REFORMA AGRÁRIA: CONTRIBUIÇÕES À PROMOÇÃO DE UM DESENVOLVIMENTO RURAL INTEGRADO NO BRASIL E EM PORTUGAL Prof. Dr. Eloy Alves Filho1 Profa. Dra. Arlete Salcides2 RESUMO: No contexto de um mundo transformado pelos processos hegemônicos de globalização e pela emergência de respostas contra-hegemônicas, apresentamos resultados de uma pesquisa que objetivou trazer à tona experiências, saberes e expectativas de trabalhadores rurais, tanto do Brasil como de Portugal, na perspectiva de dar visibilidade às diferentes “vozes do campo” e, assim, somar esforços junto àqueles que visam contribuir para um desenvolvimento rural integrado e sustentável em favor dos pobres. Sob esse enfoque, realizamos dois estudos de casos que serviram de base para estabelecer uma comparação entre o processo de formação e de implantação da Reforma Agrária, no Brasil e em Portugal, com vistas a verificar a forma como os dois espaços geográficos se inseriram no movimento em favor da reforma agrária, as políticas que adotaram, as especificidades e as recorrências entre as duas sociedades rurais em questão. Nessa perspectiva, além de consulta documental, foram coletados depoimentos de agricultores nos dois países. No caso do Brasil, foram registradas as histórias de vida de trinta trabalhadores residentes em áreas rurais reformadas dos estados do Pará e de Goiás. No caso de Portugal, dez agricultores relataram suas experiências de vida em áreas rurais da região do Alentejo. Concluímos o estudo, destacando questões, nos âmbitos político, social, econômico e cultural, que se encontram, ainda, à espera de solução nos dois países. Introdução O direcionamento de um olhar para cenários ou épocas diferentes, numa abordagem comparada, possibilita aproximações e/ou distanciamentos e, também, exige cuidados que vão para além das tradicionais precauções inerentes à atividade investigativa. Nessa direção, quando busquei realizar um estudo sobre o processo de formação e de implantação da Reforma Agrária em Portugal, tomando como contraponto esse mesmo processo no Brasil, não considerei apenas o período, final do século XX, ou ainda, as regiões envolvidas na transformação da estrutura fundiária, mas, sim, procurei analisar os aspectos que caracterizaram, em cada contexto, o sistema de poder e as políticas públicas que contribuíram ou inviabilizaram a geração de emprego e de renda. Sobre esse último ponto, objetivei tratar, também, da difusão da luta dos movimentos sociais pela emancipação social contra a política neoliberal do Estado mínimo, que deixa os excluídos tão somente à mercê do capitalismo de mercado, sendo identificados como mercadorias e não como sujeitos sociais, políticos, históricos, econômicos e culturais. 1 Professor vinculado ao Departamento de Economia da Universidade Federal de viçosa/MG. Email: [email protected] Professora e Assessora Pedagógica do Centro Cultural e de Formação Projecto. Porto Alegre/RS. Email: [email protected] 2 Assim, esse estudo não se tratou de mera verificação da ocorrência de fenômenos particulares, mas da verificação da forma como os dois espaços geográficos se inseriram no movimento em favor da reforma agrária, as políticas que adotaram, as especificidades e as recorrências comuns entre os dois casos em questão. Tal opção me impôs inscrever minhas reflexões nos atuais debates que visam compreender as transformações macro-estruturas que vêm ocorrendo nas sociedades desde o final do século XX. Apresentados os principais pressupostos que orientaram esse trabalho de investigação, no que segue, objetivo, com base tanto na análise das ações governamentais e dos movimentos sociais em favor de uma reorganização da estrutura fundiária, de geração de emprego e inclusão social no Brasil e em Portugal, como na identificação de pontos convergentes e divergentes entre os saberes produzidos e acumulados pelos trabalhadores rurais dos dois países, trazer, para este espaço, reflexões que possam contribuir, de algum modo, para a elaboração de propostas que viabilizem transformar a realidade, atender às suas expectativas, interesses, bem como garantir e ampliar o grau de participação dessa parcela da população na definição de prioridades a serem contempladas nos programas governamentais, nas suas diferentes instâncias: municipais, estaduais e nacionais, no caso brasileiro, e similares ou correspondentes, no caso português. Contribuições à resolução de históricos problemas das sociedades rurais A questão agrária brasileira não pode aparecer como questão agrária, mas apenas residualmente como problema social. Nesses termos, ela se manifesta não como irracionalidade para