ENTRE O “VELHO” E O “NOVO”: UM ESTUDO SOBRE A AÇÃO PROFISSIONAL DO(A) ASSISTENTE SOCIAL NA SAÚDE MENTAL Between the "old" and the "new": a study about that action professional of social worker in mental health Yanne Angelim Acioly1; Maria Glaucíria Mota Brasil2 RESUMO O presente trabalho trata de um estudo acerca da atuação profissional do(a) assistente social no campo da saúde mental. Tem como objetivo compreender se o Movimento de Reforma Psiquiátrica configura-se como redefinição da ação profissional do (a) assistente social. A pesquisa teve como campo empírico um dos Centros de Atenção Psicossocial do município de Fortaleza. Para levantamento de dados foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com as assistentes sociais, alguns profissionais de outras categorias e usuários da instituição. A observação direta e o diário de campo foram recursos complementares importantes. O referencial teórico utilizado sobre “loucura” e a profissão de Serviço Social foi instrumento significativo para aprofundar meus conhecimentos sobre o assunto abordado, bem como, para a análise dos depoimentos dos sujeitos da pesquisa. O estudo revelou que a ação profissional das assistentes sociais da instituição oscila entre o “velho” e o “novo” paradigmas de atenção em saúde mental, isto é, ora apresentam uma prática pautada no modelo tradicional, centralizado na perspectiva da doença e negando a condição de cidadão do usuário, ora atuam em consonância com a proposta inovadora da Reforma Psiquiátrica, entendendo o portador de transtorno mental como sujeito social. Palavras-chave: Loucura, reforma psiquiátrica, Serviço Social ABSTRACT The present work treats of a study concerning the performance professional of social worker in the field of the mental health. It has as objective understands the Movement of Psychiatric Reform if it is configured as redefination of the action professional of social worker. The research had as empiric field one of the Centers of Atention Psychosocial of the municipal district of Fortaleza. For rising of data interviews were accomplished semi-structured with the social workers, some professionals of other categories and users of the institution. The direct observation and the field diary were important complemental resources. The theoretical referencial used about "madness" and the profession of Social Service was signification instrument to deepen my knowledge about the approached subject, as well as, for the analysis of the depositions of the subject of the research. The study revealed that the action professional of the social workers on the institution oscillates between the "old" and the "new" paradigms of attention in mental health, that is, for now present a ruled practice in the traditional model, centralized in the perspective of the disease and denying the user's citizen's condition, for now they act in consonance with the proposal innovator of the Psychiatric Reform, understanding the bearer of mental upset as social subject. keywords: Madness, reforms psychiatric, Social Work. 1 Assistente Social, mestranda em Políticas Públicas e Sociedade / UECE, membro do Laboratório de Direitos Humanos, Ética e Cidadania (LABVIDA) da UECE. E-mail: [email protected]. 2 Professora Doutora do Departamento de Métodos e Técnicas em Serviço Social/UECE e do Mestrado de Políticas Públicas e Sociedade/UECE. E-mail: [email protected]. 1 INTRODUÇÃO A experiência de pesquisar é complexa, uma vez que envolve o processo de conhecimento do real, permeado por cores e formas diversas, por uma riqueza de teias de relações e linguagens até mesmo indizíveis. O trabalho investigativo, portanto, exige que o pesquisador esteja atento ao movimento contínuo da realidade, às condições concretas, bem como, às relações estabelecidas entre estas e os sujeitos sociais, atentando ainda para os seus significados. Considerando-se que conhecer algo, também, é uma forma de desconhecê-lo, ninguém conhece a totalidade, mas fragmentos delimitados dessa totalidade imensurável. Investigar e refletir criticamente a ação concreta dos trabalhadores de uma determinada categoria é um exercício complexo, que exige atenção não somente para a realidade objetiva com a qual está