RECOMENDAÇÃO ADMINISTRATIVA Nº 02/2014 - A 1. CONSIDERANDO haver chegado ao conhecimento do Ministério Público, nos autos de PA n. 46.13.011175-3, a informação prestada pela Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, de que os hospitais com leitos contratados ou conveniados com o Sistema Único de Saúde neste município exigiriam a presença de familiar ou responsável para a internação de usuário, mesmo que em casos de urgência e emergência de paciente em aguardo de leito hospitalar em uma das unidades de pronto-atendimento (UPAs) 24h, chegando, por vezes, a não se efetivar a ocupação do leito apenas pela ausência desses terceiros; 2. CONSIDERANDO outras notícias de casos semelhantes noticiados nesta Promotoria de Justiça por servidores da Secretaria Municipal de Saúde, no sentido de que a ocupação de leitos SUS em Curitiba seria, na prática, condicionada à presença de familiar ou responsável, havendo recusa de atendimento para internação quando não cumprida tal exigência, mesmo em casos de urgência e emergência já atestadas por médico em unidade de prontoatendimento; 3. CONSIDERANDO que casos de urgência ou emergência significam, respectivamente, a ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência médica imediata (urgência) e a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem em risco iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo portanto, tratamento médico imediato (emergência) (art. 1º da Resolução n. 1451/95, do Conselho Federal de Medicina), portanto traduzindo sério risco à integridade física, quando não à vida do doente; 4. CONSIDERANDO a incompatibilidade temporal entre o estado de urgência/emergência e os prazos necessários para localização de familiar ou responsável (que pode não existir, não estar disponível no momento ou nem facilmente localizável), sobretudo para usuários originários de outras localidades, moradores de rua ou pessoas não identificadas; 5. CONSIDERANDO que, em todos esses casos infere-se aparente falta de articulação e integração entre os pontos de atenção à saúde, e, como consequência, a não internação de pacientes em urgência ou emergência certamente contribui para agravamento dos respectivos transtornos ou patologias, prolongando a situação de vulnerabilidade clínica, em espera da adoção das medidas necessárias para localização de responsável legal; 1 6. CONSIDERANDO que a demora na localização de familiar ou responsável, pode prejudicar o próprio atendimento dos demais usuários que precisam dos serviços médicos e de enfermagem na própria UPA, já que se ocupa um leito de observação nessa unidade, que poderia ser destinado a outro doente; 7. CONSIDERANDO o disposto nos artigos 1º, incisos II e III; e 3º, inciso IV, ambos da Constituição Federal, que impõem, respectivamente, como fundamentos da República Federativa do Brasil, "a cidadania" e a "dignidade da pessoa humana" e, como seu objetivo primeiro, a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação"; 8. CONSIDERANDO o disciplinado no artigo 196, da Constituição Federal, que preconiza ser “a saúde direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”; 9. CONSIDERANDO o contido no artigo 197, também da Constituição Federal, ao dispor que "são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle”; 10. CONSIDERANDO que o acesso às ações e serviços de saúde oferecidos pelo Sistema Único de Saúde deve obedecer os princípios de universalidade, igualdade e integralidade, previsto no art. 7º da Lei Orgânica da Saúde: Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; (...) IV - igualdade da preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; assistência à saúde, sem 2 11. CONSIDERANDO assim que todos os cidadãos devem ter a garantia de acesso às ações e serviços de saúde do Sistema Único de Saúde, em igualdade de condições, independentemente de condição familiar ou social (com ou sem família, com ou sem responsável presente); 12. CONSIDERANDO, da mesma forma, que o artigo 2.º, da Portaria GM/MS n.º 1.820/2009, aponta que “toda pessoa tem direito ao acesso a bens e serviços ordenados e organizados para garantia da promoção, prevenção, proteção, tratamento e recuperação da saúde”, e o artigo 3.