o desenvolvimento capitalista, mas como problema de emprego, trabalho e sobrevivência para as populações carentes e que o próprio caráter capitalista da propriedade cria ao se modernizar e se desenvolver. Por seu lado, muitos trabalhadores dos campos do Sul, envelhecidos e confrontados com uma acentuada redução do emprego agrícola, concorrem com imigrantes que começam a chegar e impor novos modelos de organização do trabalho em que a relação direta, trabalhador-patrão, passa a ser intermediada, pelo empreiteiro ou a empresa de serviços. Como bem analisa Sennett (apud Baptista, 2004) “trabalhar não é hoje fazer coisas, mas ser portátil”, ou seja, saber manejar um instrumento ou um saber que pode ser utilizado nos processos produtivos. O mesmo autor aponta ainda que “o problema com que nos confrontamos é como organizar a nossa vida pessoal agora, num capitalismo que dispõe de nós e nos deixa à deriva”. Conforme sugere Santos (1987), (...) duzentos e tal anos depois, (...) estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre ciência e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordinário ou vulgar que nós, sujeitos individuais ou coletivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório e falso; e temos finalmente de perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade ( p.8). . Desde finais dos anos 1960, (Santos, 2002a), o desenvolvimento social sofre uma transformação marcada pela crise do Estado-Providência que, entre outras, resultou numa inscrição dos trabalhadores à obsessão e às rotinas da produção e do consumo que não deixou espaço para o exercício da autonomia e da criatividade. O novo regime de acumulação do capital visa dessocializar o capital e subjugar a sociedade à lei do valor, tendo como efeito principal a distribuição desigual dos custos e das oportunidades, desencadeando um aumento das desigualdades entre ricos e pobres de uma mesma nação. É nesse contexto de embate com a globalização neoliberal, que estão se criando novos caminhos da emancipação social. Há alguns campos em que as alternativas criadas pela globalização contrahegemônica, (Santos, 2002b, 2002c), são mais visíveis e consistentes, não apenas porque é neles que os conflitos são particularmente intensos, mas também porque é neles que as iniciativas, os movimentos e as organizações progressistas atingiram os níveis mais altos de consolidação e densidade organizativa. Assim, se estamos de acordo que novas formas de emancipação são possíveis, podemos dizer que temos hoje, uma sociedade-providência transfigurada, que sem dispensar o Estado das prestações sociais a que o obriga a reivindicação da cidadania social, sabe abrir caminhos próprios de emancipação. Urge, assim, refazer a relação da sociedade com o território, numa perspectiva que associe a cidade com as condições de vida e trabalho das populações nele disseminadas, tornando-o um espaço em que os que vêm da cidade e os que já o povoam possam, sempre, começar de novo, pois, tal como sugere o mesmo autor (ib.), “ao falarmos do futuro, mesmo que seja de um futuro que já nos sentimos percorrer, o que dele dissermos é sempre o produto de uma síntese pessoal embebida na imaginação, no meu caso, na imaginação sociológica”(p.36) e, no nosso, também! Nesses termos, um sistema, segundo afirma (Melucci, 2001), pode ser analisado como um campo no qual se encontram e se desencontram interesses, grupos, forças. Nesse caso, o fenômeno coletivo é produto de processos sociais diferenciados de orientações de ação, de elementos de estrutura e motivação que podem ser combinados de maneiras distintas. Como nenhum processo de mobilização começa no vazio e que quem se mobiliza nunca são indivíduos desgarrados, segundo analisa Melucci (1999), o movimento dos trabalhadores rurais, no âmbito das reformas agrária portuguesa e brasileira, constituiu-se a partir de redes de recrutamento que motivaram o envolvimento individual e a participação coletiva. Analisando o conjunto de processos sociais que caracterizou o Brasil na década de 1970, particularmente após o declínio final do regime militar, até meados dos anos 80, dificilmente deixará de ser consensual a identificação da emergência das lutas sociais em áreas rurais, particularmente aquelas empreendidas pelos chamados sem-terra, como as mais emblemáticas, distintivas do período e inesperadas, especialmente pelo ceticismo quanto às possibilidades de organização política conseqüente por parte de trabalhadores rurais e camponeses. O surgimento, no início da década de 1980, e o posterior desenvolvimento de Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, tornou