relacionada tal ação, mas também para a subjetividade inerente a esses trabalhadores que a desenvolvem em seus espaços sócio-ocupacionais. No âmbito do Serviço Social mais especificamente, o caráter interventivo historicamente esteve sobreposto a dimensão da pesquisa, da produção do conhecimento, o que nos últimos anos tem se modificado, sendo inclusive tema de discussão de alguns teóricos da categoria3. Iamamoto (2000: 273) destaca que a preocupação com a pesquisa no Serviço Social apresentou-se de forma mais veemente a partir da década de 80, inclusive com a realização de vários encontros nacionais promovidos pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social, envolvendo estudiosos e pesquisadores em Serviço Social. Martinelli (1999) situa a experiência da pesquisa em Serviço Social como importante aliada à construção de uma prática articulada a intenção de ruptura, de superação do que denomina identidade atribuída4, uma vez que aquela oportuniza a construção de práticas em consonância com as demandas socialmente postas. Daí, destaca-se a relevância que a pesquisa apresenta no que diz respeito ao fomento de práticas sociais transformadoras. 3 A respeito da pesquisa em Serviço Social, Iamamoto (2000: 273) assinala que esta constitui atividade privilegiada para a solidificação dos laços entre o ensino universitário e a realidade social e para a soldagem das dimensões teórico-metodológicas e prático-operativas do Serviço Social, indissociáveis de seus componentes ético-políticos. 4 Aqui a autora se refere à identidade atribuída ao Serviço Social pelo Capitalismo quando da racionalização da assistência como garantia de expansão do capital nos séculos XIX e XX. Para aprofundamento dessa discussão, consultar outra obra da mesma autora intitulada Serviço Social: identidade e alienação. São Paulo: Cortez, 1993. Ainda no que tange a experiência investigativa, cabe ressaltar que a pesquisa não se dá por acaso. Emerge inclusive relacionada a uma dimensão filosófica, por que não dizer, de questionamento, diante da realidade. E assim como ocorre com o ato de pesquisar, a definição do objeto a ser investigado também não acontece como um “passe de mágica”. Nesse sentido, cabe revelar nesse espaço os meandros e questionamentos que me conduziram a este estudo, enfim, é oportuno destacar ainda que brevemente, a trajetória que resultou no objeto desta pesquisa. O meu interesse por estudos no campo da saúde mental está atrelado à experiência acadêmica no curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará, a qual possibilitou, a partir da leitura da obra de Foucault intitulada História da loucura na idade clássica (1999), todo um esforço investigativo nessa área. A dedicação a esse campo de estudo tornou-se mais veemente quando da minha experiência de estágio no período de agosto/1999 a agosto/2002 numa instituição especializada em psiquiatria localizada em Fortaleza. A vivência no campo de estágio possibilitou aproximação com as discussões em torno da proposta de Reforma Psiquiátrica e questionamentos acerca da ação profissional dos assistentes sociais frente a essa proposta, o que culminou na realização da pesquisa que subsidiou o trabalho monográfico no qual se baseia este artigo. Todo essa trajetória, portanto, propiciou a opção em problematizar e investigar a respeito da ação profissional do assistente social diante do processo de Reforma Psiquiátrica como objeto central deste estudo. A monografia intitulada Entre o “velho” e o “novo”: um estudo sobre a ação profissional do(a) assistente social na saúde mental, foi estruturada em quatro capítulos. O primeiro capítulo versa sobre a experiência de pesquisar, momento no qual revelo a trajetória que resultou no objeto deste estudo, bem como, o percurso metodológico utilizado para a sua realização, discorrendo ainda a respeito do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) vinculado à Secretaria Executiva Regional III, do município de Fortaleza, campo empírico da pesquisa. No segundo capítulo recorri à história como importante recurso à experiência investigativa, abordando concepções socialmente construídas acerca do que se convencionou chamar loucura, bem como, sobre o advento do percurso