º, que “toda pessoa tem direito ao tratamento adequado e no tempo certo para resolver seu problema de saúde” (grifos nossos); 13. CONSIDERANDO que o atendimento em urgência e emergência de natureza clínica e cirúrgica, embora evidentemente necessário e devido a todos os que dele necessitarem em razão dos princípios da universalidade, integralidade e da resolutividade (art. 7º, I, II e VIII, da Lei n. 8080/90), foi incluído como diretriz da atual Política Nacional de Atenção às Urgências e Emergências, instituída pela Portaria GM/MS n. 1600, de 7 de julho de 2011, em seu art. 2º: “Art. 2° Constituem-se diretrizes da Rede de Atenção às Urgências: I - ampliação do acesso e acolhimento aos casos agudos demandados aos serviços de saúde em todos os pontos de atenção, contemplando a classificação de risco e intervenção adequada e necessária aos diferentes agravos; II - garantia da universalidade, equidade e integralidade no atendimento às urgências clínicas, cirúrgicas, ginecoobstétricas, psiquiátricas, pediátricas e às relacionadas a causas externas (traumatismos, violências e acidentes); (...) IV - humanização da atenção garantindo efetivação de um modelo centrado no usuário e baseado nas suas necessidades de saúde; (...) VI - articulação e integração dos diversos serviços e equipamentos de saúde, constituindo redes de saúde com conectividade entre os diferentes pontos de atenção; (...) 3 XIII - regulação articulada entre todos os componentes da Rede de Atenção às Urgências com garantia da equidade e integralidade do cuidado; e 14. CONSIDERANDO então que, no caso concreto, a não ocupação do leito SUS pela exclusiva falta momentânea de familiar ou responsável pelo paciente, atestada por médico de UPA 24h a condição de urgência ou emergência, por certo distancia-se das garantias de universalidade, equidade, integralidade, sem o esperado acesso ampliado e sem humanização da atenção, longe da efetivação de um modelo centrado no usuário e baseado nas suas necessidades de saúde; 15. CONSIDERANDO que a demora ou recusa na ocupação de leitos em situações de urgência e emergência médicas pela falta de familiar ou responsável pode, em tese, acarretar responsabilização criminal do gestor e/ou de diretores de hospitais e/ou médicos; 16. CONSIDERANDO que o pronto encaminhamento do usuário ao hospital não exclui a necessidade de se manter busca incessante, no decorrer da internação, dos familiares e/ou responsáveis, estimulando-se, sempre que possível, a integração familiar no acompanhamento ativo do processo terapêutico, inclusive procedendo-se à continuidade do procedimento de localização de familiares já deflagrado na UPA 24h; 17. CONSIDERANDO, também, o artigo 22, da LOS, que aponta que “na prestação de serviços privados de assistência à saúde, serão observados os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento”, o que significa adesão à prática ora mencionada, que, aliás, é aplicável a qualquer serviço médico (extra-SUS); 18. CONSIDERANDO o contido no art. 13, I, VIII, IX e XIV, da Lei Estadual nº 13.331, de 23 de novembro de 2001, e no art. 18, X e XI, da Lei Federal nº 8080/90, no sentido de que incumbe ao município contratar e conveniar para adquirir serviços de assistência à saúde de prestadores de serviço, controlando e fiscalizando a prestação dos serviços assistenciais privados e o cumprimento integral dos contratos e convênios, inclusive com aplicação de penalidades eventualmente previstas nos respectivos atos; 4 19. CONSIDERANDO que, para garantia de eficiente aplicação do princípio da integralidade cabe aos gestores do Sistema Único de Saúde, nos termos do Decreto n. 7508, de 28 de junho de 2011: Art. 13. Para assegurar ao usuário o acesso universal, igualitário e ordenado às ações e serviços de saúde do SUS, caberá aos entes federativos, além de outras atribuições que venham a ser pactuadas pelas Comissões Intergestores: I - garantir a transparência, a integralidade e a equidade no acesso às ações e aos serviços de saúde; II - orientar e ordenar os fluxos das ações e dos serviços de saúde; III - monitorar o acesso às ações e aos serviços de saúde; e 20. CONSIDERANDO o contido no art. 22 da Lei n. 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor): Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código. 