade de preços, nesse caso
será necessário pedir a introdução de uma regra majoritária:
"However, if these targets clash, i.e. if price stability proves not all
the times to be compatible with balanced economic growth throughout the
EU, it will have to be decided which of the two objectives would have
priority. The independent ECB is likely to safeguarding price stability.
Hence, if a clash of the two targets occurs, i.e., if low inflation in EMU
countries results in uneven levels of economic growth and levels of
employment, a situation would have been reached where in fact EMU
policies would be considered in Majone's terms "redistributive"policies. In
this case it would be necessary according to the principles set out above, to
demand that majoritarian rule be introduced, that is, to hold a public
authority responsible."(Verdun, 1999:115).
Cukierman, ou Lucas, teriam respondido a Majone e Verdun que
estes não aprenderam corretamente a lição de macroeconomia. A teoria
quantitativa da moeda mostra que a moeda afeta apenas preços e não
emprego, e se os agentes econômicos formam expectativas de acordo com
toda a informação disponível a profecia cumpre-se. Qualquer tentativa de
aumentar emprego, no curto prazo, afrouxando a política monetária, terá
apenas efeitos de longo prazo sobre os preços e não sobre variáveis reais.
Por essa razão é necessário a autoridade independente e soberana para
contrariar decisões majoritárias. E não é possível coordenar ou escolher a
política monetária á fiscal, mas sim eliminar qualquer processo de escolha
e subordinar a última á primeira.
Mas Verdun considera que o problema da prestação de contas do
banco central europeu está justamente na falta de uma entidade política que
seja responsável por esta escolha: "It is this concern over the unequal
spread of costs and benefits of EMU and the possible lack of political
authority to be held responsible that is in the heart of the general concern
about the EMU project." (Verdun, 1999:116).
Faltou, acima de tudo,delimitar responsabilidades: não está claro que
autoridade política se tornará responsável se o EMU tiver como
consequência uma distribuição inusitada de custos e benefícios através da
zona do Euro: "One can wonder what political body can be held
accountable for any imperfections once EMU is fully operational. It also
leads to the question who will be approachable and responsible if EMU
leads to an unfair spread of costs and benefits across the regions, the
Member States or even the various industrial sectors. Once it is clear what
body is responsible it begs the question what measures can be taken to
correct the imbalance. Obviously, as long as the ECB is fulfilling its
mandate, i.e., is securing price stability, that body should not be held
responsible
De alguma forma esta entidade fora prevista, mas não adotada,
durante a discussão sobre a união monetária. No Werner Report de 1970,
um dos primeiros relatórios produzidos ao longo do processo de criação da
União Europeia, ela aparece na forma de um Centro Europeu de Decisão
para a Política Econômica (CDEP), um corpo supranacional de
coordenação entre países, que prestaria contas ao Parlamento Europeu e
limitaria o BCE.
Mais tarde no Delors Report de 1989 não se mencionou nada
equivalente, o que se explica pelas mudanças que tinham ocorido nas
crenças acerca da política monetária e governo: " Whereas in the early 70's
Keynesianism was the driven force behind economic governance in all the
EC Member States, anti-inflationary policies became the doctrine of the
1980s, though some countries were more successful than others." (Verdun,
1999:120).
Blinder e Levy, embora tratem de um caso totalmente distinto do
BCE, como é o FED, levantam pontos que são de natureza comum para a
discussão da prestação de contas democrática.
O primeiro ponto que me parece relevante analisar em Blinder, é a
ideia de que a independência do FED foi decisão de políticos sensatos que
acharam necessário tornar constitucionalmente muito difícil mudar as
decisões de política monetária.
“Wise politicians made a once-for-all decision to limit their own
power in this way, just as for example, the Constitution made it very
difficult to change the length of the President’s term of office. What made
this decision “democratic” is that elected members of Congress made it of
their own free will.”(Blinder, 1998:67)
Esta é a tese de Lohman (1998) e também é a explicação de Maxfield
(1998) para a avalanche de bancos centrais independentes criados nos anos
90, principalmente em países em desenvolvimento.
A história do FED, entretanto, mostra que os congressistas
americanos procuraram evitar que a estrutura do FED refletisse
exageradamente o peso de um grupo, o que aliás é absolutamente
compatível com a tese dos pais fundadores sobre a tirania de grupos.
Segundo Sylla (1995), no que se refere á origem deste banco e á definição
dos seus estatutos, a história do FED aponta para uma tentativa dos
congressistas de tentar libertá-lo tanto das interferências dos políticos
quanto dos bancos privados. Não há uma aderência estrita ao problema da
inconsistência temporal na política monetária.
Para entender de que maneira o Fed se move entre múltiplas
"constituencies" vale a pena ler o trabalho de Shull (1996), "Federal
Reserve Independence: what kind and how much?". O autor mostra que se
desenvolveram no interior do Congresso Americano dois tipos de críticas:
uma crítica á excessiva influência de um grupo de indivíduos privados
(grifo do autor), e outra, de cariz monetarista39:
"Dissatisfaction with the consequences of "independence" has
resulted in at least two distinct proposals to alter the Fed's current structure:
(1) a congressional proposal that the federal government exert more
influence, for example, by having the president select Reserve Bank
presidents, on the view that control over money should not reside in the
hands of a small group of private individuals; (2) a monetarist proposal that
Federal Reserve operations and targets should be constrained by a "rule"
having the force of law, on the view that, as currently organized, it will
never exercise the proper control over money. These proposals with vastly
different implications, have unified congressional critics and monetarists in
opposition to the Federal Reserve." (Schull. 1996:217).
O argumento de Schull sustenta-se em estudos baseados na teoria da
escolha pública, os quais sugerem que o Fed é uma instituição política que
responde a várias constituencies e ao auto-interesse.
E a estrutura do Fed parece refletir esta vontade: " while it is
apparent that the Fed has some freedom from political influence in setting
its policy objectives and using (as well as inventing) instruments to reach
its aims, the original debate on the Federal Reserve Act makes clear that
the system was not organized to be a "cloistered sanctuary". Rather,
Congress intend it to be responsive to a wide spectrum of political and
private interests" (citado por Schull, 1996:216).
O segundo ponto de Blinder é a ideia de que os objetivos do banco
devem ser definidos por políticos eleitos e que isso garante a legitimidade
das decisões do banco. Segundo Blinder, os principais dirigentes do banco
devem ser nomeações políticas:
"The bank's basic goals are chosen by elected politicians, not by
unelected technocrats. So, for example, when people suggested to me that
the FED should be content with 3% inflation, I answered that the Federal
Reserve Act calls for “stable prices”, not “pretty low inflation”. “If citizens
think that’s wrong, they should get the law changed” (Blinder, 1998:65).
Aqui mais uma vez trata-se de um argumento de cariz majoritário:
“When I went on the Federal Reserve Board in 1994, as a political
appointee of President Clinton, I joined five other men and women who
had been appointed by President Reagan or Bush. None of us have been
39
Ver também Sylla (1995) e os Federalist Papers n. 10. Schull diz " Banking interest, as mobilized
through the American Bankers Association, had called for a central bank completely controlled by its
member banks and free of government influence (the Aldrich plan). To the populist wing of the
Democratic Party, this meant the perpetuation of Wall Street control of money and credit. The Wilson
administration formulated a decentralized version of the Aldrich plan that would have distributed banker
control regionally among Reserve Banks with a central board composed of six public members and three
bankers. William McAdoo proposed complete federal government control with a bill to incorporate the
central bank in the Treasury Department. (in Link, 1995:208, citado por Schull, 1996:216)
elected to anything; but Bill Clinton, George Bush and Ronald Reagan had
been. We obtained our political legitimacy from the men who appointed us;
and they in turn got it the old-fashioned way : directly from the voters.”
(Blinder, 1997: 68).Blinder afirma que as decisões dos bancos centrais
deveriam ser reversíveis pelas autoridades políticas, mas apenas sob
circunstâncias extremas: “A Federal Reserve decision on monetary policy
can in principle be overturned by a act of Congress. And Fed governors can
be removed from office for cause. These mechanisms have never been
used, but America is wise to have them in place. Delegated authority
should be retrievable” (Blinder, 1997:68).
Entretanto, é admissível para o caso americano, que se estes políticos
eleitos tivessem escolhido objetivos ou instrumentos que implicassem na
negação de direitos constitucionais, seria absolutamente legítimo a um
cidadão questionar estes objetivos, dentro da lei, e a um juiz ir contra a
decisão do Banco central.40
Por último, a ideia de que em princípio toda a decisão do FED pode
ser revertida, embora em circunstâncias excepcionais. Da mesma maneira
que há decisões básicas que não podem ser revistas frequentemente, como
por exemplo a Constituição dos Estados Unidos, cujas emendas requerem
mais do que a maioria dos votos de ambas as casas do Congresso, a política
monetária, graças á independência do FED também não pode ser alterada
pelos representantes eleitos.41
40
Um dos textos que melhor apresenta o tema da judicial review, da prestação de contas e das
concepções do "majoritarianismo" para o caso americano é o de Rebecca Brown (1998). A autora diz a
esse respeito: " My claim is that political accountability - broadly, the requirement that public officials
stand periodically for elections - has been misunderstood. Almost universally, it has erroneously been cast
as the servant of the constitutional value of majoritarianism. Readers of the Constitution routinely look to
the various textual provisions establishing different types of accountability as compelling evidence of a
overarching constitutional commitment to a telos of majority rule. This understanding contains two
important errors: First, it wrongly identifies majoritarianism as the primary constitutional value, and
second, it misconceives the purpose of political accountability." (Brown, 1998:534) (...); e a autora
prossegue defendendo a instituição do judicial review como minimizadora de tiranias (sendo este o
verdadeiro móbil das instituições americanas como separação de poderes, checks and balances) " Thus,
the structural feature of accountability for political actors can be understood, not as means to maximize
the preferences of the majority of the people on matters of routine governance, as it has been widely
understood, which is a purpose always in tension with a commitment to individual rights, but rather as a
means primarily to minimize the risk of tyranny in government, which is not. Accountability serves this
goal in two ways: by allowing the people to check abuse of power at the polls if they detect a threat and
wish to eradicate it ( a traditionally majoritarian check on tyranny) and, more importantly, by involving
the polity in standing behind a political structure which includes a judicial branch empowered to step in if
the majority is itself carried away by na impulse to tyranize (a countermajoritarian check). (Brown,
1998:536).
41
A opinião de Blinder é a mesma de Stephen Cecchetti, vice presidente executivo e diretor de pesquisa
do Federal Reserve bank de Nova Iorque. Num seminário sobre assuntos legais referentes a bancos
centrais. Ao defender a adoção de regras pelos bancos centrais afirma: "I conclude, as others have also,
that the way to reconcile the goals of accountability and independence is for central bank to be
transparent. When central banks announce targets for monetary policy or are asked to explain their policy
before na elected body, such as the Congress, there is both transparency in policy and accountability to
the public" (Cecchetti, 1998:22).
O mesmo se passa com a lei que regulamenta as atividades do
Banco. Nos Estados Unidos, o presidente pode vetar uma mudança na lei
que regula o Fed. Nesse caso, uma maioria de dois terços é necessária no
Congresso para mudar a lei. Mas trata-se de um requisito bem menor do
que no caso do Banco Central Europeu, onde seria necessário fazê-lo
recorrendo a uma emenda na lei primária da Comunidade Europeia, o que
requer unanimidade de todos os membros.
1.3 Os Indicadores de Prestação de Contas
A maioria dos indicadores de prestação de contas sugeridos pela
literatura, tenta quantificar algumas variáveis, retiradas dos estatutos e da
legislação dos bancos centrais, que contribuiriam para diminuir o deficit
democrático. Briault, Haldane e King (1996) criaram um índice de
accountability baseado em quatro critérios:
1) se o Banco Central é sujeito a controle externo pelo Parlamento.
2) se são publicadas minutas das reuniões que decidem a política
monetária.
3) Se o Banco Central publica um relatório de política monetária e
de inflação de alguma espécie, além do boletim padrão
4) Se existe alguma cláusula que permite ao governo derrubar uma
decisão do Banco Central.
Bini Smaghi (1988) considera que estes critérios não representam a
prestação de contas, simplificando demais o processo e desconhecendo o
arcabouço institucional em que a prestação se faz. Como se viu na seção
anterior, o que Bini Smaghi considera fazer parte da accountability diz
respeito ao controle ex-ante e á "resposta". Nesse caso, se o governo pode
ou não derrubar a decisão do Banco Central parece a Bini Smaghi fazer
parte de um critério de independência, mas não de accountability (este é
inclusivamente um dos critérios do índice de independência de Cukierman
(92) ). 42
42
Cukierman (92) construiu três conjuntos de indicadores para a independência dos bancos centrais em
70 países. O primeiro grupo compreende "proxies" para a independência legal. Os outros dois capturam
divergências entre independência legal e real: a rotatividade dos presidentes e um indicador baseado em
respostas a um questionáriodadas por especialistas.Uma forma de medir a independência é verificar a
extensão o Banco Central é livre de influências do governo na formulação e implementação das suas
políticas, principalmente a política monetária. Uma variável chave desta medida de independência é o
grau de liberdade que o banco central tem para mudar as taxas de juros públicas e selecionar os
instrumentos de política e as técnicas com que intervêm no openmarket. Uma outra forma de assessar a
independência é observar os procedimentos de nomeação e demissão dos dirigentes do banco central.
Uma outra possibilidade é ver como o banco central se financia. Nos Estados Unidos, por exemplo, o
banco se auto-financia a partir da renda de juros sobre o port-folio de títulos do governo que ele mantém
para as operações de open market. Financiar-se a si próprio, significa que o banco não depende do
Congresso para os seus gastos anuais e desse modo está isolado de pressões e do chamado "power of the
purse".
Rigolon (1993)
Por outro lado, publicar, como está explicitado no critério 3, um
relatório específico de inflação, parece a Bini Smaghi pouco acrescentar em
relação ao que já virá contido no relatório padrão.
Ao invés de criar um índice numérico, Bini Smaghi propõe um
conjunto de critérios derivados do seu próprio conceito de prestação de
contas. Estes critérios foram construídos com base em observação de
práticas correntes em vários países, e têm como objetivo, mais que definir
normas para bancos centrais, possibilitar uma forma de examinar as
oportunidades que o Banco Central tem de se relacionar com a opinião
pública, o mercado e outras instituições da sociedade.
O autor divide estes critérios em três grupos principais:
A. Relativos a Controles ex-ante:
1) o primeiro critério diz respeito á definição clara do objetivo
estabilidade de preços - a definição do que venha a ser
estabilidade de preços, o índice de preços a ser usado, a meta
definida e o seu horizonte.
2) O segundo é o anúncio de uma meta operacional, que permita aos
participantes do mercado controlar as intenções do banco com
frequência, e seguir o impacto da política monetária no
mercado.43
3) O anúncio de uma meta intermediária.44 Estima-se entre 18 e 24
meses o tempo em que a política monetária implementada
provoca efeitos sobre o nível de preços, o que significa que a taxa
de inflação observada informa somente sobre a política monetária
passada. O anúncio da meta capacita o público a controlar as
reações do Banco central a pressões inflacionarias. Estas se
refletem em indicadores de vários tipos, como agregados
monetários e de crédito, taxa de câmbio etc.
4) O anúncio de indicadores de acesso ás características da política
monetária. Isto significa abrir informação sobre indicadores de
política que permitam interpretar possíveis desvios da meta
intermediária. Há aqui um cuidado adicional, porque excesso de
43
É preciso neste caso, segundo o autor, distinguir entre a meta operacional que é afetada pela ação do
banco, mas que em última instância é determinada pelas condições do mercado, e os instrumentos de
política monetária, como por exemplo a taxa de juros oficial. No caso do Banco Central Europeu, a meta
operacional é a taxa do overnight, e os instrumentos de que dispõe o banco para influenciar esta taxa são
o benefício e custo de depósitos e empréstimos no overnight, cujas taxas determinam o teto e o piso da
taxa no overnight. Ainda o "repos" semanal e operações de fine-tuning.
44
Esta é geralmente um agregado monetário ou uma previsão de inflação, anunciada públicamente. O Fed
não anuncia metas intermediárias, enquanto o Banco da Inglaterra publica suas previsões de inflação, as
quais de fato representam metas intermediárias.
indicadores pode gerar confusão e dar margem a que se pense que
o Banco Central usa o indicador que melhor convier, conforme as
circunstâncias.
5) A explicação de como a meta monetária ou de política monetária
afeta outras políticas e objetivos. Mesmo se o objetivo primário é
a estabilidade de preços, existem objetivos secundários, como por
exemplo estabilidade do sistema financeiro ou sustentação das
políticas econômicas do governo. Isto aumenta a transparência no
diálogo entre instituições e ajuda a distinguir claramente entre as
responsabilidades de cada.
B. Critérios ex-post (relativos a resposta) :
Este segundo grupo de critérios relaciona-se á resposta do Banco
Central relativamente ás metas e indicadores anunciados acima. A
transparência e a accountability aumentam com a publicação dos
dados e a explicação dos principais desenvolvimentos relacionados
ás variações da meta.
Entre estes critérios encontram-se a publicação dos dados das
variáveis intermediárias e a explicação do possível desvio da
meta; a publicação da previsão de inflação e possível desvio da
meta; a explicação das principais medidas de política, ou a
ausência desta e razões alegadas, a explicação de como estas
medidas afetam outras políticas.45
C. Critérios Relativos a Procedimentos
Este terceiro grupo de critérios de prestação de contas refere-se aos
procedimentos seguidos quando se tenta preencher os outros dois
grupos de critérios.
Estes procedimentos incluem relatórios públicos, através dos quais
o banco central providencia dados sobre as metas e indicadores e
explica sua políticas, as razões destas políticas, e o desempenho
destas políticas relativamente ás metas pré-anunciadas. Além destes
incluem-se também no grupo, audiências públicas no Parlamento,
onde detalhes menos técnicos podem ser dados, através de sessões de
perguntas e respostas.
45
Todos os bancos centrais têm esta prática de explicar as decisões de política monetária. No caso do Fed,
como o Federal Opem Market Committee (FOMC) se reune a cada seis semanas, a explicação a ser dada
ao público leva em consideração o caso de que a linha de política a ser anunciada é a taxa de
financiamento do Fed das próximas seis semanas, um período longo de tempo. Nesse caso, é necessário
levar em consideração contingências imprevistas, o que é uma das razões para se pedir segredo por um
mês pelo menos [antes da divulgação de tal linha de política.
Ainda, a participação do governo nas reuniões do corpo diretivo
do banco, é outra oportunidade de trocar informações com as
diferentes instituições que tratam da política econômica. 46 E a
publicação das minutas dos meetings das reuniões, seja inteira seja
resumidamente, oferece uma visão das razões da tomada de decisão
por parte do corpo político. Esta informação pode chegar a um nível
de desagregação grande, até ao ponto de tornar públicos os votos de
cada membro do corpo diretor do banco, o que envolve uma
prestação de contas individual.
Com relação ao primeiro critério, o critério ex-ante que determina
que se anuncie um objetivo prioritário, há uma grande variação entre
países.47 O Fed, por exemplo, não anuncia um objetivo preciso em termos
de taxa de inflação. O Banco Central americano tem explicitamente dois
objetivos, conter a inflação (sem qualquer meta) e buscar o pleno emprego
(no Fed Act e no Employment Act está assim definido "to furnish an elastic
currency (...) so as to promote effectively the goals of maximum
employment, stable prices and moderate interest rates")48.
Ou seja não há uma tarefa única para o banco, prioritária. E o
conceito estabilidade de preços foi definido de forma qualitativa como a
"taxa de variação do nível de preços que não conduz a uma mudança no
comportamento dos agentes econômicos".
Já o Banco da Inglaterra tem uma meta clara de inflação,
estabelecida pelo governo com o orçamento e que pode ser mudada a cada
ano. Quanto ao Banco Central Europeu, este define precisamente
estabilidade de preços (segundo o European Monetary Institute, uma
inflação entre 0% e 2% é consensual entre bancos centrais).
Não há consenso na literatura sobre o que deve ser a definição de
estabilidade desejada de preços. Enquanto Bini Smaghi considera o Fed
pouco claro, por não dar ao mercado um sinal preciso de seus objetivos
quanto á inflação (além de ter mais que um objetivo prioritário) e o Banco
da Inglaterra muito vulnerável ás imposições do business cycle, pelo
horizonte de tempo limitado, em que pode mudar sua meta, Stiglitz, por
exemplo, considera que inflação muito baixa pode ser um mal. Já um
keynesiano concordaria com a existência de dois objetivos para o Fed e
nunca com a supremacia da política monetária sobre a fiscal.
Os critérios de Bini Smaghi supõe, no que diz respeito á definição de
uma meta, que quanto mais precisa for esta, mais accountable é o banco.
46
Bini Smaghi afirma que, embora os participantes do mercado possam não estar informados acerca
destas trocas de opinião, estas acabam por se refletir nas políticas.
47
Há um consenso de que os Bancos Centrais mais independentes tendem a enfatizar o objetivo de
estabilidade dos preços e, adicionalmente da taxa de câmbio. Este é o caso do Bundesbank, do Swiss
National Bank. Ver a esse respeito Rogolon (1993).
48
Ver Bini Smaghi (1998:135)
Mas sendo a inflação um fenômeno complexo, diz Bini Smaghi, há aqui
um trade-off entre simpliciade da meta anunciada públicamente e a
complexidade do fenômeno inflacionário.
Alguns comentários a respeito:.
Há controvérsia com relação á adoção do regime de metas. Na
década de noventa, países como a Nova Zelândia, Canadá, Reino Unido,
Finlândia, Suécia, Espanha e Austrália, e finalmente o Brasil, aderiram a
este regime.49 As evidências apontam para uma trajetória descendente de
inflação nos países que adotaram este regime. Mas países que não adotaram
o regime de metas, como Estados Unidos, Japão, Noruega, Dinamarca,
Bélgica, Áustria e Portugal também apresentaram tendência de queda de
inflação na década de 1990 relativamente á década de oitenta.50 Mishkin e
Posen, que defendem o regime de metas, ao estudarem as três primeiras
economias que adotaram as metas concluíram que a redução da variação
dos preços nesses países foi resultado das forças que já estavam em
movimento antes ( a Nova Zelândia, o Canadá e o Reino Unido
enfrentavam desinflação e crescimento lento do PIB, e na Nova Zelândia,
desde 1988, crescimento do desemprego.51
A maioria dos países que adotou esse regime implantou também
cláusulas de escape. Estas têm sido utilizadas para excluir efeitos
decorrentes de choques de oferta, tais como mudanças nos termos do
comércio, nos impostos indiretos, desastres naturais, tarifas públicas,
encargos governamentais e taxa de juros. O argumento para a cláusula de
escape é que não sendo a meta obtida, não se atribui o desvio a
inconsistência temporal das políticas adotadas, mas a variáveis não
mensuráveis.52
Apresentar uma meta como causa da queda da inflação pode enganar
o público, se realmente o regime de metas não tem nenhuma relação com a
queda da inflação.
