Se criança votasse, o País seria outro

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Brasília, sábado, 11 de setembro de 2010
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Se criança votasse, o país
seria outro
Dioclécio de Campos Júnior
Médico, professor titular de pediatria, foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria
[email protected]
Criança não vota, por isso vale
pouco para os candidatos. Quase
nada. Só serve como pequeno
figurante das imagens de
campanha. Recebe beijos, sorrisos,
abraços e afagos de políticos
treinados por competentes
marqueteiros. Mantém, contudo, a
autenticidade da alma infantil. Não
retribui porque percebe a
artificialidade do gesto, a frieza do
olhar, a bradicardia da emoção
profissional. O único personagem
que mostra seriedade em fotos de
propaganda eleitoral é a criança. Só
ela não sorri. Não vê graça alguma
na encenação de que participa sem
ser consultada. Na maioria das
vezes, não esconde a reação de
susto, quase medo. Usada para
atestar a sensibilidade humana do
candidato, não faz a dobradinha
correspondente. Revela equilíbrio.
Não se deixa envolver pelo clima de
falsa alegria e jargões do
profissionalismo eleitoral que não respeita a
infância.
A criança está muito próxima da fonte da vida,
bem distante da aridez ética inspiradora dos
embates e embustes que disputam o poder.
Sua sintonia é outra. Afina-se aos acordes
infinitos da melodia cósmica, o som do amor
universal. Pulsa na frequência da
espontaneidade sem limite. Labora na divisa do
original, pressuposto inefável do ser, atributo
da existência que faz sentido. Exterioriza um
contraponto comportamental que não se pode
mais ignorar, sob pena de a sociedade
desaparecer no superficialismo das aparências,
no engodo da simulação, no espectro desolador
do atraso.
Eleição deveria ser momento mais respeitoso
para toda sociedade que se pretende civilizada.
Em nenhuma outra ocasião os políticos são
forçados a lembrar que as pessoas existem, a
debruçar-se um pouco sobre os problemas que
as afetam, procurar ouvi-las, prometer tudo o
que reivindicam. Curvam-se ao poder potencial
do voto, o único exercido de fato pelo povo.
O aprimoramento contínuo do processo de
sucessão democrática supõe infância viva, bem
cuidada, saudável, educada. É a fonte que dá
origem às gerações de eleitores e candidatos
em constante renovação. Não pode ser
exaurida, muito menos turvada a limpidez dos
fluidos virtuosos que jorram de suas nascentes.
Sem ela democracia é abstração. Se suas
necessidades não integrarem os compromissos
dos candidatos, a consciência dos eleitores e a
seriedade das candidaturas continuarão sempre
aquém do esperado. Ficará neutralizada a
evolução política do eleitorado, requisito maior
da capacidade transformadora contida no poder
do voto.
Os programas de governo defendidos na
presente campanha eleitoral, muito
semelhantes ou iguais, têm como destinatário o
eleitor, não a sociedade. Simulam engajamento
com soluções nada originais para superar
desafios que mais parecem criados para ficar.
Só quem vota vale alguma coisa, não raro
dinheiro vivo. O não eleitor carece de
relevância, não é ouvido.
Por força da minoridade, a criança está
naturalmente excluída do processo eleitoral.
Não por outra razão, a maioria dos políticos
insiste em situar a infância no contexto arcaico
que a define como incapacidade de falar. Não
busca entendê-la, prefere ignorá-la. Considera
sem importância incluir nas plataformas de
campanha um ser que ainda não vota. Daí a
pobreza de conteúdos, a redundância das
discussões, o vazio das propostas pouco
inovadoras.
Estudos científicos revelam que, nos tempos
atuais, a sociedade somente avançará se fizer
investimentos maciços, contínuos e prioritários
em educação e saúde da primeira infância. Não
há base mais segura para todo e qualquer
sonho de futuro. Cada dia que passa sem fazêlos o país perde tempo. Gira em falso. Opta por
fortalecer a economia sem desenvolvimento
humano. Três milhões de crianças nascem
anualmente no Brasil. Delas, 58.500 morrerão
antes de completar um ano de vida. Apenas
411.810 terão acesso à educação infantil. A
maioria das demais ficará relegada ao
desprezo, sem chance de cidadania plena.
A Sociedade Brasileira de Pediatria apresentou
sugestões de governo aos presidenciáveis.
Propôs políticas coerentes para promoção da
primeira infância, com ênfase no Programa
Nacional de Educação Infantil, projeto de lei
que tramita no Senado há três anos. Nenhum
dos candidatos aparenta valorizar a iniciativa.
Criança não figura entre suas preocupações
reais.
A prioridade da infância merece cláusula
constitucional. Assegurar creche e pré-escola de
qualidade, em tempo integral e em número
suficiente para toda a criançada há de ser dever
do Estado. Se a criança pudesse votar, essa
utopia já seria realidade. Como não pode,
seguirá chorando sem ser ouvida.
Editor: Dad Squarisi // [email protected]
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Tel. 3214-1140
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