1ER. CONGRESO LATINOAMERICANO DE HISTORIA ECONÓMICA IV JORNADAS URUGUAYAS DE HISTORIA ECONÓMICA MONTEVIDEO, 5-7 DICIEMBRE 2007 SIMPOSIO: 5. LAS EXPERIENCIAS DE CONSTRUCCIÓN DE “MODELOS DE BIENESTAR” EN AMÉRICA LATINA Y EL PARADIGMA DE OCCIDENTE. Coordinadores: Reto Bertoni (UDELAR - Uruguay) <[email protected]> Julio César Neffa (CEIL-PIETTE-CONICET – Argentina) Lina Galvez Muñoz (Universidad Pablo de Olavide – España) O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS) NO CONTEXTO DA CONTRA-REFORMA DO ESTADO: CONFORMANDO A REDE SOCIOASSISTENCIAL NO BRASIL* Tiago Martinelli** Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Programa de Pós-Graduação em Serviço Social Núcleo de Estudos em Políticas e Economia Social (NEPES) O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil. E-mail: [email protected]. * Este trabalho contém parte das discussões desenvolvidas na Dissertação Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) do Município de Porto Alegre: Espaços Socioocupacionais dos Assistentes Sociais? (Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=577>). O estudo está relacionado com o Projeto: O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e as Entidades e Organizações Privadas Sem Fins Lucrativos no Contexto da Contra-Reforma do Estado: Garantia de Direitos Públicos?, sob orientação da Profa. Dra. Berenice Rojas Couto, e foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil. ** Assistente Social pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Mestre e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, integrante do Núcleo de Estudos em Políticas e Economia Social (NEPES). E-mail: [email protected] 2 O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS) NO CONTEXTO DA CONTRA-REFORMA DO ESTADO: CONFORMANDO A REDE SOCIOASSISTENCIAL NO BRASIL Resumo Este artigo versa sobre a conformação de um sistema de proteção social contextualizado pela reforma do Estado no Brasil. Nele, abordam-se a temática das relações entre Estado, mercado e sociedade civil, sendo, a partir das políticas econômicas de recorte teórico neoliberal, retomado o debate dos principais movimentos políticos, econômicos e sociais dos séculos XX e XXI. Reconstitui-se a trajetória da assistência social a partir da Constituição Federal de 1988, seguida da política nacional e da implantação do Sistema Único de Assistência Social, que prevê seu ordenamento em rede, de acordo com os níveis de proteção social. Problematiza-se a ação da rede socioassistencial a partir das discussões referentes às organizações governamentais e às organizações e entidades de assistência social, de direito privado. Palavras-chave Sistema de proteção social; Estado; Sociedade Civil; Mercado; Rede Socioassistencial. THE UNIFIED SOCIAL ASSISTANCE SYSTEM (SUAS) IN THE CONTEXT OF THE COUNTER-REFORM IN THE STATE: CONFORMING THE SOCIAL ASSISTANCE NETWORK IN BRAZIL Abstract The article discusses the conformation of a social protection system that has as context the reform of the State in Brazil. There is a confluence in the themes of relationship among State, market and civil society, being since the economics politics of neoliberal theoritical format, retaked the debates of the main political, economical and social movements of the century XX and XXI. The career of the Social Assistance is reconstituted, since the Federal Constitution of 1988, after followed by the National Politics and by the implantation of the Unified Social Assistance System (SUAS), which foresee its order organized in network, according to the levels of the social protection. It is discussed the problem of the action of the social assistance network since the discussions refering to the governmental organizations and the social assistance organizations, of legal character and private rights. KEY WORDS Social Protection System; State; Civil Society; Market; Social Assistance Network. 3 1 Introdução Neste texto pretende-se apresentar perspectivas e desdobramentos sobre o sistema de proteção social brasileiro, definindo-se 1988 como o período de referência, uma vez que foi o ano de promulgação da Constituição Federal, onde estão referidos os direitos sociais — educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados — e, principalmente, onde está definida a proteção social sob a ótica da seguridade social. A focalização específica dos direitos sociais é fundamental para se entenderem a construção desse sistema no Brasil e os meios de sua materialização através das políticas sociais. Assim, serão vistas aqui as propostas de reforma do Estado no Brasil e como vem se constituindo o sistema de proteção social a partir da seguridade social. O entendimento das relações estabelecidas entre Estado, mercado e sociedade civil, embasado nas políticas econômicas de recorte teórico neoliberal, é mostrado, numa perspectiva crítica, sob a ótica dos movimentos políticos, econômicos e sociais. A política de assistência social é apresentada enquanto uma política de seguridade social não contributiva, que, desde sua implantação como direito social, vem sendo realizada através de um conjunto integrado de ações do setor público e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas da população atendida. A partir da implantação do SUAS, busca-se problematizar a conformação da rede socioassistencial, com o intuito de se fazer um paralelo com as propostas de “contra-reforma” do Estado no que se refere ao público e ao privado, enquanto espaços de contradição em que se efetivam, ou não, as políticas sociais públicas. Pondera-se, a partir de um sistema de proteção pautado na seguridade social e na participação da sociedade civil, a possibilidade de um sistema único e público de assistência social conformado por uma rede socioassistencial a partir das entidades e organizações de assistência social privadas sem fins lucrativos — contrários à proposta da “contra-reforma” —, sob preceitos democráticos, transparentes e de controle social eficaz pela sociedade e pelo Estado. O artigo divide-se em dois momentos. O primeiro, tem-se um parâmetro da reforma do Estado e a conformação da seguridade social no Brasil. No segundo, abordam-se a política de assistência social, especificando-a pelo Sistema Único de Assistência Social, e a conformação da rede socioassistencial a partir das entidades e das organizações de assistência. 4 2 A (des)constituição da seguridade social no contexto da reforma do Estado no Brasil No início dos anos de 80, o direcionamento e a transição de um regime ditatorial para o democrático começaram a ser implementados. O discurso da crise em plena mudança de regime político acabou sendo formador de uma “cultura da crise”, que nega “[...] os referenciais teóricos, políticos e ideológicos, que permitiam [...] identificar propostas e práticas diferenciadas por parte das classes subalternas [...]” (MOTA, 2005, p. 101). O contexto de ressurgimento tanto de movimentos sociais quanto da ampliação das organizações privadas sem fins lucrativos, no final dos anos 80 do século XX, estava associado à desvinculação das causas sociais da classe trabalhadora, que passou por um período de reestruturação. E, mais, a “cultura da crise” responsabilizava cada sujeito pela situação de desigualdade da sociedade. De certa forma, essas organizações privadas estavam rodeadas, política e culturalmente, por uma rede de atividades filantrópicas e do voluntariado (MOTA, 2005). Nesse mesmo cenário de crise econômica, que atingiu diretamente a classe trabalhadora, foram criados, no Brasil, o Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983, e o processo Constituinte, em 1987 e 1988. No País, a consolidação do sistema de proteção começou pela Lei Orgânica da Seguridade Social, que define esta última como “[...] um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência e à assistência social” (BRASIL, 1991). Nesse período, ainda restava um fértil espaço para a filantropia e a benemerência,1 conformando um sistema de proteção social baseado no conservadorismo e no autoritarismo estatal e no assistencialismo privado. Nesse sentido, a presença dos direitos sociais antes de 1988 é questionável, bem como os processos que passaram a ser construídos a partir da Constituição para atender à população (COUTO, 2004). O sistema de proteção no Brasil, construído pelos segmentos da sociedade que defendem a perspectiva dos direitos públicos e universais e que não chegam à sua plenitude, acabou por ser apropriado pela iniciativa privada, que, por sua vez, busca, através do discurso das práticas “solidárias” (de “ajuda”), o desenvolvimento de programas de ajuste social, com direcionamento social fragmentado e despolitizado. Ao se referir à constituição do sistema de proteção social brasileiro — apesar de se visar à universalização das políticas públicas sociais —, não se está descartando a participação institucional do privado, uma vez que o empresariado tem envolvimento na formulação das políticas. Assim, tem-se uma conformação diferenciada, por parte do empresariado, na busca da construção da sua hegemonia, que, anteriormente, pensava apenas na reprodução da força de trabalho. Mesmo as recentes iniciativas estabelecidas de regulação legal, no que concerne à área social, têm o Estado como principal financiador, apesar de haver uma “[...] tendência de complementaridade e de mixagem das ações do Estado, da sociedade civil e do mercado fomentando as ações privadas na área da seguridade social” (SILVA, 2004, p. 137). Há condições básicas para compor um sistema de proteção que vise ao estabelecimento da aplicação de um bem público pelo e ao coletivo, universal e solidário. Dessa forma, “[...] a seguridade social constitui um lócus privilegiado de processamento e mediação das contradições relacionadas às formas de geração, apropriação e distribuição de riquezas” (SILVA, 2004, p. 137-138). 1 Um aprofundamento substancial de como era constituído o sistema de proteção (organizacional, legal) desde o final do século XIX, no Brasil, pode ser encontrado na obra de Mestriner (2001). 5 Em plena transição e aprovação de mecanismos democráticos e públicos no Brasil, ao final da década de 90, constituíram-se leis que, implicadas na “contrareforma”2 do Estado, começaram a formar um arcabouço legal de descentralização das atribuições dos conselhos de políticas públicas, de redução do controle social por parte da sociedade civil e de redução considerável da gestão pública através do Estado. Essas regulamentações ampliaram a iniciativa empresarial e as prerrogativas voltadas aos fins privados. Para tanto, não foi possível sequer implementar os preceitos constitucionais, que, concomitantemente, foram criando impedimentos a tais propostas. Toda a luta do processo Constituinte, dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda e dos diversos segmentos sociais ocorreu com base em uma agenda reformista que previa os preceitos progressistas e democráticos. O que se estabeleceu nessa agenda, na verdade, foi uma proposta de “contra-reforma” do Estado. Trata-se da agenda da inserção subalterna do País na economia internacionalizada do final do século XX [...] À nova agenda, concorrem expressões tais como “ajuste estrutural”, “globalização”, “neoliberalismo”, “Estado mínimo”, dentre outras. A adaptação do Brasil à ordem mundial, nas condições impostas pelo Capital, passou a demandar, dentre outras medidas, a revisão da constituição, mas também da legislação complementar e ordinária (RIZZO, 2005). Começou a se conformar a lógica da reforma voltada aos princípios das políticas econômicas neoliberais, haja vista, por exemplo, as expressões incorporadas ao vocabulário, tais como mercado, privatização, empowerment, administração gerencial, empreendedorismo e governança. A partir dessas expressões e de outros mecanismos de informação, foi adotada pela opinião pública a idéia da necessidade de reforma, diretamente vinculada a um projeto formulado com os preceitos liberais dos países do chamado Primeiro Mundo ou desenvolvidos. A proposta de mudança considerava essencial que a sociedade civil fosse protagonista das reforma do Estado e do mercado. Retomou-se o conceito de sociedade civil enquanto “[...] a sociedade que, fora do Estado, é politicamente organizada, o poder nela existente sendo o resultado ponderado dos poderes econômicos, intelectual e principalmente organizacional que seus membros detêm” (PEREIRA, 1999, p. 71). Existia a necessidade de tornar a economia nacional mais estável, o Estado mais eficiente e mais democrático. Em relação às reformas ocorridas em alguns países da América Latina, elas retiram do Estado suas funções regulatórias, tendo sido de curta duração e promovendo privatizações, flexibilizações, a eliminação de direitos trabalhistas e aberturas comerciais. Em defesa das reformas, justifica-se que, a partir de então, as sociedades civis se organizaram e passaram a funcionar no sentido de “[...] restabelecer o papel do mercado na alocação de recursos, recuperar a capacidade fiscal, administrativa e de regulação do Estado e aperfeiçoar o próprio regime democrático, cujas limitações ainda são democráticas” (PEREIRA, 1999, p. 90). Para além de influenciar na reforma do Estado, a sociedade civil também deveria visar às transformações do mercado, dados ambos como instituições básicas: o Estado como instituição política e o mercado como instituição econômica. O protagonismo da sociedade civil diante da crise do Estado era primordial, no interesse de reformá-lo, não com o intuito de reduzi-lo, mas de fortalecê-lo, para que os “[...] governos pudessem garantir, internamente, ordem, eficiência produtiva e justiça social, de forma a tornar 2 Entende-se a reforma sistematizada através do Plano Diretor da Reforma do Estado (BRASIL, 1995), como uma “contra reforma” que, ao contrário do que pretende a proposta, “[...] se compôs de um conjunto de mudanças estruturais regressivas sobre os trabalhadores e a massa da população brasileira, que foram também antinacionais e antidemocráticas” (BEHRING, 2003, p. 281). 6 viável, no plano internacional, a afirmação dos seus interesses nacionais” (PEREIRA, 1999, p. 69). A partir do entendimento de que o Estado é incapaz de dar conta da questão social, inventa-se a sua crise estrutural e divulga-se a auto-sustentabilidade, ou manutenção, pela sociedade civil3. Dessa maneira, tem-se o fortalecimento da “[...] dicotomia entre ‘público’ e ‘privado’, caracterizando-se por público tudo o que é ineficiente, aberto ao desperdício e à corrupção, e, por privado, a esfera da eficiência e da qualidade” (SIMIONATTO, 2003, p. 281). A capacidade de rápida implementação das propostas das políticas previstas no plano diretor para a “contra-reforma” fez com que, no Brasil, a reforma defendida na Constituinte fosse descartada, isto é, não se considerou a Constituição Federal de 1988 como uma reforma democrática, que, mesmo com o poder de persuasão da retórica neoliberal, acabou demonstrando mecanismos consolidados, como os conselhos de políticas públicas e de defesa dos direitos, nas câmaras setoriais, nos orçamentos participativos e nos meios políticos, intelectuais e da sociedade civil (BEHRING, 2000, p. 45; DINIZ, 1996).4 As reformas do Estado foram sistematizadas através do Plano Diretor da Reforma do Estado (BRASIL, 1995), elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado, aprovado pela Câmara da Reforma do Estado e submetido ao Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, que o aprovou. Verifica-se que, conforme as propostas em âmbito tanto teórico como prático, dadas as limitações temporais, essa “contra-reforma” foi viabilizada através de estratégias institucional-legal (reforma do sistema jurídico e das relações de propriedade), cultural (de uma cultura burocrática para uma cultura gerencial) e de gestão pública (introdução da administração gerencial) (BRASIL, 1995). A “contra-reforma” queria romper com a burocracia, tendo por base os sistemas gerenciais do mercado, mas, “[...] na verdade, nenhuma reforma do aparelho de Estado feita sob o capitalismo tem como se objetivar contra a burocracia, em nome da superação de algum ‘defeito estrutural’ que esse modelo conteria” (NOGUEIRA, 2004, p. 42-43). O Plano previa uma implementação gradual dos seus objetivos e princípios, de maneira a “[...] não [...] esgotar a tarefa de reformar o aparelho do Estado, mas [com] o firme propósito de tornar irreversível o processo de mudança através de resultados imediatos no curto prazo, e outros de mais longo alcance nos médio e longo prazo” (BRASIL, 1995, p. 56). Conforme documentos governamentais, constituídos em plena “contra-reforma” do Estado brasileiro, as organizações sociais são estratégicas no Plano, cuja proposta é “[...] incentivar a publicização, ou seja, a produção não lucrativa pela sociedade de bens ou serviços públicos não exclusivos de Estado” (BRASIL, 1997, p. 7). Salienta-se que as organizações sociais “[...] podem ser a forma de gerir negócios públicos, que não necessitam ser estatais, em que a competitividade pode ser uma forma copiada da iniciativa privada, sem assumir os riscos desta” (OLIVEIRA, 2001, p. 146). Portanto, há um reordenamento institucional das novas organizações sociais da “contrareforma”, que passam a estar sob a égide da economia de mercado. Não se deseja um Estado fraco, pelo contrário, há necessidade de um Estado forte, com legitimidade política, capacidade de tributação, exercício do controle social, A sociedade civil, nesse, caso, está “[...] deslocada da esfera estatal e atravessada pela racionalidade do mercado, tornando-se, em última instância, espaço de articulação dos interesses de instituições privadas que controlam o Estado e negam a existência de projetos de classe diferenciados” (SIMIONATTO, 2003, p. 284). 4 Para um maior aprofundamento sobre a discussão da proposta de reforma do Estado que culmina em tais experiências, ver Diniz (1996, p. 25). 3 7 e sistema jurídico que garanta a ordem e que permita espaço privilegiado ao mercado (PEREIRA, 1999). Portanto, a idéia de redução do Estado e de ampliação e priorização do mercado tornou as sociedades latino-americanas “[...] mais tensas, violentas, inseguras e fragmentadas. Paradoxalmente, quanto mais o mercado se desvencilhou do Estado, mais se mostrou despreparado para funcionar sem um Estado” (NOGUEIRA, 2004, p. 54). Precisa-se localizar a discussão sobre as políticas sociais em um momento em que as propostas das políticas econômicas de recorte teórico neoliberal também começam a permear os espaços do Estado e da sociedade. Nesse sentido, está prevista na “contra-reforma” do Estado uma desconstituição da seguridade social, onde as atividades sociais e científicas passariam a ser privatizadas e se tornariam responsabilidade das organizações privadas, sem fins lucrativos, para a produção de bens ao mercado. Contudo, no Brasil, busca-se, através de mecanismos públicos, garantir a proposta constitucional e a efetivação dos direitos sociais, em conformidade com a seguridade social. Esse movimento pode ser elucidado pela proposta, em implantação, do SUAS. 8 3 SUAS: conformando uma rede socioassistencial a partir das entidades e das organizações de assistência social privadas sem fins lucrativos Conforme citado anteriormente, a política de assistência social é uma política de seguridade social não contributiva, direito do cidadão e dever do Estado, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas (BRASIL, 1993). Entretanto essa política tem uma trajetória histórica anterior a 1988, com a sua primeira redação vetada no Congresso Nacional, em 1990. Sua regulação, em 1993, ocorreu através da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), quando se iniciaram os processos de construção da gestão pública e participativa da assistência social, principalmente pelos conselhos deliberativos e paritários, nas esferas federal, estadual e municipal. Passada mais de uma década de avanços e retrocessos na política de assistência social, em um contexto de “contra-reforma” do Estado — onde as relações estabelecidas pelas políticas econômicas de recorte teórico neoliberal buscam a privatização das políticas sociais públicas —, o Brasil é um dos poucos países da América Latina que possui a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (BRASIL, 2004a), subsidiada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 2004), pela Lei Orgânica de Assistência Social (BRASIL, 1993). Consubstancialmente, possui a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB/SUAS) (BRASIL, 2005), privilegiada por ter sua gestão amparada em planos e fundos de assistência social, sendo democraticamente gerida por conselhos deliberativos, programas, projetos, benefícios, serviços e por políticas da área. O SUAS representa a centralidade do Estado nas políticas sociais perante a “contra-reforma”. O País tem uma gama de serviços voltados à área social, que conformam um sistema economicamente centralizado no Estado, sendo o setor privado mais um espaço para a execução dessas ações. O sistema começou a ser pensado a partir do final de 2003, na IV Conferência Nacional de Assistência Social, que tinha como principal deliberação sua construção e implementação. Um ano depois, tornou-se pública a PNAS (BRASIL, 2004a), que visa, na perspectiva de implementação do SUAS, se reconstruir coletivamente (BRASIL, 2005). A implantação do SUAS foi em julho de 2005, quando o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) aprovou a Norma Operacional Básica do SUAS, estabelecendo um conjunto de regras que disciplinam a operacionalização da assistência social. Esse sistema integra uma política nacional que prevê uma organização participativa e descentralizada da assistência social. Baseado em critérios e procedimentos transparentes, o sistema altera fundamentalmente operações como o repasse de recursos federais para estados, municípios e o Distrito Federal, a prestação de contas e a maneira como serviços e municípios estão hoje organizados (BRASIL, 2005). Destaca-se que a política de assistência não pode ser entendida como uma “[...] política exclusiva de proteção social, mas articula seus serviços e benefícios aos direitos assegurados pelas demais políticas sociais, a fim de estabelecer, no âmbito da seguridade social, um amplo sistema de proteção social” (BOSCHETTI, 2005, p. 12). O SUAS continua incorporando as entidades da sociedade civil e a partir delas, passa a formar uma rede socioassistencial privada sem fins lucrativos. Foi com a regulamentação do artigo 3° da Loas (BRASIL, 2005a), que se definiram quais as organizações que perfilariam a assistência social, mas ainda não o suficiente para que 9 essas organizações adiram aos princípios pautados pela Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2004a). Sabe-se que a decisão ao nível da formulação das políticas públicas não prescinde da rede privada, mas é necessário que, como política pública regule claramente essa relação de modo a submetê-la também ao controle social. É neste sentido que a prática na relação público/privado vai além do texto legal e do papel regulador do Estado sobre os serviços prestados. (BATTINI, 1999, p. 38-9). Para as instituições de assistência social estarem aptas e poderem ser incorporadas pelo SUAS, necessitam caracteriza-se como entidades e organizações de assistência social, conforme as seguintes exigências: — ser pessoa jurídica de direito privado, associação ou fundação, devidamente constituída, conforme disposto no art.53 do Código Civil Brasileiro e no art. 2º da LOAS; — ter expresso, em seu relatório de atividades, seus objetivos, sua natureza, missão e público, conforme delineado pela LOAS, pela PNAS e suas normas operacionais; — realizar atendimento, assessoramento ou defesa e garantia de direitos na área da assistência social e aos seus usuários de forma permanente, planejada e contínua; garantir o acesso gratuito do usuário a serviços, programas, projetos, benefícios e à defesa e garantia de direitos previstos na PNAS, sendo vedada cobrança de qualquer espécie; — possuir finalidade pública e transparência nas suas ações, comprovada por meio da apresentação de planos de trabalho, relatórios ou balanço social de suas atividades ao conselho de assistência social competente; aplicar suas rendas, seus recursos e eventual resultado operacional integralmente no território nacional e na manutenção e no desenvolvimento de seus objetivos institucionais. Não se caracterizam como entidades e organizações de assistência social as religiosas, os templos, os clubes esportivos, os partidos políticos, os grêmios estudantis, os sindicatos, e as associações que visem somente ao benefício de seus associados, ou que dirijam suas atividades a um público restrito, categoria ou classe. (BRASIL, 2005a). O Sistema Único de Assistência Social, com a descentralização, permite autonomia aos municípios para organizarem sua rede de proteção social, mas fiscalizados, principalmente, pelos respectivos conselhos de assistência social. No sentido da participação e da efetivação democrática, a inclusão e a manutenção das entidades assistenciais privadas pelo sistema são realidade, sendo que um dos principais motivos pelos quais as parcerias se estabelecem é a necessidade de execução dos serviços, projetos e programas. Essas ações são interligadas e organizadas com o objetivo de desenvolver atenções específicas à parcela da população que necessita da ação estatal para o provimento de necessidades consideradas básicas. Essas parcerias das prefeituras municipais5 com instituições privadas, organismos internacionais e organizações não-governamentais são para a execução de programas na área de assistência social. Nesse sentido, são as prefeituras que têm a possibilidade de articular várias ações para promover o desenvolvimento social, já que são os principais elos com 5 Dos 5 564 municípios brasileiros, 1.352 (24,3%) informaram possuir legislação municipal específica que trata de convênios e parcerias na área de assistência social. Desse total de municípios com legislação específica, quase a metade (48,4%) está situada na Região Sudeste, sendo São Paulo o estado que apresenta o maior número de prefeituras com regulamentação municipal sobre convênios na área. Dos 645 municípios paulistas, 469 (72,7%) informaram ter esse instrumento legal (INSTITUTO BRASILEIRO..., 2006, p. 71). 10 as comunidades para concretizar as ações dos programas (INSTITUTO BRASILEIRO..., 2006). Por outro lado, a política de assistência social é vista como potencial para o ganho de votos nas eleições, espaço de benemerência, ajuda ou de programas de governo. Esta análise não se refere somente à assistência social, mas a todas as políticas sociais criadas pelos governos com base nas políticas econômicas de recorte teórico neoliberal tardiamente implementadas no Brasil e que, “[...] além de periféricas, [...] foram mais expressivas nos períodos ditatoriais do que nos democráticos, o que põe em relevo o fato de que, por longos períodos, tais políticas se processaram na contramão dos direitos de cidadania” (PEREIRA, 2004, p. 152). O SUAS surgiu justamente com a proposta de erradicar o assistencialismo e o paternalismo que se estabelecem nos espaços de gestão da assistência social, voltado à necessidade de uma explicitação coerente do conceito de público, que [...] supere a dicotomia entre o privado e o estatal, como expressão das relações democráticas, transparentes, publicizadas, controladas socialmente. Mas que, ao mesmo tempo, não dilua as responsabilidades estatais nem os limites a serem fixados, que impeçam a indevida apropriação do público pelos interesses privados (RAICHELIS, 2000, p. 120). Coerentemente com a proposta e o entendimento desse sistema ser único, a base conceitual de rede socioassistencial referida advém da Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (BRASIL, 2005), sendo um conjunto integrado de ações da iniciativa pública e da sociedade que ofertam e operam benefícios, serviços, programas e projetos. Isso supõe a articulação entre todas essas unidades de provisão de proteção social básica e especial e por níveis de complexidade. Essa rede6 prevê sua organização a partir de parâmetros como: — a oferta, de maneira integrada, de serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social para a cobertura de riscos, vulnerabilidades, danos, vitimizações, agressões ao ciclo de vida e à dignidade humana e à fragilidade das família; — um caráter público de co-responsabilidade e complementariedade entre as ações governamentais e não-governamentais de assistência social, evitando paralelismo, fragmentação e dispersão de recursos; — uma hierarquização da rede pela complexidade dos serviços e abrangência territorial de sua capacidade em face da demanda; — uma porta de entrada unificada dos serviços para a rede de proteção social básica, por intermédio de unidades de referência, e para a rede de proteção social especial, por centrais de acolhimento e controle de vagas; — uma territorialização da rede de assistência social sob o critério de oferta capilar de serviços, baseada na lógica da proximidade do cotidiano de vida do cidadão; — uma localização dos serviços para desenvolver seu caráter educativo e preventivo nos territórios com maior incidência de população em situação de vulnerabilidade e risco social; — um caráter contínuo e sistemático, planejado com recursos garantidos em orçamento público, bem como com recursos próprios da rede nãogovernamental; 6 A rede socioassistencial, com base no território, constitui um dos caminhos para superar a fragmentação na prática dessa política, o que supõe constituir ou redirecionar essa rede, na perspectiva de sua diversidade, complexidade, cobertura, financiamento e do número potencial de usuários que dela possam necessitar (BRASIL, 2005, p. 18). 11 — uma referência unitária, em todo o território nacional, de nomenclatura, conteúdo, padrão de funcionamento, indicadores de resultados de rede de serviços, estratégias e medidas de prevenção quanto à presença ou ao agravamento e à superação de vitimizações, riscos e vulnerabilidades sociais. Em sua essência, o SUAS regula e organiza a rede socioassistencial da assistência social pública e das entidades privadas, assumidas, então, como sendo dessa política. A perspectiva que se busca delinear é justamente a de incorporar as entidades e as organizações de assistência social ao sistema e às políticas, com critérios públicos. Não significa que os serviços sociais sejam privatizados ou terceirizados, [...] mas [...] ampliar as ações do Estado através de aportes técnicos e financeiros – assegurada à direção político-programática – a organizações sociais privadas, de decisiva contribuição pela capilaridade de sua presença no território municipal e pela inserção nas realidades locais [...] (SILVA, 2004, p. 181). A assistência social deve ser entendida como mais um espaço de conquista de direitos em disputas estabelecidas entre Estado e sociedade civil, ou seja, a assistência enquanto política de direitos “[...] não comporta leituras unívocas e deve ser apreendida na trama das relações sociais que lhe dão sentido e direção. [...] tem-se configurado como campo de luta no qual são engendrados e contrapostos diferentes valores e concepções, conquistas e concessões, avanços e retrocessos” (RAICHELIS, 2000, p. 162). Destacam-se ainda, os instrumentos tecnológicos de informação para garantir eficiência, agilidade e transparência ao Sistema Único de Assistência Social. Um desses instrumentos é o sistema de cadastro informatizado da rede socioassistencial — governamental e não governamental —, visando identificar as entidades da rede pública e as co-financiadas da rede privada, sem fins lucrativos. Ele também dispõe de informações referentes a padrões de atendimento da rede de proteção socioassistencial (BRASIL, 2007). Para tanto, defende-se a formação de uma rede socioassistencial que se estruture a partir de “[...] iniciativas do poder público e da sociedade civil, com primazia do Estado, para o cumprimento das funções de proteção por níveis de complexidade [...]” (COLIN; SILVEIRA, 2007, p. 157). Essa rede socioassistencial, composta inclusive pelas entidades e organizações de assistência social, está conformada para efetivar os direitos sociais determinados no Sistema Único de Assistência Social. Portanto, a implantação do SUAS deve mover toda a sociedade, através de serviços, programas e benefícios, em torno dos três âmbitos de governo: federal, estadual e municipal. 12 Considerações finais O sistema de proteção social, através da seguridade social, materializou-se legal e institucionalmente neste século XXI, em conformidade com as políticas econômicas de recorte teórico neoliberal propostas através das reformas estabelecidas no final do século XX. A legalidade estabelecida regula as relações entre sociedade e Estado, na perspectiva de atender à lógica do mercado, configurando-se na abertura dos cofres públicos, com a mínima participação da sociedade nas decisões e no direcionamento da aplicação das verbas para a gestão privada, ou seja, ocorre um retorno (através dos impostos e incentivos fiscais) financeiro para a iniciativa privada aplicar o recurso público em projetos sociais, ambientais e culturais. No Brasil, a desconstituição dos direitos sociais vem sendo assumida pelas práticas utilitárias e ao se repassar à sociedade civil atribuições centradas e de responsabilidade do Estado. Essas práticas ganham corpo através das instituições privadas sem fins lucrativos, que acabam por se utilizar de estratégias econômicas para se manterem. O preceito da “contra-reforma” de atender aos privilégios do mercado reduz o poder do Estado e amplia as responsabilidades da sociedade civil, que acaba por ser culpada pela situação de desigualdade, que aumenta, a cada ano, no País. O direcionamento vislumbrado pela “contra-reforma” era de redução da intervenção estatal nos processos sociais e de amplos investimentos nos mercados financeiros. Pelos primeiros, responsabiliza-se a sociedade, e, aos últimos, aplica-se a fórmula dos organismos internacionais. Em um contexto de fragmentação das políticas, a assistência social compõe o tripé da seguridade social junto da saúde e da previdência social. Dessa forma, qualifica-se o Estado e suas funções referentes ao social e a sociedade enquanto participante de avaliações, discussões e decisões. A política de assistência social é a política de seguridade social não contributiva que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento dos cidadãos. Para tanto, a relação possibilitada pelo SUAS de promover a participação da sociedade civil através das entidades e das organizações de assistência social permite algumas indagações a respeito da potencialidade ou da redução do papel do Estado. Ou seja, os mecanismos consolidados da Política Nacional de Assistência Social em um contexto de “contra-reforma” do Estado, com seus mecanismos reguladores e seus marcos legais, passam a confluir para a efetivação dos direitos sociais. O essencial é não substituir os interesses coletivos públicos pelos individuais privados, ou seja, deve-se levar em conta a totalidade do social, não fragmentando as ações, mas, sim, fortificando os espaços públicos para a concretização de uma hegemonia voltada aos princípios democráticos e universais. Contudo afirma-se que o Estado continua sendo central no que se refere ao financiamento do social, confirmando-se como mais um produto de luta pelos direitos, o Sistema Único de Assistência Social. 13 Referências BATTINI, Odária (1999) Construindo o método. Das referências teóricometodológicas. In. BATTINI, Odária (org.). Assistência Social: constitucionalização, representação, práticas. São Paulo: Veras. BEHRING, Elaine Rossetti (2003) Brasil em contra-reforma. Desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez. BEHRING, Elaine Rossetti (2000) Reforma do Estado e Seguridade Social no Brasil. 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