A definição de uma meta (seja um ponto, seja um intervalo) obriga
por vezes a autoridade monetária a malabarismos desnecessários com
49
O regime de metas inflacionárias propõe uma meta de crescimento para a inflação, que é anunciada no
início de um determinado período. A meta, estabelecida pelo governo, deve ser perseguida pelo banco
central, cujos dirigentes não devem se preocupar com outras variáveis macroeconômicas.
50
Sicsú (1999) cita Haldane, do Banco Central da Inglaterra e um dos maiores entusiastas do novo
regime: "Metas de inflação têm sido propostas durante um período em que as pressões inflacionárias são
benignas, em comparação com os anos 1970/80. Quanto da melhora na performance da inflação nos anos
90 pode ser atribuída á boa sorte (...) permanece uma questão aberta, em países com ou sem meta de
inflação."
51
Ver Sicsú (1999) "Metas de Inflação: experiências" : "Mishkin e Posen afirmam tão somente que o
novo regime é responsável pela manutenção das taxas inflacionárias em patamares aceitáveis. Mas até
mesmo essa tímida conclusão não parece plausível, porque os países já mencionados que não têm metas
de inflação também têm mantido suas taxas em níveis aceitáveis."
52
Ver Helder Mendonça (1999): "...Ao contrário do regime monetário anterior, (taxa de câmbio fixa),
onde o público possuía informações claras sobre a política monetária, na nova estrutura há apenas um
número e a promessa de que a meta será alcançada.
índices, e pode convencer a opinião pública que a autoridade monetária
deve ser responsabilizada por eventuais desvios da meta, quando, no
máximo, a autoridade pode manipular alguns instrumentos como juros e
câmbio e esperar que a recessão segure os preços e as expectativas.
Se não há consenso acadêmico, a apresentação de uma meta é uma
escolha de política monetária e sua imposição no estatuto do banco central
como mecanismo de accountability ignora o caso de os eleitores rejeitarem
o regime de metas.
Por último, a análise das práticas e dos procedimentos que tornam a
informação disponível mostra que não há muita diferença entre países: as
práticas mais comuns dizem respeito a relatórios públicos, trimestrais ou
quadrimestrais e audiências no Parlamento.
Na Nova Zelândia, o Banco Central encaminha relatórios semestrais
e outro anual, protocolados no Parlamento, ao Ministro das Finanças e este
monitora o cumprimento das metas monetárias. Na Inglaterra, o Parlamento
faz argüições periodicamente aos administradores do Bank of England.53
No caso do Banco da França as arguições são menos frequentes. No Japão,
o ministro das Finanças supervisiona o Banco Central. Este presta
depoimentos ao Parlamento, assim como o Fed se reporta semestralmente
ao Congresso. No Chile, o BCC reporta-se anulamente ao Presidente da
República e ao Senado.54
A qualidade dos relatórios pode variar dependendo também do que o
público espera em cada país, isto é o mercado, o Parlamento e o mundo
acadêmico. Como se verá no próximo capítulo, as relações entre o
Parlamento (ou o Congresso) e o Banco Central dependem do tipo de
controle adotado em cada caso, dos pesos que os Congressistas atribuem a
cada ponto da política monetária, á mídia, e do peso que dão aos resultados
de qualquer investigação.55
O próprio Bini Smaghi parece chegar a esta conclusão, quando diz ao
final do seu artigo: "Contrarily to what has been suggested at times, the
ECB looks "on paper" as na accountable institution, at least in comparison
with other central banks. This will have to be checked in practice, on the
basis of the behaviour of the ECB itself, but also on the effective role
played by the bodies in charge of ensuring this accountability, such as the
European Parliament, the EU council and the public at large." (Bini
Smaghi, 1999:142).
53
A independência operacional deste banco ocorre em Maio de 1997. Antes desta ocorrer, o secretário do
tesouro ( Chanceller of the Exchequer), representando o governo, controlava o estabelecimento dos
instrumentos de política monetária. A partir desta data, o Banco passou a ter a responsabilidade de
estabelecer a taxa de juros básica, e a intervir no curto prazo na taxa de câmbio.
54
Ver Rigolon (1993).
55
Enquanto que o Congresso dos Estados Unidos controla de forma intensa o Fed, o BCE pode ser
considerado menos intensamente controlado.
Um conjunto de indicadores de prestação de contas foi proposto por
de Haan, Amtenbrink e Eiffinger (1999). Estes permitem classificar
diferentes países e casos em relação aos seguintes pontos: os objetivos
escolhidos pelo banco, a transparência dos procedimentos e a
responsabilidade final da política monetária. A proposta dos autores baseiase no que diz a lei, óbviamente esclarecendo que um banco pode ser mais
ou menos accountable do que manda a lei.
De Haan, Amtenbrink e Eijffinger (1999) distinguem três
características principais na accountability dos bancos centrais e a partir
destes elaboram um questionário que visa avaliar o grau de accountability
de um Banco Central56:
1 definição explícita e hierarquização de objetivos da política
monetária
2 transparência
3 responsabilidade final com relação á política monetária
Numa sociedade democrática, segundo eles, os políticos eleitos
devem decidir explicitamente os objetivos da política monetária e
hierarquizá-los. Isto significa que resta ao banco central a independência
com relação aos instrumentos.
A escolha de um único objetivo também simplifica o controle do
desempenho do Banco Central pelas autoridades e opinião pública.57
Para eles, ser ou não o objetivo único, a estabilidade de preços, não é
tào importante. O que conta para a maior accountability é que não haja
possibilidade de escolha para os diretores do Banco e que haja clara
priorização de objetivos: "First, democratically elected politicians should
decide upon the objectives, and second, if there is no clear yardstick the
central bank cannot really be held responsible fits policies." (De Haan,
Amtembrink e Eiffinger, 1999:178).
Com relação ao critério da transparência, os autores distinguem os
seguintes aspectos:
a) o Banco Central publica um relatório específico, adicionalmente ao
relatório standard?
b) as reuniões dos diretores são públicas, ou as minutas publicadas?
c) O Banco Central explica públicamente de que maneira atingiu seus
objetivos?