conhecida a sigla – MST. As lutas sociais empreendidas por esta organização e diversas outras que surgiram ou se consolidaram, concretizam provavelmente um dos mais surpreendentes processos sociais em busca de suas emancipações. No caso de Portugal, conforme analisa Barros (1979), ”a reforma agrária foi um fenômeno social que não logrou atingir âmbito nacional” (p.39). Compreender a exclusiva incidência regional impõe atentar à especificidade da região e, também, a natureza do poder político como movimento social no período revolucionário que se seguiu ao 25 de abril, incapaz, segundo analisa o mesmo autor (ib.), “de definir e assegurar a concretização de um coerente projeto de Reforma Agrária adaptado à diversidade” (p.39). No Alentejo, o movimento social crescia de intensidade e grau de organização social e política com diferenciações conforme as regiões. Porém, independente das especificidades locais, orientava-se por uma resistência às ações e ditames da burguesia latifundiária. Segundo refere Barros (1979), “o proletariado agrícola, alentejano e ribatejano, identificava a burguesia latifundiária como agente social dominante, e com facilidade recusava um sistema agrícola em que era desprovido de qualquer autoridade” Esse contexto de conflitos favoreceu que cedo a reivindicação por Reforma Agrária surgisse nessas regiões. Assim, sob a ação do movimento social, o Sul do país conhecia medidas iniciais de transformação das estruturas agrárias. As transformações verificadas na Região Sul, em conseqüência da Reforma Agrária, vieram a alterar profundamente a configuração dessa zona, sendo que os pequenos e os médios produtores, só em escassa medida, foram afetados pela alteração ocorrida nas estruturas fundiárias tendo ficado à margem da Reforma Agrária. O coletivismo que se traduziu no favorecimento e no redimensionamento das unidades produtivas para lhes conferir mais elevada dimensão econômica e social, foi uma opção que envolveu dois grupos reconhecidos como beneficiários diretos da Reforma Agrária, os assalariados e os trabalhadores temporários, e que, ao mesmo tempo, impôs aos pequenos agricultores se integravam ao lado dos assalariados nas novas empresas coletivas, sob pena de ficarem à margem do processo. Nas demais regiões do país, como analisa Barros (1979), “os esforços foram tímidos, débeis, sem verdadeira articulação, efetiva coerência e continuidade para que pudessem ter conduzido às alterações das estruturas agrárias” (p.43). No Brasil, embora as medidas de desapropriação usadas para a obtenção de terras permaneçam como instrumentos básicos de angariar recursos fundiários para assentar famílias com perfil de trabalhador rural, do uso de terras públicas e daquelas disponibilizadas por aquisição, diferentemente do que significaram em outros períodos, as regularizações fundiárias se constituem hoje em instrumentos de incorporação dos posseiros pobres ao cenário e às possibilidades da agricultura familiar. Certamente concorda-se com aqueles que reconhecem que há muito que fazer ainda em termos, especialmente, de ressocialização dessas populações para perspectivas que se abrem e, também, que essas não dependem apenas da regularização fundiária, mas da participação efetiva de agentes de mediação e beneficiários.. No caso português, podemos compreender as diretrizes da PAC que, na atualidade, atravessam a economia, como um braço forte na lógica das relações transnacionais e globalizadas, e, nesses termos, tal como analisa Santos (2001), “como um processo simultaneamente hegemônico e contra-hegemônico” (p.13), que inclui diferentes dimensões, dentre as quais, se destacam “os movimentos contra-hegemônicos, normalmente ancorados em lutas populares, em cidades concretas, em comunidades rurais concretas, espalhadas por todo o mundo” (ib., p.18). São todas essas experiências e alternativas que contribuem para que se caminhe para formas de cidadania ativa. Segundo Riechmann e Buey (1994), um movimento social pode ser definido como “um agente coletivo que intervém no processo de transformação social, promovendo mudanças ou opondo-se a elas” (p.47). Conforme a definição proposta por Raschke (apud Riechmann e Buey, 1994), “movimento social é um agente coletivo mobilizador que persegue o objetivo de provocar, impedir ou anular uma mudança social fundamental, trabalhando para isso com certa continuidade, com alto nível de integração simbólica, se valendo de formas de ação e organização variáveis” (p.48). Porém, é importante destacar que dentro de um movimento podem coexistir grupos com interesses, expectativas e concepções de mundo notadamente diferentes. Como