de sua institucionalização e a posterior inserção do Serviço Social no campo da saúde mental. Ainda nesse segundo momento, através de um breve “passeio”, tratei de contextualizar o Movimento de Reforma Psiquiátrica no mundo, no Brasil e no estado do Ceará. No terceiro capítulo discuti a respeito da chamada loucura e da institucionalização do ser convencionalmente chamado de louco, bem como, estabeleci um debate em torno da Reforma Psiquiátrica. Para tanto dialoguei com autores, estudiosos desses temas e com os sujeitos pesquisados. No quarto capítulo discorri sobre o cotidiano de trabalho das assistentes sociais na instituição, discutindo a respeito de como se processam suas ações, considerando os objetivos, sentidos e dificuldades, objetivando perceber se o Movimento de Reforma Psiquiátrica configura-se como redefinição da ação profissional do(a) assistente social. É oportuno salientar, que o Movimento de Reforma Psiquiátrica estabelece uma crítica ao modelo de psiquiatria tradicional (segregador) e propõe a extinção dos hospitais psiquiátricos e a progressiva substituição destes por outros espaços de atenção, não mais pautados na segregação, mas no investimento da construção da autonomia dos sujeitos portadores de sofrimento psíquico, visando, sobretudo, a possibilidade de que estes construam novas sociabilidades. Partindo dessa compreensão, supus que os profissionais da área, inclusive o assistente social, eram requisitados a assumir também novos posicionamentos e novas atribuições. E isso me direcionou a indagação central desta investigação: O Movimento de Reforma Psiquiátrica configura-se como redefinição da ação profissional do assistente social no campo da saúde mental? No intuito de obter tal resposta, elaborei algumas questões norteadoras, envolvendo os seguintes aspectos: a concepção do assistente social em relação à chamada loucura e à Reforma Psiquiátrica; suas ações cotidianas de intervenção junto aos usuários, aos familiares destes usuários e à equipe interdisciplinar na qual está inserido. Na discussão dessa temática, vale destacar as importantes contribuições de Foucault (1999)5, ao evidenciar o processo histórico de institucionalização da loucura, o nascimento do asilo no século XVIII e o surgimento da psiquiatria que tomou a doença mental (até então, denominada de “loucura”) como seu objeto. Foucault (1999) foi um perscrutador, um arqueólogo em busca de levantar a história que constitui a interdição, a separação “normais”, “anormais”, a “divisão incessante e sempre modificada”. Em sua obra História da loucura na idade clássica preocupou-se em evidenciar, no contexto da época, as concepções a respeito da “loucura”, bem como, a divisão constante e multifacetária entre o ser que se convencionou denominar louco e os ditos “normais” através da intervenção de instituições de reclusão. 5 Foucault, M. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1999. Importantes contribuições ainda para se pensar as instituições, agora de forma mais aproximada de seu cotidiano, e as relações que se estabelecem em seu interior podem ser encontradas em análises de Goffman (2001) 6, o qual além de realizar uma crítica ao cotidiano interno dessas instituições, assinala o que representa a segregação para os institucionalizados, isto é, a expropriação da condição de sujeito social dos internados. No que concerne mais especificamente a ação profissional do(a) assistente social no campo da saúde mental, Vasconcelos (2000)7 oferece significativas contribuições quando, ao retroceder um pouco na história, assinala aspectos relevantes acerca da própria inserção do Serviço Social na área. Partindo das análises desse autor, o trabalho do assistente social no campo da saúde mental teve início sob uma perspectiva extremamente “ajustadora”. O sentido da ação profissional era de “adaptar os indivíduos desajustados”, “adequar” seu comportamento aos padrões socialmente estabelecidos, melhorar o seu “funcionamento”, possibilitando um “convívio harmônico” no âmbito familiar e por que não dizer, na sociedade em geral. Com relação ao Movimento de Reforma Psiquiátrica, parti da compreensão de Amarante et al (1995: 87)8 que o define como... um processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. É oportuno salientar que também utilizei como referência a concepção de Birman (1992), segundo o qual, a Reforma Psiquiátrica está para além da discussão sobre a assistência psiquiátrica, objetivando a construção de um outro lugar social para a chamada loucura. A respeito desse lugar, Amarante (1999: 49)9 complementa ao especificar: [u]m lugar social que não seja o da doença, anormalidade, periculosidade, irresponsabilidade, insensatez, incompetência, incapacidade, defeito, erro (...). As concepções e análises desses e de outros autores, articuladas aos discursos dos sujeitos entrevistados, permearam todo o processo investigativo e foram relevantes 6 Goffman, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2001. Vasconcelos, E. M. (org.) et al. Saúde mental e Serviço Social: o desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2000. 8 Amarante, P. D. de C. (Coord.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995. 9 ________________. Manicômio e loucura no final do século e do milênio. In Fernandes, M. I. A.; Scarcelli, I. R.; Costa, E. S. (orgs.). Fim de século: ainda manicômios? São Paulo: Instituto de Psicologia da universidade de São Paulo, 1999. 7 para alcançar o objetivo central deste estudo: revelar se o Movimento de Reforma Psiquiátrica configurava-se como redefinição da ação profissional do(a) assistente social no campo da saúde mental. 2 METODOLOGIA Inicialmente, pensei em tomar o hospital psiquiátrico no qual vivenciei a experiência de estágio como campo empírico dessa pesquisa, afinal, foi ali onde primeiro ouvi falar em Reforma Psiquiátrica, entretanto, acabei optando por um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)10 localizados no município de Fortaleza como o universo amostral mais indicado, uma vez que se trata de um dos chamados serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos referendado pela Reforma Psiquiátrica. Esses Centros caracterizam-se por um atendimento de caráter extra-hospitalar (não segregador), devendo constituir-se de uma equipe interdisciplinar na qual está inserido o(a) assistente social. Comungando com a compreensão de Haguette (2001: 101) de que (...) o problema sob investigação é que dita o método de investigação, a partir dos questionamentos existentes, julguei ser a pesquisa qualitativa o método que mais se aproximava das necessidades deste estudo, pois esse, conforme Minayo (2001: 22), ... aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas, o que possibilitaria, portanto, a aproximação com elementos mais profundos das relações pertinentes ao objeto investigado. Embora o fulcro de meu estudo fosse a atuação dos assistentes sociais, acreditei ser impossível responder à minha indagação central desconsiderando outros atores envolvidos diretamente com a ação desse profissional. Foi então, que decidi considerar também os usuários e os demais profissionais que constituem a equipe técnica do CAPS, afinal, como lembra Martinelli (1999: 12), [o] construtor da prática não é apenas o profissional que a realiza, mas sim o conjunto dos sujeitos que, articuladamente com o assistente social, dão vida e concretude à prática. No tocante aos usuários, procurei perceber alguns aspectos relacionados à suas histórias de vida, considerando possíveis experiências de internações em hospitais psiquiátricos; suas percepções em relação à atenção que lhes é destinada no CAPS e ao trabalho ali desenvolvido pelo Serviço Social; e ainda, sobre o relacionamento que 10 Atualmente, o município de Fortaleza conta com apenas três CAPS. Tomei como campo empírico o pioneiro, inaugurado em 1998, vinculado ao Hospital Universitário Walter Cantídio (UFC). estabelecem especificamente com os trabalhadores desta categoria. Também considerei suas concepções acerca da chamada loucura e da Reforma Psiquiátrica. Junto aos trabalhadores que, com os assistentes sociais, compõem a equipe técnica, além de investigar aspectos mais gerais referentes à própria dinâmica institucional, procurei identificar suas concepções acerca da chamada loucura, da Reforma Psiquiátrica, bem como, dos usuários atendidos no CAPS. Outro aspecto que busquei perceber foi como cada profissional compreendia a