Para os autores é fundamental que a lei prescreva certos
procedimentos de esclarecimento sobre a política monetária. Um exemplo é
o Inflation Report do Banco de Inglaterra, que revela informação sobre as
56
Ao construirem o indicador somam o número de respostas positivas a todos os aspectos que destacaram
como representativos da prestação de contas. As respostas são todas referentes a 1997, com excepção da
Inglaterra, onde o Novo Ato foi utilizado embora este só tenha sido aprovado em 1997.
57
" It is easier to control a narrowly defined target than a broadly defined objective (Lastra, 1997)" (de
Haan, Amtembring e Eijffinjer (1999:173).
ações das autoridades, os objetivos e as intenções destas. Se as minutas das
reuniões são publicadas, a transparência aumenta.58
Com relação á responsabilidade final, há três pontos principais que
os autores levam em consideração: a relação do Banco Central com o
Parlamento; a existência de mecanismos de override e o procedimento de
demissão do presidente ou governador do Banco Central. O Parlamento
tem a responsabilidade última da política monetária pois pode mudar as
regras e punir o banco com mudanças da sua base legal no caso de
comportamento ilícito.
As perguntas a serem feitas são neste caso:
a) o Banco Central submete-se a controle do Parlamento?
b) O governo pode dar instruções ao Banco?
c) Há algum tipo de revisão no procedimento que leva á derrubada
(overriding) da decisão do Banco?
d) Pode o Banco apelar?
e) Pode uma maioria simples no Parlamento mudar a lei que rege o
Banco Central?
f) Existe a possibilidade de demitir um Presidente do Banco Central
com base no desempenho passado?
No que respeita aos mecanismos de overriding distinguem entre o
direito de impor instruções, o direito de aprovar, suspender e anular ou
deferir decisões e o direito de censurar decisões, com base legal.
Como exemplo os autores citam o Reserve Bank Act de 1989 que deu ao
ministro das finanças da Nova Zelândia o direito de derrubar o objetivo da
estabilidade de preços, através de uma ordem no Conselho (Order in
Council). Quem estipula o objetivo do Banco neste caso é o governo.
Já o governo alemão tem o direito de suspender uma decisão do
conselho que governa o Bundesbank (Zentralbankrat), mas ao contrário do
caso da Nova Zelândia, não tem o poder de mudar a política monetária.
Neste caso, os autores avisam que é necessário que o mecanismo de
override não seja usado como um instrumento de influência política
indesejada , o que se obterá com a transparência do uso deste mecanismo e
a possibilidade de uma revisão deste mecanismo por meio de apelação do
Banco.
O mecanismo de demissão funcionará como um instrumento de
prestação de contas ex-post, que permitirá punir aqueles que obtiverem
desempenho insuficiente. No caso da Nova Zelândia, o governador do
Banco Central faz um trato com o ministro das finanças, o qual estabelece
as metas que o primeiro deve alcançar, podendo demiti-lo se não obtiver
resultados.
58
"Se isso não levar trinta anos, como na Alemanha" dizem os autores.
Os autores dão uma importância maior á responsabilidade final e ao
item "relação com o Parlamento". Se não houver controle direto do
Parlamento sobre o Banco, o mecanismo de override é fundamental para a
prestação de contas.
A Tabela 1 mostra a classificação de diferentes paíse de acordo com
os itens propostos pelos autores. A Tabela 2 mostra o indicador de
Eijffinger-Schaling para a independência dos bancos centrais atualizado. E
a Tabela 3 aponta os resultados da regressão entre a independência e a
prestação de contas para os aspectos da accountability estudados pelos
autores.
Pela classificação dos autores a menor classificação é a do Banco
Central Europeu. O Banco de Inglaterra apresenta um alto grau de
accountability, maior do que o da Nova Zelândia.
A crítica a ser feita a estes indicadores é aquela que os autores
apontam: trata-se de um indicador baseado em estatutos legais.
A história da prestação de contas dos bancos centrais põe em
evidência o que os indicadores não conseguem medir. A organização
legislativa, a organização constitucional e a maneira como se estabelecem
as relações entre os poderes determinam um tipo de prestação de contas
que pode aumentar ou diminuir a discricionariedade dos dirigentes dos
bancos centrais, sem que isso fique evidente na legislação ou estatutos dos
bancos.
Isto é: a prestação de contas, embora possa ser quantificada por
aspectos gerais tal como grau de transparência do banco central, depende
também de como funcionam os freios e contrapesos das democracias
representativas E estes se manifestam através das relações entre o
Executivo, o Legislativo, o Judiciário. O banco central como qualquer
agência tem seus objetivos definidos pelo Legislativo e toma decisões que
podem ser revertidas por estes ou pelo judiciário.
A quantificação destas relações é impossível, sendo mais interessante
recorrer á teoria dos jogos e á história dos bancos centrais nas democracias
para entender como esta prestação de contas funciona. Esta literatura sobre
prestação de contas tem centrado a discussão nos bancos centrais
independentes. Se o banco central não é independente formalmente, ou seja
se é subordinado ao Tesouro ou ao executivo, a prestação de contas deste
está inserida na prestação de contas geral do executivo e não é considerada.
Entretanto a independência pura e total não existe, e é de situações
de maior ou menor autonomia que se tem de tratar na maior parte das
vezes. 59 Isto é, se considerarmos independência, uma situação em que o
59
É impossível uma independência total, já que por meio de emendas
constitucionais é possível alterar os poderes de qualquer Banco Central, por
maior que seja a sua autonomia
banco central deve únicamente perseguir a estabilidade de preços, tomando
decisões que vão inteiramente contra as decisões do governo eleito, mesmo
bancos considerados totalmente independentes do ponto de vista estatutário
jamais conseguiram atuar sempre contra a vontade do executivo.
Vejamos diferentes situações. Um caso extremo de autonomia é o do
Bundesbank, em que este fica desobrigado de levar em conta as políticas
governamentais que não se coadunem com a sua função estatutária, de
manter estável o valor da moeda, no próprio país e no exterior. Mesmo
neste caso, o banco foi obrigado a ceder ao governo quando da querela
acerca da política cambial adequada á unificação alemã, porque a opinião
pública estava com o governo.
No extremo oposto da autonomia, como no caso do Banco da França,
cabe ao banco o aconselhamento das políticas monetárias e sua
implementação, ficando explícitamente a cargo do governo a
responsabilidade das decisões monetárias importantes.
Entre um e outro extremos há casos intermediários de maior ou
menor autonomia na prática, do que sugerem seus estatutos, como são o
Japão ou Estados Unidos (ver Castello-Branco e Swinburne, 1993).
1.4 Pode o Banco Central Independente (ou a Autoridade Monetária)
ser um Poder Constitucional?
Análises recentes consideram o Banco Central um Modo Especial de
Autoridade Política (ver Sola et alii, 1997), enfatizando o seu papel de
guardião da moeda. Neste tipo de análise a situação dos dirigentes do
Banco Central encontraria analogias na dos membros do judiciário,
também não eleitos (não-accountable) e guardiães da Constituição.60
O fato dos juízes não serem eleitos conta pouco do ponto de vista da
democracia representativa. O papel dos juizes (ou das Cortes
Constitucionais) é atuar, como se viu, como garantia da confiança dos
eleitores nos governos, ou seja como instrumento de moderação .61
60
Ver a este respeito o texto de Harald Waldrauch "Institutionalizing Horizontal Accountability: How
Democracies Can Fight Corruption and the Abuse of Power" do The Austrian Institute for Advanced
Studies (Viena) que é um resumo da conferencia the Third Vienna Dialogue on Democracy, 26-29 Junho
de 1997: "Setting up autonomous institutions of horizontal accountability presupposes insulating them
from state officials and from the people as well. Clearly, such institutions may come to clash with the
principles of vertical accountability. Being unaccountable themselves, agencies of accountability are
vulnerable to charges that they are undemocratic. Thus it is important not to overlook the ancient
question: who guards the guardian?" .
61
Rebecca Brown (1998) explica de que maneira a prestação de contas enquanto pricípio político tem
sido erroneamente atribuído a concepções majoritárias. "My claim is that political accountability broadly, the requirement that public officials stand periodically for election - has been misunderstood.
Almost universally, it has erroneously been cast as the servant of the constitucional value of
majoritarianism. Readers of the constitution rotinely look to the various textual provisions establishing
A legitimidade não lhes vem de nenhuma maioria, mas justamente
do fato de que podem evitar a tirania destas maiorias. Juízes são fiadores da
liberdade. Cabe aos juízes diminuir o poder tirânico das maiorias, ou seja o
seu papel é justamente contra-majoritário e moderador
Os que se referem aos bancos centrais como quarto poder tendem a
considerá-los “guardiões da moeda”, á semelhança dos "guardiães da
constituição". Guardião da constituição é um termo que faz sentido nas
democracias representativas.
Já guardião da moeda não tem peso teórico equivalente no
constitucionalismo, a não ser que moeda e constituição tivessem pesos
equivalentes em garantir a liberdade e a confiança nas democracias
representativas. Seria preciso demonstrar que a independência do banco
central aumenta a liberdade nas democracias representativas. Aqueles que a
definem como instrumento da estabilidade, ou aos bancos centrais como
guardiãos da moeda, não demonstram de que maneira a estabilidade estrita
da moeda é instrumento de liberdade.62 Na ditadura Salazarista, por
exemplo, a moeda (o escudo) era estável, a mais estável da Europa e nem
por isso a liberdade era maior do que na República de Weimar.
As relações entre moeda e liberdade não estão também garantidas
para o caso dos bancos centrais independentes. Principalmente quando se
define liberdade como não-despotismo. As constituições não prevêm este
quarto poder, deixando o banco na esfera do executivo ou sob o legislativo.
Para entender a diferença (do ponto de vista das democracias) entre
guardar a constituição e guardar a moeda, temos de recorrer aqueles autores
que mostram a natureza do controle constitucional e do instituto do judicial
review nas democracias e estados constitucionais modernos.
Segundo Pasquino (1997), a cultura política americana imprimiu ao
controle constitucional duas características importantes.
A primeira diz respeito á distribuição de poder entre os ramos
legislativo, executivo e judiciário do governo central e á divisão do poder
político e das competências entre o governo federal e os estados (os quais
preexistem á constituição).
Esta divisão tinha como objetivo evitar qualquer forma de
despotismo (ou concentração excessiva de poder nas mãos de um único
orgão).
A estrutura poliárquica de poder era, para os pais fundadores
americanos, a melhor garantia de liberdade individual. Dado que a
distribuição de competência entre os poderes central e local poderia gerar
different types of accountability as compelling evidence of a constitutional commitment to a telos of
majority rule. This understanding contains two important errors. First, it wrongly identifies
majoritarianism as the primary constitutional value, and second, it misconceives the purpose of political
accountability."(Brown, 1998:534).
62
evidentemente que aqui só se trata da definição de liberdade dos liberais. É absolutamente legítimo
pensar que estes tenham uma única definição de liberdade, para a política e para a economia.
conflitos entre diferentes agências quasi-soberanas, tornou-se necessário
recorrer a uma potência que dirimisse os conflitos entre agências. O papel
da corte constitucional, segundo Pasquino, é então manter o equilíbrio
dentro da estrutura poliárquica de poder (principalmente entre Estados e
Federação). A Suprema Corte Americana é nomeada pelo Presidente da
República com o consentimento do Senado que representa os Estados.63
Esta ideia de conflito entre União e Estados Federados está também
na raiz da introdução do controle constitucional na República de Weimar e
na ideia de Hans Kelsen quanto á introdução de um Verfassungsgericht na
Constituição Austríaca de 1920.