21. CONSIDERANDO que cabe à direção municipal do SUS, nos termos do art. 18, XII, “normatizar complementarmente as ações e serviços públicos de saúde no seu âmbito de atuação”, de sorte a possibilitar-lhe regulamentar os procedimentos busca ativa de familiares ou responsável na UPA, inclusive para instruir a continuidade da busca de familiares por parte dos hospitais para os quais os pacientes tenham sido transferidos, visando celeridade e integração entre os serviços de busca ativa dos serviços municipais de saúde e dos hospitais vinculados ao SUS; 5 22. CONSIDERANDO o disposto no artigo 127, da Constituição Federal da República, que dispõe que “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindolhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis"; 23. CONSIDERANDO o disposto nos artigos 129, II, da Magna Carta, e 120, II, da Constituição do Estado do Paraná, que atribuem ao Ministério Público a função institucional de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”; 24. CONSIDERANDO a disposição do art.27, parágrafo único, inciso IV, da Lei Federal n.º 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, quae faculta ao Ministério Público expedir recomendação administrativa aos órgãos da administração pública federal, estadual e municipal, requisitando ao destinatário adequada e imediata divulgação e a disposição do art. 6º, XX, da Lei Complementar Federal nº 73/93 combinado com o art. 200, da Lei Complementar Estadual nº 85/99, que salienta caber ao Ministério Público a expedição de recomendações visando a melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ, por seus agentes, no uso de suas atribuições legais, expede a presente RECOMENDAÇÃO ADMINISTRATIVA aos senhores Ângelo Tesser e Marcial Carlos Ribeiro, respectivamente diretores técnico e superintendente, do Hospital São Vicente, para que, em cumprimento às disposições legais mencionadas, e em vista das circunstâncias ora apuradas, determinem imediatas providências para abster-se o Hospital São Vicente de exigir, como fator impeditivo, a presença de familiar e/ou responsável para internação em casos de urgência ou emergência, espontânea ou referenciada, quer seja de paciente advindo de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), de outros pontos de atenção (SAMU, SIATE, etc) ou do próprio prontosocorro hospitalar, com atenção imediata à saúde do usuário e pronta ocupação do leito, em especial quando disponibilizado pelas Centrais de Regulação de Leitos, orientando especialmente todos os médicos e profissionais para tanto, sem prejuízo de manter-se a busca ativa incessante e documentada, no decorrer da internação, dos familiares e/ou responsáveis, estimulando-se a integração familiar no acompanhamento ativo do processo terapêutico. E ao senhor Adriano Massuda, Secretário Municipal de Saúde de Curitiba, para que, em cumprimento às proposições ora referidas, e em vista das circunstâncias fáticas apuradas, determine prontas providências para: 6 1) regulamentar os critérios e formas para o procedimento de busca ativa de familiares ou responsáveis por pacientes em leitos de observação nas UPAs 24h, em eventual concurso com outros órgãos governamentais, obedecendo critérios legais e éticos, sobretudo para instruir a continuidade da busca de familiares por parte dos hospitais para os quais os pacientes tenham sido transferidos, tudo instruído mediante documento padrão para uso institucional, a ser anexado ao prontuário médico e à documentação de rotina de transferência ao serviço hospitalar referenciado; 2) controlar e fiscalizar os procedimentos de acesso aos leitos hospitalares da rede contratada e conveniada, exigindo integral cumprimento dos contratos e convênios, inclusive com aplicação das penalidades previstas pelo inadimplemento negocial, no sentido de compelir os hospitais contratados e conveniados a abstenção de condicionar a internação hospitalar de urgência/emergência à presença de familiar e/ou responsável, quer seja de paciente advindo de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), de outros pontos de atenção (SAMU, SIATE, etc) ou do próprio pronto-socorro hospitalar. Assinala-se o prazo de 30 (trinta) dias para que as autoridades mencionadas comuniquem ao Ministério Público quanto à adoção das providências adotadas na espécie. Dê-se ciência, por ofício, aos Conselhos Distritais de Saúde, ao Conselho Municipal de Saúde de Curitiba, à 2ª Regional da Secretaria de Estado da Saúde e ao Conselho Regional de Medicina do Paraná. Curitiba, 19 de fevereiro de 2014. Fernanda Nagl Garcez Promotora de Justiça Michelle Ribeiro Morrone Fontana Promotora de Justiça Andreia Cristina Bagatin Promotora de Justiça Marco Antonio Teixeira Procurador de Justiça 7