atuação da sua categoria na equipe, considerando também suas atividades cotidianas. Para a obtenção das informações junto aos assistentes sociais e aos outros segmentos acima referidos, utilizei a técnica da entrevista semi-estruturada, uma vez que esta, por constituir-se de um roteiro previamente elaborado pelo pesquisador, favorece a diminuição das possibilidades de distanciamento entre as informações do entrevistado e o objetivo central da pesquisa. Realizei, ao todo, dezessete entrevistas11, sendo nove junto aos usuários, três às assistentes sociais, uma à coordenadora administrativa da instituição e uma junto a um representante de cada uma das demais categorias, isto é, enfermeiro, psicólogo, psiquiatra e terapeuta ocupacional. A partir do entendimento de que o contato direto com o campo empírico e com os sujeitos da pesquisa oferece ao pesquisador informações que superam o previsto no roteiro de entrevista, a utilização apenas deste instrumento mostrou-se insuficiente à realização desse estudo, portanto, utilizei, também, a técnica de observação direta e o diário de campo como recursos complementares imprescindíveis. A observação porque se constitui numa aproximação direta do pesquisador com o fenômeno em estudo, valorizando o próprio contexto em que as relações entre os sujeitos sociais se estabelecem. Foi utilizada por permitir ainda a percepção de informações não verbalizadas pelos entrevistados, mas de relevância ao processo de tentativa de desvendamento do real. O diário de campo também se revelou um recurso complementar importante, uma espécie de outro “olhar”, agora meu, como pesquisadora, em relação às informações dos entrevistados e ao cotidiano do trabalho das assistentes sociais junto aos usuários e equipe interdisciplinar. 11 Na realização da maioria das entrevistas utilizei gravador, sendo que apenas três dos entrevistados não permitiram a gravação, desta maneira utilizei apenas anotações no diário de campo. Vale destacar que utilizei nomes fictícios para identificar os usuários e os profissionais entrevistados na pesquisa que subsidiou o presente trabalho. É imprescindível frisar também a importância da pesquisa bibliográfica a qual permeou todo o processo deste estudo, inclusive os momentos de coleta e análise de dados, refutando assim, a falsa idéia de dicotomia entre teoria e prática. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS No intuito de compreender se o Movimento de Reforma Psiquiátrica configura-se como redefinição da ação profissional do(a) assistente social no campo da saúde mental, me propus a entender as concepções deste profissional em relação à “loucura” e à Reforma Psiquiátrica, bem como, a perceber como se configurava seu cotidiano de trabalho na instituição. Entre as assistentes sociais entrevistadas há um consenso de que o termo loucura é preconceituoso, estigmatizante. O consenso se desfaz, um pouco, quando há quem substitua o termo por doença mental (relacionada ao modelo médico tradicional e a medicalização da sociedade) ou quando alguém assume uma postura de questionamento frente à suposta loucura, relacionando-a a padrões sociais, definindo-a como uma invenção social. Nesse sentido, os discursos abaixo merecem destaque: Falar de loucura eu acho que já é um termo que já vem imbuído de muito preconceito, de muito estigma, por conta da própria construção que se deu ao longo do tempo. Então, eu procuro trabalhar, eu acho que é o que a gente vem buscando, trabalhar, cientificisar um pouco o termo, né. Trabalhar a perspectiva da doença, dos transtornos e encarar o paciente como aquele portador de sofrimento psíquico e que, portanto, independente do nível e do quadro que ele apresente, ele é antes de qualquer coisa, um cidadão, que merece a atenção especializada (Clara, assistente social, depoimento concedido em 05/11/02). Acho muito pesado chamar alguém de louco, é muito pesado esse estigma, rebaixa muito o ser humano. (Ana, assistente social, depoimento concedido em 06/11/02). ... até que ponto há loucura no ser que se convencionou a chamar louco? Será que eu sou normal? O que é isso de normal? Esses padrões criados pela sociedade ... (Sofia, assistente social, depoimento concedido em 07/11/02). Eu acho que a loucura é uma invenção social. A loucura está, na história da humanidade, ela tá sempre vinculada a paradigmas sociais e a rótulos sociais. Então, na verdade essa denominação não é isolada de um contexto, não é. Não existe o louco de todo o gênero (...). A sociedade é que faz o louco de todo o gênero (...). Então, a loucura tá vinculada a estigmas sociais, a paradigmas sociais criados ao longo da história da humanidade(...). Então, o significado da loucura pra mim é relativo, (...) é muito mais social, muito mais dentro de uma estrutura sociopolítica e econômica e cultural de cada sociedade (Andréa, assistente social, depoimento concedido em 11/11/02). As assistentes sociais demonstraram uma compreensão mais ampla a respeito da Reforma Psiquiátrica se comparada a de alguns outros profissionais da equipe, também, entrevistados, pois diferente destes, conseguem percebê-la para além de um processo de desospitalização e viabilização de novos serviços, identificando sua dimensão histórica, política e cultural, sua perspectiva de ruptura com o modelo tradicional segregador. Isto pode ser identificado nos depoimentos a seguir: ... Fortaleza é um exemplo das contradições e dos entraves que a Reforma vem apresentando e dos desafios pra superar esse modelo que tá aí, porque não depende simplesmente de ações pontuais, depende de uma ação efetiva, interesse político (...) Eu acho que a Reforma tá se construindo e agora que ela tá se segmentando pela sociedade porque o ranço histórico foi construído há séculos e séculos, então, tem esse peso muito forte da configuração do próprio conceito de loucura, das formas de atenção ao portador de transtornos mentais, enfim, então, não se rompe com um estigma, todo um processo cultural da noite pro dia. (Clara, assistente social, depoimento concedido em 05/11/02). A Reforma Psiquiátrica, quando você pega os livros, quando você vai para o campo teórico, ela é algo brilhante, é algo que chega a ser emocionante. Acredito que nos países onde a coisa se configurou, já se consolidou é algo louvável. Só que ainda nos países subdesenvolvidos como o caso do Brasil, na região Nordeste e mais especificamente no caso do Ceará, é algo que está, acho que tá no campo do nascedouro, começando agora, a gente tem muita coisa a conquistar, Temos aí o quê? Hospitais psiquiátricos, não é? Não há uma boa vontade por parte dos políticos, do poder de um modo geral, dos donos de hospitais (...). Então, eu acho que precisa mudar muita coisa. Desde a formação das pessoas que lidam com o doente mental, desde uma reeducação na sociedade de modo que o poder político, as forças políticas, consigam dar um encaminhamento de uma forma mais qualitativa pra saúde mental, por que só essa historinha de estar fazendo CAPS, a gente fingir que com um CAPS a gente vai dar conta da questão da loucura, sem mais nada, sem apoio da sociedade. Precisa que se mobilize a sociedade no sentido de fazer com que ela entenda o que é a questão da saúde mental, o que foi, o que está sendo. É preciso envolver a sociedade nesse processo. (Sofia, assistente social, depoimento concedido em 07/11/02). A Reforma Psiquiátrica ainda está longe de acontecer, por que mesmo assim com o trabalho de CAPS, muitos pacientes ainda são internados, porque eu acho que é gente demais pra poucos profissionais darem conta, não sabe? Pra que isso não aconteça, fica um volume de trabalho muito grande em cima da gente e fica difícil dá conta. É assim que eu sinto, ainda está muito longe, pela última Conferência Municipal de Saúde Mental, daqui uns dez anos acabariam todos os hospitais psiquiátricos e eu acho que isso aí de acabar os hospitais psiquiátricos é uma utopia, eu acho uma utopia acabar de fato, de passar a ser todo o serviço a nível ambulatorial e a nível de CAPS. Eu acho que isso é uma ilusão. (Renata, terapeuta ocupacional, depoimento concedido em 05/11/02). A partir do cotidiano de trabalho das assistentes sociais constatei a suposição de que a Reforma Psiquiátrica solicita dessas profissionais novos posicionamentos, mas também ficou evidente que isto não significa que não existam ranços de posturas tradicionais. A utilização do “atestado social” na atividade “balcão da cidadania” é um exemplo disso. Demonstra que as assistentes sociais da instituição continuam assumindo a postura de “fiscalizadoras da pobreza”, fato que além de expor o usuário a uma situação humilhante, fere sua condição de cidadão, isto é, de sujeito social. É importante observar o discurso de uma das assistentes sociais ao explicar a uma usuária acerca de tal documento: ... esse atestado é feito pelo assistente social e é tão importante quanto o atestado médico porque retrata a situação social, enquanto o do médico trata sobre a doença, o problema psíquico (depoimento concedido em 14/10/02). Assim como é comum nos hospitais psiquiátricos, percebi que no CAPS/ SER III o usuário também é chamado de “paciente”, inclusive pelas assistentes sociais, embora estas, ao mesmo tempo, se refiram à importância de se fomentar a autonomia desse “usuário-paciente”. Esse termo “paciente”, na minha compreensão, nega a condição de sujeito social do usuário e, portanto, não é compatível com a perspectiva da autonomia, da cidadania, uma vez que esta inexiste na ausência de sujeitos sociais. A hipótese de que a Reforma Psiquiátrica solicita novas atribuições aos assistentes sociais também se confirmou, a exemplo da “ação de coordenar o serviço”, a qual antes era centralizada na figura do médico psiquiatra. Porém, talvez com a Reforma Psiquiátrica haja muito mais uma requisição de novos sentidos às ações do que mesmo a substituição destas. No tocante ao trabalho realizado pelas assistentes sociais junto às famílias dos usuários, embora, segundo elas, se configure como ações indiretas, ainda não sistematizadas, foi possível identificar dois vieses contraditórios. Por um lado, diante de determinadas situações, a ação profissional apresenta um aspecto reflexivo, possibilitando aos sujeitos envolvidos discutirem sobre a situação vivenciada e se posicionarem a respeito de modo não necessariamente harmônico. Mas, ao partir da compreensão do conflito intrafamiliar como resultado da desinformação ou informação insuficiente por parte dos familiares em relação ao “saber lidar” com a doença mental, a intervenção se dá ainda muito vinculada à perspectiva da minoração dos conflitos na tentativa do “ajuste” de relações, sendo o assistente social um dos agentes facilitadores desse processo através da informação sobre a patologia e de orientações de como “melhor conviver”. A pesquisa revelou, portanto, que a ação profissional das assistentes sociais do CAPS/ SER III oscila entre o “velho” e o “novo” paradigmas de atenção em saúde mental, isto é, ora essas profissionais apresentam uma prática pautada no modelo tradicional, centralizado na perspectiva da doença e negando a condição de cidadão do usuário, ora atuam em consonância com a proposta inovadora da Reforma Psiquiatra, entendendo o portador de sofrimento psíquico como sujeito social. É oportuno frisar que isso está relacionado ao atual momento histórico vivenciado no campo da saúde mental no Brasil, com suas contradições inerentes a realidade vivenciada, próprias de um período transitório em que o “velho” e o “novo” dividem, muitas vezes, os mesmos espaços nessa construção de uma efetiva Política de Saúde Mental e principalmente, de novas percepções em relação ao que se convencionou chamar loucura. Desse modo, os(as) assistentes sociais não estão aquém ou além desse movimento, simplesmente o constroem ao lado de outros trabalhadores da área, de usuários e seus familiares e de tantos outros atores sociais. De modo geral pude constatar alguns agravantes que direta ou indiretamente dificultam maiores avanços na construção de uma efetiva atenção em Saúde Mental, dentre os quais posso destacar: a hegemonia do modelo centralizado no hospital psiquiátrico, a ausência de investimentos públicos voltados para a viabilização de novos serviços, bem como, para a manutenção dos já existentes, e o preconceito em relação ao portador de sofrimento psíquico. Especificamente quanto aos investimentos em relação ao CAPS/ SER III, a omissão da Prefeitura de Fortaleza é evidente. Embora, no discurso oficial, o Governo Municipal se declare “parceiro”, na realidade este não oferece condições efetivas para o funcionamento do CAPS, principalmente quando o assunto diz respeito aos salários pagos aos profissionais contratados pela prefeitura para prestar serviços nessa instituição. É constrangedor e complicado, administrativamente, ter num mesmo espaço de trabalho, profissionais que exercem as mesmas funções percebendo salários diferenciados. É no mínimo vexatório, conviver nesse cenário para não se entrar numa discussão mais complexa e pertinente que a situação exigiria. O trabalho em equipe também é um aspecto importante a considerar. No CAPS/ SER III percebi que, embora alguns profissionais se refiram à existência de uma equipe interdisciplinar, apenas algumas categorias revelam manter um certo diálogo. O profissional médico, por exemplo, ainda não demonstra efetiva inserção na equipe, permanecendo no “lugar” daquele que prescreve medicações, não desenvolvendo efetivamente trabalhos em grupo ou outras atividades partilhadas com os demais profissionais. Ainda no que se refere a ação das assistentes sociais, senti falta da realização de pesquisas como instrumento capaz de subsidiar suas ações cotidianas de modo a articulá-las sempre às demandas reais e em constante transformação. Essa questão pode estar relacionada ao caráter interventivo (prático) da profissão o qual vem apresentando mudanças apenas nos últimos anos. Contudo, ficou evidente o interesse dessas profissionais pelo aprimoramento intelectual, fato que poderá contribuir para que percebam a importância desse instrumento e passem a adotá-lo. Diante dos avanços, recuos e contradições que permeiam o campo da saúde mental e, mais especificamente, o universo do CAPS/SER III, alguns “caminhos” podem ser tomados na instituição como sugestões para prosseguir. Um deles trata-se da busca de uma maior articulação entre os profissionais que compõem a equipe, a partir de discussões periódicas acerca do “fazer cotidiano”, do significado das ações de cada profissional na equipe e de melhores formas de partilhar esse “fazer”. As assistentes sociais, em especial, necessitam estabelecer um contato mais aproximado, embora a dinâmica institucional não contribua muito visto a incompatibilidade de horários de trabalho. O planejamento das ações em conjunto pode ser uma “pista” para construir e reconstruir propostas e, sobretudo, mais uma oportunidade importante para avaliar as experiências. Os usuários da instituição também precisam fazer parte das discussões e propostas que visem a melhoria da qualidade dos serviços prestados, devendo participar de todo o processo, desde o seu planejamento. É oportuno salientar ainda a importância da instituição viabilizar oportunidades de socialização de conhecimentos a respeito da Reforma Psiquiátrica entre os usuários, fomentando maior participação destes em Conferências de Saúde Mental e outros espaços democráticos, de modo a se fazerem presentes não apenas como coadjuvantes, mas como co-partícipes da construção de uma efetiva atenção em saúde mental. Considerando uma dimensão mais ampla, há, indubitavelmente, muitas outras trilhas a percorrer e vários serão os obstáculos rumo a efetivação de uma Política de Saúde Mental no Brasil. A implantação dos CAPS e outros serviços substitutivos é uma alternativa importante, mas por si só não modifica efetivamente a situação. As discussões em torno da atenção aos portadores de sofrimento psíquico e ao âmbito da Saúde Mental, ainda muito presas ao segmento dos profissionais da área, também devem ser partilhadas entre os usuários, os familiares destes usuários e demais segmentos da sociedade civil organizada, ou seja, devem ser discutidas pela comunidade. Afinal, a tentativa de edificar uma efetiva atenção em saúde mental no Brasil está intrinsecamente relacionada a construção de novas sociabilidades. 4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARANTE, P. D. C. Asilos, alienados e alienistas: pequena história da psiquiatria no Brasil. In AMARANTE, P. D. C. (org.) Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. _____________________. (Coord.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995. _____________________. O homem e a serpente; outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996. _____________________. 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