A segunda característica do controle constitucional americano, como
mostra Pasquino, tem a ver com o exercício do poder judiciário enquanto
tal, ou seja o que se chama judicial review. Esta tem em parte relação com
a interpretação americana da separação de poderes, em que o judiciário
não é um poder subordinado. Pasquino diz: "The locus classicus of such
doctrine is the celebrated opinion written in 1803 by the Chief Justice
Marshall in the case Marbury vs. madison. The importance of that opinion
lies in the surprising definition of the judiciary (surprising from the
European continental point of view). Here we can read: (quote) "it is
emphatically the province and duty of the judicial department to say what
the law is. Those who apply the rule to particular cases, must of necessity
expound and interpreter that rule. If two laws (and the constitution is a law)
conflict with each other, the courts must decide on the operation of
each....." (in Pasquino, 1997:9).
Ou seja, Marshall não só estabeleceu o princípio da superioridade da
constituição, como lei superior e principal, que não pode ser alterada por
leis ordinárias, como atribuiu ao judiciário, e a qualquer tribunal o poder de
interpretar a constituição, de forma a invalidar ou aplicar, leis aprovadas
pelo parlamento eleito. Como conclui Pasquino : "Therefore, non
accountable public officials can nullify the will expressed by the elective
organs/agencies." (...) statutes passed by the Congress are not the only
source of law (in the large sense of this word=droit, Recht); jurisprudence
is a concurrent source so that we can say that the tradition of comon law
produced in the first constitutional state what we call judicial review.
Judges and Representatives are coordinate figures." (Pasquino, 1997:9).
Nada que se pareça com os diretores de bancos centrais. Em nenhum
sistema têm estatuto análogo ao dos representantes.
63
"Notice that here the constitution is conceived like a mechanism which can keep its self-enforcing
equilibrium at the center (Madison, F.P. 51), but needs an umpire to avoid the break of the balance
between the central political agency and the States". Entretanto há uma distinção a ser feita, entre ser a
Constituição um mecanismo e ser uma norma. As normas constitucionais são "superestáveis" e ao
contrário do poder executivo e do poder legislativo, a corte Constitucional não age motu próprio, só pode
agir se acionado, portanto submete-se ao princípio da passividade. É importante saber quais atores são
autorizados a apelar. (Pasquino, 1997:7)
Há todavia alguns pontos que podem ser confundidos ou dar azo a
analogias entre o papel dos juízes e o dos diretores de bancos centrais.
Estes pontos dizem respeito á idéia de juízes enquanto um poder neutro vis
a vis a idéia de bancos centrais enquanto guardiães da moeda.
Se supusermos o caso de juízes como um poder "neutro", simples
aplicadores da lei, e os diretores dos bancos centrais da mesma forma
atuando como um poder neutro, sempre que atrelados a uma regra, como
por exemplo na idéia de regra de expansão monetária de Friedman, esta
neutralidade pode ser comparada, supondo que o papel dos juizes assim
como o dos diretores do banco é da mesma natureza: ambos guardam sem
interferir, respectivamente, a lei e a moeda
Há que distinguir, entretanto, os fundamentos das duas
"neutralidades". No caso dos juízes esta é defendida pelo modelo
classificado como "bouche de la loi", em que a supremacia do legislativo é
fundamental. Nada semelhante ao modelo americanos, em que o princípio
de "ambição contra ambição" garante ao judiciário a interpretação e
portanto o poder legislativo. O caso francês, mais próximo do primeiro
modelo, fundamenta-se na supremacia do legislativo.64
Vejamos agora a tese da neutralidade da moeda assegurada pela
obediência a uma regra monetária. A neutralidade aqui se fundamenta na
idéia de que a regra evita a discricionariedade e garante a estabilidade da
moeda, influenciando as expectativas dos agentes econômicos. Por sua vez,
esta regra se torna necessária pois há a idéia de que a moeda também é
neutra no longo prazo, ou seja não influencia as variáveis reais da
economia. Mas não há aqui nenhum princípio de supremacia do banco
enquanto poder legislador, e sim um simples princípio de política
monetária ( a teoria monetarista).
Se a regra é definida pelo Parlamento ou pelo Congresso, no modelo
"bouche de la loi" cabe aos juízes garantir a sua aplicação. No modelo
Ambição contra Ambição, os juízes podem cassar a regra se a supuserem
contrária aos direitos básicos das minorias. Nos dois casos, a democracia
não prevê para os diretores dos bancos centrais senão um papel
subordinado e intermediário. Nesse caso, cabe aos juizes serem os
guardiães da moeda ( e da lei) e não aos diretores de bancos centrais.
Diretores de bancos centrais devem submeter-se a juízes sempre que
minorias apelem para decisões ou atos administrativos destes bancos que
supostamente violem princípios básicos constitucionais. A inflação é um
mal, que pode tornar-se uma tragédia. Mas também a bomba atômica o é, e
não se espera inventar um poder constitucional para cada mal da república.
64
Pasquino, 1997 diz a este respeito: "As Carré de Malberg, the most prominent law theorist of the
French Third Republic used to say, the law, that is the will of the Parliament, is the only true expression
of general will. Since the general will is a sovereign power it would be useless and in any event
preposterous to check the sovereign.
A Receita Federal desempenha um papel importantíssimo e não se pensa
transformá-la num quarto poder. As agências do executivo, as agências
independentes podem ser controladas e participar do controle de outros
poderes, mas nenhuma constituição as nivela aos poderes já existentes.
Política monetária e política ambiental são, nesta interpretação,
políticas equivalentes, cujos efeitos podem ser checados e os poderes dos
responsáveis por estas podem ser mais ou menos limitados. Se se admitir
que os detentores do segredo da bomba atômica não devem ser checados
porque isso põe em risco a vida da humanidade, é possível admitir uma
agência independente para a bomba atômica, mas ainda assim não se trata
de um poder semelhante ao judiciário. Guardar a bomba atômica não é o
mesmo que guardar a constituição. O mesmo com a moeda.
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