a base de seu poder não está garantida por uma institucionalização excessiva, buscam sempre o apoio ativo dos membros da sociedade.Também as formas de participação nos movimentos sociais são múltiplas e, geralmente, eles têm um começo e um final, uma vez que se baseiam em causas estruturais que intensionam modificar por meio de sua ação coletiva. Aqui vale lembrar, mais uma vez, (Riechmann e Buey, 1994), quando referem que os objetivos dos movimentos sociais “podem ser esboçados com a fórmula uma humanidade livre e justa sobre uma terra habitável” (p.58). Considero que essas premissas podem contribuir para romper com a ilusão de pensar que a democracia consista meramente na competência pelo acesso aos recursos governamentais (Melucci, 1999 e Santos, 2002b, 2002c), uma vez que seu exercício requer condições que aumentem o reconhecimento e a autonomia dos processos significativos individuais e coletivos. Assim, a democracia não é algo assegurado automaticamente. Tal como sugere (Melucci, 1997), ela pode resultar, sim, de uma ação coletiva que viabilize a negociação e a instauração de acordos públicos. A experiência dos trabalhadores rurais dos campos do Sul é um exemplo interessante para mostrar que a democracia pode ser constituída em espaços públicos independentes das instituições governamentais ou estruturas estatais (Melucci, 1999 e Santos, 2002b, 2002c). Nesses espaços, as práticas de significação desenvolvidas na vida cotidiana podem ser expressas e ouvidas independentemente das instituições políticas formais ou de um Programa proposto pelo Governo. No caso do Brasil, estima-se que o cumprimento do que prevê o Artigo 86 da Constituição Federal de 1988, ou melhor, que a mobilização dos trabalhadores imponha o que a função social da propriedade seja tomada como referência na definição de ações integradas e articuladas entre os trabalhadores rurais e os Ministérios do Desenvolvimento Agrário, da Agricultura, da Saúde, da Educação, do Trabalho, do Meio Ambiente e, ainda, da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, pois, só desta forma, um Programa de Reforma Agrária pode, de fato, se constituir como um instrumento político de desenvolvimento social, cultural e econômico para transformar a realidade da sociedade rural do Brasil. As elites portuguesas ao lado de outras conjunturas inviabilizaram a reforma agrária alentejana, espera-se que os trabalhadores rurais e o pequenos agricultores não permitam que a atual política econômica mate no futuro também a agricultura familiar. E que, no Brasil, a força dos movimentos sociais não se arrefeça e faça avançar a reforma agrária em detrimento do injusto latifundio improdutivo e, em favor dos trabalhadores rurais sem ou com pouca terra. Encerrando essa reflexão lembro o pensamento de Riechmann e Buey (1994), com o qual concordo plenamente. Na atualidade, “se anuncia um conceito alternativo de cidadania para o século XXI, uma revisão da idéia ilustrada de tolerância e uma ampliação da idéia tradicional dos direitos humanos” (p.10). Referências Bibliografias BAPTISTA, Fernando Oliveira. (2004) A (In) Utilidade da Reforma Agrária. In: MURTEIRA, António. Uma Revolução na Revolução – Reforma Agrária no Sul de Portugal. Porto: Campo das Letras. BARROS, Afonso de. (1979). A reforma agrária em Portugal - Das ocupações de terras à formação das novas unidades de produção. Instituto Gulbenkian de Ciência - Centro de Estudos de Economia Agrária. Oeiras. MELUCCI, Alberto. (2001). A invenção do presente – Movimentos Sociais nas Sociedades Complexas. Petrópolis/ RJ: Vozes. _________________.(1999) Acción Colectiva, Vida Cotidiana y Democracia. México: El Colegio, Centro de Estudios Sociológicos. _________________. (1997). Movimentos Sociais na contemporaneidade. Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais. PUCSP, Abril, pp.11-32. RIECHMANN, Jorge e BUEY, Francisco Fernández. (1994). Redes que dan libertad – Introducción a los nuevos movimientos sociales. Barcelona: Editorial Paidós. SANTOS, Boaventura de Sousa. (2002a). Para uma teoria da democracia. In: MOLINA, Mônica Castagna, SOUSA Jr., José Geraldo de e TOURINHO NETO, Fernando da Costa. O Direito achado na rua. Vol. 3. Introdução crítica ao direito agrário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. ______________________(Org.). (2002b). Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. _____________________. (Org.). (2002c). Produzir para viver – os caminhos da produção nãocapitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. _____________________. (1987). Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento.