Iluminismo e direito penal.indb - BuscaLegis

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Iluminismo
e
Direito Penal
Arno Dal Ri Júnior
Alexandre Ribas de Paulo
Alexander de Castro
Ricardo Sontag
Iluminismo e Direito Penal
Florianópolis
2009
© Fundaçao José Arthur Boiteux
Ficha Catalográfica
D15r Dal Ri Júnior, Arno.
Iluminismo e direito penal/ Arno Dal Ri Júnior... [et al.]. – Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
208 p.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7840-013-2.
1. Iluminismo – aspectos jurídicos. 2. Filosofia moderna -Séc. XVIII.
4. Filosofia do direito. Direito penal – filosofia. 2. Direitos fundamentais.
I. Paulo, Alexandre Ribas de II. Castro Alexander de. III. Sontag, Ricardo.
IV. Título.
CDDir. 340
Catalogação na publicação por: Aline Cipriano Aquini CRB-14/961
EDITORA FUNDAÇÃO BOITEUX
Conselho Editorial
Prof. Aires José Rover
Prof. Arno Dal Ri Júnior
Prof. Carlos Araujo Leonetti
Prof. Orides Mezzaroba
Secretária Executiva
Thálita Cardoso de Moura
Capa, projeto gráfico
e diagramação
STUDIO S Diagramação & Arte Visual
Imagem da Capa
Detalhe de “L’Accademia dei pugni” (1766), Antonio Perego,
óleo sobre tela (52 x 37 cm), 1766, coleção privada
Revisão
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Impressão
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Sumário
INTRODUÇÃO ....................................................................................... 9
CAPÍTULO 1
Cesare Beccaria e o Direito Penal do absolutismo esclarecido:
O reformismo habsbúrgico e o iluminismo na lombardia austríaca
Alexander de Castro
Introdução.............................................................................................. 15
1. Iluminismo e absolutismo no século XVIII .................................... 18
2. O Iluminismo milanês e o reformismo habsbúrgico na
Lombardia .......................................................................................... 27
3. O Legislador e o absolutismo esclarecido de Helvétius a
Beccaria ............................................................................................... 37
4. O utilitarismo em Dei delitti e delle pene: o rei-legislador e a
eficácia do direito penal .................................................................... 55
Conclusão .............................................................................................. 62
Referências bibliográficas .................................................................. 63
CAPÍTULO 2
Lei penal e exemplaridade econômica: A execução das penas
como extensão dos enunciados legislativos em Jeremy Bentham
Ricardo Sontag
Introdução: O problema penal em Jeremy Bentham ...................... 69
1. O soberano, a ordem e o direito penal ........................................... 76
2. A dupla face da lei penal .................................................................. 78
3. Exemplaridade econômica ............................................................... 83
4. A prisão como pena .......................................................................... 95
Considerações finais: declinações benthaminianas do
iluminismo penal ................................................................................ 105
Referências bibliográficas ................................................................ 110
CAPÍTULO 3
A construção do crime contra a autoridade do Estado
no discurso iluminista
Arno Dal Ri Júnior
Introdução............................................................................................ 117
1. Contestações Iluministas: Montesquieu, Beccaria, Marat ......... 118
2. O Despotismo da Liberdade .......................................................... 136
Considerações finais .......................................................................... 148
Referências bibliográficas ................................................................ 149
CAPÍTULO 4
O discurso jurídico-penal iluminista no direito criminal
do império brasileiro
Alexandre Ribas de Paulo
Introdução............................................................................................ 155
1. Matrizes discursivas do Direito Estatal Moderno ...................... 156
2. O surgimento do Iluminismo e o contexto político do
século XVIII ...................................................................................... 160
3. Período Humanitário do Direito Penal e os postulados de
Cesare Beccaria ................................................................................ 164
4. O direito penal no Brasil ................................................................. 174
4.1. O Direito Penal no Brasil Colônia .......................................... 174
4.2. A cultura jurídica brasileira e o Código Criminal do
Império ...................................................................................... 179
4.3. O Período Regencial e o Código de Processo Criminal do
Império ....................................................................................... 191
Referências bibliográficas ................................................................ 202
Introdução
A
modernidade ocidental é, em muitos aspectos, tributária do
discurso iluminista do século XVIII. O direito penal, longe de
constituir qualquer exceção, esteve no centro do debate iluminista.
Com a presente obra intentamos resgatar este importante capítulo da
história das idéias filosóficas que tanto marcaram a cultura jurídica
moderna. A importância do Iluminismo para a formação do direito
penal moderno é suficientemente reconhecida em todos os manuais
e tratados de direito penal escritos no Brasil. Tal reconhecimento,
porém, nem sempre é acompanhado do aprofundamento históricojurídico necessário para a compreensão tanto da centralidade do
problema penal no século XVIII quanto para uma avaliação mais
criteriosa das rupturas e continuidades existentes entre o Iluminismo
jurídico-penal e os outros momentos, anteriores e posteriores, da
cultura jurídico-penal ocidental. Desta maneira, ao contrário da busca
pela origem tranqüilizadora que perpassa as introduções históricas
de tantos livros didáticos de direito penal, o objetivo dos textos que
compõem este livro é problematizar esta origem, bem como perceber
as especificidades históricas de tal discurso. Para executar essa tarefa
selecionamos alguns dentre os pontos da história do Iluminismo
jurídico-penal que consideramos de especial interesse para o leitor
brasileiro. Assim, começamos com Cesare Beccaria, passamos por seu
“discípulo” Jeremy Bentham, pela questão dos crimes políticos entre
o Iluminismo e a Revolução Francesa, chegando às reverberações do
Iluminismo no direito penal brasileiro do princípio do século XIX.
O capítulo de abertura da obra, Cesare Beccaria e o direito penal
do absolutismo esclarecido, trata do jurista e filósofo que mais profundamente marcou os debates da Ilustração sobre o tema do direito
penal. Procurou-se analisar as relações de sua principal obra, Dos
delitos e das penas, com a filosofia iluminista, por um lado, e com a
formação do absolutismo esclarecido na Lombardia austríaca, por
outro. Considerado o marco principal da fundação do direito penal
ILUMINISMO E DIREITO PENAL
moderno, o livro foi escrito sob forte influência do Iluminismo francês, num contexto em que seu autor e todo o grupo de filósofos a que
pertencia aproximava-se dos projetos reformistas da coroa da Áustria
em seu domínio italiano. O tratamento da questão penal dado por
Beccaria é estudado, assim, em conexão com a análise do projeto de
reformas da dinastia habsbúrgica na Lombardia e do papel que, nesse
processo, coube aos intelectuais iluministas e à própria filosofia do
Iluminismo. Ao fim procurou-se ressaltar os fundamentos teóricos de
índole utilitarista que, influenciados pelo filósofo francês Helvétius,
inspiraram a obra de Beccaria, tentando-se traçar ainda algumas
conexões entre ela e as necessidades do reformismo austríaco.
Na seqüência, com o capítulo intitulado Lei penal e exemplaridade econômica, aborda-se as conhecidas concepções de pena de
Jeremy Bentham a partir do cruzamento entre direito penal e teoria
da legislação. A partir disso, a análise se concentra nas penas como
extensões dos enunciados legislativos e revisa as relações entre as
concepções de Bentham e a tradição penal iluminista. Tomando
como porta de entrada a teoria da legislação foi possível relativizar a excessiva vinculação da teoria da pena benthaminiana com
as chamadas sociedades de vigilância do século XIX (tal como se depreenderia da obra de Foucault), pois a necessidade de enquadrar
tanto o panopticon como os outros tipos de prisão no esquema da
pena-representação denuncia uma vinculação maior de Bentham
com a tradição jurídico-penal iluminista.
No capítulo A construção do crime contra a autoridade do Estado
no discurso iluminista percorre-se o itinerário do tratamento dado
aos crimes políticos dentro do discurso jurídico-penal iluminista.
Iniciando com a análise da questão do crimen laesae maiestatis nas
obras de Montesquieu, Beccaria e Marat, e finalizando com a análise da formação do crime de lèse-république, procura-se demonstrar
como Robespierre, Danton, Saint-Just e Couthon, bradando contra
os inimigos da République, articularam uma espécie de transfiguração
onde grande parte dos elementos que compunham o núcleo da noção
de crimen laesae maiestatis migrou para os novos e modernos crimes
contra a segurança do Estado. Procura-se demonstrar, assim, que, muito
embora embasado pelas críticas feitas pelos autores do apogeu do
Iluminismo jurídico-penal, o regime revolucionário foi guiado pelo
10
| Introdução
Arno Dal Ri Júnior • Alexandre Ribas de Paulo • Alexander de Castro • Ricardo Sontag
espírito e os métodos de um feroz direito penal político que dominaria todo o conjunto da atividade repressiva, tornando dificílimo
demarcar com nitidez a linha que separava as ações estritamente
jurídico-penais daquelas que diziam respeito aos delitos políticos.
Por fim, com o capítulo intitulado O discurso jurídico-penal
iluminista no direito criminal do Império brasileiro, tentou-se verificar,
de maneira sintética, alguns reflexos do saber iluminista na cultura
jurídico-penal brasileira no tempo do Império. O texto inicia com o
contexto histórico europeu do século XVIII, onde se dissemina o pensamento jurídico-político iluminista de Cesare Bonesana, o marquês
de Beccaria, e chega ao contexto histórico, político e jurídico-penal
brasileiro pré e pós-Independência, para que se possa compreender
como foram sendo estruturadas as instituições burocráticas oficiais
no Brasil. Procurou-se analisar a conjugação da reprodução do discurso jurídico iluminista do século XVIII com práticas jurídico-penais
marcadas pelo clientelismo, pela manutenção de privilégios às elites
tradicionais e pela imposição de respeito às autoridades legalmente
investidas pelo Poder soberano.
A obra que agora apresentamos é o resultado parcial de algumas pesquisas individuais realizadas dentro do Grupo de Pesquisa em
História da Cultura Jurídica (Ius Commune) da Universidade Federal
de Santa Catarina, mais exatamente dentro do módulo sobre Iluminismo e Direito Penal. Coordenado pelo Prof. Dr. Arno Dal Ri Júnior,
este grupo de pesquisas tem se esforçado para ajudar a desenvolver
e consolidar o estudo da história do direito no Brasil, procurando
travar um intenso debate com o que de melhor vem sendo produzido
na Europa e América Latina, e buscando ainda abrir novas linhas de
pesquisa e perspectivas de abordagem. As pesquisas do grupo têm
sido conduzidas com base na idéia de que a história do direito deve
agir como uma espécie de consciência crítica do jurista, não apenas fazendo uma crítica externa ao direito, mas, sobretudo, desmitificando
para ele próprio seu imaginário. Dessa maneira busca-se problematizar as experiências jurídicas ocidentais como fenômenos culturais
historicamente localizados, apartando-se tanto das abordagens que
alçam a experiência jurídica a uma dimensão atemporal quanto das
que a reduzem a reflexos automáticos das formações sociais.
Introdução |
11
ILUMINISMO E DIREITO PENAL
Em tal empreitada contamos com a colaboração de inúmeros
outros pesquisadores de renomadas instituições nacionais e internacionais, aos quais devemos muitos agradecimentos. Dentre eles
destacamos, na pessoa do Prof. Dr. Paolo Grossi, a Escola de Florença. Agradecemos ainda a todos os professores e alunos do Grupo
de Pesquisas em História da Cultura Jurídica que de alguma maneira
contribuíram para a realização desta obra.
Os autores
Junho de 2008
12
| Introdução
CAPÍTULO 1
Cesare Beccaria e o Direito Penal
do absolutismo esclarecido:
O reformismo habsbúrgico e o
iluminismo na lombardia austríaca
Alexander de Castro
Mestre em Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC (CPGD/UFSC).
Pesquisador do Grupo de Pesquisas em História da Cultura Jurídica da UFSC.
Professor de Direito Penal da UFSC
INTRODUÇÃO
A
obra Dei delitti e delle pene, de Cesare Beccaria, é geralmente lembrada pelos especialistas em direito penal de todo o Ocidente
como um dos marcos fundadores da modernidade de sua ciência.
Produzida no âmbito da cultura iluminista, ela marcou a inserção,
no saber jurídico-penal, dos princípios racionalistas que caracterizavam a filosofia iluminista e que seriam os pilares para a construção
de toda a arquitetura política moderna. A magnitude de tal feito
transformou seu autor no iluminista italiano mais conhecido fora
da Itália. A reconhecida importância de Beccaria para a história das
idéias jurídicas contrasta, entretanto, com a carência de bibliografia
monográfica em língua portuguesa sobre ele, tanto no Brasil quanto
em Portugal, e com a falta, durante longo tempo, de uma boa e fiel
tradução para o vernáculo de sua principal obra.1
Cesare Beccaria escreveu Dei delitti e delle pene entre o final de
1763 e o princípio de 1764, publicando-a nos primeiros meses desse
ano. Ele residia em Milão, centro da Lombardia, uma região que,
desde a guerra da sucessão espanhola, fazia parte dos domínios da
monarquia austríaca. O jovem marquês contava então apenas 26
anos e fazia parte de um grupo de jovens intelectuais que lia entusiasticamente os autores do Iluminismo francês e que, escrevendo a
partir de suas idéias, fixaria definitivamente a filosofia iluminista na
Lombardia austríaca. Ao mesmo tempo a coroa austríaca, em meio
a seu projeto político autocrático, implementava em seus domínios
1
Consultamos inúmeras traduções para o português feitas no Brasil e em Portugal, e todas
apresentam problemas relevantes. As mais antigas, em especial, continham erros e distorções consideráveis, como a curiosa tradução do nome Farinaccio (conforme o original)
por Francisco, a fusão de capítulos, a supressão de palavras e a inexplicável mudança da
ordem dos parágrafos (que em alguns casos afeta consideravelmente a estrutura da obra).
Recomendamos, no entanto, a tradução feita por José Cretella Júnior e Agnes Cretella:
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. rev. e atualiz. Trad. José Cretella Júnior e
Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. Em Portugal, uma tradução menos
equivocada é a de José de Faria Costa: BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad.
José de Faria Costa revista por Primola Vingiano. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1998.
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
um potente programa de reformas que tendia à racionalização da
administração e à maximização da eficiência administrativa e que,
na medida em que se chocava frontalmente com interesses nobiliárquicos, acabaria exercendo na Lombardia um papel modernizador.
O progressivo sucesso de tal projeto, aliado à ausência de quaisquer
outras tendências suficientemente fortes que elaborassem as pressões
por mudanças sob formas mais ousadas (como no caso da Inglaterra
do século XVII), canalizou os interesses progressistas mais conseqüentes para o lado do projeto do absolutismo austríaco. O Iluminismo
lombardo não seria uma exceção.
Na Alemanha, e em especial na Prússia, a filosofia do Iluminismo nasce e se desenvolve muito próxima ao absolutismo e à
reflexão pró-absolutista. Na França, diferentemente, o Iluminismo
teve sempre uma relação ambivalente com o absolutismo, em parte
causada pela própria indisposição da coroa francesa em implementar um programa de reformas que atacasse decisivamente os
poderes estamentais e ao mesmo tempo incorporasse as tendências modernizadoras que provinham de determinados setores da
sociedade. Tal ambivalência do Iluminismo francês em relação ao
absolutismo aparece nas páginas de alguns dos grandes autores
franceses das décadas de 50, 60 e 70 do século XVIII, onde o flerte
com o absolutismo – baseado na esperança de que a coroa pudesse
aprofundar seu papel modernizador, atacando com mais firmeza
o poder nobiliárquico e realizando as reformas desejadas, tal como
acontecia na Prússia com Frederico II – dividia espaço com o eco das
idéias liberais da Inglaterra que, nas penas dos iluministas franceses,
davam origem a concepções políticas de orientação republicana e,
por vezes, até democrática. O Iluminismo lombardo desenvolvese tendo como referência e inspiração os autores franceses, mas na
construção de seu Iluminismo os intelectuais da Lombardia confrontavam-se com uma situação política e social consideravelmente
diferente da francesa. O fato de a coroa austríaca ter incorporado em
seu projeto absolutista um programa de reformas que romperia o
poder patrício, fomentaria o desenvolvimento econômico e modernizaria as instituições fez com que as tendências pró-absolutistas do
Iluminismo lombardo, que estavam presentes já em suas matrizes
francesas, se desenvolvessem com toda força.
16
| Capítulo 1
Alexander de Castro
Nos escritos dos autores iluministas despontava, com relativa
importância, a chamada questão penal2 como um capítulo dentro da
construção teórica do Estado moderno. A obra Dei delitti e delle pene
foi certamente a mais significativa dentre as que, no seio da filosofia
das Luzes, ocuparam-se com o direito penal, vindo a marcar boa parte
do debate sobre o tema. Na época de sua publicação, a dinastia habsbúrgica preparava-se, depois de breve interrupção, para aprofundar
decisivamente sua política de reformas na Lombardia – uma política
que, ao fim do governo de José II, criaria ali outro mundo. Escrita na
juventude do filósofo – num período em que o grupo dos jovens iluministas de Milão, reunido na chamada Società dei Pugni, lutava para
afirmar-se no cenário político, inserindo-se, com seu periódico Il Caffè,
nos debates públicos mais importantes da época, ao mesmo tempo em
que se encantava com os novos horizontes trazidos pelo reformismo
habsbúrgico – Dei delitti e delle pene retrataria com profundidade os
planos e esperanças que orientaram a formação do Iluminismo na
Lombardia. O projeto de sistema penal elaborado por Beccaria pode
revelar muito sobre como a empreitada política do absolutismo tardio do século XVIII era vista pelo Iluminismo, sobre os desafios que
a formação desse absolutismo teria de enfrentar e, principalmente,
sobre o papel do direito penal na dinâmica institucional do século
XVIII. Além de tudo isso, Dei delitti e delle pene marcou a inserção do
Iluminismo lombardo no mapa da cultura ilustrada da Europa do
século XVIII, fazendo com que toda ela voltasse um pouco de sua
atenção para o que escreviam os jovens patrícios de Milão.
De tal maneira, analisaremos a obra Dei delitti e delle pene, de
Cesare Beccaria, tentando entender o significado de seu sistema penal
no contexto marcado pela implementação, na Lombardia, das reformas conduzidas pela coroa austríaca, pelo conseqüente confronto
entre o poder patrício e os representantes do absolutismo habsbúrgico
e pela progressiva aproximação entre os intelectuais iluministas e
2
“Forse in nessun periodo come nella seconda metà del XVIII secolo è stato intensamente
dibattuto il problema penale. Per ‘problema penale’ si intende un complesso di problemi
tra loro conessi, di cui è difficile presentare una lista completa” (TARELLO, Giovanni. Il
“problema penale” nel secolo XVIII. In: TARELLO, Giovanni (org.). Materiali per una storia
della cultura giuridica. Vol. V. Genova: Il Mulino, 1975, p. 15).
Capítulo 1 |
17
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
a coroa austríaca. As conseqüências desse conjunto de fenômenos
permitirão aprofundar nossos conhecimentos sobre o nascimento
do direito penal moderno, sobre o Iluminismo, sobre o absolutismo
e sobre o fenômeno chamado de absolutismo esclarecido.3
O trabalho está dividido em quatro etapas. Primeiramente
analisaremos as relações entre Iluminismo e absolutismo e o lugar
do absolutismo esclarecido dentro do cenário político moderno. Em
seguida trataremos da implementação do projeto de reformas promovido pela coroa austríaca e por seus representantes na Lombardia,
e do papel que coube, nesse processo, aos intelectuais iluministas.
Posteriormente estudaremos a influência do filósofo francês Helvétius
em Beccaria e o papel político que o Legislador adquire na obra de
ambos. Por fim tentaremos estabelecer algumas conexões entre certos
aspectos da obra Dei delitti e delle pene e a dinâmica institucional do
absolutismo do século XVIII.
1.
Iluminismo e absolutismo no século XVIII
O Iluminismo do século XVIII é apresentado geralmente como
a filosofia que preparou a Revolução Francesa e a tomada do poder
pela burguesia. De tal forma, o Iluminismo teria um estreito vínculo com o Liberalismo e seria, por princípio, oposto ao absolutismo
monárquico. Não obstante a evidência dos vínculos entre a filosofia
do Iluminismo e a Revolução Francesa – e, portanto, entre o discurso
3
18
A carência de estudos, na América Latina, sobre as conexões políticas concretas em meio às
quais a obra de Beccaria foi produzida leva inúmeros autores a deixar de lado sua relação
com o absolutismo e a estabelecer exagerados vínculos com o liberalismo político. Mencionamos, a título de exemplo, um caso ilustre, mais exatamente o do criminalista argentino
Eugenio Raul Zaffaroni, certamente um dos maiores juristas da América Latina. Em obra
didática dedicada ao direito penal brasileiro (escrita em parceria com o colega brasileiro José
Henrique Pierangeli), ele apresenta o autor com as seguintes palavras: “Beccaria nasceu em
Milão, em 1738, e morreu na mesma cidade, em 1794. Pode ser considerado como o autor
a quem coube a fortuna de lançar as bases do direito penal contemporâneo, posto que é
em função de sua crítica que a legislação penal européia começa a limpar-se, um pouco, de
seu banho constante de sangue e tortura”. Depois de assim fixar a importância de Beccaria
para a história do direito penal, Zaffaroni afirma o seguinte: “Seu pensamento pertence
mais ao pensamento revolucionário que ao despotismo ilustrado, visto que pertencia ao
círculo revolucionário, em que sobressaíam os irmãos Verri, em Milão” (ZAFFARONI,
Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. V. 1: parte
geral. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 234).
| Capítulo 1
Alexander de Castro
iluminista e o discurso do liberalismo –, tal esquema está longe de
constituir um modelo de interpretação universalmente válido. E se
mesmo na França – onde o específico desenvolvimento econômico
e institucional pôde colocar Liberalismo e Iluminismo lado a lado –
as relações entre o absolutismo e o discurso iluminista apresentam
sinuosidades ao longo do desenvolvimento de todo o processo, muito
mais complexa é a relação da filosofia das Luzes e de seus portadores
com os monarcas absolutistas nos Estados onde o atraso econômico
e institucional tornava anacrônica a recepção das idéias liberais.4
O discurso iluminista do século XVIII tem como marca principal a defesa da causa da emancipação humana pelo uso da razão. A
fórmula célebre de Kant sapere aude (ousai saber), o apelo à autonomia do sujeito a partir das suas potencialidades racionais e o uso da
ciência na dissolução da imagem mística e encantada do mundo são
o que melhor caracteriza o pensamento das Luzes. No plano político,
a reivindicação da emancipação pela razão fez com que o Iluminismo
ganhasse uma tonalidade fortemente crítica que, em suas formas
extremadas, assumiu um caráter contestatório consideravelmente
subversivo em relação aos poderes constituídos. E quanto mais nos
aproximamos dos grandes centros econômicos europeus, onde as
pressões dos interessados em uma economia racional de mercado se
confrontavam de forma cada vez mais irresolúvel com instituições
burocráticas arcaicas, maiores eram os radicalismos conseqüentes
do Iluminismo em seu combate ao Antigo Regime. Já onde o quadro
político-social não se caracterizava por uma tensão tão acirrada colocada sobre estas bases, a pressão por mudanças institucionais pôde
tomar o caminho de uma conciliação de interesses e se transformar
em um moderado discurso reformista.
De outro lado, este discurso reformista teve seus caminhos
facilitados na medida em que a reforma institucional era, para os
4
ASTUTI, Guido. O absolutismo esclarecido em Itália e o estado de polícia. Trad. António
Manuel Hespanha. In: HESPANHA, António Manuel (org.). Poder e instituições na Europa
do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, p. 254. Nesta obra, Astuti analisa as
relações entre Iluminismo e absolutismo no caso italiano dentro do contexto do Estado
de Polícia. Percebendo bem que a afinidade entre Iluminismo e liberalismo não é inflexível e deve necessariamente ser revista em determinadas circunstâncias. Achamos muito
problemáticos, entretanto, alguns de seus posicionamentos.
Capítulo 1 |
19
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
Estados economicamente periféricos da Europa da metade do século
XVIII – como Prússia, Áustria e Portugal –, uma necessidade impostergável. Assim, paralela ao discurso reformista de origem filosófica,
houve uma tendência à racionalização instrumental das instituições
administrativas que se guiava exclusivamente por considerações
pragmáticas. Ambas as pressões por racionalização caminharam
para uma confluência e o discurso filosófico reformador do Iluminismo se conciliou com as pretensões dos monarcas absolutistas no
sentido de uma centralização e modernização funcional no plano
político-institucional. A progressiva fusão dessas duas tendências
que apontavam para a racionalização nos permite falar na formação
de um absolutismo esclarecido nestes Estados europeus.
Na França, o absolutismo monárquico encontra-se consolidado
já na segunda metade do século XVII, num processo iniciado no governo de Richelieu e relativamente estabilizado com Luís XIV. Este
absolutismo não implicava a eliminação completa do conjunto dos
poderes intermediários da nobreza que inclusive constituiriam, no
século seguinte, um dos pilares da teoria política de Montesquieu.5
Mas o desenvolvimento econômico obtido pela França com o comércio e com as manufaturas gerava os recursos necessários para que se
sustentasse o exército e a estrutura administrativa da coroa, possibilitando que o Estado francês se estabelecesse como potência dentro
do cenário político internacional mesmo sem alcançar um grau maior
de centralização administrativa. De tal forma, a eliminação destes
poderes intermediários, embora fosse um desejo contínuo da coroa,
não era, entretanto, uma necessidade tão proeminente. O discurso
iluminista francês não deixara de fazer críticas ao poder político da
nobreza, mas a insensibilidade ou inaptidão da coroa francesa para
atender a determinadas demandas, conjugada com a existência de
uma alta burguesia com poder político e social, somadas ao exemplo da Inglaterra, de onde vinha boa parte dos modelos filosóficos
dos intelectuais franceses, fez com que o Iluminismo francês fosse
5
20
Vale ressaltar que os poderes intermediários do Antigo Regime não se resumem, evidentemente, aos poderes senhoriais nobiliárquicos. Sobre isso, ver: OESTREICH, G. Problemas
estruturais do absolutismo europeu. Trad. António Manuel Hespanha. In: HESPANHA,
António Manuel (org.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1984, p.187.
| Capítulo 1
Alexander de Castro
perdendo a fé no absolutismo e começasse a caminhar em direção a
valores liberais que preparariam a Revolução de 1789.6
Em Portugal, na Prússia e na Áustria, por exemplo, onde a
situação econômica era muito mais incômoda, os monarcas sentiram
a necessidade, em meados do século XVIII, de impor à sociedade a
disciplina social necessária à promoção de uma política de potência
– o que evidentemente implicava o incentivo e mesmo o impulso a
atividades econômicas internas, de onde se retirariam recursos para
a organização da burocracia centralizada e do exército profissional
permanente. Na Prússia, o absolutismo começa a chegar a seu auge
apenas entre os anos 30 e 40 do século XVIII, enquanto na Áustria e
em Portugal isso aconteceu apenas ao longo da segunda metade do
século XVIII – com certo atraso, portanto, em relação a França e, sobretudo nos últimos dois casos, em concomitância à recepção das idéias
do Iluminismo. Esta circunstância parece ter imposto um significado
diverso ao absolutismo e à sua relação com a filosofia das Luzes.
A eliminação do conjunto dos poderes intermediários autônomos em favor da construção de meios administrativos que possibilitassem ao monarca a consecução das suas tarefas de reforma
e modernização será desejada por ele e por todos os interessados
no desenvolvimento das atividades econômicas.7 Assim, a racionalização da administração pública e o bem-estar social produzido
por este processo (identificado geralmente com a produção de bens
materiais) permitirão ao discurso iluminista se conciliar com esta
demanda que vem do trono, mas também de setores sociais politicamente inferiores do Antigo Regime. As esperanças de burgueses e
setores intelectuais relativas à implementação de reformas acabam
recaindo sobre a figura do príncipe e este, por sua vez, começa a
perceber nesse apoio uma base importante para a consolidação e
extensão de seu domínio no plano interno (dissolvendo os poderes
intermediários que o obstaculizavam) e para o desenvolvimento
6
7
ASTUTI, Guido. op. cit. pp. 260-1. Astuti enxerga bem a ausência de uma política reformadora na França e sua relação com a Revolução, mas falha, em nossa opinião, ao
determinar suas causas.
FRIGO, Daniela. Principe, giudici, giustizia: mutamenti dottrinali e vicende istituzionali fra
sei e settecento. In: COLAO, F.; BERLINGER, L. (org.) Iluminismo e dottrine penali. Milano:
Giuffrè, 1990, p. 18.
Capítulo 1 |
21
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
de reformas destinadas a promover o fortalecimento institucional
do Estado com relação a seus concorrentes externos. Neste contexto, o príncipe deve quase que necessariamente aparecer como
o sujeito das reformas institucionais a quem incumbe reorganizar
a sociedade de forma racional, orientando-a para a consecução
do bem-estar dos súditos.8 É precisamente assim que a literatura
política começa a encará-lo. Nessa conciliação entre o Iluminismo
e o absolutismo, os ideais liberais, que tanta afinidade tinham
com o discurso iluminista da autonomia individual fundada na
racionalidade, acabam ficando em segundo plano.
A conciliação entre os interesses do soberano e de setores
sociais politicamente inferiores começa a aparecer como uma
conciliação teórica entre o interesse social e o interesse do próprio
monarca. Surgem, então, os temas da felicidade pública e do bemestar geral. As novas funções dadas ao soberano fazem com que a
imagem do príncipe, em meados do século XVIII, comece a mudar.
A antiga imagem, correspondente à estrutura das monarquias medievais, de um soberano que deve apenas zelar pela manutenção
da ordem social, de uma ordem sagrada dada de antemão a qual
ele não pode mudar de maneira alguma, a imagem de um príncipe
que, estando no topo da ordem social, deve limitar-se apenas a zelar pela harmonia das ordens de poder inferiores sem, no entanto,
interferir em suas autonomias,9 passa a dar lugar à imagem de um
príncipe que deve agir sobre a sociedade governando-a efetivamente, administrando-a, mudando-a quando necessário, criando leis
para ela e em tudo a submetendo a desígnios utilitaristas.10 Este
esquema político em que, dada a situação de atraso econômico e
institucional, as esperanças de reforma e modernização são depositados sobre o soberano e em que ele se transforma, assim, no agente
do aperfeiçoamento social, encontra seu auge justamente na cultura
iluminística. O Iluminismo dará um novo impulso à idéia de que
8
9
FRIGO, Daniela. op. cit., p. 20.
HESPANHA, António Manuel. Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime.
In: HESPANHA, António Manuel (org.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984, p. 66.
10 FRIGO, Daniela. op. cit., pp. 13-8; SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A polícia e o reilegislador. In: História do direito brasileiro: Leituras da ordem jurídica nacional. São Paulo:
Atlas, 2003, p. 97-8.
22
| Capítulo 1
Alexander de Castro
o monarca, concentrando em suas mãos o poder, deve usá-lo na
realização das mudanças que promovam o bem-estar geral. Não é
difícil entender as razões para isso. O culto às capacidades racionais
do ser humano e, portanto, à capacidade humana de, pela razão,
melhorar suas condições de vida, bem como o culto ao progresso
que daí advém, são características centrais do Iluminismo.
As novas tarefas confiadas ao príncipe fazem com que seja
necessário dar-lhe também instrumentos hábeis a realizá-las: o
direito será um dos principais. De tal maneira, o processo de formação do absolutismo monárquico foi acompanhado pela luta, nem
sempre bem-sucedida, para impor a legislação real como a única
ou, ao menos, como a principal fonte do direito, à qual todas as
outras deveriam submeter-se. A idéia de que o direito, sob a forma
de legislação, deveria ser utilizado pelo soberano para conduzir a
sociedade em direção aos objetivos almejados dá origem ao que
podemos chamar de um uso instrumental do direito. De novo, é no
seio do Iluminismo que a visão do direito enquanto instrumento
de organização e direcionamento social será fortalecida e elaborada de maneira sistemática. E, por evidente, as teorias iluministas
que faziam da legislação um instrumento de racionalização social
através do qual se poderia moldar e aperfeiçoar a sociedade teriam
um cenário extremamente favorável na identificação do Iluminismo
com governos centralizados que utilizavam a legislação para impor
determinados caminhos ao conjunto social.
Tal teoria, na sua origem francesa, era parte de uma polêmica
contra a teoria dos climas de Montesquieu, pois apresentava as leis
como verdadeira causa das virtudes e vícios humanos, pondo de
lado as determinações climáticas. Assim, se a legislação é a responsável pela formação dos cidadãos, bem como de toda a dinâmica
social, então o legislador se transforma no artífice da sociedade e é
sobre ele que recai a responsabilidade de aperfeiçoá-la. E, como
essas teses são acompanhadas da defesa da supremacia do poder
monárquico sobre os poderes intermediários, esse legislador depositário das esperanças de modernização acaba sendo o próprio
monarca. Temos aí, então, a formação da imagem de um rei-legislador
a quem incumbe a tarefa de racionalizar a organização social e de
Capítulo 1 |
23
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
promover o progresso e o aperfeiçoamento da sociedade.11 Mas,
se essa imagem do monarca absoluto enquanto rei-legislador aparece já nos projetos do Iluminismo francês (sobretudo na obra de
Helvétius), será apenas nos absolutismos tardios do século XVIII,
dentro da tentativa de fortalecimento estatal em uma situação de
atraso econômico e institucional, que encontraremos os espécimes
que mais se aproximarão desse modelo teórico.12
11
Daniela Frigo refere-se à formação da imagem de um “príncipe-legislador” (Cf. FRIGO,
Daniela. op. cit., p. 7). No Iluminismo francês, a imagem do rei-legislador encontrará sua
expressão mais forte na obra de Helvétius, como veremos mais à frente. Todavia, podemos
encontrar em Voltaire alguns elementos que apontam para ela. Ao tecer críticas à obra Do
espírito das leis, de Montesquieu, Voltaire também criticaria a teoria dos climas para colocar
em seu lugar a influência do governo, da religião e da educação. Em seus Comentários sobre
algumas máximas principais de ‘O espírito das leis’, ele afirma: “Convenhamos pois em que, se
o clima faz os homens loiros ou morenos, é o governo que lhes faz as virtudes e os vícios.
Confessemos que um rei verdadeiramente bom é o mais belo presente que o céu pode oferecer
à terra” (VOLTAIRE, François-Marie. Comentários sobre algumas máximas principais de ‘O
espírito das leis’. In: Comentários políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 81). E mais à
frente: “Montesquieu, para explicar o poder do clima, nos diz que ele fez gelar uma língua
de carneiro e que as papilas nervosas dessa língua se manifestaram visivelmente quando
ela foi descongelada. Mas uma língua de carneiro jamais explicará por que a querela do
Império e do sacerdócio escandalizou e ensangüentou a Europa durante mais de seiscentos
anos. Ela não explicará os horrores da rosa vermelha e da rosa branca, nem dessa multidão
de cabeças coroadas que na Inglaterra tombaram sobre o cadafalso. O governo, a religião, a
educação produzem tudo entre os infelizes mortais que rastejam, sofrem e raciocinam neste
globo” (VOLTAIRE, François-Marie. Comentários... p. 82). Falta, nos trechos citados, uma
referência expressa à legislação. Todavia, o que está em questão aqui, como também na obra
de Helvétius, é a substituição de um esquema de determinação natural (vinda dos climas)
por outro em que os fatos humanos são conseqüência de determinações sociais e, portanto,
da organização social. A referência, no final do primeiro trecho, ao “rei verdadeiramente
bom”, feita depois de Voltaire dizer que as virtudes e os vícios são produtos do governo,
nos permite ver claramente que papel ele esperava que fosse cumprido pelo monarca.
12 A imagem do rei-legislador é identificada em Portugal por Seelaender no período do
governo do Marquês de Pombal (Cf. SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A polícia e o
rei-legislador...). O contexto em que o aumento da atividade legislativa se deu em Portugal
é marcado por uma situação de letargia e crise econômicas. Em face dessa situação era
imperioso que a coroa assumisse função mais ativa para viabilizar a superação das adversidades. A conseqüência é que ela acaba, através da legislação, assumindo um papel diretivo
em face da sociedade, buscando organizá-la de um modo que produza a prosperidade e
o fortalecimento do reino. Nas palavras do autor: “Na segunda metade do século XVIII
verificou-se uma conjunção de ameaças externas com desequilíbrios na balança comercial,
enquanto graves crises afetavam setores-chave da economia (ouro, vinhos, produtos coloniais). Tal que por sua vez demandava novas soluções. Nesse contexto precisava a Coroa
não só enfrentar de forma decidida as adversidades, mas também atuar de modo distinto
do usual, impondo-se novas tarefas ou utilizando de modo mais intenso os mecanismos
preexistentes de controle e intervenção na vida social. Tais metas e tarefas eram numerosas
e variadas. Observando o princípio – então largamente aceito – da interdependência entre
o tamanho da população, o progresso das atividades econômicas, o grau de prosperidade
do país e seu poderio como partícipe do jogo político internacional, o governo português
24
| Capítulo 1
Alexander de Castro
A imposição das leis da coroa como a principal das fontes do
direito, à qual todas as outras deveriam submeter-se, tinha como
principal obstáculo as resistências da categoria dos juristas práticos, e
em especial dos juízes.13 Muitas das instituições judiciárias do Antigo
Regime europeu possuíam autonomia em face do poder real e constituíam muitas vezes centros de poder nobiliárquico. Essas instituições, dentre as quais podemos lembrar os Parlements da França, eram
compostas por cargos suscetíveis de apropriação privada e que faziam
parte, portanto, dos privilégios comprados ou herdados. Assim, elas
possuíam autonomia face ao poder central e, conseqüentemente,
acabariam sendo forças centrífugas que atuariam contrariamente ao
processo de centralização institucional do absolutismo.14
preocupou-se em remover obstáculos ao crescimento populacional, passando também a
fomentar mais a agricultura e as manufaturas” (SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite.
A polícia... p. 99). E mais à frente: “Papel de relevo coube aqui à legislação real, que claramente assumiu à época uma função diretiva: através de mais e mais normas tentou-se guiar
e determinar o comportamento dos indivíduos, instituições e grupos sociais, fazendo-os
contribuir de forma mais efetiva para a prosperidade e fortalecimento do reino” (SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A polícia... p. 104).
13 Nas palavras de Tarello: “La prevalenza di um particolare gruppo di norme, cioè quelle
volute e create direttamente dal monarca, su tutte le altre, passava invece non solo per
l’accentramento della giurisdizione, ma anche per un saldo dominio del monarca sulla
corporazione dei giudici” (TARELLO, Giovanni. Storia... p. 57).
14 Sobre os Parlements, Tarello teceu as seguintes observações: “La situazione giudiziaria
francese, come si avrà occasione di accennare, è estramamente complessa. I grandi tribunali territoriali, chiamati Parlements cioè Parlamenti, non erano, in origine, di creazione
regia e non erano affatto suscettibili di facile e semplice subordinazione da parte del
monarca, né potevano con facilità essere sottordinati a un tribunale centrale dato che,
ciascuno, giudicava in base a diritto sostanziale diverso (le diverse coutumes). I secoli XVII
e XVIII videro tentativi del monarca di subordinare i Parlements, e un’accanita resistenza
dei Parlements che molte volte si sarebbe tradotta, nel secolo XVIII, nella disapplicazione
o nella ritardata applicazione della legislazione generale nuova. L’accentramento della
giurisdizione, generalmente parlando, non avvenne perciò tanto a favore di un tribunale
centrale (il Parlement di Parigi), quanto a favore dei diversi Parlements, che erosero le altre
giurisdizioni con competenza territoriale, e divennero autorevolissimi, ciascuno nella sua
sfera: autorevolezza cui corrispose una remora all’unificazione del diritto anche se, formalmente, tutti i Parlements erano ritenuti giudicare nel nome del sovrano. Si trattò sempre
di un accentramento molto relativo; le vecchie giurisdizioni restarono, sia pure talvolta
con competenza piú limitata e gerarchicamente subordinata; e i conflitti continuarono”
(TARELLO, Giovanni. Storia... p. 57). Na tentativa de bloqueio do voluntarismo legislativo
real, um expediente extremamente útil foi o recurso à doutrina das leis fundamentais. O
Parlement de Paris, o principal tribunal francês do Antigo Regime, utilizou-se da lei sálica
(tida então como a lei fundamental do reino francês) para se insurgir contra atos legislativos
da coroa francesa. A situação é mencionada por Seelaender: “Veiculando a idéia de que
o poder real tinha por fundamento uma lei positiva que simultaneamente o limitava, o
conceito de loi fondamentale logo foi assimilado pela linguagem técnica dos juristas em um
período no qual membros do principal tribunal francês – o Parlement de Paris – estavam
Capítulo 1 |
25
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
Há outro elemento por enquanto não suficientemente analisado
pela historiografia especializada. Este projeto político de modernização pelo alto demandaria funcionários que, além de fiéis, fossem
também competentes o suficiente para servir ao soberano em tão
ousada empreitada. Face à escassez de recursos humanos com competência necessária para a tarefa, o soberano não pôde desprezar o
apoio das camadas intelectuais inspiradas na filosofia do Iluminismo.
Assim, elas acabaram constituindo uma fonte de recursos humanos
para a composição do quadro administrativo real. De tal forma, além
da mera afinidade teórica, os membros dessas camadas intelectuais
teriam forte interesse prático-pessoal para se posicionar em favor do
absolutismo. Essa circunstância aprofunda a coalizão de interesses
entre o soberano e os intelectuais iluministas. A fusão dos ideais
iluministas e da proposta absolutista leva a duas conseqüências importantes. A primeira é que, graças à influência exercida pela filosofia
das Luzes, a proposta absolutista tem seus horizontes abertos e passa
a incorporar uma série de outros elementos além daqueles ligados de
forma evidente e imediata com o fortalecimento monárquico. Destarte,
além das questões relativas à modernização econômica e ao aumento
da eficiência do aparato administrativo, o programa de reformas do
soberano começa a atingir também outras áreas – a exemplo do sistema
penal e da instrução – e, na medida em que demonstram uma relação
(ainda que menos imediata) com os interesses da centralização e do
fortalecimento estatal, acabam sendo incorporadas ao conjunto do
reformismo absolutista. Podemos dizer que, graças ao Iluminismo, o
reformismo absolutista é ampliado e acaba absorvendo uma série de
conteúdos que ultrapassam o imediatamente necessário à viabilização
da proposta absolutista, reforçando seu caráter modernizante.
preocupados em fixar definitivamente as regras de transmissão da Coroa e quais leis eram
imutáveis ou passíveis de alteração pela vontade real. Em 1583, o Parlement já lastreava
nas leis fundamentais sua recusa em registrar um edito real; após a morte de Henrique
III (1589), fazia o mesmo para declarar ‘nulos’ todos os ‘tratados feitos ou por fazer [...]
para o restabelecimento’ como monarca ‘de um príncipe ou de uma princesa estrangeira’”
(SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. Notas sobre a constituição do direito público
na Idade Moderna: a doutrina das leis fundamentais. In: Seqüência: estudos jurídicos e
políticos. Florianópolis: Boiteux, 1980 – Semestral, p. 200). Como lembra o autor, muito
embora o recurso a leis fundamentais tenha sido um útil instrumento para interesses nobiliárquicos, ele não deixou de assumir também uma veste pró-absolutista. De qualquer
forma, o discurso iluminista não deixaria de atacar esse que foi muitas vezes um óbice à
execução das tarefas modernizadoras e racionalizadoras do trono.
26
| Capítulo 1
Alexander de Castro
Por outro lado, a fusão da proposta absolutista e da filosofia
iluminista leva à atrofia dos ideais democráticos e liberais desta última. A dedicação à causa da emancipação humana é um componente
essencial do Iluminismo. Essa emancipação, que pode aparecer sob
várias formas (tais como a emancipação das forças da natureza, do
jugo de tradições irracionais ou da própria ignorância), assume,
na esfera política, a forma de ideais democráticos, republicanos ou
liberais. A idéia de que a racionalidade individual é fonte de uma
autonomia igualmente individual possui evidentes conexões com
essas tendências políticas, mas na fusão entre Iluminismo e absolutismo elas terão de ficar em segundo plano. Ante a necessidade de
apoiar o poder monárquico absolutístico para conseguir um avanço
em relação ao poder tradicional dos estamentos, os representantes
do Iluminismo daqueles Estados onde se desenvolveu o absolutismo
tardio do século XVIII acabarão deixando de lado as propensões políticas que, sob a marcante influência de Locke, apareciam na reflexão
política francesa do século XVIII. O Iluminismo que se desenvolve
no contexto do absolutismo tardio constitui certamente um projeto
de modernização, mas uma modernização autocrática marcada por
considerável descuido em relação àqueles valores humanistas que
justificariam o projeto da modernidade. As condições históricas
específicas a que nos referimos deram espaço para que o aspecto
instrumental da filosofia das Luzes se desenvolvesse sem a contraposição daqueles valores que faziam do ser humano uma finalidade
em si mesmo. É interessante notar que justamente a Áustria, onde o
absolutismo absorveu com mais vigor as tendências reformadoras
e exerceu, mais que em qualquer outro lugar, um papel modernizador, iria, no século XIX, liderar a Santa Aliança e colocar toda a sua
maquinaria burocrática e militar na defesa dos ideais tradicionais e
reacionários tão combatidos pelo Iluminismo.
2.
O Iluminismo milanês e o reformismo habsbúrgico na Lombardia
A tarefa de modernização institucional começou a ser executada
pelo absolutismo austríaco depois da guerra de sucessão austríaca,
já no reinado de Maria Teresa, graças ao impacto da disputa pela
Capítulo 1 |
27
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
Silésia.15 A Lombardia, que era possessão da Áustria desde a guerra
de sucessão espanhola, seria alvo, a partir de então, de um programa
de reformas. A primeira etapa do reformismo lombardo transcorreu
entre os anos de 1749 e 1760 e foi levada a cabo, inicialmente, por
Gian Luca Pallavicini e, depois, por Beltrame Cristiani e Pompeo
Neri.16 Essa etapa se encerraria, entretanto, no ano de 1757, com a
partida de Neri para a Toscana. Com as atenções de Viena concentradas na Guerra dos Sete Anos (1756-1763) o empenho reformador na
Lombardia sofrerá uma interrupção. A segunda fase do reformismo
lombardo começa em 1760, depois da chegada, no ano anterior, do
conde Carlo di Firmian, novo plenipotenciário dos Habsburgs.
Quando, a partir de 1763, Carlo di Firmian e Kaunitz resolveram, por fim, acelerar o reformismo habsbúrgico na Lombardia,
reanimando-o do abalo sofrido pela Guerra dos Sete Anos e pela
contra-ofensiva patrícia e eclesiástica que marcou seu período de
adormecimento, Milão já possuía um novo círculo de intelectuais
que se candidatava ao protagonismo cultural dos próximos anos.
Esse grupo reunia-se em torno de Pietro Verri e era composto por
jovens, quase todos patrícios, dentre os quais podemos lembrar
Alessandro Verri (irmão de Pietro), Alfonso Longo, Giambattista
Biffi, Pietro Secco Comneno, Giuseppe Visconti, Sebastiano Franci,
Luigi Lambertenghi e Paolo Frisi. É nesse grupo que se encontra
também Cesare Beccaria. Sob a liderança de Pietro Verri, esses
jovens formaram a chamada Società dei Pugni, destinada a ser uma
associação para o livre pensamento e a livre discussão, sem estatuto
ou mesmo um programa definido, e voltada a combater o atraso e
o imobilismo da sociedade.17 O novo grupo de jovens intelectuais
inspirava-se entusiasticamente nas idéias do Iluminismo francês
e assim, acompanhando o espírito dessa filosofia, reivindicava re-
15
A forma como os métodos administrativos do absolutismo prussiano foram construídos no
âmbito da reflexão cameralística e, em especial, da ciência de polícia, causaram profundas
impressões no governo austríaco de Maria Teresa quando aplicados na Silésia, região
que foi alvo de disputas entre Prússia e Áustria ao longo do século XVIII. Ver: SCHIERA,
Pierangelo. Dall’arte di governo alle scienze dello stato: il cameralismo e l’assolutismo tedesco.
Milano: Giuffrè, 1968, p. 228.
16 WOOLF, Stuart J.; CARACCIOLO, Alberto; BADALONI, Nicola; VENTURI, Franco. Storia
d’Italia. Vol. 3. Dal primo settecento all’unità. Torino: Giulio Einaudi, 1978, p. 85-6.
17 CONSOLI, Domenico. Dall’arcadia all’illuminismo. Bologna: Universale Cappelli, 1972, p. 126.
28
| Capítulo 1
Alexander de Castro
formas que modernizassem a sociedade, rompessem as estruturas
tradicionais que impediam o progresso e reorganizassem, por fim,
o conjunto social segundo os parâmetros da razão.18
Nos anos 60 do século XVIII temos, portanto, na Lombardia
austríaca, a insurgência de duas tendências reformadoras que buscavam a racionalização das instituições e da sociedade. A primeira
partia da dinastia da Áustria, a casa de Habsburg, e era representada em Milão por Carlo di Firmian. O contexto de nascimento do
reformismo austríaco, produto da inspiração do modelo prussiano
baseado na Polizeiwissenschaft (Ciência da Polícia), permite ver claramente os objetivos a que visava. A racionalização social e institucional deveria servir, sobretudo, ao fortalecimento do poder real, à
consolidação do absolutismo e ao acúmulo de forças que garantissem
uma posição vantajosa em relação aos conflitos externos. Por outro
lado, na vizinha França, a década de 1750 tinha consolidado de uma
vez por todas a nova filosofia das Luzes. Podemos dizer, portanto,
que ela marca definitivamente a ascensão dos philosophes na França.
Teríamos, então, um novo grupo social cada vez mais influente e
que acreditava poder reavaliar todas as crenças e condições da vida
humana a partir da razão, removendo o que atrapalhasse a realização
das potencialidades humanas e promovendo, assim, o progresso. A
força das idéias francesas garantiria sua difusão em toda a Europa e
na década de 1760 elas já se faziam presentes em grande parte dela.
A instauração definitiva da filosofia das Luzes na Lombardia, com
o grupo de jovens filósofos da Società dei Pugni, traria consigo outra
tendência que, ao lado da que partia da dinastia austríaca, apontava
para as reformas sociais e para a racionalização.
A questão econômica torna-se, desde logo, o ponto central do
interesse dos jovens filósofos. Antes do início da publicação de Il Caffè,
o grupo da Società dei Pugni já havia debutado no mundo das letras
ao intervir na questão da moeda de Milão.19 Depois das intervenções
18
WOOLF, Stuart J.; CARACCIOLO, Alberto; BADALONI, Nicola; VENTURI, Franco. Op.
cit., p. 86-7.
19 A intervenção se deu com Beccaria através da obra Del disordine e de’ rimedi delle monete
nello stato di Milano. In: BECCARIA, Cesare. Opere. Sergio Romagnoli (a cura di). Firenze:
Sansoni, 1958. Na seqüência desenvolveu-se um acalorado debate, colocando a Società
dei Pugni contra o marquês Carpani. CAPRA, Carlo. I progressi della ragione. Vita di Pietro
Verri. Bologna: Il Mulino, 2002, p. 184-6.
Capítulo 1 |
29
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
nessa discussão, os temas econômicos reapareceriam em inúmeras
outras obras.20 Outra característica interessante dos escritos dos
jovens membros da Società dei Pugni é a postura antinobiliárquica.
Ambas as questões articulam-se, entretanto, no problema maior do
reformismo habsbúrgico em Milão.
Em princípio, as idéias econômicas dos filósofos da Società
dei Pugni favoreciam os setores produtores emergentes, como o
dos proprietários de terras, que tentavam aproveitá-las utilizando
métodos modernos voltados à produção para o mercado, e o dos
empreendedores, que haviam instalado as primeiras manufaturas
da Lombardia naquela mesma época. Inspirando-se na literatura
iluminista fisiocrática, que na década de 1760 já alcançara enorme
popularidade, eles reivindicariam a eliminação dos vínculos feudais
sobre a terra – que impediam seu uso econômico mais racional e eficiente –, a eliminação das corporações que impediam a existência do
livre-mercado, o aperfeiçoamento do sistema fiscal e administrativo
em geral, e a eliminação da proibição de exercício do comércio para
os nobres.21 Como já dissemos, a questão econômica era também
importantíssima para a política de fortalecimento do poder real. A
óbvia relação entre a situação financeira de um Estado e sua condição na política internacional faria com que a monarquia austríaca
buscasse por todas as formas aumentar suas fontes de renda. A
dinamização da economia, portanto, deveria necessariamente fazer
parte da política de fortalecimento do poder monárquico, pois permitiria que se extraíssem, pela tributação, os recursos necessários
ao fortalecimento tanto da burocracia quanto do exército real. Essa
dinamização econômica seria feita com o estímulo à produção e ao
comércio interno e, assim, favorecia justamente os setores produtivos
emergentes sufocados pelas estruturas feudais e corporativas. Assim,
20
Ver, a título de exemplo, as seguintes obras dos iluministas lombardos: BECCARIA,
Cesare. Elementi di economia publica. In: BECCARIA, Cesare. Opere. Sergio Romagnoli
(a cura di). Firenze: Sansoni, 1958; CARLI, Gianrinaldo. Del libero commercio de’ grani.
In: VENTURI, Franco. Illuministi italiani. Tomo III, Riformatori lombardi, piemontesi e
toscani. Milano: Riccardo Riccardi; LONGO, Alfonso. Istituzioni economico politiche. In:
VENTURI, Franco. Illuministi italiani. Tomo III, Riformatori lombardi, piemontesi e toscani.
Milano: Riccardo Riccardi; VERRI, Pietro. Considerazioni sul commercio dello stato di Milano.
Milano: Università Luigi Bocconi, 1939.
21 BECCARIA, Cesare. Elementi di economia publica... ; LONGO, Alfonso. Istituzioni economico...
30
| Capítulo 1
Alexander de Castro
as reformas executadas na Lombardia pela coroa austríaca estariam,
em boa medida, de acordo com aquilo que era proposto pelo círculo
dos intelectuais que escreviam em Il Caffè.
Graças à questão econômica, a característica luta dos monarcas
contra os estamentos ganha novo componente: agora eles não são
apenas os rivais da coroa na luta pelo poder dentro do Estado, eles
são também aqueles que impedem a aplicação de uma política mais
racional, voltada para o desenvolvimento econômico e o conseqüente fortalecimento institucional – o que afeta a luta política face aos
concorrentes externos. O poder político e os privilégios nobiliárquicos, especialmente patrícios, que caracterizavam a estrutura política
milanesa eram óbices para o programa econômico modernizador
e dinamizador que necessariamente deveria fazer parte do projeto
absolutista da monarquia austríaca – e, assim, o avanço do reformismo habsbúrgico na esfera econômica implicaria necessariamente o
declínio do patriciado milanês.22 Além do declínio do poder político
patrício, as reformas econômicas ainda conduziam à ascensão de novos grupos sociais. Podemos dizer, destarte, que a questão econômica
não muda apenas o sentido da luta interna pelo poder político entre
o monarca e os estamentos, ela também altera sua dinâmica, pois o
papel negativo que a aristocracia acabaria adquirindo em relação ao
desenvolvimento econômico (que, é claro, não interessava apenas à
coroa, mas ao próprio conjunto social, de forma geral) contribuiria
decisivamente para eliminar a hegemonia social da aristocracia. Além
disso, o sucesso das reformas econômicas, ao promover a ascensão
de novos grupos sociais, criaria uma enorme base social de apoio ao
monarca.23 Ante os benefícios sociais mais ou menos gerais advindos
da política de fortalecimento econômico, a nobreza – e o patriciado em
particular – cairá em progressivo e crescente descrédito face ao conjunto social.24 A partir de então, dificilmente ela conseguirá mobilizar
22
CARPANETTO, Dino; RICUPERATI, Giuseppe. L’Italia del settecento: crisi, trasformazioni,
lumi. Roma-Bari: Laterza, 1994, p. 198.
23 SCHOBER, Richard. Gli effetti delle riforme di Maria Teresa sulla Lombardia. In: MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro (org.). Economia, istituzioni,
cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna:
Il Mulino, 1982, p. 201-2.
24 GORANI, Giuseppe. Il vero dispotismo. In: VENTURI, Franco. Illuministi italiani. Tomo
III, Riformatori lombardi, piemontesi e toscani. Milano: Riccardo Riccardi.
Capítulo 1 |
31
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
as massas, sejam urbanas ou camponesas, em rebeliões contra o poder
real, tal como as que marcaram o século XVII por toda a Europa.
A percepção, por parte dos jovens filósofos, de que o monarca
era a única força que, naquele contexto, realmente poderia realizar as
reformas necessárias e implementar um processo de desenvolvimento
econômico nos termos propostos levou-os definitivamente para o
lado do absolutismo. A questão econômica – ou, mais exatamente, a
mesma posição em relação aos problemas econômicos – propiciava a
aproximação entre os filósofos do círculo do Il Caffè e o absolutismo
austríaco. Na medida em que os estamentos, com seus privilégios,
impediam o desenvolvimento econômico e a implementação de
reformas de interesse geral, eles eram retratados nos escritos dos
jovens iluministas lombardos como o verdadeiro poder despótico
contra o qual se deveria lutar e contra o qual o soberano já estava
efetivamente lutando.25 Podemos dizer, assim, que a identificação
dos jovens filósofos iluministas da Lombardia com o absolutismo
baseava-se, ao menos em princípio, na posição comum em relação à
questão econômica e na postura antinobiliárquica.
O absolutismo esclarecido é a fusão da tendência modernizadora e racionalizadora que vinha da filosofia iluminista com aquela
outra tendência, também modernizadora e racionalizadora, que partia
das dinastias reinantes em cada Estado. A articulação entre as duas
propostas reformadoras e a formação, a partir delas, de uma única
tendência reformista que articulava os desígnios centralizadores
dos monarcas, em sua luta pelo poder contra adversários internos e
externos, com o anseio filosófico por reformas que melhorassem as
condições de vida e promovessem o progresso humano, implicava
necessariamente a articulação entre os portadores dessa filosofia, os
filósofos iluministas, e o projeto político absolutista em uma espécie
de aliança, ainda que tácita, entre eles e a coroa. Para que isso fosse
possível era necessário que os próprios sujeitos da filosofia iluminista
aderissem ao projeto absolutista da casa da Áustria e que sua colaboração fosse aceita – isto é, que exercessem alguma influência sobre os
25
32
GORANI, Giuseppe. Il vero dispotismo... ; CAPPIELLO, Ida. L’idea di stato nell’Illuminismo
lombardo. In: MADDALENA, Aldo De; ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro (org.).
Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura
e Società. Bologna: Il Mulino, 1982, p. 972-3.
| Capítulo 1
Alexander de Castro
caminhos trilhados pela coroa em sua luta pela centralização política
e no que foi feito por ela com o poder concentrado em suas mãos.26
Como visto, os filósofos da Società dei Pugni contribuíram
decisivamente, com sua defesa da necessidade de reformas que modernizassem a Lombardia, para reformular a imagem do monarca
em sua empreitada absolutista. Mas para que a fusão da filosofia
iluminista com a proposta absolutista realmente se realizasse – isto
é, para que as duas tendências que buscavam, por motivos próprios,
a racionalização institucional e social convergissem e formassem uma
só tendência reformadora – era necessário que os filósofos fossem
incorporados, de alguma forma, ao projeto político monárquico e
passassem a exercer, com suas idéias, alguma influência importante.
As características singularizadoras do contexto em que esse absolutismo tardio se desenvolvia determinavam suas necessidades que,
antes de qualquer coisa, diziam respeito ao aumento de eficiência da
máquina burocrática e ao desenvolvimento econômico necessário
para o fortalecimento institucional. Por um lado isso demandava,
de Viena, uma política reformadora dirigida à modernização institucional e à racionalização burocrática das instituições. Por outro,
era necessário implementar políticas que rompessem os entraves
à dinamização da economia. Tudo isso determinaria o tipo de colaboração e de colaboradores demandados por Viena. Para que tal
projeto fosse viável era necessário, sobretudo, contar com um quadro administrativo que, além de fiel à coroa, fosse suficientemente
competente para realizar as tarefas necessárias. A identificação entre
a proposta absolutista e as reivindicações dos jovens filósofos do Il
Caffè – baseadas, sobretudo, na questão econômica (isto é, na idêntica
postura pró-desenvolvimentista) e na questão nobiliárquica (isto é,
na postura antinobiliárquica e, principalmente, antipatrícia), além da
notória capacidade intelectual daqueles jovens polemistas que, com
seu jornal e suas obras individuais, opinavam sobre todas as questões
importantes da política e da economia milanesas – não permitiria que
fossem ignorados por muito tempo pelos representantes da coroa
austríaca. A absorção dos iluministas milaneses nos quadros funcio26
BARBARISI, Gennaro. L’elogio di Maria Teresa di Paolo Frisi. In MADDALENA, Aldo De;
ROTELLI, Ettore; BARBARISI, Gennaro (org.). Economia, istituzioni, cultura in Lombardia nell’età
di Maria Teresa. Volume secondo: Cultura e Società. Bologna: Il Mulino, 1982, p. 352.
Capítulo 1 |
33
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
nais da coroa, em sua empreitada absolutista, completa o processo de
formação do absolutismo esclarecido na Lombardia austríaca.27
A fusão das duas tendências modernizadoras – a representada
pela filosofia iluminista e a do absolutismo tardio – não configurava, entretanto, um encontro perfeito. As urgentes necessidades
que atingiam com toda força o projeto de poder das dinastias que
se confrontavam, de tempos em tempos, no cenário político internacional e que, em meio a uma economia capitalista cada vez mais
desenvolvida, miravam-se no exemplo de potências como a França e a
Inglaterra, obrigavam-nas a um agressivo programa de racionalização
social que deveria tornar mais eficiente a administração do Estado,
fomentar o desenvolvimento econômico e submeter os estamentos
e os poderes políticos autônomos. O Iluminismo, por outro lado, era
uma corrente filosófica que fundava na racionalidade humana um
projeto de emancipação; uma emancipação da tradição, dos dogmas
religiosos, das forças da natureza, mas uma emancipação também do
poder político ilegítimo, assim considerado aquele que não se baseava na autonomia humana individual, inerente à idéia de que cada
ser humano é um ser racional. A poderosa influência do liberal John
Locke na formação do ideário iluminista, tão perceptível quando se
vasculham os textos da filosofia francesa do século XVIII, não poderia
não ter deixado marcas profundas. Portanto, se bem analisarmos,
apesar da convergência verificada entre ambos, constataremos que
Iluminismo e absolutismo possuíam interesses específicos quando
consideramos um em relação ao outro. Não havendo, destarte, uma
coalizão perfeita no compromisso entre o absolutismo e a filosofia
iluminista, o lugar central, o lugar de comando, caberia certamente
ao absolutismo. A racionalidade das Luzes ficava, de certa forma,
subordinada à racionalidade do acúmulo de poder. É claro que algo
do espírito original do Iluminismo deveria perder-se.
A filosofia do século XX nos ensina que o projeto da modernidade, do qual o Iluminismo é o principal representante, ancorava-se
em uma racionalidade instrumental, que apontava para a dominação, e em uma racionalidade comunicativa, que apontava para a
emancipação – ou em um pilar regulatório e outro emancipatório,
27
34
CAPPIELLO, Ida. L’idea di stato..., p. 969.
| Capítulo 1
Alexander de Castro
se preferirmos.28 Quando olhamos para as idéias que fervilhavam
nas obras dos autores do século XVIII vemos que as duas coisas,
dominação e emancipação, estavam profundamente imbricadas.
Segundo a crítica filosófica contemporânea, os problemas da modernidade teriam começado quando o aspecto instrumental colonizou
o comunicativo-emancipatório. O fato de os ideais democráticos e
republicanos do Iluminismo ter sido relegados a segundo plano,
na sua fusão com o absolutismo, talvez seja um indício de que,
efetivamente, na aliança da filosofia das Luzes com aquelas formas
políticas autocráticas, o elemento instrumental de sua racionalidade
tenha sido isolado e alçado ao primeiro plano.
A absorção dos intelectuais do Iluminismo lombardo no projeto
político do absolutismo habsbúrgico, na condição de funcionários da
coroa, colocou a capacidade intelectual daqueles jovens intelectuais
a serviço do planejamento das estratégias da ascensão da autocracia
régia contra a pluralidade de poderes políticos que caracterizava a
sociedade do Antigo Regime. Nesse processo, o intelectual iluminista,
assim absorvido e transformado em funcionário administrativo da coroa, tem seu papel redefinido: agora ele não é mais o conselheiro do rei
que pensa globalmente a sociedade, não apenas ajudando-o a alcançar
as metas estipuladas, mas interferindo também na definição das próprias metas; agora ele é o técnico em problemas jurídicos, econômicos
ou cameralísticos que articula os meios necessários para alcançar os
fins determinados pelo monarca e seus altos ministros.29 É claro que
aquela imagem de conselheiro do rei, ao menos na Lombardia, nunca
correspondeu propriamente à realidade, mas era a maneira como os
iluministas lombardos compreendiam, em princípio, seu papel dentro
do projeto modernizador e reformador do absolutismo habsbúrgico. A subordinação do intelectual iluminista ao projeto autocrático
do absolutismo tardio é a subordinação do próprio Iluminismo aos
28
Estamos nos referindo aqui, evidentemente, às idéias de Jürgen Habermas e Boaventura
de Sousa Santos, respectivamente.
29 As Consulte amministrative de Beccaria são um eloqüente exemplo do tipo de trabalho
intelectual que se esperava de um funcionário josefino (BECCARIA, Cesare. Consulte
amministrative. In: BECCARIA, Cesare. Opere. Sergio Romagnoli (a cura di). Firenze:
Sansoni, 1958). Sobre o tema, ver: CAPRA, Carlo. Il gruppo del “Caffè” e le riforme. In:
FERRONE, Vincenzo; FRANCIONI, Gianni (org.). Cesare Beccaria: la pratica dei lumi. Atti
del Convegno. Firenze: Leo S. Olschki, 2000, p. 66.
Capítulo 1 |
35
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
desígnios da pura acumulação do poder, à lógica de uma espécie de
nova razão de Estado.30 Podemos nos perguntar, certamente, se isso
ainda tem alguma coisa a ver com Iluminismo ou se estamos em uma
zona na qual o que se vê é apenas a projeção das sombras criadas por
suas Luzes. Esse pode ser, no entanto, um falso problema, pois, de
qualquer maneira, a sombra sempre tem alguma coisa a ver com a
luz que a tornou possível. Cesare Beccaria talvez tenha representado
justamente o caso mais extremo desse fenômeno.31
A história do Iluminismo lombardo guarda, entretanto, um
momento de singular brilhantismo para a cultura italiana do século
XVIII. Um momento em que, em Paris, capital mundial da filosofia
das Luzes, falava-se com curiosidade e entusiasmo dos progressos da
École di Milan. O ponto-chave desse momento, seu fato propulsor, foi
a publicação da obra Dei delitti e delle pene, de Cesare Beccaria. Graças
a essa obra, a cosmopolita república das letras da Europa tomou conhecimento da existência dos jovens patrícios milaneses. A partir de
então Beccaria seria, perante a Europa, a figura central do Iluminismo
na Lombardia, o grande representante das Luzes em Milão, o que lhe
renderia enorme inveja e profundo rancor da parte de Pietro Verri.
Veremos então Beccaria trocar correspondência com alguns ilustres
nomes da Ilustração francesa, ser recebido em Paris como celebridade
pelo círculo dos philosophes, ser convidado por Catarina II, soberana da
Rússia, para escrever o código penal de seu império. Veremos também
Voltaire, o arrogante líder do partido dos philosophes franceses, que era
bajulado por uma infinidade de jovens escritores que acorriam a Paris
buscando fazer carreira no mundo intelectual, pedir humildemente a
Beccaria alguns conselhos jurídicos referentes aos célebres processos
em que se envolveu nas décadas de 1760 e 1770.32
Nesse momento de brilho do Iluminismo lombardo, protagonizado justamente por Beccaria, aquele que mais do que qualquer outro
simbolizaria seu declínio, não haveria nada que indicasse os destinos
30
31
FRIGO, Daniela. op. cit.
CAPRA, Carlo. Il gruppo..., p. 68; ZORZI, Renzo. Cesare Beccaria. Il drama della giustizia.
Milano: Bollati Borighieri, 1996.
32 Veja-se, a esse respeito, a carta de Voltaire a Beccaria contida em: VOLTAIRE. Comentários
políticos. Trad. Antonio de Pádua Danesi, revisão Cláudia Berliner. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
36
| Capítulo 1
Alexander de Castro
da cultura iluminista em Milão? Não haveria nada que antecipasse a
triste decadência dos valores liberais, republicanos e democráticos,
tão profundamente ligados ao código genético do Iluminismo, e a
ascensão exclusivista de uma racionalidade instrumental soberana e
autocrática? São precisamente essas as perguntas a que tentaremos responder, analisando alguns aspectos da obra Dei delitti e delle pene.
3.
O Legislador e o absolutismo esclarecido de Helvétius a Beccaria
Quando se lê as primeiras páginas de Dei delitti e delle pene, a
atenção de qualquer conhecedor da história do pensamento político
é imediatamente atraída para as idéias contratualistas que Beccaria
utiliza ao fundamentar a estrutura política em que inscreve seu
sistema penal.33 Essas idéias apresentam uma enorme proximidade
com o contratualismo inglês (de Hobbes e de Locke), o que leva
muitos estudiosos a buscar nesses autores possíveis influências. O
fato de o contratualismo ser tão profundamente ligado à imagem
de Jean-Jacques Rousseau levou mais de um analista a afirmar, ao
contrário, que a verdadeira raiz das idéias políticas de nosso autor
foi o polêmico genebrino.34
Quanto à afirmação de que o contratualismo de Beccaria se
inspirava em Hobbes, pois ele partia da hipótese de uma guerra de
todos contra todos, devemos objetar que, ainda que parta da idéia de
um estado de guerra original, o contrato social visa sacrificar apenas
uma parcela da liberdade para proteger o restante.35 Temos muito
33
Vejamos algumas passagens onde desponta o contratualismo de Beccaria: “La prima
conseguenza di questi principii è che le sole leggi possono decretar le pene su i delitti, e
quest’autorità non può risedere che presso il legislatore, che rappresenta tutta la società
unita per un contratto sociale” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Itália: Garzanti,
1987, p.13.). Ainda: “La seconda conseguenza è che se ogni membro particolare è legato
alla società, questa è parimente legata con ogni membro particolare per un contratto che
di sua natura obbliga le due parti” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p. 13.). E ainda: “Le
leggi sono le condizioni, colle quali uomini indipendenti ed isolati si unirono in società,
stanchi di vivere in un continuo stato di guerra e di godere una libertà resa inutile dall’incertezza di conservala. Essi ne sacrificarono una parte per goderne il restante con sicurezza
e tranquillità” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p.10).
34 VENTURI, Franco. Utopia e riforma nell’Illuminismo. Torino: Einaudi, 1989.
35 Além disso, o próprio Beccaria afirma que seu modelo contratualista não é de tipo hob-
Capítulo 1 |
37
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
mais um esquema de pensamento de índole liberal. Mas antes de
afirmarmos, então, que se trata de um modelo inspirado em Locke,
devemos lembrar que dois obstáculos nos impedem de traçar um
paralelo perfeito entre os dois autores: o primeiro é que, em Locke,
não há propriamente uma contradição entre a liberdade do Estado
de natureza e a do estado social, pois o que se concede é apenas o
direito de aplicar as sanções às violações do direito natural; o segundo
são as críticas que Beccaria faz ao direito de propriedade, que fundamenta toda a arquitetura política de Locke. A afirmação, já muito
repetida, de que Beccaria partiria do contratualismo de Rousseau
é, acreditamos, desprovida de fundamento, entre outros motivos
pelo fato de Beccaria trabalhar com a idéia de representação política,
condenada por Rousseau.
O problema não-resolvido da origem das idéias contratualistas de Beccaria é complementado por outro. Há muito se percebeu
que, no sistema de Dei delitti e delle pene, a argumentação de Beccaria
muitas vezes vale-se de idéias de índole utilitarista. O utilitarismo,
como sabem os leitores de Bentham, era profundamente hostil às
idéias de contrato social e de direito natural.36 De tal maneira, como
seria possível a Beccaria compatibilizar as duas ordens de idéias? Será
que ele não tinha consciência da profunda incompatibilidade entre
ambas ou será que, sendo consciente dela, resolveu comprometer a
solidez de seu edifício teórico compondo um ecletismo conveniente,
mas absurdo? A investigação da origem das idéias utilitaristas de
Beccaria pode ajudar a resolver este emaranhado de questões.
A origem das idéias utilitaristas de Beccaria está na poderosa
influência exercida por Claude-Adrien Helvétius – um filósofo hoje
besiano: “Sarebbe un errore a chi, parlando di stato di guerra prima dello stato di società,
lo prendesse nel senso hobbesiano, cioè di nessun dovere e di nessuna obbligazione anteriore, in vece di prederlo per un fatto nato dalla corruzione della natura umana e dalla
mancanza di una sanzione espressa. Sarebbe un errore l’imputare a delitto ad uno scrittore,
che considera le emanazioni del patto sociali, di non ammetterle prima del patto istesso”
(BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p.5).
36 Ver: SONTAG, Ricardo. Lei penal e exemplaridade econômica. A execução das penas como
extensão dos enunciados legislativos em Jeremy Bentham. Do mesmo autor, ver ainda:
SONTAG, Ricardo. Pannomion. Teoria da legislação e direito penal em Jeremy Bentham
ou o código como utopia lingüística. Monografia (Graduação) – Curso de graduação em
Direito, Departamento de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2007. Orientador: Arno Dal Ri Jr.
38
| Capítulo 1
Alexander de Castro
relativamente esquecido, mas que esteve muitas vezes no centro das
discussões dentro do Iluminismo francês. Seu pensamento, ao lado
do de autores como Julien-Offroy de la Mettrie, Holbach e Étienne
Bonnot de Condillac, pertence àquilo que muitas vezes se chamou
de materialismo radical francês. Este setor do Iluminismo francês teve
grande prestígio dentre os jovens iluministas milaneses e encontrou
neles uma entusiasmada zona de influência. A análise de Dei delitti
e delle pene permite constatar o quanto Beccaria deve às idéias que
Helvétius expôs em sua principal obra, Do espírito.37
O utilitarismo, que em solo inglês transformou-se em movimento filosófico e encontrou em Jeremy Bentham seu nome mais ilustre
e uma de suas primeiras grandes (talvez a maior) elaborações sistemáticas, seria, em seu desenvolvimento mais rigoroso, francamente
incompatível com a perspectiva contratualista e jusnaturalista. A
presença das idéias de índole utilitarista na obra de Beccaria, oriundas deste materialismo francês, parece colocar alguns obstáculos ao
desenvolvimento mais rigoroso e, digamos, mais clássico das teses
37
O impacto desta obra de Helvétius sobre o marquês de Beccaria é atestado por um trecho
de sua famosa carta a Morellet: “A segunda obra que terminou a revolução do meu ânimo
foi a do Sr. Helvétius. Ele lançou-me com força no caminho da verdade e foi o que primeiro
despertou minha atenção para a cegueira e as desventuras da humanidade. Devo à leitura
do ‘Espírito’ uma grande parcela de minhas idéias” (BECCARIA, Cesare. Carta de Beccaria
a Morellet. Dos delitos e das penas. 11. ed. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1996,
p.159). Gianni Francioni não deixou de notar a importância que as idéias de Helvétius têm
para Beccaria, a par das influências contratualistas: “Il ‘sistema’ teorico di Dei delitti e delle
pene è frutto della combinazione di precisi blochi concettuali della cultura sei-settecentesca:
assunta da Montesquieu la tematica di fondo dell’opera (lo scopo de Beccaria potrebbe dirsi
quello di comporre uma sorta di ‘Spirito delle leggi criminalli’ mutuato dall’Esprit des lois,
prelevando altresì da Montesquieu diverse soluzioni di problemi specifici via via affrontati nei Delitti), l’autore connete questa tematica ad un contrattualismo fondamentalmente
lockiano, anche se reso spesso tramite suggestioni e immagini che provengono da Grozio,
Hobbes e Rousseau. Il quadro filosofico di fondo – la filosofia che propriamente circola nel
fortunato pamphlet – è costituito dalla teoria utilitarista di Helvétius” (FRANCIONI, Gianni.
Beccaria filosofo utilitarista. In: Cesare Beccaria tra Milano e l’Europa: convegno di studi per
il 250º anniversario della nascita. Milano: Cariplo-Laterza, 1990, p. 69). Da mesma forma,
Gianmarco Gaspari, valendo-se da mencionada carta, ressalta a importância de Helvétius
para a obra de Beccaria: “Quanto a Helvétius, la sua presenza nell’area terminale della speculazione beccariana non può a sua volta non ricondurci nuovamente al principio di quella,
e non soltanto per considerare il ruolo prioritario assunto dalle tesi utilitaristiche dell’Esprit
nel tessuto dei Delitti, ma anche perché senza equivoci sia chiara la portata dell’afermazione
che s’incontra nella celebre lettera a Morellet del gennaio 1766 (...)” (GASPARI, Gianmarco.
Beccaria e la crisi del sensismo. In: Cesare Beccaria tra Milano e l’Europa: convegno di studi
per il 250º anniversario della nascita. Milano: Cariplo-Laterza, 1990, p. 110).
Capítulo 1 |
39
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
contratualistas. As relações estabelecidas entre as duas correntes
no interior da obra do marquês e a função cumprida por cada uma
merecem análise mais detida.38
De tal forma, concentremos nossa atenção por um momento
justamente nas relações entre contratualismo e utilitarismo no interior
da obra de Beccaria. Como dissemos, o sistema teórico do utilitarismo apresenta determinados princípios que, quando levados a todas
as suas conseqüências, se mostram incompatíveis com os esquemas
políticos contratualistas. Esta circunstância levou algumas vezes à
observação crítica segundo a qual Beccaria perdeu-se na confusão
de duas correntes não só distintas, mas contraditórias entre si.39
Outra postura relata, ao contrário, que as duas correntes teóricas
contrapostas se apresentam, no interior da obra de Beccaria, em um
“difícil equilíbrio”, como se nosso autor, estando ou não cônscio
da contradição entre elas, de certa forma procurasse sustentar um
singular ecletismo filosófico, relutando em abandonar duas ordens
de argumentação tão sedutoras e de capacidades persuasivas tão
fortes.40 Esta postura (representada por Franco Venturi) é transformada por Gianni Francioni em uma característica não só de Beccaria,
mas de toda uma época do desenvolvimento da teoria utilitarista. Na
opinião deste autor, o equilíbrio entre as duas correntes teóricas é o
que caracteriza não apenas Beccaria, mas grande parte do utilitarismo
deste período que ele vem a representar.41 Francioni sustenta sua tese
38
Gianni Francioni percebeu bem a importância desta questão: “È rimasto tuttavia al centro
della discussione un problema non secondario: ci si continua a chiedere in quali termini
possa avvenire, nel pensiero di Beccaria, la conciliazione di contrattualismo e utilitarismo. Molti critici (il Mondolfo fra questi) hanno rilevato nei Delitti una confusione di due
correnti teoriche distinte e di fatto incompatibili” (FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo
utilitarista... p. 69). ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo di Cesare Beccaria.
Napoli: Istituto Italiano per gli Studi Storici, 1971.
39 Além do caso de Mondolfo, também Riccardo Campa, que, em prefácio a uma edição
brasileira de Dos delitos e das penas, talvez influenciado pelo próprio Mondolfo, afirma:
“Beccaria talvez não perceba a contradição existente entre o utilitarismo e o contratualismo [...]” (CAMPA, Riccardo. Prefácio. In: Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e
Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 13).
40 VENTURI, Franco. Introduzione. In: BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Com uma
raccolta di lettere e documenti relativi alla nascita dell’opera e alla sua fortuna nell’Europa
del settecento. Franco Venturi (a cura di). Torino: Einaudi, 1958.
41 “In modo più pertinente, rispetto a precedenti interpreti, Franco Venturi ha segnalato il
“difficile equilibrio” in cui le due tendenze filosofiche in questione si presentano nella
pagina di Beccaria. Io vorrei cercare di andare più in là, e mostrare come l’equilibrio fra
le due componenti del pensiero di Beccaria sia quello che caratterizza gran parte dell’uti-
40
| Capítulo 1
Alexander de Castro
na observação de que as críticas dirigidas à postura eclética de Beccaria, em um tom que apontaria para um equívoco insustentável do
marquês, se fundariam numa leitura anacrônica de seu utilitarismo,
mais precisamente em uma retroprojeção do utilitarismo de Bentham
no jurista italiano. Assim, tais acusações são possíveis apenas se
partirmos dos princípios utilitaristas de Bentham, estes sim franca e
explicitamente inconciliáveis com o contratualismo. Mas isso, é claro,
constituiria grave erro, pois significaria procurar em Beccaria princípios benthamianos, reprovando-o, depois, por não os possuir.
De tal forma, na opinião de Francioni, diversamente do que
acontece no utilitarismo de Bentham (e no utilitarismo pós-benthamiano em geral), onde se rechaça cabalmente o contrato social e o
direito natural, no utilitarismo dos séculos XVII e XVIII o princípio
da utilidade e a idéia de contrato vão aparecer conjugados. Já em
Helvétius, e não apenas em Beccaria, este fenômeno é observável.42
A conjugação do utilitarismo com uma perspectiva contratualista
seria, portanto, uma conseqüência de certa forma natural de seu
desenvolvimento, e não o produto de um incompetente ecletismo
filosófico.43 Vejamos as palavras de Helvétius:
Quando os homens, ao multiplicar-se, começaram a
estender-se pela superfície da terra e, como as ondas do
oceano que invadem terra adentro suas margens para
deitar-se imediatamente em seu seio, várias gerações
apareceram sobre a terra para deitar-se no abismo no
qual os seres se destruíam; quando as famílias estiveram mais perto umas das outras, então, o desejo de todos de possuir as mesmas coisas, tais como os frutos de
uma certa árvore ou os favores de certa mulher, geraria
disputas e combates entre eles: assim nasceram a cólera
e a vingança. Quando, fartos de sangue e cansados de
viver continuamente atemorizados, consentiram em
perder um pouco da liberdade que possuíam no estado natural e que os prejudicava, fariam pactos. Esses
pactos serão suas primeiras leis, e feitas as leis, era
42
43
litarismo settecentesco” (FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 70).
FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 70.
FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista... p. 70.
Capítulo 1 |
41
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
necessário encarregar alguns homens de sua execução:
já temos os primeiros magistrados.44
Fica clara, nesta passagem, a presença do esquema contratualista em Helvétius. O trecho se encontra no capítulo de Do espírito
intitulado Da origem das paixões, onde o autor procura demonstrar
como todos estes motores das ações humanas são sempre derivações
das sensações físicas básicas de prazer e dor. O contratualismo de Helvétius está, assim, envolto naquela linha teórica que, desenvolvendose por todo o livro, definirá a posição utilitarista de nosso autor,45
44
“Cuando los hombres, al multiplicarse, empezaron a extenderse por la superficie de la
tierra y, como las olas del océano que invaden tierra adentro sus orillas para replegarse
inmediatamente en su seno, varias generaciones hubieron aparecido sobre la tierra para
replegarse en el abismo en el que los seres se destruyen; cuando las familias estuvieron más
cerca las unas de las otras, entonces, el deseo de todos de poseer las mismas cosas, tales
como los frutos de un cierto árbol o los favores de cierta mujer, generaría disputas y combates entre ellos: así nacerían la cólera y la venganza. Cuando, hartos de sangre y cansados
de vivir continuamente atemorizados, consintieron en perder un poco de la libertad que
poseían en el estado natural y que les perjudicaba, pactarían convenios. Estos convenios
serán sus primeras leyes, y hechas las leyes, era necesario encargar a algunos hombres de
su ejecución: ya tenemos a los primeros magistrados” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del
espiritu. Trad. José Manuel Bermudo. Madrid: Editora Nacional, 1984, p.334-5). O leitor
certamente deve ter notado o quão semelhantes são estas palavras às de Beccaria, que
aqui recordamos: “Le leggi sono le condizioni, colle quali uomini indipendenti ed isolati si
unirono in società, stanchi di vivere in un continuo stato di guerra e di godere una libertà
resa inutile dall’incertezza di conservala. Essi ne sacrificarono una parte per goderne il
restante con sicurezza e tranquillità. La somma di tutte queste porzioni di ligertà sacrificate
al bene di ciascheduno forma la sovranità di una nazione [...]” (BECCARIA, Cesare. Dei
delitti... p.10). E mais adiante: “La moltiplicazione del genere umano, piccola per se stessa,
ma di troppo superiori ai mezzi che la sterile ed abbandonata natura offriva per soddisfare
ai bisogni che sempre più s’incrocicchiavano tra di loro, riunì i primi selvaggi. Le prime
unioni formarono necessariamente le altre per resistere alle prime, e così lo stato di guerra
trasportossi dall’individuo alle nazioni. Fu dunque la necessità che costrinse gli uomini a
cedere parte della propria libertà: egli è adunque certo che ciascuno non ne vuol mettere
nal pubblico deposito che la minima porzion possibile, quella sola che basti a indurre gli
altri a difenderlo. L’aggregato di queste minime porzioni possibili forma il diritto di punire;
tutto il di più è abuso e non giustizia, è fatto, ma non già diritto” (BECCARIA, Cesare. Dei
delitti... p.12). Também fica claro pelo trecho citado que, apesar da referência a um estado
de guerra entre os indivíduos, Helvétius, assim como Beccaria, se aproxima do modelo
lockeano de contrato social ao falar da cessão de apenas uma parte da liberdade.
45 Podemos dizer que o mesmo acontece com Beccaria. Assim, logo após o trecho em que fala
da formação da soberania pela cessão de uma pequena parcela de liberdade individual,
ele dirá que, para proteger este depósito das liberdades de cada um, se fazem necessários
motivos sensíveis, e acrescenta: “Dico motivi sensibili, perché la sperienza ha fatto vedere
che la moltitudine non adotta stabili principii di condotta, né si allontana da quel principio universale di dissoluzione, che nell’universo fisico e morale si osserva, se non con
motivi che immediatamente percuotono i sensi e che di continuo si affacciano alla mente
per contrabilanciare le forti impressioni delle passioni parziali che si oppongono al bene
42
| Capítulo 1
Alexander de Castro
conforme veremos mais adiante. Fica claro também, como afirmamos,
que as teorias utilitaristas nascem, de certa forma, do desenvolvimento da idéia de utilidade dos esquemas do contrato social e da concepção de ser humano que vinha junto com ela. Um aprofundamento
psicológico nesta antropologia contratualista, que, deixando de isolar
e enfatizar as capacidades racionais do ser humano, procure sondar
a dinâmica das paixões e compor uma visão global da motivação humana, é o que faltaria para pôr este hedonismo egoístico no caminho
do utilitarismo. Tal aprofundamento psicológico foi realizado pelos
desenvolvimentos que a teoria empirista do conhecimento ganhou
na obra dos materialistas do iluminismo francês.
O sistema filosófico de Helvétius apresenta uma espécie de determinismo social orientado por um rígido causalismo, onde o homem
responde mecanicamente aos estímulos externos. Este causalismo
mecanicista demonstra o quanto Helvétius partilha aquela tendência
tão típica das ciências morais e políticas do século XVIII de construir
uma “física” das coisas humanas à maneira de Newton.46 Esta tarefa
de construir bases empíricas para as ciências morais, imitando o que
Newton havia feito com a física, implicava encontrar algum princípio
que funcionasse, na moral, tal como o princípio da gravitação universal funciona na física. Desde Condillac, o chamado princípio prazer/dor
viria a cumprir exatamente este papel. Este mesmo princípio aparece
em Helvétius47: em seu esquema, a motivação humana é produto de
um processo onde as sensações de prazer e dor produzem desejos que,
por sua vez, engendram no homem as mais diversas paixões. Estas
são a fonte que impulsiona o homem para todos os tipos de ações.
A paixão, enquanto derivada das sensações de prazer e dor, assume
lugar central no sistema de Helvétius, parelho ao que seria o papel do
movimento na física: “As paixões são na moral o que o movimento
universale: né l’eloquenza, né le declamazioni, nemmeno le più sublimi verità sono bastate
a frenare per lungo tempo le passioni eccitate dalle vive percosse degli oggetti presenti”
(BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p. 11).
46 Bermudo percebe bem a conexão entre empirismo e mecanicismo presente em Helvétius:
“El modo de inteligibilidad mecanicista, cartesiano o newtoniano (a estos efectos no es
relevante la distinción), al ser asumido por la filosofía, imponía a esta la tarea de escribir la
ciencia de la moral (‘una moral como ciencia experimental’, dice Helvétius en su ‘Prefacio’
al De l’Esprit)” (BERMUDO, José Manuel. Op. cit., p. 49).
47 Nas palavras de Helvétius: “A conclusão geral daquilo que disse sobre a origem das paixões é
que a dor e o prazer dos sentidos fazem os homens agir e pensar e são os únicos contrapesos
que movem o mundo moral” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 362).
Capítulo 1 |
43
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
é na física: cria, destrói, conserva, anima tudo; sem ele, só há morte.
São elas também que vivificam o mundo moral”.48
Ao contrário de certa tradição filosófica que tendia a dar valor
um tanto negativo para as paixões, vendo-as como a dimensão irracional do homem e fonte, portanto, de descaminhos morais, Helvétius
dá às paixões um valor altamente positivo. Para ele as paixões são
a força motriz do homem, o germe produtor do espírito. São as paixões fortes que levam os homens às grandes ações e a elas se devem
as maravilhas das ciências e das artes.49 As paixões fortes, fonte de
todas as ações audaciosas, podem levar os homens tanto às grandes
ações criminosas quanto às grandes ações virtuosas.50 Está descarta48
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 316. Mas Helvétius não apenas acolhe o
princípio prazer/dor, ele o compara explicitamente ao princípio da gravitação universal:
“Parece que, no universo moral como no universo físico, Deus colocou apenas um único
princípio, segundo o qual tudo o que foi, o que é e o que será, é apenas um desenvolvimento
necessário. Disse ele à matéria: Eu te dou força. Logo, os elementos, submetidos às leis do
movimento, mas errantes e confundidos nos desertos do espaço, formaram mil reuniões
monstruosas, produziram mil caos diversos, até que, enfim, se colocaram no equilíbrio e
na ordem física em que se supõe agora o universo organizado. Parece que paralelamente
ele disse ao homem: Eu te dou sensibilidade; é por ela que, cego instrumento de minhas
vontades, incapaz de conhecer a profundeza de meus pensamentos, deves, sem sabê-lo,
cumprir todos os meus desígnios. Coloco-te sob a guarda do prazer e da dor; um e outra
vigiarão teus pensamentos, tuas ações; engendrarão tuas paixões... e, depois de ter-te feito
criar mil sistemas absurdos e diferentes de moral e de legislação, mostrar-te-ão um dia os
princípios simples a cujo desenvolvimento se vincula a ordem e a felicidade do mundo
moral” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 333).
49 Diz Helvétius: “É portanto às paixões fortes que se devem a invenção e as maravilhas das
artes; deve-se considerá-las, pois, como o germe produtor do espírito e o motor poderoso
que leva os homens às grandes ações” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 316).
E mais à frente: “Com efeito, são as paixões fortes que, mais esclarecidas do que o bom
senso, podem ensinar-nos a distinguir o extraordinário do impossível, que quase sempre
as pessoas sensatas confundem, porque, não sendo de modo algum animadas por paixões
fortes, essas pessoas sensatas sempre são apenas homens medíocres: proposição que
vou provar, para fazer sentir toda a superioridade do homem passional sobre os outros
homens e mostrar que realmente só as grandes paixões podem criar os grandes homens”
(HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 321).
50 Para Helvétius, as paixões produzem tanto os vícios quanto as virtudes: “Para saber se
é da natureza ou da forma particular dos governos que depende a indiferença de certos
povos para com a virtude, é preciso primeiro conhecer o homem; penetrar até o abismo
do coração humano; lembrar-se que, tendo nascido sensível à dor e ao prazer, é à sensibilidade física que o homem deve suas paixões, e é a suas paixões que deve todos os seus
vícios e todas as virtudes” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 363). E, para
não deixar qualquer dúvida, acrescenta ele: “Vou, portanto, seguindo a metamorfose das
penas e dos prazeres físicos em penas e prazeres factícios, mostrar que, em paixões, tais
como a avareza, a ambição, o orgulho, a amizade, cujo objeto não parece fazer parte dos
prazeres dos sentidos, é, no entanto, sempre a dor e o prazer físico que buscamos ou de
que fugimos” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 336).
44
| Capítulo 1
Alexander de Castro
da, portanto, qualquer postura maniqueísta que coloque a paixão no
caminho do mal e a razão, enquanto seu contraponto, no caminho do
bem. Para nosso filósofo, o fator que direciona o impulso da paixão,
guiando-o seja para o bem, seja para o mal, é a forma de governo. A
organização política passa a ser, então, o foco das atenções de Helvétius. A ela se deve o sentido a que se direciona o comportamento
humano. A organização política de um Estado é que favorecerá o
surgimento de indivíduos virtuosos ou criminosos.
O fato de os homens buscarem sempre o prazer ou a fuga da
dor em todas as suas ações deve, portanto, ser usado em benefício
da virtude. Se a natureza possui as armas do prazer e da dor, os dois
agentes que engendram todas as paixões humanas, não as possui
menos a sociedade. Aliás, na medida em que as condições ambientais
de um homem que vive em sociedade são, como parece óbvio, muito
mais sociais do que naturais, então podemos dizer que, com relação
a quem nela viva, a sociedade pode engendrar e orientar paixões
através das armas do prazer e dar dor com muito mais facilidade.
Portanto, se os homens são virtuosos ou criminosos deve-se isso à
sociedade, à forma como ela está organizada, à sua estrutura política, à sua legislação. Assim, aquele que tem o poder de organizar a
sociedade, de interferir em sua estrutura, tem também o poder de
direcionar as ações humanas guiando-as para o bem. A figura do
Legislador aparece neste momento, e com destaque especial. Sobre
ele recaí a responsabilidade de produzir a organização política mais
adequada a favorecer a virtude dos cidadãos.51
Helvétius estabelece aqui um dualismo baseado no binômio
despotismo/liberdade52 para expor quais são as condições sociais
capazes de aperfeiçoar os indivíduos e quais contribuem, antes, para
gerar criminosos. Para ele, evidentemente, os governos livres são
aqueles que levam à virtude. Assim, Helvétius enxerga nos regimes
republicanos, tais como os que existiram em Roma e na Grécia, os
51
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu. p. 369. Helvétius afirma também, um pouco mais
à frente: “O ódio da maioria dos homens à virtude não é portanto resultado da corrupção de
sua natureza mas da imperfeição da legislação. É a legislação, ouso dizê-lo, que nos incita
ao vício, juntando-lhe com muita freqüência o prazer: a grande arte do legislador é a arte
de desuni-los e de não deixar nenhuma relação entre a vantagem que o celerado retira do
crime e o castigo a que ele se expõe” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu. p. 369).
52 HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 370.
Capítulo 1 |
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CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
mais capacitados a gerar os melhores cidadãos. Em contrapartida, o
despotismo seria, acima de tudo, um encorajamento ao vício.53 Ele
realiza também outra interessante comparação, não entre dois povos
distantes no tempo ou no espaço, como Roma e algum reino oriental,
mas entre a França e a Inglaterra. Nesta comparação, ganha a Inglaterra. Ela figura, na pena de Helvétius, como a nação onde cada cidadão
participa dos assuntos públicos, onde os escritores célebres são mais
honrados do que em outras partes, onde o mérito é valorizado e onde
se encontra, com facilidade, gente instruída. Ao contrário da França,
cujo povo Helvétius caracteriza como o “mais frívolo da Europa”,54
a Inglaterra teria cidadãos dotados de espírito de patriotismo e magnanimidade, algo que, de acordo com nosso autor, se pode encontrar
apenas nos países livres. Helvétius conclui, assim, que a forma de
governo da Inglaterra apresenta grande vantagem sobre a da França.
É a ela que se deve a superioridade de espírito dos ingleses sobre
os franceses. E para ele os males da sociedade francesa residiam no
enorme poder que os estamentos ainda mantinham.55
Por tudo o que analisamos acima, não resta dúvida de que
Helvétius considerava a república como a melhor forma de governo. Entretanto, vivendo em um estado monárquico onde, apesar
dos avanços do absolutismo, os estamentos privilegiados, que tanto
prejuízo traziam à nação, ainda tinham tanto poder, talvez parecesse bastante vantajoso apostar em uma possível aliança entre o
monarca e os setores progressistas da sociedade. Em 1758, ano em
53
54
55
46
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del Espiritu... p. 394.
HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del Espíritu… p. 238.
Em Do espírito, as opiniões anti-estamentais de Helvétius são atenuadas com expressões
dúbias, nas quais os sacerdotes são chamados de fanáticos e os nobres, de semipolíticos. Mas
em carta a Montesquieu, elas assumem contornos bem claros: “Um rei é também escravo
de suas amantes, de seus protegidos e de seus ministros. Se ele se zanga, o pontapé que
recebem seus cortesãos se devolve e se propaga até o último grosseirão. Eis, imagino, o único
emprego ao qual podem servir os intermediários. Num país governado pelas fantasias de
um chefe, esses intermediários que o importunam procuram ainda enganá-lo, impedi-lo de
ouvir as confissões e as queixas do povo sobre os abusos de que apenas eles aproveitam.
[...] Como podeis ver, por intermediários eu entendo os membros dessa vasta aristocracia
de nobres e de sacerdotes cuja cabeça repousa em Versalhes, que usurpa e multiplica à
vontade quase todas as funções do poder, pelo único privilégio do nascimento, sem direito,
sem talento, sem mérito; e retém na sua dependência até o soberano a quem ela impõe a
sua vontade e faz mudar de ministro de acordo com a conveniência de seus interesses”
(HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Carta a Montesquieu. In: CONDILLAC, Étienne Bonnot de;
HELVÉTIUS, Claude-Adrien; DEGÉRANDO, Joseph-Marie. Op. cit., p. 162-3).
| Capítulo 1
Alexander de Castro
que foi publicado Do espírito, e em 1748, ano em que foi escrita a
correspondência a Montesquieu sobre os manuscritos de Do espírito
das leis,56 estávamos muito longe da conjuntura revolucionária de
1789 e parecia razoável esperar convencer o rei, naquele momento,
a implementar uma política reformadora que representasse uma
conjugação dos interesses da coroa com os de setores ascendentes,
como a burguesia, contra o poder dos estamentos. O monarca era
chamado, assim, a dar eficiência à burocracia, estimular as atividades
econômicas com reduções de tributos, livre comércio etc., estimular
as ciências, instruir a população, premiar o mérito em lugar do privilégio e ampliar a igualdade entre seus súditos. É difícil determinar
exatamente o que se passava na cabeça de Helvétius quando o assunto
eram as estratégias para lidar com os embates políticos quotidianos,
mas certamente não estava em seus planos uma revolução que colocasse abaixo a ordem estamental juntamente com a monarquia e
instituísse uma república democrática.
Em Helvétius podemos ver se desenhando o projeto de um tipo
específico de absolutismo, um absolutismo que suplanta os poderes
intermediários, portadores de ignóbeis interesses, e maximiza seu
poder para governar racionalmente a nação. Um absolutismo, portanto,
que se faz parceiro das Luzes, que governa com elas e que usa seu
poder para difundi-las por toda a sociedade. Um absolutismo que
reforma a sociedade, reorganizando-a segundo princípios capazes de
criar cidadãos virtuosos e ampliar ao máximo a felicidade de todos.
Para levar a cabo esta empreitada, Helvétius oferecia ao soberano toda
aquela ciência do espírito contida em sua principal obra, que ensina
como se deve legislar sabiamente e aperfeiçoar, por meio da legislação,
a sociedade. Assim, o projeto de sociedade elaborado em Do espírito,
que evidentemente não poderia, em curto prazo, ser implementado
na França em toda a sua plenitude, deveria servir, entretanto, como
um manual prático destinado a orientar o soberano na realização de
reformas que almejassem o aperfeiçoamento da sociedade.57 Esse
56
57
Ver nota anterior.
De tal forma discordamos profundamente do que diz Tarello sobre Helvétius: “Si tratta,
come è evidente, di una dottrina del diritto completamente irrelata alle condizioni e alle
immediate prospettive di sviluppo dell’organizzazione giuridica francese, nei confronti
della quale esprime – ed è, con quella di Morelly, la prima espressione in senso cronologico – un atteggiamento di rifiuto integrale e senza possibilità di compromesso; una
Capítulo 1 |
47
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
projeto de um absolutismo que governa segundo princípios filosóficos
merece, certamente, ser chamado de absolutismo esclarecido.
Em face do que vimos até aqui, fica claro que, de todos os autores
da filosofia política moderna, foi Helvétius o que mais influência exerceu sobre Beccaria. Na verdade, quase todos os pontos de Dei delitti e
delle pene são uma aplicação ao estudo do direito penal dos princípios
utilitaristas elaborados por Helvétius no âmbito da análise política.58
Tentaremos agora visualizar a presença das idéias helvetianas em
Dei delitti e delle pene. Da mesma maneira que Helvétius, Beccaria
entende que os fenômenos psicológicos do ser humano derivam exclusivamente das impressões sensíveis que o sujeito experimenta.59
Assim, a causalidade física dos sentimentos é a base da psicologia
e, portanto, das ações humanas. Tal como em Helvétius, o princípio
da ação humana é a busca do prazer e a fuga da dor, e este princípio
atua no ser humano de forma mecânica, sendo possível, portanto,
estudá-lo tal qual um fenômeno da física. Ao longo de todo o texto de
Dei delitti e delle pene aparecem comparações entre fenômenos físicos e
psicológicos que, em um primeiro momento, poderiam parecer meras
analogias, mas que na realidade refletem a postura de nosso autor
quanto à caracterização das ciências morais e políticas.60
As paixões engendradas pelas sensações de prazer e de dor,
que por sua vez são provocadas pelas impressões sensíveis, são uma
espécie de motor das ações humanas, um motor que pode ser direcionado racionalmente através da manipulação daquelas condições
dottrina, in altre parole, fortemente utopistica e atta ad utilizzazioni istituzionali solo dopo
una vera e propria ‘distruzione’ dell’ordine esistente” (TARELLO, Giovanni. Storia della
cultura giuridica moderna: assolutismo e codificazione del diritto. Bologna: Il Mulino, 1999).
Acreditamos, ao contrário, que a doutrina expressa por Helvétius diz respeito à possibilidade de um desenvolvimento das instituições políticas francesas em geral (e, portanto,
não somente das jurídicas), que se baseava em uma aliança, tida pelo autor como possível,
entre o soberano e os setores sociais progressistas, que evoluísse paulatinamente através de
reformas e que, portanto, não pressupunha, como ponto de partida, qualquer derrubada
violenta das instituições e nem manifestava qualquer tipo de intransigência utopística.
58 ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...
59 ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...; BIAGINI, Enza. Introduzioe a Beccaria.
Roma-Bari: Laterza, 1992.
60 “Se il piacere e il dolore sono i motori degli esseri sensibili, se tra i motivi che spingono
gli uomini anche alle più sublimi operazioni, furono destinati dall’invisibile legislatore
il premio e la pena, dalla inesatta distribuzione di queste ne nascerá quella tanto meno
osservata contradizione, quanto più comune, che le pene puniscano i delitti che hanno
fatto nascere” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p. 20).
48
| Capítulo 1
Alexander de Castro
ambientais que afetam a sensibilidade dos seres humanos.61 Beccaria
vê nas leis e na organização política em geral a forma de mudar as
condições ambientais do indivíduo e de, assim, manipulando os elementos que atuam em sua sensibilidade, agir sobre o princípio motor
do ser humano – o princípio prazer/dor – de forma a conduzir a ação
para o bem, desviando os indivíduos do crime e moldando cidadãos
virtuosos. Dentro da lógica deste raciocínio, a política e a moral – como
também a legislação e o direito em geral – não são a arte de se opor à
paixão, sufocando-a, mas a de guiá-la rumo ao bem-comum.62
O Legislador, portanto, deve agir como um arquiteto, planejando, através das leis, a estrutura política que tanto poder tem sobre a
sensibilidade humana e, conseqüentemente, sobre seus desejos e suas
paixões, de forma a que as tendências naturais do ser humano, que se
originam em sua sensibilidade, sejam conduzidas para o bem-comum.63
Destarte, a tendência natural do ser humano – aquela força semelhante à
gravidade que faz com que ele busque sempre o bem-estar, aquela eterna
ânsia pelo prazer e aquela eterna fuga da dor (o princípio da gravitação
universal dos seres orgânicos) – é a causa propulsora de suas ações e
reduz-se, no limite, à própria sensibilidade inseparável do homem. As penas,
ou os obstáculos políticos, não devem ter como objetivo a aniquilação
deste motor, mas apenas o direcionamento de sua força, seu uso em
benefício da solidez do edifício político. Em outras palavras, o Legislador
não deve tentar, com as penas, mortificar asceticamente as tendências
da sensibilidade humana, mas manobrá-las, através dos instrumentos
de que dispõe, fazendo com que elas, ao invés de conspirar contra a
sociedade, antes a fortaleçam. Vejamos as palavras de nosso autor:
Essa força semelhante à gravidade, que nos impele ao
bem-estar, só pode ser contida na medida dos obstáculos que se lhe opõem. Os efeitos dessa força são a série
61
ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...; BIAGINI, Enza. Introduzioe a Beccaria.
Roma-Bari: Laterza, 1992.
62 “Consultiamo il cuore umano e in esso troveremo i principii fondamentali del vero diritto
del sovrano di punire i delitti, poiché non è da sperarsi alcun vantaggio durevole dalla
politica morale se ella non sia fondata su i sentimenti indelebili dell’uomo. Qualunque
legge devii da questi incontrerà sempre una resistenza contraria che vince alla fine, in quella
maniera che una forza benché minima, se sia continuamente applicata, vince qualunque
violento moto comunicato ad un corpo” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... , p. 11-12).
63 ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...
Capítulo 1 |
49
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
confusa das ações humanas: se elas se entrechocam e se
ferem, as penas, a que eu chamaria obstáculos políticos, impedem seu efeito nocivo sem destruir a causa propulsora
que é a própria sensibilidade inseparável do homem; e o
legislador age como o hábil arquiteto cujo ofício é opor-se
às diretrizes destrutivas da gravidade e fazer colaborar
aquelas que contribuem para a solidez do edifício.64
No esquema de Helvétius, que Beccaria aplica à questão
penal, a Ética é absorvida na Estética (no sentido de uma teoria da
sensibilidade). O “bem” é o “útil” e o “útil” é o que causa “prazer”.
Evidentemente, esse bem não pode ser identificado apenas com o
prazer sensível individual, ou melhor, com o interesse individual
que, orientado para o bem-estar particular, desconsidere e afronte o
interesse dos outros membros da sociedade. O “bem” é, sobretudo,
o “Bem-Comum” que nasce da fusão dos diversos interesses individuais que buscam o bem –estar.65
Seguindo o exemplo de Helvétius, Beccaria exalta entusiasticamente os ideais republicanos e vê na república a forma de governo
mais apta a formar cidadãos virtuosos e corajosos na medida em que
64
“Quella forza simile alla gravità, che ci spinge al nostro ben essere, non si trattiene che a
misura degli ostacoli che gli sono opposti. Gli effetti di questa forza sono la confusa serie delle
azioni umane: se queste si urtano scambievolmente e si offendono, le pene, che io chiamerei
ostacoli politici, ne impediscono il cattivo effetto senza distruggere la causa impellente, che
è la sensibilità medesima inseparabile dall’uomo, e il legislatore fa come l’abile architetto
di cui l’officio è di opporsi alle direzioni rovinose della gravità e di far conspirare quelle
che contribuiscono alla forza dell’edificio” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p. 19).
65 Disto decorre, para nossos dois autores, em primeiro lugar, que a virtude não é entendida
como o sacrifício, por parte do indivíduo, de seus prazeres, seus hábitos e suas paixões
ao interesse público, e sim como a coincidência entre o interesse público e o individual;
em segundo lugar, que a estrutura política é vista como fundamentalmente narcisística.
Comparemos as palavras de Helvétius com as de Beccaria. Helvétius: “O homem virtuoso
não é, pois, aquele que sacrifica seus prazeres, seus hábitos e as mais fortes paixões ao interesse público, pois um homem assim é impossível, mas aquele cuja paixão mais forte está
de tal modo conforme ao interesse geral que ele é quase sempre impelido para a virtude”
(HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Do espírito... p. 368). Ou ainda: “É, portanto, unicamente
por boas leis que se pode formar homens virtuosos. Toda a arte do legislador consiste,
pois, em forçar os homens, pelo sentimento do amor de si mesmos, a serem sempre justos
uns em relação aos outros” (HELVÉTIUS, Claude-Adrien. Del espiritu... p. 258.). Beccaria:
“Nessun uomo ha fatto il dono gratuito di parte della propria libertà in vista del ben
pubblico; questa chimera non esiste che ne’ romanzi; se fosse possibile, ciascuno di noi
vorrebbe che i patti che legano gli altri, non ci legassero; ogni uomo si fa centro di tutte le
combinazioni del globo” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p. 12).
50
| Capítulo 1
Alexander de Castro
consegue fazer com que os indivíduos sirvam às leis buscando apenas
seu interesse pessoal. O regime monárquico é comparado por ele à
instituição familiar autoritária e esta, por sua vez, a um regime de
escravidão. Para Beccaria, o espírito monárquico é responsável pela
dissolução da idéia de bem-comum e pela supremacia da particularização dos interesses privados limitados aos detalhes imediatos,
enquanto que o “espírito regulador das repúblicas”, movido pelo
sentimento de liberdade e igualdade, preocupa-se com os princípios gerais e ordena os fatos segundo o interesse público. O espírito
monárquico, equiparado ao espírito de família, ensina aos homens
a submissão e funciona pelo temor; nele os benefícios devem necessariamente se limitar a um pequeno grupo e considera-se virtude
o sacrifício do indivíduo a ideais que nunca traduzem o interesse
geral. A república ensina a liberdade e a coragem, ensina a buscar o
interesse individual no geral; nela os benefícios devem estender-se
sobre todos os seus membros. Nas repúblicas o caminho da virtude é
simples. O espírito monárquico, ao contrário, envolve-o em tamanho
emaranhado a ponto de ocultá-lo completamente.66
As teses materialistas de Helvétius podem ser chamadas de
utilitaristas, pois nelas o critério supremo é o da utilidade, entendida
como prazer sensível. Helvétius representa, entretanto, uma espécie
de utilitarismo ainda totalmente envolto nos ideais iluministas e
que, como vimos, sequer se desprendeu totalmente do paradigma
contratualista. Assim, apesar de já se observar nele todas as linhas
básicas do núcleo de idéias daquilo que viria a ser conhecido como
utilitarismo – ou seja, aquele movimento teórico que elegia como
66
“Vi siano cento mila uomini, o sia ventimila famiglie, ciascuna delle quali è composta
di cinque persone, compresovi il capo che la rappresenta: se l’associazione è fatta per le
famiglie, vi saranno ventimila uomini e ottanta mila schiavi; se l’associazione è di uomini,
vi saranno cento mila cittadini e nessuno schiavo. Nel primo caso vi sarà una repubblica,
e ventimila piccole monarchie che la compongono; nel secondo lo spirito repubblicano
non solo spirerà nelle piazze e nelle adunanze della nazione, ma anche nelle domestiche
mura, dove sta gran parte della felicità o della miseria degli uomini. Nel primo caso, come
le leggi ed i costumi sono l’effetto dei sentimenti abituali dei membri della repubblica, o sia
dei capi della famiglia, lo spirito monarchico s’introdurrà a poco a poco nella repubblica
medesima; e i di lui effetti saranno frenati soltanto dagl’interessi opposti di ciascuno, ma
non già da un sentimento spirante libertà ed uguaglianza. Lo spirito di famiglia è uno spirito
di dettaglio e limitato a’ piccoli fatti. Lo spirito regolatore delle repubbliche, padrone dei
principii generali, vede i fatti e gli condensa nelle classi principali ed importanti al bene
della maggior parte” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... , p. 54-5).
Capítulo 1 |
51
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
princípio fundador de sua cosmovisão a utilidade –, seria errôneo
citar Helvétius como utilitarista, tal como citamos Bentham. Mas, se
não encontramos em Helvétius nenhuma máxima que expresse a
fórmula utilitarista de maneira explícita e inequívoca, em Beccaria,
ao contrário, já na abertura de sua obra lê-se o seguinte:
Consultemos a história e veremos que as leis, que são
ou deveriam ser pactos de homens livres, não são mais
que instrumentos das paixões de alguns poucos, ou
nasceram de uma fortuita e passageira necessidade; não
foram elas ditadas por um frio examinador da natureza
humana, que em um só ponto concentrasse as ações de
uma multidão de homens e as considerasse neste ponto
de vista: a máxima felicidade dividida no maior número.67
As idéias sensualistas do materialismo iluminista encontraram
enormes ecos no Iluminismo lombardo.68 Pietro Verri, em especial,
já havia inserido as noções de Helvétius nas discussões filosóficas
da Società dei Pugni, com suas Meditazioni sulla felicità. Nessa obra,
a máxima utilitarista da maior felicidade dividida entre o maior
número de pessoas vem também, como em Beccaria, formulada expressamente.69 De qualquer maneira, podemos dizer que, assim como
Helvétius, Beccaria pode ser considerado um filósofo utilitarista, mas
não certamente como Bentham. Beccaria e Helvétius se encontram
numa fase em que a reflexão utilitarista não alcançou seu mais alto
grau de coerência principiológica. Na comparação entre os dois,
porém, é certamente o italiano quem mais perto está de Bentham – a
formulação explícita do princípio da utilidade e a maior propensão
ao abandono daqueles elementos da filosofia iluminista que seriam
67
“Apriamo le istorie e vedremo che le leggi, che pur sono o dovrebbon esser patti di uomini
liberi, non sono state per lo più che lo stromento delle passioni di alcuni pochi, o nate
da una fortuita e passeggiera necessità; non giá dettate da un freddo esaminatore della
natura umana, che in un sol punto concentrasse le azioni di una moltitudine di uomini,
e le considerasse in questo punto di vista: la massima felicità divisa nel maggior numero”
(BECCARIA, Cesare. Dei delitti... p. 8).
68 Nesse sentido, ver: ZARONE, Giuseppe. Etica e politica nell’utilitarismo...; PARENTI, Roberto.
Sensismo e edonismo nella cultura lombarda...; SINA, Mario. Locke e la filosofia dell’Illuminismo...
69 FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista...; CAPRA, Carlo. I progressi...
52
| Capítulo 1
Alexander de Castro
totalmente esquecidos por Bentham nos dão a certeza disso. Não é
à-toa que Bentham afirmou-se discípulo de Beccaria.
Como visto em Do espírito, Helvétius faz o elogio de regimes
políticos republicano-democráticos e a defesa de uma sociedade fundada sobre a virtude, ou seja, sobre a fusão dos diversos interesses
individuais. A incompatibilidade de tais valores com a existência de
estamentos é óbvia. Entretanto, o mesmo Helvétius criticava o clero e
a nobreza por serem os intermediários, que por privilégio de nascimento
usurpam as funções do poder e impõem sua vontade até ao soberano. Os valores republicanos cedem lugar a uma preocupação com a preservação do
poder do soberano e com o fato de o mesmo estar na dependência dos
estamentos privilegiados. Agora, o clero e a nobreza são os intermediários entre o monarca e o conjunto da nação que, usurpando o poder do
soberano, impõem a manutenção de seus privilégios e impedem que
a sociedade se estabeleça sobre bases mais racionais. Parece, portanto,
que a tarefa de reorganizar a sociedade segundo a razão agora cabe
ao monarca, sendo a aristocracia e o clero (os intermediários) entraves
a tal projeto. Essa esperança depositada sobre a ação da coroa e, em
especial, sobre os monarcas benfeitores, também passa a ocupar, em
certo momento, lugar central na reflexão de Beccaria:
Feliz a humanidade se, pela primeira vez, lhe fossem
ditadas leis, agora que novamente galgaram os tronos da
Europa monarcas benfeitores, promotores das virtudes
pacíficas, das ciências e das artes, pais de seus povos, cidadãos coroados, cuja autoridade acrescida contribui para
a felicidade dos súditos destruindo aquele despotismo
intermediário, mais cruel porque menos seguro, que impedia os votos sempre sinceros do povo e sempre gratos
de alcançarem o trono. Se esses monarcas permitem a
subsistência das antigas leis, é pela dificuldade imensa de
tirar dos erros a venerada ferrugem dos séculos; é esse um
motivo para que cidadãos ilustrados desejem com maior
ardor o contínuo crescimento de sua autoridade.70
70
“Felice l’umanità, se per la prima volta le si dettassero leggi, ora che veggiamo riposti su i
troni di Europa monarchi benefici, animatori delle pacifiche virtù, delle scienze, delle arti,
padri de’ loro popoli, cittadini coronati, l’aumento dell’autorità de’ quali forma la felicità
de’ sudditi perché toglie quell’intermediario dispostismo più crudele, perché meno sicuro,
Capítulo 1 |
53
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
Parece, então, que, assim como em Helvétius, a preocupação de
Beccaria desloca-se agora para o “despotismo intermediário”, que se
coloca entre o povo e o trono. A salvação da sociedade e a destruição
deste despotismo serão obra destes “monarcas benfeitores, promotores das virtudes pacíficas, das ciências e das artes”, que devem
ditar leis para humanidade, eliminando os erros engrandecidos pela
“ferrugem dos séculos”. Esse é o motivo pelo qual os “cidadãos ilustrados” devem desejar “com maior ardor o contínuo crescimento de
sua autoridade”. Parece, assim, que a exaltação republicana convive
com a defesa do caráter absoluto do poder do monarca.71
Podemos dizer, destarte, que tanto em Helvétius quanto em
Beccaria a presença de marcantes referências aos ideais republicanos
e democráticos divide espaço com a defesa do absolutismo monárquico. A defesa deste absolutismo tem por base, entretanto, a esperança
de que ele, libertando-se dos interesses dos setores intermediários – o
clero e a nobreza –, possa estabelecer um governo em conformidade
com a razão e voltado para a felicidade pública. Um tipo de absolutismo
onde o monarca concentra poderes em suas mãos para organizar a
sociedade de forma racional e justa, livrando-a dos despóticos poderes intermediários que não apenas oprimem os mais humildes, mas
viciam todo o corpo social. Um absolutismo, portanto, que institua,
pelo alto, os princípios do espírito da Ilustração. Um absolutismo, por
fim, como aquele que víamos agindo na Lombardia de Beccaria.
da cui venivano soffogati i voti sempre sinceri del popolo e sempre fausti quando posson
giungere al trono! Se essi, dico, lascian sussistere le antiche leggi, ciò nasce dalla dificoltà
infinita di togliere dagli errori la venerata ruggine di molti secoli, ciò è un motivo per i
cittadini illuminati di desiderare con maggiore ardore il continuo accrescimento della loro
autorità” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti... , p. 66).
71 A adesão de Beccaria à proposta absolutista é clara em Dei delitti e delle pene. Depois de
enaltecer o “espírito regulador das repúblicas, senhor dos princípios gerais”, depois de
ter falado do espírito monárquico como um corruptor maligno que entra nas repúblicas quando estas são consideradas como união de famílias e não como uma união de
indivíduos, depois de ter dito que os súditos são escravos nas monarquias, depois de,
finalmente, ter equiparado o espírito monárquico ao espírito de família, mesquinho e
“limitado aos pequenos fatos”, ele afirma, na mesma obra, sem constrangimento, que
certos monarcas são “pais de seus povos” e que o crescimento de sua autoridade deve
ser o desejo dos cidadãos ilustrados.
54
| Capítulo 1
Alexander de Castro
4.
O utilitarismo em Dei delitti e delle pene: o reilegislador e a eficácia do direito penal
De acordo com o que vimos, quando se abre dei delitti e delle pene,
não se pode deixar de notar a presença de idéias contratualistas como
fundamento da ordem política em que Beccaria insere seu modelo de
direito penal.72 Todo o conjunto de sua reflexão política fundamenta-se
na influência exercida sobre ele pela obra Do espírito, de Helvétius,73
onde o cálculo de utilidades – que, no contratualismo do modelo hobbesiano-lockeano, leva os indivíduos à passagem do estado de natureza
para o estado social – sofre um aprofundamento psicológico até formar
um novo modelo de abordagem política em que o próprio raciocínio
contratualista acabaria sendo supérfluo, dando margem a uma nova
forma de se trabalhar com o cálculo de utilidades.74
Quando falamos em utilitarismo ou raciocínio utilitarista, nos
referimos ao cálculo de utilidade, ao cálculo do útil. No contratualismo inglês, os sujeitos realizam a passagem para o estado social
em função dos inconvenientes do estado de natureza. Os objetivos
visados pelos sujeitos, desde logo objetivos egoísticos e individualistas (seja a proteção da vida, seja a proteção da propriedade), são
o que os leva, através de um raciocínio pragmático de meios e fins,
a realizar a passagem para o estado social. A base do raciocínio é o
pressuposto da racionalidade individual ou da condição natural do
homem como ser racional, e por isso pode-se falar em direito natural
ou racional. Entretanto, no modelo do contratualismo inglês o sujeito
busca a gratificação hedonista, mas age, calculando as conseqüências,
de forma a interferir sobre as próprias condições políticas e sociais
de suas ações. Em outras palavras, nesse esquema de pensamento
a estruturação da arquitetura político-social é feita pelos próprios
sujeitos sociais, em um hipotético acordo, através do cálculo de utilidade: partindo-se do pressuposto de que todos os outros sujeitos
são igualmente racionais, cada sujeito planeja a estrutura social que
melhor corresponda a seus interesses individuais.
72
73
74
BECCARIA, Cesare. Dei delitti..., 1987, pp. 10-2.
BECCARIA, Cesare. Carta de Beccaria...,1996, p. 159.
FRANCIONI, Gianni. Beccaria filosofo utilitarista...; HELVETIUS, Claude-Adrien. Del espiritu.
Trad. José Manuel Bermudo. Madrid: Editora Nacional, 1984.
Capítulo 1 |
55
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
A reconstrução hipotética – que visa, sobretudo, pôr à mostra a lógica que orienta a dinâmica social – tem como objetivo
fornecer um critério para distinguir o poder legítimo do ilegítimo.
Evidentemente, a condição natural do homem não é semelhante à
condição natural de qualquer outro ser da natureza, pois a natureza do ser humano é precisamente a racionalidade: o ser humano é
um ser racional. Essa é a essência imutável do homem, aquilo que
o torna propriamente humano. É interessante notar a afinidade
entre esse sujeito racional do contratualismo inglês e a imagem de
ser humano que se constrói dentro do Iluminismo. A reconstrução
do pacto implícito na ordem social é uma forma de colocar entre
parênteses todas as instituições políticas (mais ou menos como
Descartes fazia com o mundo em Discurso sobre o método) e analisar
única e exclusivamente a partir da razão os fundamentos de toda a
ordem político-social. Não era outra coisa que propunha a filosofia
iluminista, com a diferença de que essa análise racional dos fundamentos deveria ser feita, para os filósofos das Luzes, com relação
a tudo – a toda cultura, a toda tradição, a toda sociedade etc. Se
isolarmos Locke perceberemos uma enorme semelhança entre a
forma como ele refuta, no Primeiro tratado sobre o governo, as teses
de Robert Filmer e a maneira como Kant reprova o estado de minoridade que caracteriza o indivíduo anterior à Aufklärung. Nos dois
casos, o que se quer é um abandono da tutela de outrem em favor
do uso autônomo da própria razão. Não é sem motivo que Voltaire
afirmou-se discípulo de Locke. O contratualismo possui, portanto,
uma marcante afinidade com o sapere aude kantiano.
No utilitarismo, entretanto, há uma espécie de bifurcação do
cálculo da utilidade. Se no contratualismo ele era a base para que
o sujeito planejasse a ação segundo seus interesses individuais, de
forma a planejar, ao mesmo tempo, a própria estrutura político-social
em que estará inserido,75 no utilitarismo, ao contrário, as coisas se
separam. Os sujeitos sociais permanecem guiando suas vidas hedonisticamente a partir do cálculo de utilidades, ou seja, planejando as
ações segundo seus objetivos egoísticos. Porém, a função de planejar
75
56
Em outras palavras, a ação que brota do cálculo de utilidades do contrato social é a ação
que estrutura a própria sociedade, a ação que celebra o pacto social (com cada uma de
suas cláusulas racionalmente escolhidas) onde é definida a estrutura social.
| Capítulo 1
Alexander de Castro
globalmente a sociedade segundo o bem-comum – que, por sua vez,
também é determinado a partir de critérios hedonístico-utilitarísticos
e, portanto, pelo cálculo de utilidades – passa a um terceiro: o Legislador. No modelo do utilitarismo, o ser humano é interpretado
como uma máquina que funciona segundo a necessidade de obter
prazer e fugir da dor, e que, portanto, guia as suas ações realizando
uma espécie de cálculo do prazer ou da dor que cada ação possível
lhe trará. De tal forma surge a idéia de que, manipulando os objetos
que afetam a sensibilidade humana, pode-se direcionar a ação das
pessoas da maneira que se desejar. Torna-se possível planejar, com
o domínio dos princípios utilitaristas que governam a ação humana, o funcionamento da sociedade. O cálculo de utilidades permite
determinar, por conseqüência, os caminhos para se chegar ao “bemcomum”, considerado o máximo de felicidade (enquanto prazer
sensível) distribuída entre o maior número de pessoas. O Legislador
poderá, portanto, planejar a arquitetura social de forma a que o prazer
ou o interesse individual esteja sempre conectado com o interesse
do conjunto social, o que significa direcionar as ações individuais,
manobrando a sensibilidade humana, para o interesse geral.
Portanto, no modelo político do utilitarismo, o cálculo de utilidades é feito em duas etapas: na primeira, o Legislador determina
o interesse geral e planeja a arquitetura político-social; na segunda,
os sujeitos-agentes, buscando o máximo de gratificação individual,
executam, mesmo sem saber, o planejamento social, realizando, ao
buscar exclusivamente seu interesse pessoal, o interesse comum,
o bem geral. Podemos dizer, assim, que o cálculo de utilidades no
nível do planejamento social passa para o Legislador, mas que os
cidadãos, em sua ação reflexa, continuam calculando as utilidades
para escolher quais ações realizar. Por fim, devemos lembrar que
esse cálculo que os sujeitos-agentes realizam para decidir sobre
suas ações não é necessariamente realizado de maneira consciente.
Na verdade, ele pode assumir muitas vezes a forma de um reflexo
condicionado e acabar, portanto, sendo realizado inconscientemente.
Os motivos aduzidos por Beccaria para sustentar a necessidade da
presteza das penas deixam isso muito claro: ela deve suceder o mais
rápido possível o delito para que, na mente dos celerados, a idéia do
crime seja acompanhada necessariamente da idéia do desprazer da
Capítulo 1 |
57
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
pena.76 É assim que, na passagem do contratualismo para o utilitarismo, a ênfase migra da racionalidade para a passionalidade dos sujeitos
agentes ou, se preferirmos, da calculabilidade racional-consciente para
o condicionamento passional-inconsciente.
Esse desmembramento do cálculo de utilidades e o deslocamento de seu nível social-organizativo para a alçada do Legislador
possuem uma enorme afinidade com a redefinição do papel do
monarca no contexto do desenvolvimento do absolutismo político.
De fato, há uma marcante e inegável proximidade entre o Legislador,
do qual falam explicitamente Helvétius e Beccaria, e a imagem do
rei-legislador da reflexão pró-absolutista, que organiza a sociedade
através da legislação. Além disso, as necessidades econômicas em
meio às quais se desenvolveu o absolutismo tardio do século XVIII
acabaram levando ao surgimento de uma espécie de utilitarismo
político-econômico dentro da reflexão pró-absolutista, como a que
encontramos, por exemplo, na Ciência da Polícia. A necessidade de
aumentar o volume das atividades econômicas internas para assim
aumentar a arrecadação encontrava-se com a vontade dos setores
ascendentes, nomeadamente a burguesia, em desenvolver atividades econômicas. De tal forma, a defesa do absolutismo acabava por
vir acompanhada da idéia de que a tarefa do soberano (absoluto)
era promover o bem-estar comum, que por sua vez era identificado
com o aumento de bens materiais da sociedade. Esse utilitarismo
político-econômico que compõe a reflexão pró-absolutista cria outra
frente de afinidade entre o absolutismo monárquico e o utilitarismo
filosófico oriundo do Iluminismo. Destarte, o monarca absoluto
que concentra em si o poder político para usá-lo na racionalização
social e no fomento ao desenvolvimento econômico interno poderia
ser progressivamente identificado com o Legislador que organiza
a sociedade segundo os princípios da moral utilitarista para promover seu aperfeiçoamento geral.
76
58
“Ho detto che la prontezza delle pene è più utile, perché quanto è minore la distanza del
tempo che passa tral la pena ed il misfatto, tanto è più forte e più durevole nell’animo
umano l’associazione di queste due idee, delitto e pena, talché insensibilmente si considerano uno come cagione e l’altra come affetto necessario immancabile. Egli è dimostrato
che l’unione delle idee è il cemento che forma tutta la fabbrica dell’intelletto umano, senza
di cui il piacere ed il dolore sarebbero sentimenti isolati e di nessun effetto” (BECCARIA,
Cesare. Dei delitti..., p. 46).
| Capítulo 1
Alexander de Castro
Ao analisar detidamente Dei delitti e delle pene, observamos que
no cômputo geral a argumentação contratualista ocupa pequena
parte da obra. Ela aparece no começo do texto, onde o autor disserta
sobre os fundamentos da ordem política e do direito penal, o fundamento da atividade legislativa, a separação entre os poderes de fazer
e de aplicar as leis e a questão da interpretação.77 Posteriormente,
quando Beccaria trata da pena de morte, os argumentos utilitaristas
que buscam provar sua inutilidade são combinados com reflexões
contratualistas que intentam demonstrar sua ilegitimidade.78 Assim,
podemos dizer que, na reflexão de Beccaria, a idéia de contrato social
funciona apenas como fundamento legitimador das instituições políticas e jurídicas. O bom governo e a boa política legislativa, entretanto,
fundam-se nas teorias utilitaristas que ofereceriam um conhecimento
dos princípios que orientam a ação humana ou, em outras palavras,
no conhecimento da psicologia humana.
Sobre isso algumas considerações merecem ser feitas. O utilitarismo possui, enquanto teoria política, esse caráter de ciência do
bom governo, onde assume a forma de uma teoria destinada a ensinar
como dirigir a sociedade. Esse aspecto, todavia, sofre uma espécie de
aprofundamento ou adensamento no contexto político do absolutismo tardio. A necessidade de maximizar o controle do soberano sobre
a sociedade para viabilizar o próprio projeto político absolutista faz
parte das condições em que o absolutismo tardio se desenvolveu.
Para que países como Prússia, Áustria e Portugal vencessem o atraso
em que se encontravam em relação às principais potências européias
de então, como a Inglaterra e sobretudo a França, era necessário que
o poder político central desenvolvesse técnicas que lhe permitissem
impor, a partir de cima, a modernização econômica.79
No campo jurídico, isso se coloca como o problema da eficácia da norma jurídica da coroa, ou seja, da capacidade de a norma
jurídica se fazer cumprir. Esse pode ser considerado um dos problemas centrais do livro de Beccaria, visível sobretudo na questão da
mitigação das penas e da graça. A brutalidade das penas do direito
77
78
79
BECCARIA, Cesare. Dei delitti..., 1987, pp. 10-4.
BECCARIA, Cesare. Dei delitti..., 1987, p. 59.
SCHIERA, Pierangelo. Dall’arte di governo...; ASTUTI, Guido. O absolutismo esclarecido
em Itália...
Capítulo 1 |
59
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
penal do Antigo Regime era um dos componentes essenciais de sua
escandalosa ineficácia; o objetivo da pena era fundamentalmente
simbólico: buscava aterrorizar. A graça real, por meio da qual se
afastava a aplicação da pena, era seu complemento necessário. Por
meio dela, o soberano se legitimava perante o organismo social e,
principalmente, perante o beneficiado. Todo modo de operar do
direito fundava-se, assim, no arbítrio e a renúncia à eficácia do direito penal, implícita nessa estrutura, tolhia a capacidade real de,
por meio dele, interferir sobre o conjunto da sociedade. Isso, aos
olhos iluministas, era profundamente irracional. Portanto, para
Beccaria, a mitigação das penas,80 a par de suas razões humanitárias (que certamente existiam), era o pressuposto para que a graça
fosse eliminada do direito penal e para que ele, conseqüentemente,
ganhasse a eficácia necessária para maximizar o poder de controle
do soberano sobre a sociedade.81 O sistema jurídico-penal proposto
por Beccaria encaixa-se perfeitamente, portanto, na dinâmica política
do absolutismo tardio, onde o que importava era dar ao soberano os
meios para direcionar a sociedade, intervir nela e controlá-la.
A teoria das penas de Beccaria repete, em muitos pontos, o
que havia escrito Montesquieu. Em O espírito das leis, ele iniciara
uma racionalização da repressão penal, estabelecendo o princípio
da legalidade, elegendo a prevenção do crime como a principal
meta do direito penal, defendendo a mitigação das penas (sob o
argumento de que não é sua severidade que desvia os homens da
prática dos crimes, mas a certeza da punição), condenando a tortura
e defendendo a necessidade de uma relação de proporcionalidade
entre as penas e os delitos.82 Tudo isso, como sabem os leitores de
Beccaria, está presente em Dei delitti e delle pene. Essa teoria das penas
80
“La certezza di un castigo, benché moderato, farà sempre una maggiore impressione che
non il timore di un altro piú terribile, unito colla speranza dell’impunità” (BECCARIA,
Cesare. Dei delitti..., p. 57).
81 “A misura che le pene divengono più dolci, la clemenza ed il perdono diventano meno
necessari. Felice la nazione nella quale sarebbero funesti! La clemenza dunque, quella virtù
che è stata talvolta per un sovrano il supplemento di tutt’i doveri del trono, dovrebbe essere
esclusa in una perfetta legislazione dove le pene fossero dolci ed il metodo di giudicare
regolate e spedito” (BECCARIA, Cesare. Dei delitti..., p. 96).
82 TARELLO, Giovanni. Montesquieu criminalista. In: TARELLO, Giovanni (org.). Materiali
per una storia della cultura giuridica. Vol. V. Genova: Il Mulino, 1975, p. 15.
60
| Capítulo 1
Alexander de Castro
recolhida de Montesquieu, entretanto, seria aprofundada com as
teorias helvetianas. Com o contributo de Helvétius, o processo de
racionalização do sistema penal conduzido por Beccaria visava não
apenas fazer com que a pena cumprisse melhor a finalidade de prevenção do crime, mas com que o direito penal contribuísse para que
os interesses individuais fossem conduzidos na direção do chamado
interesse comum, que era, por sua vez, determinado pelo Legislador
(e, por que não dizer, pelo rei-legislador). A aplicação, ao estudo do
direito penal, do utilitarismo aprendido com Helvétius objetivava
fornecer um fundamento sólido para seu uso enquanto instrumento
de modelagem da sociedade.
Chegamos, então, ao tema do uso instrumental do direito. O
aspecto jurídico do desenvolvimento do absolutismo, dentro da
modernidade, era a aniquilação daquele particularismo83 que marcava a estrutura jurídica do Antigo Regime. Esse particularismo
jurídico fundava-se na pluralidade de fontes de direito concorrentes e em seu complemento, a pluralidade de jurisdições (usamos a
expressão em seu sentido moderno). A afirmação do poder político
monárquico foi completada, no campo jurídico, pela afirmação da
legislação real sobre todas as demais fontes jurídicas. A supremacia
da legislação real sobre o direito romano, o direito consuetudinário
e o direito corporativo tinha, obviamente, o objetivo de permitir à
coroa a concretização, pelo direito, de suas intenções. No contexto
do absolutismo tardio, sob a influência da reflexão cameralística, em
especial da Ciência de Polícia, e das teses iluministas que outorgavam ao ser humano a capacidade de, pelo uso da razão, subjugar a
realidade que o circunda e colocá-la a seu serviço, esse uso instrumental do direito tende a ganhar em sistematicidade e a conectar-se
com sistemas de planejamento social. O uso das teorias utilitaristas
dentro desses projetos de organização social a ser realizados com
o instrumental fornecido pelo direito é, assim, um dos pontos altos
do projeto jurídico 84 da modernidade.
83
84
TARELLO, Giovanni. Storia della...
A construção jurídica da modernidade, no liberalismo clássico, foi analisada por Pietro
Costa em: COSTA, Pietro. Il progetto giuridico. Ricerche sulla giurisprudenza del liberalismo
classico. Milano: Giuffrè, 1976.
Capítulo 1 |
61
CESARE BECCARIA E O DIREITO PENAL DO ABSOLUTISMO ESCLARECIDO...
Conclusão
O Iluminismo milanês do círculo do Caffè desenvolveu-se em
um contexto onde as tendências modernizadoras que partiam da
sociedade civil eram sufocadas pelas estruturas do poder patrício.
A Lombardia daqueles anos, ao contrário, era palco de um potente
programa reformista e modernizador levado a cabo dentro do projeto
autocrático do absolutismo habsbúrgico. Dentro desse contexto, a
identificação dos jovens intelectuais com a causa da modernização
absolutista foi praticamente inevitável. Os intelectuais iluministas da
Società dei Pugni são, assim, absorvidos dentro do processo de modernização conservadora e passam a integrar os quadros funcionais
submetidos à coroa austríaca e a seus representantes lombardos. Algumas conseqüências, desde logo, são importantes. A primeira é uma
espécie de abertura de horizontes sofrida pela proposta absolutista,
em função da influência daqueles intelectuais, essencial para formar
o fenômeno do absolutismo esclarecido. A segunda é que a orientação
política do Iluminismo lombardo, na medida em que ele se vinculava
a um projeto de modernização institucional conduzida no seio do
absolutismo, acabou desviada de tendências políticas mais radicais,
deixando progressivamente de lado as idéias republicanas que provinham de suas influências francesas e possuíam certa afinidade com
o espírito original da filosofia das Luzes.
Cesare Beccaria, graças à publicação de Dei delitti e delle pene,
transformou-se no iluminista italiano mais conhecido, tanto em
sua época quanto na atualidade. Graças à obra de Beccaria, o partido dos philosophes da França, comandado por Voltaire, passou a
acompanhar com curiosidade e atenção os progressos que fazia,
em nome da razão, a École de Milan. Seu trabalho até hoje é louvado por criminalistas de todo o mundo como aquele que ajudou a
fundar o direito penal moderno, instaurando na esfera criminal os
princípios humanistas, fundados na idéia iluminista de dignidade
da pessoa humana. Mas Cesare Beccaria escreveu Dei delitti e delle
pene no contexto de fusão entre as tendências reformistas da dinastia
habsbúrgica em Milão – logo, a adesão dos filósofos iluministas ao
projeto modernizador da coroa austríaca não poderia deixar de aparecer em sua obra. O projeto político do absolutismo no século XVIII
62
| Capítulo 1
Alexander de Castro
incorporava necessariamente, em face das circunstâncias em que
teria de se desenvolver, um programa de modernização econômica
que propiciasse recursos para o fortalecimento régio. As propostas
de Beccaria, a par de suas tendências humanitárias, visavam também dar maior eficiência ao sistema penal. O dirigismo social da
teoria utilitarista conciliava-se com a imagem do rei-legislador que se
construía na literatura pró-absolutista. Assim, o uso do utilitarismo
helvetiano por parte de Beccaria, na construção de seu modelo de
sistema penal, tinha como objetivo justamente aproveitar as contribuições que ele poderia dar para construir métodos eficazes de
intervenção social e possibilitar ao monarca direcionar a sociedade.
O papel exercido pela teoria utilitarista, voltada sobretudo para
fornecer ao soberano os métodos para a subordinação da sociedade
civil, mais ou menos como fazia a Ciência de Polícia e a cameralística,
e o implícito desapreço pela autonomia do sujeito que ela implica,
dão mostras de que, ao lado dos motivos humanistas que inspiraram
Beccaria, questões de outra ordem estavam em debate.
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66
| Capítulo 1
CAPÍTULO 2
Lei penal e exemplaridade econômica:
A execução das penas como extensão
dos enunciados legislativos em
Jeremy Bentham*
Ricardo Sontag
Pesquisador do Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica –
Ius Commune (CNPq/UFSC). Mestrando em Direito (UFSC).
Graduado em Direito (UFSC) e graduando em História (UDESC).
*
Este capítulo é parte da pesquisa sobre teoria da legislação e direito penal em Jeremy
Bentham, cujo principal fruto, até o momento, foi a monografia de conclusão de curso:
SONTAG, Ricardo. Pannomion. Teoria da legislação e direito penal em Jeremy Bentham
ou o código como utopia lingüística. Monografia (Graduação) – Curso de graduação em
Direito, Departamento de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2007. Orientador: Arno Dal Ri Jr.
INTRODUÇÃO
O problema penal em Jeremy Bentham
A
expressão “o problema penal no século XVIII” foi cunhada
na década de 1970 por Giovanni Tarello para compreender a
especificidade da maneira como os filósofos iluministas trataram,
na segunda metade do século XVIII, os temas conexos àquilo que
chamaríamos hoje, aproximativamente, de direito penal e de direito
processual penal. Desde a década de 70, então, a expressão ganhou
fama e é passagem obrigatória para quase todos os que abordam
questões penais no século XVIII, principalmente na historiografia
italiana, muitas vezes focando a análise do problema penal no conjunto de textos de determinado filósofo.
Antes de seguir, então, eis a citadíssima definição de Tarello:
Por ‘problema penal’ se entende um complexo de problemas conexos entre si, do qual é difícil apresentar uma
lista completa. A título provisório, podemos, todavia,
indicar uma primeira série: 1) Existe, fazendo referência
a qualquer sujeito, um direito de punir, ou seja, de infligir um mal a um outro sujeito, baseado na ação ou no
modo de ser do segundo sujeito? 2) Admitindo-se que
tal direito exista, a quem pertence? 3) Definido a quem
pertence, contra quem se aplica? 4) Quais punições são
lícitas, ou seja, que tipos de males podem ser infligidos
a um sujeito em função de uma ação ou modo de ser
deste último? Quais ações ou modos de ser podem ser
tomadas como pressupostos de um direito de punir? 5)
Existe uma relação natural entre o tipo de punição e o
tipo de ação ou modo de ser punidos? Caso sim, que tipo
de relação? Como se executam as punições?1
1
TARELLO, Giovanni. Il problema penale nel secolo XVIII. Materiali per una storia della
cultura giuridica, V, 1975. Bologna: Il Mulino. p. 14.
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
Esta maneira geral, relativamente abstrata, globalmente articulada, com que são tratados os problemas penais só teria sido
possível, segundo Tarello, no século XVIII. Não é o escopo deste
trabalho, propriamente, discutir as razões de Tarello, ainda que
sua noção de problema penal possa ser um ponto de partida útil.
Portanto, não é pretensão deste artigo discutir, como Tarello, as
exigências funcionais às quais essa forma de ordenar os problemas
se vinculou. É mais importante, aqui, apontar a que tipo de sujeitos
do discurso está associada essa formulação global e articulada do
problema penal. Isso porque a maneira como o sujeito do discurso
se coloca parece, justamente, orientar a reordenação da mudança de
perspectiva referida por Tarello.
Se o direito penal e o direito processual penal parecem ser temas fortemente enraizados no atelier dos juristas, debruçar-se sobre a
segunda metade do século XVIII nos coloca diante de uma primeira
e bastante evidente perplexidade: as figuras que tomaram as rédeas
e que determinaram mais profundamente os caminhos da discussão
e das transformações no sistema penal não foram os juristas, mas
os filósofos. Basta lembrar alguns nomes sistematicamente mencionados: Voltaire, Beccaria e o próprio Bentham. É o fenômeno que
poderíamos chamar de “irresistível ascensão dos filósofos”:
O direito penal racional e a justiça civilizada que a idade nova pretende tomam forma nas críticas corrosivas
que um grupo de ideólogos reformadores, difusos e
conectados em escala européia, dirigidas com grande
agudez e eficácia contra os ordenamentos existentes.
Pela primeira vez na história da Europa os intelectuais
desenvolvem uma função crítica de oposição, em côro
e conflitiva, e o fazem no campo penal, atribuindo-lhe
uma centralidade cultural e política que não perderá mais. De Montesquieu à Voltaire, de Rousseau à
Beccaria (que depois de 1764, ano de publicação do
Dei delitti e delle pene, foi eleito o relutante corifeu
do reformismo penal iluminista), com Blackstone e
Bentham na Inglaterra, Verri, Filangieri e Pagano na
Itália, Sonnenfels na Áustria, Hommel na Alemanha,
70
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
Lardizabal na Espanha, um côro de intelectuais que
primeiro impôs a discussão e depois a reforma do
sistema penal europeu2.
Mario Sbriccoli ainda acrescenta que a maioria dos penalistas
“juristas” ficou à margem, intervindo quase sempre no sentido de
defender a tradição. Vale acrescentar que, apesar dessa ascensão dos
filósofos, os juristas práticos, os tribunais, não abandonaram suas
atividades. Em outras palavras, as velhas tradições do ius commune
(no continente) e da common law (na Inglaterra) continuavam a existir
paralelamente a esse debate, mas aos poucos o discurso iluminista
entrará em contato e se articulará com a formação jurídica em sentido
estrito, reorientando os rumos da ciência jurídico-penal ao longo do
século XIX, com sortes diferentes na Inglaterra e nos vários países
da Europa3. Mas esta é outra história.
De volta aos filósofos da segunda metade do século XVIII,
é preciso acrescentar, ainda, que a diferença entre um “filósofo
juridicamente informado” e um “jurista em sentido estrito” não se
faz simplesmente observando a formação acadêmica do indivíduo
em questão, principalmente porque as disciplinas acadêmicas não
eram organizadas como hoje, onde encontramos cursos específicos
de direito, filosofia, história, ciências sociais etc. Além disso, quando
se fala em ascensão dos filósofos na discussão das questões penais,
o objeto dessa afirmação não é somente a biografia deste ou daquele
personagem, mas uma determinada impostação do discurso. Ou
seja, é preciso observar, nos textos a ser analisados, como o autor se
coloca ao enunciar um discurso sobre o direito. É possível, portanto,
encontrar indivíduos que se colocam inteiramente como filósofos e
não como juristas ao tratar de temas penais, mas que têm alguma
formação jurídica. É justamente o caso de Bentham, que estudou
direito na Lincoln’s Inn, mas que procura sistematicamente diferenciar seu discurso daquele dos juristas em sentido estrito. Não
2
3
SBRICCOLI, Mario. Giustizia criminale. FIORAVANTI, Maurizio (a cura di). Lo stato
moderno in Europa. Istituzioni e diritto. Roma e Bari: Laterza, 2004.
Para o caso italiano, c.f. SBRICCOLI, Mario. La penalistica civile. Teorie e ideologie del
diritto penale nell’Italia unita. In: COSTA, Pietro et al. Stato e cultura giuridica in Italia dall
unità alla repubblica. Roma: Laterza, 1990.
Capítulo 2 |
71
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
é à-toa que Bentham praticamente não exerceu qualquer profissão
jurídica4. Já Beccaria chegou a atuar em atividades próximas às de
um jurista em sentido estrito, apesar de, no seu Dei delitti e delle pene,
ter se colocado como “filósofo juridicamente informado”. Ou seja,
muitas vezes, mesmo com alguma formação jurídica, esses autores
filiavam-se à chamada ideologia antijurisprudencial que marcou
o século XVIII. Uma ideologia que tocava, na verdade, o centro
da ordem jurídica clássica: a produção jurisprudencial, que era a
referência principal desse sistema de fontes, tanto do ius commune
continental como da common law inglesa.
A ideologia antijurisprudencial, então, acompanha a crise do
velho sistema jurídico, ora sugerindo transformações radicais, ora
reformas. Na maior parte da Europa continental, o final dessa história
é o colapso do antigo sistema de fontes em favor de sistemas fundados na lei e em códigos. Na Inglaterra, porém, as alternativas para a
crise não passaram pela adoção de códigos de leis, para infelicidade
de Bentham, que defendia justamente a solução codificatória.
Em Bentham, essa postura desdobra-se em: 1. diferenciação
epistemológica e elaboração de um espaço discursivo paralelo (ainda
que com cruzamentos possíveis) em relação ao jurídico em sentido
estrito; 2. crítica aberta ao discurso dos juristas. Em relação ao primeiro, vale a pena exemplificar com uma situação vinculada ao direito
penal: Bentham procura diferenciar o que seria a noção ontológica e
a noção deontológica de crime. A primeira define crime como aquilo
que é proibido pela lei positivada pelo Estado. A segunda entende
crime como aquilo que constitui infração aos ditames do princípio da
utilidade, isto é, as ações que deveriam ser proibidas por produzirem
algum mal socialmente relevante5. A primeira noção, então, se vincularia à atividade dos juristas, que deveria limitar-se à aplicação da
lei obedecendo ao princípio da legalidade ou à exegese fiel do texto
4
5
72
TOMASELLI, Sylvana. Bentham, Jeremy. In: BLACK, Jeremy; PORTER, Roy (ed.). Dictionary of eighteenth-century history. England: Penguin Books, 1996. p. 74; PESSANHA, José
Américo Motta. J. Bentham. Vida e obra. In: BENTHAM, Jeremy; MILL, John Stuart. Uma
introdução aos princípios da moral e da legislação; Sistema de lógica dedutiva e indutiva e
outros textos. Trad. João Marcos Coelho e Pablo Rubén Mariconda. 2. ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1979, p. VI.
BENTHAM, Jeremy. Principios del codigo penal. In: GIL, Magdalena Rodriguez (ed.).
Tratados de legislación civil y penal. Madrid: Editora Nacional, 1981. p. 225.
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Ricardo Sontag
legislativo. Já a segunda estaria vinculada à atividade do filósofo, que
pretende cooperar nas políticas legislativas do Estado – é o campo
da teoria da legislação, da teoria das penas etc. Isto é, justamente o
campo por onde pretende mover-se o próprio discurso de Bentham
e de tantos outros iluministas.
Jeremy Bentham é considerado um dos maiores expoentes do
utilitarismo inglês do final do século XVIII e início do século XIX.
Embora a identificação do bom com o útil possa remontar a Epicuro,
o utilitarismo é considerado uma corrente do pensamento ético, político e econômico inglês dos séculos XVIII e XIX6, ainda que se deva
também considerar a presença constante do princípio da utilidade
nas teorias dos iluministas do continente, dentre eles principalmente
Cesare Beccaria7, não à-toa evocado por Bentham como um de seus
antecessores mais diretos8. Bentham, então, radicalizando o uso do
princípio da utilidade, colocava-se contra a idéia de direito natural,
pois, segundo ele, toda essa ordem normativa poderia ser substituída
pela máxima utilitária “a maior felicidade possível, compartilhada
pelo maior número de pessoas”. Porém, ainda que crítico do jusnaturalismo, muito comum no iluminismo jurídico, o empenho de
Bentham em projetos de reforma social, econômica e institucional
permite enquadrá-lo como representante (ainda que tardio) dos reformismos iluministas da segunda metade do século XVIII. Declino
iluminismo no plural por entender que, embora se possa falar num
espectro iluminista europeu, as inflexões regionais são igualmente
importantes.
Além disso, o princípio da utilidade continua exercendo uma
função bastante típica do iluminismo em matéria jurídica, função
outrora associada, exatamente, ao direito natural: a criação de espa-
6
7
8
ABBAGNANO, Nicola. Utilitarismo. In: ______. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. p. 986.
Sobre a importância da fórmula utilitária em Beccaria confrontada com as formulações
jusnaturalistas, em português, c.f. CASTRO, Alexsander Rodrigues de. Cesare Beccaria e as
sombras do iluminismo: direito penal e absolutismo esclarecido na Lombardia austríaca. 2008.
Dissertação (Mestrado) – Curso de pós-graduação em Direito, Departamento de Direito,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. Orientador: Arno Dal Ri Jr.
Por essas razões, a expressão “pai do utilitarismo”, que Mozart Linhares utiliza para
qualificar Bentham, deve ser lida com essas ressalvas (C.f. SILVA, Mozart Linhares da.
Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 43).
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LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
ços discursivos paralelos àquele jurídico em sentido estrito9. Este é
o espaço do problema penal em sentido tarelliano, isto é, o espaço
da teoria da legislação, da teoria da pena, onde o filósofo se coloca
fundamentalmente como um colaborador do legislador na atividade de legislar para a criação de determinada ordem civilizacional
através do direito. Muito diferente, portanto, da atividade típica
dos juristas em sentido estrito, que consistia em adequar a ordem
jurídica pré-vigente aos novos problemas. Uma atividade, portanto,
mais vinculada ao exercício da atividade jurisdicional que, nesse
momento, pretende diferenciar-se mais claramente da atividade de
legislar. Em Bentham, a família seria o lugar onde as funções legislativa e judicante se confundiriam na figura do pai. Já o Estado deveria
consagrar a diferenciação entre essas funções através de dois órgãos
institucionais devidamente diferenciados10 e, conseqüentemente, os
saberes de referência também se distinguiriam.
É bem verdade que o auge do Iluminismo acontece na França
em torno da década de 1750, enquanto a obra de Jeremy Bentham
abrange o final do século XVIII e o início do século XIX (nasce em
1748 e morre em 1832) – além de tratar-se de um inglês. É preciso
considerar, porém, em primeiro lugar, que os textos iluministas circulavam em escala européia, tanto é que alguns escritos de Bentham
serão publicados pela primeira vez em francês, de modo que estamos
diante daquilo que poderíamos chamar de um espectro iluminista
em escala européia (com inflexões locais relevantes, certamente, de
modo que seria mais adequado falar em iluminismos no plural) que
transcende o período do seu auge no lugar em que nasceu: a França.
O discurso de Bentham faz parte, então, desse espectro iluminista
que, como discurso reformista das instituições jurídicas, se caracteriza
por um esforço de desvincular-se das fontes jurídicas tradicionais
9
Isso não quer dizer, porém, que o deslocamento de Bentham em relação ao direito natural
fosse completamente sem significado. Para exemplificar, eis duas conseqüências: 1. limitação das possibilidades de casos legítimos de desobediência civil, pois, além da verificação
da adequação da conduta do soberano aos ditames do direito natural, o princípio da
utilidade exigia que fossem avaliados, também, os malefícios da pura desobediência; 2.
apesar da força reformista atribuída à lei positiva como reflexo da utilidade (analogamente
à relação entre direito natural e direito positivo), o princípio da utilidade exigia que fossem
considerados, também, os malefícios do choque frontal com os costumes estabelecidos.
10 BENTHAM, Jeremy. Of nomography. In: BOWRING, John (ed.). The works of Jeremy Bentham. Vol. III. Edinburgh: William Tait, 1843. p. 234.
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Ricardo Sontag
(no caso, a common law inglesa, cujo centro de gravidade estava na
produção jurisprudencial) na construção de projetos jurídicos capazes de subverter a dinâmica das fontes do direito e de promover as
relações sociais burguesas fundadas na propriedade e no indivíduo.
Por isso, o pannomion de Bentham, o código geral de leis, não é simplesmente um conjunto ordenado de institutos jurídicos destinados
à aplicação judicial, mas um projeto de sociedade através do direito.
Por essa razão, em relação à noção de código em Bentham, Pietro
Costa qualifica-o como código-projeto11.
No que tange aos laços de Bentham com o Iluminismo, ele pode
ser considerado muito mais um consolidador12 – e, nesse sentido, um
“iluminista tardio” – do que um pensador cuja fama se deva à originalidade do seu pensamento. Um consolidador, de fato, que leva às últimas
conseqüências muitas das questões levantadas pelo Iluminismo, e justo
por isso ele é considerado um reformista radical. Radicalidade, poderíamos dizer, que empurra seu pensamento para os limites do Iluminismo,
mas que não perde de vista essa tradição que o circundava. E radical,
é certo, nas conseqüências lógicas do seu sistema de pensamento, já
que a própria radicalização do uso do princípio da utilidade fez com
que Bentham criticasse o reformismo extremado de alguns dos seus
predecessores, como o de Voltaire, segundo o qual se deveria “botar
abaixo” todos os costumes e editar novas leis. Na concepção benthaminiana, mesmo para a reforma dos costumes era preciso considerar
que nem sempre seria útil chocar-se com eles frontalmente.
Embora muito se fale do panopticon benthaminiano – projeto
arquitetônico que permitiria a um observador, a partir de um ponto
central, observar todo o espaço enquanto o posto do observador não
seria visível, de modo que essa opacidade pudesse criar o efeito de
vigilância contínua entre os vigiados mesmo quando o vigilante não
estivesse em seu posto13; o princípio do “ver sem ser visto”, um dispo11
C.f. COSTA, Pietro. Il progetto giuridico. Ricerche sulla giurisprudenza del liberalismo
classico. Milano: Giuffrè, 1974.
12 “Jeremy Bentham (...) was less important as an original utilitarian thinker than as a systematiser and a publicist of its doctrines” (In: SCARRE, Geoffrey. Utilitarianism. London;
New York: Routledge, 1996. p. 72).
13 “The persons to be inspected should always feel themselves as if under inspection” (In:
BENTHAM, Jeremy. Panopticon letters [1787]. Disponível em: http://www.cartome.org/
panopticon2.htm Acesso em: 8 de junho de 2007).
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LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
sitivo que poderia ser aplicado, segundo Bentham, não só nas prisões,
mas em vários lugares em que fosse necessário esse tipo de controle,
como escolas, fábricas etc.14 –, especialmente depois do Vigiar e punir,
de Michel Foucault, talvez seja interessante, e tal é o objetivo deste
trabalho, retomar o problema considerando como porta de entrada
a teoria da legislação (particularmente em relação às leis penais) e
enfatizando seu lugar na teoria geral das penas de Bentham. Dessa
forma será possível abordar como as penas, na obra de Bentham, são
concebidas como extensões dos enunciados legislativos e, por fim, a
inserção do panopticon nesse quadro permitirá reavaliar, nesse aspecto,
a relação de Bentham com a tradição jurídico-penal iluminista.
1.
O soberano, a ordem e o direito penal
Tradicionalmente, até mais ou menos a metade do século
XVIII a ordem a ser defendida pelo soberano era uma ordem préconstituída ao próprio Estado. Isto é, a ordem como um todo não
era criação da soberania estatal. Competia ao soberano muito mais
protegê-la, legislando o menos possível, intervindo nela com muita
parcimônia e atuando adequadamente como justiceiro-mor do seu
povo para manter os equilíbrios estamentais e restaurar a ordem
quando eventualmente perturbada15. A concepção de ordem do final
14
Segundo Bentham, “it [o panopticon] will be found applicable, I think, without exception,
to all establishments whatsoever, in which, within a space not too large to be covered or
commanded by buildings, a number of persons are meant to be kept under inspection” (In:
BENTHAM, Jeremy. Panopticon letters [1787]. Disponível em: http://www.cartome.org/
panopticon2.htm Acesso em: 8 de junho de 2007). C.f., também, FOUCAULT, Michel. La
prison vue par une philosophe français. In: ______. Dits et écrits. Vol. II. Paris: Gallimard,
1994. p. 729). Embora o termo panopticon seja benthaminiano, algumas experiências o
precederam. Foucault, por exemplo, aponta que “il est frappant de constater que, bien
avant Bentham, le même souci était présent. Il semble que l’um des premiers modeles de
cette visibilité isolante ait été mis en ouvre à l’École militaire de Paris en 1751 (...). Toutefois, si l’idée du panoptique prècède Bentham, c’est Bentham qui l’a vraiment formulée.
Et baptisée” (In: FOUCAULT, Michel. L’oeil du pouvoir. In: ______. Dits et écrits. Vol. III.
Paris: Gallimard, 1994. p. 191). Algo próximo do modelo elaborado por Bentham (ou, na
verdade, ao seu irmão, que é a quem Bentham atribui a “criação” do panóptico) também
teria sido experimentado, segundo N. H. Julius, em algumas prisões inglesas do século
XVIII (In: JULIUS, Nicolaus Heinrich. Leçons sur les prisons. Tome second. Paris: F. G.
Leurault; Libraire Parisienne, 1831. p. 12).
15 C.f., por exemplo, FRIGO, Daniela. Principe, giudici, giustizia. Mutamenti dottrinali e
vicende istituzionali fra sei e settecento. In: COLAO, Floriana; BERLINGUER, Luigi (a
cura di). Iluminismo e dottrine penali. Milano: Giuffrè, 1990. p. 33; HESPANHA, António
76
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
do século XVIII, porém, era aquela criada pelo próprio Estado através
das leis. Passa-se a investir muito mais na capacidade legislativa do
soberano, que seria o traço do poder estatal capaz de promover as
reformas civilizacionais que os filósofos iluministas veiculavam. O
Estado, o soberano, aparece, assim, como um sujeito privilegiado da
história16, sendo com isso valorizado seu papel legislador. Valorização do papel legislador, bem como uma revisão bastante forte das
características que deveriam ter os ordenamentos jurídicos legislados,
o texto legislativo, a relação da lei com os destinatários, para que essa
ordem legal pudesse se tornar, efetivamente, funcional às reformas
civilizacionais iluministas.
Bentham participa de todo esse debate, e o papel do direito penal é fortemente reinventado em virtude dessa mudança no estatuto
da relação do soberano com a ordem – soberano, aqui, entendido em
sentido genérico, seja uma monarquia ou uma república, já que não
será possível discutir, aqui, as preferências de Bentham no que tange
às formas de governo.
Manuel. Às vésperas do Leviatã. Instituições e poder político (Portugal, século XVII). Lisboa: Almedina, 1994; TOMÁS Y VALIENTE, Tomas. Manual de historia del derecho español.
Madrid: Tecnos, 1996.
16 Nesse sentido é preciso prudência para que a ênfase nos direitos individuais e as críticas
dos filósofos iluministas a um determinado modelo de monarquia não induzam ao erro
de desconsiderar o estatalismo desses teóricos (Cf. GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas
da modernidade. 2. ed. rev. e ampl. Trad. Arno Dal Ri Jr. Florianópolis: Boiteux, 2007).
Referindo-se a esses autores, Mozart Linhares incorre nessa armadilha do pensamento
iluminista ao afirmar, referindo-se a esses teóricos, que “a soberania de um Estado estruturado na força é substituída pela idéia de um Estado contratual onde a sociedade é
ressaltada. Nesse sentido, o pensamento liberal inverte a relação Estado-Sociedade para
Sociedade-Estado” (In: SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 28). Diferentemente, uma grandíssima e relevante parte
do pensamento iluminista é desconfiada em relação às diversas organizações sociais que
se interpunham, segundo eles, entre o Estado e os indivíduos. Por isso, segundo Grossi,
o binômio entre Estado (macro-sujeito) e indivíduos (micro-sujeitos) é que seria fundamental no pensamento iluminista. Embora não seja o caso de Bentham, essas ponderações
são válidas até mesmo para as teorias contratualistas, onde o poder estatal, em algumas
de suas versões, é uma delegação da sociedade, mas nesse caso a inversão referida por
Linhares ainda não restaria plenamente justificada dado o pactismo (certamente de outro
tipo) que marca várias das monarquias européias até, pelo menos, o século XVII (Cf.
TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Entre absolutismo e pactismo. In: ______. Manual de
historia del derecho español. Madrid: Tecnos, 1996). É possível falar, no máximo, em uma
singular articulação entre estatalismo e individualismo no pensamento iluminista, como
sugere Adriano Cavanna (C.f. CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa.
Le fonti e il pensiero giuridico. Vol. II. Milano: Giuffrè, 2005).
Capítulo 2 |
77
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
2.
A dupla face da lei penal
A lei penal, para Bentham, tem uma dupla dimensão: primeiro, co-participa na construção da ordem social enquanto parte do
catecismo moral da população17, e nesse sentido Bentham enfatiza
a necessidade de a lei comunicar-se diretamente com os indivíduos
subordinados ao seu império, prescindindo da mediação dos juristas,
isto é, advogando a possibilidade de uma ordem jurídica totalmente
transparente fundada nas leis positivas estatais e excluindo, portanto,
a antiga jurisprudência da common law identificada como o mundo do
mistério, da obscuridade, da opacidade. Por essa razão, tanto a escrita
legislativa em geral quanto a inscrição das penas no texto legal são
objeto privilegiado da atenção de Bentham, já que somente um cuidado bastante estrito com esses aspectos do direito é que poderia fazer
com que a relação direta entre emissor (legislador) e receptor (súditos)
da mensagem (leis) se efetivasse como comando. E a ênfase no direito
como comando não deve ser considerada algo banal ou natural, pois
se tratava, de fato, de uma das dimensões mais importantes da nova
ordem jurídica que se pretendia construir – tanto é que Bentham
qualificava a antiga common law como meros quase-comandos, e era
justamente esse um dos aspectos centrais que fazia com que ela fosse
considerada, praticamente, quase um não-direito. No que tange a essa
função, a lei penal tem as mesmas características de todas as outras
leis que deveriam figurar no ordenamento jurídico.
Em segundo lugar, a lei penal, para Bentham, serve também
de garante dessa ordem. Uma ordem que não é mais a tradição préconstituída ao próprio Estado, mas a ordem (burguesa) estabelecida
pelo próprio Estado através dos novos códigos civis que vão ser
promulgados aproximadamente no início do século XIX, na segunda
onda codificatória iluminista identificada por Tarello. Não é de se
estranhar, aliás, que a primeira onda codificatória, especialmente na
17
78
Para Bentham, de fato, o código como conjunto das leis não se resumia a um ordenamento
sistemático de normas e institutos jurídicos, mas devia também cumprir o papel de “catecismo moral” da população: “The universal code of all secular books would be the most
valuable, and almost the only one necessary for all; if not as a book of law, at least as a book
of morals” e, mais adiante, Bentham completa: “The most important parts of it [do código]
might be committed to memory, and repeated as a catechism” (In: BENTHAM, Jeremy. Of
promulgation of the laws... Disponível em: http://www.la.utexas.edu/research/poltheory/
bentham/promul/index.html Acesso em: 12 de fevereiro de 2007. Grifo meu).
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
Itália, tenha sido marcada por códigos penais e de processo penal18
de inspiração iluminista. Afinal, tratavam-se, ainda, de monarquias
muito vinculadas às práticas políticas do Antigo Regime, e, portanto,
precariamente liberais, apesar de encampar certas bandeiras do iluminismo de matriz liberal. Então, investindo na legislação penal, era
possível aproveitar todo o discurso de eficiência do sistema penal como
garante da ordem do iluminismo penal sem antes plasmar essa nova
ordem social através de seu principal instrumento, o código civil.
Bentham deixa muito clara a segunda dimensão da lei penal,
isto é, o papel acessório do direito penal, quando afirma que “o ramo
penal da lei tem por objeto e ocupação, dar executoriedade e efeito à lei
civil, ou ramo distributivo”.19 Porém, apesar desse caráter acessório,
em aparente contradição, Bentham defende a precedência do código
penal, já que “no primeiro código penal o legislador se manifesta a
cada indivíduo, permite, ordena, proíbe, traça a cada um em particular as regras de sua conduta (...); por essa razão o código penal deve
preceder ao código civil, ao código político, etc.”20 Um dado que pode
ser compreendido, talvez, ao se considerar que, embora subordinado
funcionalmente ao código civil, o código penal responde mais imediatamente às exigências de manutenção da segurança necessária para o
próprio desenvolvimento das relações sociais burguesas.
Segundo Bentham, todas as leis transformariam determinados
atos em delitos, mas não necessariamente todas as leis seriam penais.
É nesse sentido que as leis penais e civis compartilham a função de
plasmar as relações do projeto de sociedade que Bentham elabora. Ou
seja, a potencialização do efeito-comando (em relação aos cidadãos)
18
Segundo Giovanni Tarello, “al di là delle vicende particolari può dirsi che, nell’Europa
continentale, le codificazioni illuministiche sono principalmente contraddistinte dal codice
penale; come le codificazioni borghesi dell’epoca successiva (e specialmente la codificazione
francese napoleonica, che è la prima i queste) saranno principalmente contraddistinte dal
codice civile” (In: TARELLO, Giovanni. Storia della cultura giuridica moderna. Assolutismo
e codificazione del diritto. Bologna: Il Mulino, 1979. p. 485).
19 BENTHAM, Jeremy. Constitutional code. In: BOWRING, John (ed.). The works of Jeremy
Bentham. Vol. IX. Edinburgh: William Tait, 1843. p. 23. No original, em inglês: “The penal
branch of law has for its object and occupation, the giving execution and effect to the civil
or distributive branch”.
20 BENTHAM, Jeremy. Idea general de un cuerpo completo de legislación. In: GIL, Magdalena
Rodriguez (ed.). Tratados de legislación civil y penal. Madrid: Editora Nacional, 1981. p. 434. Na
versão consultada, em espanhol: “En el primero código penal el legislador se manifiesta á cada
individuo, permite, ordena, prohibe, traza á cada uno en particular las reglas de su conducta
(...); por esta razón el código penal debe preceder al código civil, al código politico etc.”
Capítulo 2 |
79
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
operada pela forma-código se dá pelo simples estabelecimento dos
delitos, característica tanto das leis civis como das penais.
As leis penais, porém, possuem uma especificidade, pois,
além de tudo, também seriam acessórias em relação às leis civis. As
leis penais seriam as que estabelecem as sanções para um número
determinado de delitos, atribuindo penas a determinadas condutas.
E as leis penais, nesse sentido, se destinariam diretamente não aos
indivíduos, aos súditos em geral, mas aos juízes que deveriam aplicar
as penas. Dessa forma, as leis penais, nesse ponto, se aproximariam
da idéia benthaminiana de adjective laws (que seriam, na terminologia
atual, algo próximo das leis procedimentais ou processuais), que seriam, também segundo Bentham, destinadas aos magistrados. Mas no
momento da execução da pena os indivíduos aparecerão novamente
na extremidade dessa relação comunicativa, mesmo quando a figura
do magistrado se interpõe entre os súditos e o soberano. Na execução
da pena entra em jogo a questão da analogia e da prevenção geral,
que pretendem justamente reforçar os enunciados do código (em
relação aos cidadãos), de maneira que eles voltariam ao lugar de
destinatários do texto legal. E, por fim, para que esse fio de comunicação não sofresse as interferências perturbadoras dos magistrados,
era importante a vinculação da jurisprudência ao texto legal quando
da aplicação da lei, através do princípio da legalidade.
A execução das penas através da prevenção geral (a visibilidade
da pena capaz de prevenir outros delitos) faz parte legitimamente,
portanto, da problematização da relação entre emissor e receptor do
comando legal. Por isso regras análogas àquelas da escritura legislativa
serão usadas no campo da teoria da pena, tal como a simplicidade, que
vem retomada no mesmo sentido: facilitar a inteligibilidade pelo povo.
Nas palavras de Bentham, “um modo de punição deve ser também tão
simples quanto for possível na sua descrição; deve ser inteiramente
inteligível; e não somente para os esclarecidos, mas para o mais não
esclarecido e ignorante”.21 Desse ponto de vista, ainda que se destine
21
80
BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html
Acesso em: 23/05/2007. No original, em inglês: “A mode of punishment ought also to
be as simple as possible in its description; it ought to be entirely intelligible; and that not
only to the enlightened, but to the most unenlightened and ignorant”.
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
aos juízes aplicadores do ponto de vista processual como elementos
acessórios do delito em si, a simples instituição da pena também pretende dirigir-se diretamente à população no momento em que é inscrita
no corpus legislativo, ganhando um reforço no momento da execução
através do trabalho do magistrado que aplica judicialmente a sanção.
Importa sublinhar, por fim, que não se trata exatamente de
uma dupla dimensão do comando legal do ponto de vista dos destinatários, relacionado ao único e mesmo momento de enunciação
legal, que é por onde parecem ter se inclinado os poucos penalistas
do século XX que se debruçaram sobre a questão dos destinatários
da lei penal.22 Nessa leitura teríamos dois destinatários imaginados
– direto e indireto – (com conseqüências esperadas diferentes) para
um mesmo enunciado jurídico, cujos efeitos desejados (a vinculação
jurídica com a conseqüente aplicabilidade da sanção) se encerram
em um único instante de enunciação. Em Bentham trata-se de dois
momentos distintos de enunciação (ainda que relacionados e de
mesmo conteúdo): um originário (estabelecimento do delito) e outro
de reforço (execução da pena), onde temos uma variação nos destinatários diretos dos enunciados jurídicos.
Soberano - - - Filósofo
Lei
Indivíduos
Esquema 1: relação direta entre o soberano e os indivíduos através da lei
em geral (inclusive penal). Filósofo como colaborador do soberano no
estabelecimento da lei.
22
C.f. ANTOLISEI, Francesco. Istituzioni di diritto penale. Milano: Giuffrè, 2000.
Capítulo 2 |
81
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
Soberano - - - Filósofo
Lei penal
Magistrados
Execução penal
Indivíduos
Esquema 2: Interposição dos magistrados na relação entre o soberano e o
indivíduo, que ocorreria no caso das leis penais.
De qualquer forma, o importante para Bentham era que o momento do reforço (execução penal) se desdobrasse como continuação
do enunciado da lei penal. Para isso era essencial que o magistrado
operasse como um potencializador perfeitamente transparente entre
a lei e os indivíduos. Qualquer filtragem ou desvio seria visto como
disfunção. O princípio da legalidade funcionaria, assim, como mecanismo para garantir que os magistrados não “turbassem” a continuidade do fio de comunicação entre o soberano e os súditos.
Por fim, importa lembrar que a noção de direito penal em Bentham não se confunde com a noção contemporânea segundo a qual
ele seria simplesmente um ramo destacado do ordenamento jurídico
(aquele que criminaliza condutas, mais do que somente proibir) e
do estudo do direito. Antes de tudo, o direito penal é o modelo a ser
seguido por todo o ordenamento23, pois é o que mais se aproxima do
23
82
BENTHAM, Jeremy. Principles of legislation. Boston: Wells and Lilly, 1830. p. 229.
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
ideal mandamental/imperativista das utopias jurídicas iluministas.24
Isto é, a noção de lei penal estava mais próxima do modelo de ordem
jurídica que permeava a obra de Bentham (e de tantos outros), cujos
comandos deveriam ser inexoráveis e eficazes. Não é à-toa que Giovanni Tarello interpretou a demanda iluminista por diminuir o campo
das condutas (juridicamente) criminalizáveis como uma necessidade
vinculada à potencialização dos comandos legais naquela área mais
estrita, do que propriamente um simples “humanismo”.25
3.
Exemplaridade econômica
O novo papel instrumentalista atribuído ao direito legislado
no direcionamento das condutas que deveriam compor as novas
relações sociais ganha feições particulares, então, ao se referir ou
às leis propriamente – isto é, à relação direta entre os enunciados
legislativos e a população – ou às penas.
No primeiro caso estamos no plano da transformação de uma
conduta em delito através de um enunciado legal. Transformação de
uma conduta em delito que é tomada como um comando destinado
diretamente aos comandados, de maneira que o código deveria se tomar o catecismo da população, seu guia moral de bolso. Dessa forma,
o código se adequaria ao papel instrumental atribuído à legislação na
medida em que só assim seria possível conduzir o comportamento
dos indivíduos em direção às sociabilidades burguesas que se pretendia construir através da lei. Segundo Bentham, “o modo de dirigir
a educação, de dispor os empregos, as recompensas, as punições,
determinará as qualidades físicas e morais de um povo”.26
Decorrência dessa instrumentalidade das leis, a instrumentalidade também das penas. A primeira dimensão da instrumentalidade
das penas está na função de correção individual do comportamento
24
C.f. GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2. ed. rev. e ampl. Trad. Arno Dal
Ri Jr. Florianópolis: Boiteux, 2007.
25 C.f. TARELLO, Giovanni. Ideologie settecentesche della codificazione e struttura dei codici.
In: ______. Cultura giuridica e politica del diritto. Bologna: Il Mulino, 1988.
26 BENTHAM, Jeremy. Principles of legislation. Boston: Wells and Lilly, 1830. p. 251. No
original, em inglês: “The mode of directing education, of disposing of employments, of
rewards, of punishments, will determine the physical and moral qualities of a people”.
Capítulo 2 |
83
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
dos indivíduos através da aplicação da pena. É a função reformadora da pena, tão enfatizada por Jeremy Bentham e que se revelou
frustrada mesmo no dispositivo em tese mais capaz de atingir esse
fim: o panopticon. Mas aqui, ainda, estamos no plano da história do
pensamento, onde, de qualquer forma, é historicamente relevante o
investimento nesse projeto.
Na correção individual através da aplicação da pena, bem se
percebe que não há uma relação direta entre o legislador e o apenado
e que, dessa forma, não se pode falar numa relação comunicativa tal
qual Bentham concebia para a relação entre a lei e os governados.
O instrumentalismo da legislação, porém, não extirpou a dimensão
simbólica da execução das penas, apesar da emergência do problema
da correção individual. Em que pese as críticas à espetacularidade dos
antigos suplícios (que, em verdade, eram aplicados seletivamente,
seja pela inviabilidade de meios institucionais para aplicar sempre
essas penas a todos os crimes, seja pelas constantes intervenções da
graça real, de modo que esse regime punitivo, justamente, não operava apesar da distância entre penas cominadas e penas aplicadas,
mas através dela, lançando mão do binômio justiça-misericórdia27), a
chamada mitigação das penas (na expressão de Beccaria) ou economia
das penas (na expressão de Bentham), em verdade, ao lado da ênfase
na correção individual e na necessidade de extirpar a seletividade da
aplicação da pena, pretendia tornar mais econômica a visibilidade
da aplicação das punições.28 Isso significava fazer com que o efeito
27
C.f. HESPANHA, António Manuel. Da “iustitia” à “disciplina”. Textos, poder e política
penal no Antigo Regime. In: ______ (org.). Justiça e litigiosidade. História e prospectiva.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, s/d.; ALESSI, Giorgia. O direito penal moderno entre retribuição e reconciliação. In: DAL RI JR., Arno; SONTAG, Ricardo (orgs.). Anais do congresso
“A Construção do Direito Penal e do Processo Penal Modernos” (Florianópolis, abril 2008).
Digital. Florianópolis: Boiteux, 2008. No prelo.
28 Mozart Linhares afirma que “tal como Beccaria, Bentham tinha uma concepção correcional
da pena” (SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1997. p. 45), mas esta afirmação, para os dois casos, precisa ser sopesada,
justamente, com a grande importância da exemplaridade econômica da pena ao lado da
função correcional em relação aos criminosos (e que não se confundem). Em relação a
Beccaria, é justamente essa característica que fez Foucault enquadrá-lo, ainda, claramente, entre os reformistas clássicos vinculados à idéia de pena-representação e, quanto a
Bentham, é exatamente esta uma das hipóteses defendidas aqui: se as vantagens da pena
de prisão do ponto de vista correcional parecem bastante grandes para Bentham, ainda
assim, dada sua concepção geral de punição, ela também é submetida às adaptações
necessárias para responder às exigências da exemplaridade econômica, isto é, da visibi-
84
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
da aplicação da pena perante terceiros (a prevenção geral) se tornasse funcional à produção efetiva dos comportamentos prescritos
pela legislação. Em suma, ao lado da chamada prevenção específica
(correção individual) figurava a chamada prevenção geral.29
Embora, no texto específico sobre o panopticon, Bentham considere quase exclusivamente as funções defensivas (no sentido de
inviabilização material da reincidência através do encarceramento)
e correcionais da penitentiary-house, menos vinculadas à visibilidade
da pena, em outros momentos, ao tratar de teoria das penas, a ênfase
lidade, da multiplicidade das penas, da analogia entre penas e delitos, todos estes traços
daquilo que Foucault chamou de concepção clássica de pena. Segundo Foucault, “depuis
Beccaria, les réformateurs avaient élaboré des programmes punitifs caractérisés par leur
variété, leur souci de corriger, la publicité des châtiments, la correspondance seigneuse
entre la nature du délit et la forme de la peine (...). Or, dês 1791, on a opte pour un système
punitif monotone: l’incarcération, en tout cas, y est préponderante” (FOUCAULT, Michel.
La poussière et la nuage. In: ______. Dits et ècrits. Vol. IV. Paris: Gallimard, 1994. p. 11).
Evidentemente, a datação proposta não deve ser interpretada de forma rígida e a referência
à situação francesa deve ser considerada, como adverte o próprio Foucault nas primeiras
páginas de Vigiar e punir. Mozart Linhares também afirma, na página 44 do mesmo livro,
que Bentham teria uma concepção retributiva de punição, porém, sem esclarecer em que
sentido entende o termo “retribuição”. Vale a pena alertar, todavia, que as concepções
retributivas de punição em geral são pouco compatíveis com a complexidade das funções
atribuídas à pena legal de Jeremy Bentham. Alguns até mesmo rechaçam a possibilidade
de chamar de retributiva a concepção de pena de Bentham, como é o caso de Hugo Bedau,
para quem, em Bentham, “punishment is a practice essentially forward-looking (to prevent
crime and secure public safety), not a practice essentially backward-looking (to render
retribution based on desert). It has three goals: prevention of crime, correction of offenders, and compensation of victims” (In: BEDAU, Hugo. Bentham’s theory of punishment:
origin and content. Journal of Bentham’s Studies. Disponível em: http://www.ucl.ac.uk/
Bentham-Project/journal/Bedau.htm Acesso em: 03/05/2008).
29 Sobre o assunto, Bentham dizia que “when any act has been committed which is followed,
or threatens to be followed, by such effects as a provident legislator would be anxious to
prevent, two wishes naturally and immediately suggest themselves to his mind: first, to
obviate the danger of the like mischief in future: secondly, to compensate the mischief
that has already been done” (In: BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by
Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.
edu/labyrinth/rp/index.html Acesso em: 23/05/2007. Grifo meu). Na versão francesa
este trecho aparece de forma diferente: “(…) deux pensées doivent se présenter à l’esprit
du législateur ou du magistrat (...)” (BENTHAM, Jeremy. Théorie des peines et des récompenses. Ouvrage extrait des manuscrits de M. Jérémie Bentham, jurisconsulte anglois, par
Et. Dumont. Seconde édition. Paris: Bossanges et Masson, 1818. p. 14). O editor inglês de
1830 provavelmente ignorou a palavra “magistrado” do trecho citado porque, de fato,
a obra de Bentham se configura essencialmente como de política legislativa, isto é, com
uma relação somente indireta com a prática judiciária. Mas, nesse caso, ainda que falando
do ponto de vista daquilo que poderíamos chamar de política judiciária, a referência ao
magistrado é importante na medida em que a comunicação com os súditos na execução
das penas se dá através do magistrado que aplica a lei. Por isso, nesse caso, o duplo interlocutor (magistrado e legislador) não pode ser negligenciado.
Capítulo 2 |
85
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
é invertida e a exemplaridade da prevenção geral produzida pela
execução das penas aparece em primeiro plano. Segundo Bentham,
A prevenção geral é produzida pela denunciação da
punição, e pela sua aplicação, a qual, de acordo com a expressão comum, serve de exemplo. A punição sofrida pelo
ofensor apresenta para cada um exemplo daquilo que
ele próprio sofreria se for culpado pela mesma ofensa.
A prevenção geral deve ser a principal finalidade da punição,
enquanto sua real justificativa. Se nós pudéssemos considerar uma ofensa cometida como um fato isolado, que
nunca se repetiria, a punição seria inútil.30
Nesse novo contexto, os efeitos simbólicos da pena são submetidos aos objetivos instrumentais do sistema penal, isto é, passam
pelo crivo do princípio da utilidade para que se tornem econômicos. A
diferença entre a exemplaridade da aplicação da pena nas chamadas
monarquias corporativas (aquelas anteriores ao influxo do iluminismo, segundo A. M. Hespanha) e aquela propugnada por Bentham é a
submissão dessa dimensão simbólica da punição à lógica instrumentalista do novo sistema de leis. Quer dizer, submetendo esses efeitos
da execução da pena ao crivo do princípio da utilidade, Bentham
pretende tornar a exemplaridade mais econômica e, portanto, eficaz.
Eficaz justamente em relação aos desígnios específicos da própria
norma penal, isto é, de fazer os cidadãos guiarem seu comportamento
conforme as normas legais, que é a dimensão instrumental, a função
de controle efetivo do comportamento dos indivíduos ora sublinhado
pela tradição iluminista. Para usar a terminologia de António Manuel
Hespanha, trata-se de um dispositivo de produção de disciplina e não
de distribuição de iustitia por um soberano cuja função primordial
30
86
BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.
html Acesso em: 23/05/2007. Grifo meu. No original, em inglês: “General prevention is
effected by the denunciation of punishment, and by its application, which, according to
the common expression, serves for an example. The punishment suffered by the offender
presents to every one an example of what he himself will have to suffer if he is guilty of
the same offense. General prevention ought to be the chief end of punishment, as it is its
real justification. If we could consider an offence which has been committed as an isolated
fact, the like of which would never recur, punishment would be useless”.
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
seria manter os equilíbrios estamentais através da reafirmação da
supremacia simbólica do rei através dos gestos de submissão.31
São várias as conseqüências dessa nova forma de problematizar
a teoria das penas, assentada num projeto de capilarização do poder
soberano estatal. Entre elas está a necessidade de a exemplaridade
fundar-se na aplicação contínua e sistemática das leis, questão que
não se colocava, a não ser de forma absolutamente marginal, para o
dispositivo penal de produção e reprodução de sujeição das monarquias tradicionais. A esse propósito, vale lembrar que havia também,
para Bentham, uma prevenção geral de segunda ordem, que seria
conseqüência da aplicação contínua das penas a todos os crimes e
que, assim, seria capaz de dissuadir, de alguma forma, as pessoas
de cometer qualquer tipo de crime. De qualquer forma, não se deve
supervalorizar, em Bentham, esse aspecto tão próximo da maneira
como se lida, em regra, com a prevenção geral atualmente, pois se
tratava somente de um subproduto da aplicação correta das penas.
Aplicação que deveria ser fundada nos critérios da prevenção geral
em sentido estrito, isto é, análogas a cada delito.
Para a construção dessa nova exemplaridade econômica,
Bentham distingue entre a pena real e a pena aparente. A pena real
corresponderia ao sofrimento concretamente sofrido pelo apenado,
a despesa da pena, que não traz vantagem social alguma. A pena
aparente, por sua vez, corresponderia ao efeito exemplar que a execução da pena conseguiria obter. Segundo Bentham, “uma pena real
que não fosse aparente, seria perdida para o público. A grande arte é
aumentar a pena aparente, sem aumentar a pena real. (...) a realidade
não é necessária senão para sustentar a sua aparência”.32
Embora sejam conceitos simples, vale a pena comparar a maneira como duas edições do mesmo livro de Bentham trouxeram a
distinção entre o valor aparente e o valor real das penas:
31
C.f. HESPANHA, António Manuel. Da “iustitia” à “disciplina”. Textos, poder e política
penal no Antigo Regime. In: ______ (org.). Justiça e litigiosidade. História e prospectiva.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, s/d.
32 BENTHAM, Jeremy. Principios del código penal. In: GIL, Magdalena Rodriguez (ed.).
Tratados de legislación civil y penal. Madrid: Editora Nacional, 1981. p. 305. Na versão consultada, em espanhol: “una pena real que no fuese aparente, seria perdida para el público.
El grande arte es aumentar la pena aparente, sin aumentar la pena real. (...) la realidad de
la pena no es necesaria sino para sostener su apariencia”.
Capítulo 2 |
87
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
Por valor real, quero referir-me àquela que deve ser
encontrada por alguém, como um legislador, que esteja
em acuradas condições de traçar e calmamente estimála em todas as suas partes, excetuando as desilusões
que governam a parte não informada e não pensante
da humanidade; sabendo de antemão, conforme os
princípios gerais, o que o delinqüente saberá logo depois de experienciá-la. Por valor aparente das punições
eu entendo aquela que aparece para um delinqüente
em qualquer tempo anterior a experienciá-la; ou para
uma pessoa prestes a tornar-se delinqüente antes de
experienciá-la. A pena real constitui a despesa. A pena
aparente influi na conduta dos indivíduos.33
Enquanto na versão francesa:
Existem na pena o valor aparente e o valor real. Eu entendo por valor real, todo o mal da pena, tudo aquilo
que será suportado quando for infringida. Entendo por
valor aparente, o mal provável que se apresentará à
imaginação da maioria dos homens, para além da simples descrição da pena, quando da sua execução. O que
constitui a despesa? É a pena real. O que influi sobre a
conduta dos sujeitos? É a pena aparente.34
33
BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html
Acesso em: 23/05/2007. No original, em inglês: “By the real value, I mean that which it
would be found to have by one who, like the legislator, is in a condition accurately to trace
and coolly to estimate it through all its parts, exempt from the delusions which are seen
to govern the uninformed and unthinking part of mankind; knowing, beforehand, upon
general principles, what the delinquent will know afterwards by particular experience.
By the apparent value of a punishments I mean that which it appears to a delinquent to
have at any time previous to that in which he comes to experience it; or to a person under
temptation to become a delinquent previous to the time at which, were he to become so,
he would experience it. The real value of the punishment constitutes the expense. The
apparent value influences the conduct of individuals”.
34 BENTHAM, Jeremy. Théorie des peines et des récompenses. Ouvrage extrait des manuscrits
de M. Jérémie Bentham, jurisconsulte anglois, par Et. Dumont. Seconde édition. Paris:
Bossanges et Masson, 1818. p. 19. No original, em francês: “Il y a dans les peines valeur
apparente et valeur réelle. J’entends par valeur réelle, le mal entier de la peine, tout celui
qui seroit éprouvé quand elle seroit infligée. J’entends par valeur apparente, le mal probable
qui se présenteroit à l’imagination du commun des hommes, d’après la simple description
de la peine, ou la vue de son exécution. Qu’est-ce que constitue la dépense? C’est la peine
réelle. Qu’est-ce qui influe sur la conduite des sujets? C’est la peine apparente”.
88
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
A versão de 1830 (em inglês) deste trecho sobre o valor aparente da pena é muito mais prolixa e traz algumas expressões e palavras
que devem ser sopesadas. Primeiro, a referência ao legislador, que
é quem tem consciência da pena real ao instituí-la, talvez não seja
mais do que um excesso. Depois, o uso do termo “delinqüente”, que
na versão francesa, anterior, não aparece nenhuma vez. Quanto a
este ponto, a questão ganha mais relevância quando relacionado
a outro acréscimo: o de que a força aparente da pena se destinaria
à porção infantil, não-racional, da população. A regra geral, em
Bentham, é na aposta pela identificação dos sujeitos com a racionalidade da legislação, justamente para que o comandado não seja
infantilizado, de maneira que a lei se torne, assim, um meio para
que ele ascenda à racionalidade ética plasmada nas leis e com a qual
todo ser humano tenderia a se identificar na paradoxal fórmula da
“obediência racional” (a comunhão entre emissor e destinatário).
A referência à necessidade da lei como forma de governar sujeitos
não perfeitamente adultos ou racionais toca, de qualquer forma, no
investimento na sensibilidade dos indivíduos (e não tanto na racionalidade) no momento específico da execução das penas, isto é, na
leitura da execução das penas, enquanto o momento de leitura das
leis, ao contrário, investe mais na racionalidade. Talvez nesse sentido
seja possível compreender a inserção da palavra “delinqüente” nessa
versão, já que essa figura seria o sujeito excluído da racionalidade
burguesa por excelência. Por fim, a grosseira tradução portuguesa
(editada também no Brasil), que substitui o “the apparent value influences the conduct of individuals” e o “qu’est-ce qui influe sur la
conduite des sujets?” por “quem influi sobre a moral dos Povos?”35
e que prejudica enormemente a visualização do fato de que estamos
diante de uma estratégia de governo no sentido foucaultiano. Pois se
é certo que, indiretamente, chegamos ao tecido da moralidade de
uma sociedade, o que está em jogo em primeiro lugar são os comportamentos dos indivíduos e a maneira de conduzi-los, e é somente
nesse segundo campo que é possível vislumbrar a específica noção
de governo com a qual opera Bentham. Em lugar de “povo” (que
poderia se confundir com certas noções nacionalistas de meados do
35
BENTHAM, Jeremy. Teoria das penas legais. Campinas: Bookseller, 2002. p. 28.
Capítulo 2 |
89
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
século XIX), talvez a palavra “população”, entendida como conjunto
de indivíduos a ser coordenados, seja mais esclarecedora.
Não sendo possível simplesmente aplicar penas falsas, isto
é, desvincular totalmente a pena aparente da pena real, a exemplaridade econômica deveria ser a que obtém a maior visibilidade
possível da punição para a construção da prevenção geral com
o mínimo de pena real, isto é, com o mínimo de sofrimento ao
condenado, preferencialmente adstrito ao mínimo necessário
para tolher a capacidade de o criminoso cometer crimes, seja
pela inviabilização material (encarcerando-o, por exemplo), seja
“esfriando-lhe o desejo”, que é a chamada prevenção específica ou
correção individual. É interessante notar que as versões francesa
e inglesa são um tanto diferentes sobre tal ponto:
É preciso infringir penas reais? Certamente, mas por
quê? Para produzir a aparência. Conforme o princípio
da utilidade, somente na medida em que for necessária
para a reforma e compensação, e somente por essas razões. Cada partícula de punição real que é produzida a
mais do que é necessário para a produção da quantidade
devida de punição aparente, é uma série muito grande
misérias para desperdiçar. Então, a pena real deve ser
tão pequena e aparente quanto for possível.36
E na versão francesa:
É preciso infringir penas reais? – Sim, mas por quê?
Principalmente para o exemplo, porque a realidade
da pena é necessária para produzir a aparência. A
36
90
BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.
html Acesso em: 23/05/2007. No original, em inglês: “Ought any real punishments to be
inflicted? Most certainly. Why ? For the sake of producing the appearance of it. Upon the
principle of utility, except as to so much as is necessary for reformation and compensation, for this reason, and for no other whatever. Every particle of real punishment that
is produced more than what is necessary for the production of the requisite quantity of
apparent punishment, is just so much misery run to waste. Hence the real punishment
ought to be as small and the apparent punishment as great as possible”.
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
aparência é o objeto essencial. Todo o mal que não
aparece é totalmente perdido. É preciso, portanto,
que o mal real seja tão pequeno, e o mal aparente tão
grande quanto for possível.37
A versão francesa é mais enfática na importância da pena
aparente, pois nem mesmo lembra a função reformadora da pena
real e insiste apenas em que o essencial da punição é a produção do
valor aparente.
De qualquer forma, a “humanidade” das penas, em Bentham, é identificada com esse cálculo econômico entre a pena
aparente e a pena real, fazendo com que o condenado não sofra
o dispêndio de um sofrimento incapaz de produzir vantagens no
plano da pena aparente. Segundo Bentham, “a pena real é aquela
que faz todo o mal, e a pena aparente é a que faz todo o bem, e
é conveniente tirar todo o proveito possível para o aumento da
segunda: a humanidade consiste na aparência de crueldade”38, de
maneira que “um modo de punir é exemplar proporcionalmente
à sua aparência, e não à sua magnitude”.39
Através da exemplaridade, portanto, a execução penal se reconecta à dimensão comunicativa atribuída à ordem jurídica, pois é colocada como parte do processo que dá a conhecer a lei aos indivíduos.
Segundo Bentham, “a lei penal pode dar-se a conhecer aos espíritos
de duas maneiras: 1º pelo enunciado da lei, isto é, pela descrição da
37
BENTHAM, Jeremy. Théorie des peines et des récompenses. Ouvrage extrait des manuscrits
de M. Jérémie Bentham, jurisconsulte anglois, par Et. Dumont. Seconde édition. Paris:
Bossanges et Masson, 1818. p. 21. No original, em francês: “Faut-il infliger des peines
réelles? – Oui, mais pourquoi? Principalement pour l’exemple, parce que la réalité de la
peine est nécessaire pour em produire l’apparence. L’apparence est l’objet essentiel. Tout
le mal qui ne paroît pas est en pure perte. Il faut donc que le mal réelle soit aussi petit, et
le mal apparent aussi grand que possible.”
38 BENTHAM, Jeremy. Principios del código penal. In: GIL, Magdalena Rodriguez (ed.).
Tratados de legislación civil y penal. Madrid: Editora Nacional, 1981. p. 358. Na versão
consultada, em espanhol: “La pena real es la que hace todo el mal, y la pena aparente es
la que hace todo el bien, y así conviene sacar de la primera todo el partido posible para
aumentar la segunda: la humanidad consiste en la apariencia de la crueldad”.
39 BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html
Acesso em: 23/05/2007. No original, em inglês: “A mode of punishment is exemplary in
proportion to its apparent, not to its real magnitude”.
Capítulo 2 |
91
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
pena; 2º pela execução pública da lei, isto é, no momento em que a
pena é infringida com uma notoriedade conveniente”.40
A execução penal, então, indiretamente participa da função
plasmadora de comportamentos sociais da lei na medida em que
reforça seus enunciados através dos efeitos simbólicos da execução
penal. A função de prevenção geral (econômica) vincula a execução
das penas, portanto, aos enunciados legislativos específicos e, para
que esse vínculo pudesse veicular o reforço pretendido, Bentham
sugere alguns expedientes no sentido de que a execução das penas
remeta da maneira mais clara possível aos enunciados da lei. O principal deles deveria ser a chamada analogia entre crimes e penas.
Através da analogia, segundo Bentham, “a pena se gravará mais
facilmente na memória, e se apresentará com mais força à imaginação,
se tem uma semelhança, um traço comum com o delito”41, repetindo,
na verdade, a própria função atribuída à enunciação legislativa: gravar o comando na memória dos governados. Por isso a importância
da analogia, já que, segundo Bentham, “a maneira mais efetiva de
tornar uma punição exemplar é através da analogia”.42
Analogia significa a conexão entre a idéia da punição e a idéia do
crime, cuja forma mais simples seria a da famosa lei de Talião, “olho
por olho, dente por dente”. Embora nem sempre seja praticável de
maneira tão simples e evidente, sua espantosa simplicidade deveria,
para Bentham, servir de exemplo à analogia submetida ao crivo do
princípio da utilidade, já que a mais “imperfeita inteligência” seria
capaz de compreender a associação de idéias proposta pela lei de Talião, simplicidade que colabora na consecução do objetivo central da
40
BENTHAM, Jeremy. Théorie des peines et des récompenses. Ouvrage extrait des manuscrits
de M. Jérémie Bentham, jurisconsulte anglois, par Et. Dumont. Seconde édition. Paris:
Bossanges et Masson, 1818. p. 22. No original, em francês: “La loi pénale peut être rendue
présente à l’esprit de deux maniéres: 1º par l’énoncé de la loi, c’est-à-dire, par la description
de la peine; 2º par la execution publique de la loi, c’est-à-dire, lorsque la peine est infligée
avec une notoriété convenable”.
41 BENTHAM, Jeremy. Principios del código penal. In: GIL, Magdalena Rodriguez (ed.).
Tratados de legislación civil y penal. Madrid: Editora Nacional, 1981. p. 307 (grifo meu). Na
versão consultada, em espanhol: “La pena se gravará mas facilmente en la memória, y
se presentará con mas fuerza á la imaginacion, si tiene una semejanza, una analogia, un
carácter comum con el delito”.
42 BENTHAM, Jeremy. An introduction to the principles of moral and legislation. Vol. II. London:
W. Pickering, 1823. p. IV. No original, em inglês: “The most effectual way of rendering a
punishment exemplary is by means of analogy”.
92
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
analogia: imprimir na memória os enunciados legislativos.43 Foucault
chega a afirmar que “o modelo do talião nunca foi proposto sob uma
forma detalhada”44 e que teria servido somente para definir tipos de
punição bastante gerais em relação a amplas categorias de crimes (“os
atentados contra as pessoas devem ser punidos com penas corporais”), como em Beccaria, mas não chega a explicitar o que seria uma
proposição detalhada do modelo de Talião. De qualquer forma, vale
advertir que Bentham foi mais além, tentando aprofundar as indicações gerais de Beccaria, detalhando, de alguma forma, e realmente
utilizando como guia geral as regras da fórmula de Talião.
A relação de analogia entre o delito e a pena não poderia descaracterizar, porém, a ordem legal como uma ordem artificialmente
construída pela vontade estatal, e por isso Bentham critica Montesquieu nesse aspecto:
Montesquieu deixou-se deslumbrar, quando por ter somente percebido esta qualidade nas penas, pensou que
poderia eliminar delas todo o caráter arbitrário. ‘É o triunfo
da liberdade (diz ele) quando as leis criminais tiram cada
pena da natureza particular do delito. Toda arbitrariedade
cessa: a pena não vem do capricho do legislador, mas da
natureza das coisas, e não é o homem que faz violência
ao homem’ [Espírito das leis, livro 12, cap. 4].45
43
Segundo Bentham: “Punishment can act as a preventative only when the idea of it, and
of its connection with the crime, is present to the mind. Now, to be present, it must be
remembered, and to be remembered it must have been learnt. But of all punishments
that can be imagined, there are none of which the connection with the offence is either
so easily learnt, or so efficaciously remembered, as those of which the idea is already in
part associated with some part of the offence, which is the case when the one and the
other have some circumstance that belongs to them in common. The law of retaliation is
admirable in this respect. An eye for an eye, and a tooth for a tooth. The most imperfect
intelligence can connect these ideas. This rule of retaliation is however rarely practicable;
it is too unequable and too expensive; recourse must therefore be had to other sources of
analogy” (In: BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward.
London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/
rp/index.html Acesso em: 23/05/2007. Grifo meu).
44 FOUCAULT, Michel. La société punitive. In: ______. Dits et écrits. Vol. II. Paris: Gallimard,
1994. p. 462. No original, em francês: “(...) le modèle de talion n’a jamais été proposé sous
une forme détaillée”.
45 BENTHAM, Jeremy. Principios del código penal. In: GIL, Magdalena Rodriguez (ed.). Tratados de legislación civil y penal. Madrid: Editora Nacional, 1981. p. 310. Na versão consultada,
em espanhol: “Montesquieu se ha dejado deslumbrar, cuando por solo haber percibido
esta cualidad en las penas, ha pensado que se las podria quitar todo lo arbitrario. ‘Es el
Capítulo 2 |
93
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
Na seqüência do capítulo mencionado, Montesquieu classifica os crimes em quatro espécies, sugere as penas mais adequadas,
segundo a natureza das coisas, para cada tipo de delito, e conclui
reafirmando a idéia da frase citada por Bentham (que se encontra
na abertura do capítulo): “Tudo o que eu disse está colocado na
natureza, e é muito favorável à liberdade do cidadão”.46 Para Bentham, contrariamente, a analogia é um critério de utilidade que deve
ser seguido pelo legislador para obter da maneira mais eficiente
a prevenção geral desejada pela aplicação da lei, e não, como em
Montesquieu, um dado da natureza das coisas capaz até de anular
a dimensão voluntarista da ordem jurídica estatal. Diferentemente
de Montesquieu, no caso de Bentham a referência à natureza das
coisas (que chega até a soar como um resquício do imanentismo
medieval47) já não é possível na medida em que o direito natural foi
substituído, em seu sistema, pelo princípio da utilidade.
A analogia, assim, cria imagens que vinculam a execução das
penas aos enunciados legislativos. Imagens que têm, para Bentham,
um papel primordial na relação comunicativa entre o direito legislado
e seus destinatários, o que se pode perceber pelos comentários que
fez acerca das possíveis ilustrações nos códigos penais:
Se um quadro compendiado do código penal estivesse
acompanhado de imagens que representassem as penas
características aplicadas a cada delito, este quadro seria
um comentário importante, uma imagem sensível e falante da lei. Todos poderiam dizer a si mesmos: isto é o
que devo padecer se chego a ser um delinqüente.48
triunfo de la libertad (dice) cuando las leyes criminales sacan cada pena de la naturaleza
particular del delito. Toda arbitrariedad cesa: la pena no viene del capricho del legislador,
sino de la naturaleza de la cosa, y no es el hombre que hace violencia al hombre’ [Espírito
das leis, Livro 12, cap. 4]”.
46 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, Baron de la. De l’esprit des loix. Tome premier.
Londres: chez Nourse, 1769. p. 388.
47 C.f. GROSSI, Paolo. L’ordine giuridico medievale. Roma-Bari: Laterza, 1995.
48 BENTHAM, Jeremy. Principios del código penal. In: GIL, Magdalena Rodriguez (ed.).
Tratados de legislación civil y penal. Madrid: Editora Nacional, 1981. p. 361. Na versão consultada, em espanhol: “Si un cuadro compendiado del código penal estuviese acompañado
de estampas que representasen las penas características aplicadas á cada delito, este cuadro
sería un comentario importante, una imagen sensible e parlante de la ley. Todos pueden
decirse á sí mismos: esto es lo que debo padecer, si llego á ser delincuente”.
94
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
Estendendo a terminologia utilizada nesta passagem à compreensão do problema que ora nos ocupa, é possível dizer que, através
de uma adequada relação de analogia estabelecida entre o delito e a
pena, a execução penal, fortificando a impressão da pena na imaginação, se tornaria também uma “imagem sensível e falante da lei”.
Ao contrário do penitenciocentrismo (a aplicação monótona da
pena de prisão à quase totalidade dos delitos, com simples variações
no quantum através de procedimentos cada vez menos visíveis) que
se estabeleceu ao longo do século XIX, em Bentham a pena de prisão
tenta ser adequada à exigência de que as punições sejam tão múltiplas
quanto os enunciados legislativos, na medida em que, do ponto de
vista da sua função de exemplo (prevenção geral), elas reforçam os
enunciados legislativos, e por isso “a multiplicidade ou variedade das
penas, prova a indústria e o cuidado do legislador”.49 Aqui, portanto,
estamos diante do esquema característico da pena-representação dos
reformadores clássicos.
4.
A prisão como pena
Aparentemente, a pena de prisão seria a mais prejudicada nos
critérios “analogia” e “exemplaridade” que Bentham utiliza para
qualificar a utilidade das penas. Como bem observou Foucault, “a
prisão em seu todo é incompatível com toda essa técnica da penaefeito, da pena-representação, da pena-função geral, da pena-sinal
e discurso”.50
Bentham reconhece que das prisões inglesas, tal qual funcionavam na Inglaterra no final do século XVIII, não se poderia extrair
qualquer utilidade do ponto de vista da prevenção geral. De fato,
a descrição de Dario Melossi da situação das prisões inglesas nessa
época é bastante terrível:
49
BENTHAM, Jeremy. Principios del código penal. In: GIL, Magdalena Rodriguez (ed.).
Tratados de legislación civil y penal. Madrid: Editora Nacional, 1981. p. 313. Na versão consultada, em espanhol: “La multiplicidad ó la variedad de las penas, prueba la industria y
el cuidado del legislador”.
50 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Ligia M. Pondé Vassallo. 6. ed. Petrópolis: Vozes,
1991. p. 102.
Capítulo 2 |
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LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
O trabalho desapareceu completamente da prisão,
voltou-se à prática funesta do lucro privado do guarda,
desapareceu todo e qualquer tipo de classificação e de
diferenciação, por mais grosseira que pudesse ter sido
praticada antes. As seções femininas do cárcere se transformaram em bordéis regidos pelos carcereiros. Foi essa
situação que provocou a intervenção e os escritos dos
reformadores da segunda metade do séc. XVIII, situação
sinistramente representada pelo flagelo da gaol fever, que
matava quase a quinta parte dos presos anualmente,
não poupando às vezes nem mesmo juízes, guardas,
testemunhas e todo o aparato que de um modo ou de
outro tinha relação com o cárcere.51
Mas, para Bentham, através de uma adequada remodelação
no modelo prisional seria possível agregar às vantagens desta pena
(eficácia, divisibilidade, simplicidade etc. – onde a prisão, na concepção de Bentham, tinha grandes vantagens em relação às outras
penas) os benefícios da prevenção geral, que é o fim último de toda
punição na concepção benthaminiana. Por isso o esforço de Bentham
em mostrar como as prisões, na sua aparência, deveriam trazer os
sinais que fizessem a população relacioná-la com os crimes ou, ao
menos, com tipos de crimes.
A prisão panóptica preencheria quase todos os requisitos de
uma punição adequada na concepção benthaminiana, quais sejam:
seria eficaz no sentido de evitar que o criminoso praticasse novamente
o delito (ao menos enquanto estivesse encarcerado), bastante divisível, descrição simples, isto é, qualquer pessoa poderia compreender
o que é não poder sair de certo lugar. Mas, quanto à analogia e à
exemplaridade a pena de prisão ficaria prejudicada. Por isso Bentham procurará enquadrar com alguns artifícios o encarceramento
no caráter multiforme das penas legais, que é a própria diversidade
dos delitos que devem representar.
Segundo Bentham,
51
96
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica. As origens do sistema penitenciário
(séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 64.
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
sob o sistema atual, a exemplaridade do encarceramento está reduzida ao mais baixo nível. No panopticon, a
facilidade dada ao acesso do público acrescenta muito
a esta parte da sua utilidade. De qualquer forma, se os
prisioneiros não são vistos, a prisão é visível. A aparência
desta morada da penitência deve tocar a imaginação e
despertar um salutar terror. Construções empregadas
neste fim devem, ainda, ter um caráter de reclusão e
restrição, que deveria eliminar todo intento de escapar,
e dizer, ‘este é o lar do crime’.52
Essa visibilidade da prisão benthaminiana discrepa frontalmente das demandas contemporâneas por afastar e isolar os estabelecimentos prisionais, cada vez mais identificados, dessa forma, com
um “depósito do indesejável”.53 Em Bentham, a idéia é inversa: a
prisão deve estar o mais visível possível para que ela possa cumprir
sua função de exemplo na prevenção geral.
Segundo ele, a prisão
deveria ser colocada nas proximidades das metrópoles,
onde o maior número de pessoas estão juntas, especialmente daqueles a quem deve ser rememorada, através
de exibições penais, das conseqüências do crime. A
aparência da construção, a singularidade da sua imagem, os muros e fossos que a circundam, os guardas
posicionados nos seus portões, excitariam idéias de
restrição e punição, enquanto a facilidade que deveria
52
BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html
Acesso em: 23/05/2007. No original, em inglês: “Under the present system, the exemplarity
of imprisonment is reduced to the lowest term. In the Panopticon, the facility afforded to
the admission of the public, adds much to this branch of its utility. However, if the prisoners are not seen, the prison is visible. The appearance of this habitation of penitence may
strike the imagination and awaken a salutary terror. Buildings employed for this purpose
ought therefore to have a character of reclusion and restraint, which should take away all
horse of escape, and should say, ‘This is the dwelling place of crime’”.
53 C.f. BAUMAN, Zygmunt. Lei global, ordens locais. In: ______. Globalização. As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. E também quase toda a criminologia crítica
contemporânea. Para citar somente um, destaco: WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria.
Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
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97
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
ser dada ao seu acesso dificilmente falharia em atrair
uma multidão de visitantes (...).54
É uma idéia que não se enquadra perfeitamente, também, no
modo como a questão penitenciária se desenvolveu ao longo do
século XIX, na medida em que a execução das penas foi se tornando
cada vez mais velada55 e o problema dos sinais da pena de prisão,
tal como Bentham elaborou, foi ficando para trás.
Bentham reforçava que a pena de prisão se enquadraria no primeiro e grande requisito de comunicabilidade das leis e das penas: a
simplicidade. Segundo ele, em relação à simplicidade da descrição da
pena de prisão, “esta punição é inteligível para todas as idades, e todas
as capacidades. O confinamento seria um mal do qual praticamente
qualquer um pode formar uma idéia, e que todos, em maior ou menor
grau, já teriam experimentado. O nome prisão rememora, então, ao
mesmo tempo, as idéias de sofrimento conectadas a ela”56.
Para bem elaborar as prisões conforme suas funções, Bentham
trata de classificá-las em diferentes tipos, como costuma fazer com
todos os objetos com os quais se depara. Os tipos de prisão, então,
seriam os seguintes:
1.
Prisão civil e processual, que deveria ser chamada de “House
for Safe Custody”57;
54
BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html
Acesso em: 23/05/2007. No original, em inglês: “(...) would be placed in the neighbourhood of the metropolis, where the greatest number of persons are collected together, and
especially of those who require to be reminded, by penal exhibitions, of the consequences of
crime. The appearance of the building, the singularity of its shape, the walls and ditches by
which it is surrounded, the guards stationed at its gates, would all excite ideas of restraint
and punishment, whilst the facility which would be given to admission, would scarcely
fail to attract a multitude of visitors (…)”.
55 C.f. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Ligia M. Pondé Vassallo. 6. ed. Petrópolis:
Vozes, 1991.
56 BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html
Acesso em: 23/05/2007. No original, em inglês: “This punishment is intelligible to all
ages, and all capacities. Confinement is an evil of which everybody can form an idea, and
which all have, more or less, experienced. The name of a prison at once recalls the ideas
of suffering as connected with it”.
57 BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html
Acesso em: 23/05/2007.
98
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
2.
“O segundo tipo de encarceramento destina-se tanto para a correção
como para o exemplo”58 (trecho suplementar da versão francesa:
“aquela dos malfeitores condenados por um tempo limitado”59),
que deveria ser chamada de “Penitentiary House”60;
3.
“O terceiro tipo de encarceramento destina-se somente para o
exemplo”61 (trecho suplementar da versão francesa: “aquela
dos malfeitores condenados perpetuamente”62), que deveria ser
chamada de “Black Prison”.63
A partir dessa tripartição, Bentham elabora os sinais que deveriam
distingui-las segundo os diferentes objetivos perseguidos por cada uma:
“As diferentes finalidades às quais se destinam cada uma delas devem
ser muito bem marcadas na aparência externa e no arranjo interno,
bem como na denominação. As paredes da primeira espécie devem ser
brancas, as da segunda, cinzas, e as da terceira, pretas”.64
Quanto aos detalhes da aparência externa, a versão em francês
do mesmo trecho traz muito mais detalhes:
58
59
60
61
62
63
64
BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.
html Acesso em: 23/05/2007. No original, em inglês: “The second kind of imprisonment
is designed for correction as well as for example”.
BENTHAM, Jeremy. Théorie des peines et des récompenses. Ouvrage extrait des manuscrits
de M. Jérémie Bentham, jurisconsulte anglois, par Et. Dumont. Seconde édition. Paris: Bossanges et Masson, 1818. p. 173. No original, em francês: “Celles des malfaiteurs condamnés
pour un temps limite”.
BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html
Acesso em: 23/05/2007.
BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.
html Acesso em: 23/05/2007. No original, em inglês: “The third kind of imprisonment is
destined for example only”.
BENTHAM, Jeremy. Théorie des peines et des récompenses. Ouvrage extrait des manuscrits
de M. Jérémie Bentham, jurisconsulte anglois, par Et. Dumont. Seconde édition. Paris:
Bossanges et Masson, 1818. p. 174.
BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html Acesso
em: 23/05/2007. No original, em francês: “Celles des malfaiteurs condamnés à vie”.
BENTHAM, Jeremy, The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html
Acesso em: 23/05/2007. No original, em inglês: “The different purposes for which they are
destined ought to be very decidedly marked in their external appearance, in their internal
arrangements, and in their denomination. The walls of the first sort ought to be white, of
the second, grey, of the third, black”.
Capítulo 2 |
99
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
A este se acrescentará diversos emblemas do crime. Um
tigre, uma serpente, uma fuinha, representando os instintos maléficos, seriam, certamente, uma decoração mais
conveniente para a entrada das prisões negras, como as
duas estátuas da Loucura e da Melancolia do hospital
de Bedlam. O átrio deveria ter uma aparência lúgubre:
poderia-se colocar ali dois grandes murais: em um deles,
veríamos um juiz em uma sessão do seu tribunal, com o
livro da lei e pronunciando a sentença de um criminoso;
no outro, o anjo que toca a trombeta do julgamento final.
No interior, dois esqueletos suspensos ao lado de um
pórtico de ferro teriam um impacto muito vivo na imaginação. Acreditaríamos estar vendo a morada aterrorizante
da morte. Aquele que tiver visitado uma vez, durante a
juventude, esta prisão, não a esqueceria jamais”.65
Quanto aos métodos punitivos a ser explorados na penitentiary
house, a versão inglesa traz a seguinte recomendação:
Com vistas à reforma no caso de ofensas punidas com
prisão temporária, parte da punição poderia consistir
em aprender de cor certa parte do código criminal,
incluindo aquela parte relacionada à ofensa pela qual
o sujeito está sendo punido. Ele deve ser assimilado na
forma de um Catecismo.66
65
BENTHAM, Jeremy. Théorie des peines et des récompenses. Ouvrage extrait des manuscrits
de M. Jérémie Bentham, jurisconsulte anglois, par Et. Dumont. Seconde édition. Paris:
Bossanges et Masson, 1818. p. 174. No original, em francês: “A celle-ci on ajoutera divers
emblémes du crime. Un tigre, un serpent, une fouine, représentant les instincts malfaisans,
seroient certainement une décoration plus convenable à l’entrée de la prison noire, que
les deux statues de la Folie et de la Mélancolie à celle de l’hôpital de Bedlam. Le vestibule
devroit avoir une appareance lugubre: on pourroit y placer deux grandes tableaux: dans
l’un, on verroit un juge assis sur son tribunal, tenant le livre de la loi, et prononçant la
sentence d’un criminel; dans l’autre, l’ange qui sonne la trompette du jugement dernier.
Dans l’intérieur, deux squelettes suspendus à côté d’une porte de fer frapperoient vivement
l’imagination. On croiroit voir le séjour effrayant de la mort. Celui qui auroit une fois dans
la jeunesse visité cette prison, ne l’oublieroit jamais”.
66 BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward. London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/rp/index.html Acesso
em: 23/05/2007. No original, em inglês: “With a view to reformation in the case of offenses
punished by temporary imprisonment, part of the punishment may consist in learning by
heart a certain part of the criminal code, including that part which relates to the offense for
which the party is punished. It might be digested into the form of a Catechism”.
100
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Ricardo Sontag
Uma observação interessante na medida em que traz a noção
de código-catecismo para o próprio interior do sistema punitivo.
Retomando a distinção entre os três tipos de prisão, interessante
notar que um deles, o terceiro tipo, é destinado exclusivamente à função
exemplar, na medida em que os condenados não retornarão ao convívio
social. A previsão da prisão perpétua, aqui, desloca todo o pêndulo
punitivo para a exemplaridade, abandonando a função correcional.
É no segundo tipo de prisão, então, que se colocam igualmente
os dois problemas que a punição deveria enfrentar: a exemplaridade e
a correção. Por isso Bentham se esforça por distinguir entre a infâmia
visível que deve ser impressa com veemência contra o crime, mas não
contra o criminoso. Isso porque, depois do processo de correção, ele
deveria retornar ao convívio social. É nesse ponto que fica muito clara
a relação da execução das penas com os enunciados legislativos, pois
os sinais da punição se referem aos crimes, aos comandos legislativos
que são reforçados via execução penal.67
Toda a questão da correção individual envolvida no panoptismo, portanto, se enquadra nesse tipo particular de prisão, e não em
todos. E, ademais, ela deve se adequar igualmente aos critérios de
exemplaridade da pena, embora o problema da correção individual, é
bem verdade, tivesse sorte mais duradoura na questão penitenciária
que atravessou o século XIX e que consolidou o chamado “peniten67
Segundo Bentham: “In second-rate felonies and misdemeanors, where, after being punished, the offender is returned into society, it is of importance to lighten as much as possible
the load of infamy he has been made to bear. The business is to render infamous not the
offender, but the offense. The punishment undergone, upon the presumption of his being
reclaimed, he ought not, if he is returned into society, to have his reputation irretrievably
destroyed. The business is, then, for the sake of general prevention, to render the offence
infamous, and, at the same time, for the sake of reformation, to spare the shame of the
offender as much as possible. These two purposes appear at first, to be repugnant: how
can they be reconciled? The difficulty, perhaps, is not so great as it at first appears. Let the
offender, while produced for the purpose of punishment, be made to wear a mask, with
such other contrivances upon occasion as may serve to conceal any peculiarities of person.
This contrivance will have a farther good effect in point of exemplarity. Without adding
anything to the force of the real punishment, on the contrary, serving even to diminish
it, it promises to add considerably to the force of the apparent. The masks may be made
more or less tragical, in proportion to the enormity of the crimes of those who wear them.
The air of mystery which, such a contrivance will throw over the scene, will contribute
in a great degree to fix the attention by the curiosity it will excite, and the terror it will
inspire” (In: BENTHAM, Jeremy. The rationale of punishment. Edited by Robert Heward.
London: Wellington Street, 1830. Disponível em: http://www.la.utexas.edu/labyrinth/
rp/index.html Acesso em: 23/05/2007).
Capítulo 2 |
101
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
ciocentrismo”. Em Bentham, portanto, não existe uma preferência
pela prisão decorrente somente das suas pretensas vantagens na função corretiva. Ao contrário, para ele é absolutamente fundamental
que a prisão se enquadre no sistema clássico, múltiplo, de “penasrepresentação”, para usar a expressão de Michel Foucault.
Nesse ponto é importante esclarecer o lugar de Jeremy Bentham na história das penas e da questão penitenciária. Ao abordar
Cesare Beccaria, Foucault enquadra-o claramente entre os reformadores clássicos vinculados à idéia de pena representação, múltipla,
análoga aos delitos. Quando trata da superação do sistema de
penas-representação dos reformadores clássicos, Foucault aborda o
panoptismo benthaminiano enfatizando a função correcional atribuída ao panopticon, mas não toca na teoria das penas de Bentham.
E, de fato, o texto de Bentham exclusivamente sobre o panopticon
quase não aborda as especificidades desse dispositivo como pena
legal.68 Ou seja, como um dispositivo geral de produção e reprodução de determinado tipo de relações de poder (aplicável também em
fábricas, escolas etc.), a ênfase de Bentham recai completamente na
função correcional. Mas, quando abordada no seio das finalidades
que a pena legal deve perseguir, toda a questão da exemplaridade
e, conseqüentemente, da adequação do panopticon aos esquemas
da chamada pena-representação, volta a ocupar um lugar central
no seu discurso, já que a prevenção geral era nuclear em sua teoria
das penas. Por isso é importante sublinhar que, independente do
sucesso do panoptismo ao longo do século XIX, o sistema de penas
de Bentham, inclusive a prisão, se enquadra, ainda, no modelo elaborado pelos reformadores clássicos da pena-representação. Ou seja,
apesar da ênfase no seu potencial corretivo como dispositivo geral
de produção e reprodução de poder, quando pensado no interior do
sistema de penas legais (já que ele poderia ser aplicado em outros
campos) o panopticon deveria responder às exigências de sinalização
do crime que produziriam a prevenção geral.69
68
C.f. BENTHAM, Jeremy. Panopticon letters. Disponível em: http://www.cartome.org/
panopticon2.htm Acesso em: 8 de junho de 2007.
69 A mesma prudência deve ser adotada na leitura do seguinte trecho da historiadora Michelle Perrot acerca da concepção de prisão que atravessa o século XIX: “La Révolution
française avait imagine à la penalité des solutions graduées et variées. Mais, pour des
raisons complexes, la réclusion absorbe finalement toute lês energies réformatrices. Le
102
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
No mesmo trecho do Vigiar e punir, Foucault refere-se à obra de
N. H. Julius, que teria cunhado a expressão “sociedade disciplinar”
– e, de fato, Julius parece ter se apropriado de Bentham, relegando
a segundo plano a função de prevenção geral da prisão como pena.
Essa hipótese parece plausível ao se levar em consideração que, nas
suas Lições sobre as prisões, o grau de detalhamento sobre a arquitetura
das prisões parece não abarcar o problema da visibilidade desse tipo
de pena (ao menos no que tange à prevenção geral de 1ª ordem, que
é a principal, a que coloca em primeiro plano a analogia entre crimes
e penas). Tanto é assim que, na nona lição do tomo II de Lições sobre
as prisões, Julius aborda pormenorizadamente a arquitetura de várias
prisões e, ao fazê-lo, reserva somente um parágrafo à parte exterior
das prisões, sem qualquer referência à função de prevenção geral
dessa aparência. A sobriedade do estabelecimento prisional seria
importante, segundo Julius, para evitar que os prisioneiros tivessem
reforçada a impressão de que a prisão é um lugar confortável em
relação à vida de privações que eles teriam fora dos muros da penitenciária, o que esvaziaria a função de reprimenda da pena legal.70
Da mesma forma, em um dos apêndices do tomo II, chamado Proposições de Jeremy Bentham sobre um modo novo e mais econômico de ocupar
e melhorar os criminosos71, não toca no problema da prevenção geral
das penas, abordando a prisão, basicamente, do ponto de vista da
arquitetura da vigilância. No apêndice 12 aparece também a tradução
de um texto de Bentham publicado originalmente no “Philantropist”
grand projet éducatif des utilitaristes, le revê de ‘guérison’ des philantropes, premiers
thérapeutes sociaux, s’investissent dans la Prison” (In: PERROT, Michelle. L’impossible
prison. In: ______ (réunies par). L’impossible prison: recherches sur le système pénitentiaire
au XIX siècle. Paris: Seuil, 1980. p. 59).
70 “Pour ajouter, en terminant, quelques mots sor la partie extérieur où est placée l’entrée
de la prison, il faut, je ne dis pas seulement par un motif d’économie toujour désirable,
mais même d’après les principes de toute architecture, qu’elle porte avec elle le caractere
de l’établissment auquel elles est destinée. Ferme, solide, durable, mais aussi, comme l’a
déjà remarque Howard, nullement attrayante, elle doit plutôt presenter un aspect sériux,
somber et repoussant; car les efforts infatigables de la philantropie pour l’amélioration des
prisons et de leurs habitans, ne peuvent que trop souvent faire préférer avec raison aux
criminels de séjour de la prison à irrégularité et aux privations de leur vie habituelle, e til
seroit impossible de calculer les conséquences d’une telle opinion, si l’aspect extérieur de
la prison venait encore la confirmer” (In: JULIUS, Nicolaus Heinrich. Leçons sur les prisons.
Tome second. Paris: F. G. Leurault; Libraire Parisienne, 1831. p. 70-71).
71 “Propositions de Jérémie Bentham sur un mode nouveau et plus économique d’occuper
et d’améliorer les criminels” (In: JULIUS, Nicolaus Heinrich. Leçons sur les prisons. Tome
second. Paris: F. G. Leurault; Libraire Parisienne, 1831. p. 222).
Capítulo 2 |
103
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
chamado Exposição do sistema de inspeção de Bentham, escrito por ele
mesmo72, onde o autor se ocupa, de fato, da estrutura necessária para
o efeito-vigilância contínua do panopticon, muito mais, portanto,
como dispositivo geral de reprodução de certa forma de poder, e
da arquitetura desse tipo de estabelecimento, com escassas referências à experiência exterior da prisão ou da função exemplar que
este tipo de pena também deveria cumprir. Essa seleção feita por
Julius daquilo que lhe parecia mais importante em Bentham, porém,
não deve obnubilar a importância da exemplaridade econômica
da pena na teoria benthaminiana, que é o seu vínculo com a idéia
clássica de pena, apesar de possíveis desenvolvimentos ulteriores
em sentido diverso naquilo que constituiria, no século XIX, uma
verdadeira ciência penitenciária muito mais autônoma em relação
aos debates clássicos da teoria da pena, que é o caminho para o qual
parece apontar o texto de N. H. Julius, não por acaso um pouco
mais recente do que Bentham.
A execução das penas em geral, e também aquelas realizadas
através do sistema prisional e do panopticon, em Bentham, pode ser
compreendida como uma extensão dos enunciados legislativos. E é
justamente como extensão dos enunciados legislativos que o panopticon como pena legal, em Bentham, se enquadra na concepção clássica,
característica dos reformadores iluministas, de pena-representação.
De qualquer forma, é bem verdade que a radicalidade de Bentham lança seu pensamento em direção aos limites do iluminismo
jurídico-penal. Apesar disso é preciso levar em consideração que
atribuir ao panopticon benthaminiano já as características do ulterior
penitenciocentrismo do século XIX seria uma atitude apressada, pois
o panopticon, visto no interior da teoria das penas benthaminiana,
ainda revela muitos traços da tradição jurídico-penal clássica que o
circundava, o espectro iluminista que rondava a Europa. O laço fundamental, no caso, é representado pela centralidade do problema da
prevenção geral, isto é, a exemplaridade econômica das penas, que
deveria abarcar também as penas de prisão, inclusive o panopticon.
72
104
“Exposition du système d’inspection de Bentham, écrite par lui-même” (In: JULIUS, Nicolaus Heinrich. Leçons sur les prisons. Tome second. Paris: F. G. Leurault; Libraire Parisienne,
1831. p. 262).
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
Considerações finais:
declinações benthaminianas do iluminismo penal
É possível concordar com Robert Darnton quando afirma que
o Iluminismo está muito vinculado ao contexto francês de meados do
século XVIII e que mesmo a sua relação com a Revolução Francesa
deve ser bem sopesada, e não tomada como conseqüência direta deste
ideário, como adverte Roger Chartier.73 Na França, segundo Darnton,
os traços do Iluminismo já se enfraqueciam mesmo antes da eclosão
da Revolução Francesa, como se pode depreender das mudanças
nas edições reformadas e mais tardias da Enciclopédia de Diderot,
tida como o grande monumento desse movimento. Nessas edições
tardias, ao invés da primazia da filosofia (identificada com a própria
racionalidade), que marcava mesmo os verbetes de biologia ou teologia, Darnton encontra uma progressiva ampliação do espaço para os
profissionais de cada área, inclusive, por exemplo, para os teólogos,
que mudarão significativamente a velha orientação anticlerical das
primeiras enciclopédias.74 De qualquer forma, o espectro iluminista e
os outros tantos iluminismos que pululam pela Europa não fenecerão
assim tão rápido: em Bentham, por exemplo, já no final do século XVIII
encontramos a tão iluminista “absorção” de campos disciplinares para
o interior de uma filosofia geral. Em Bentham é perceptível, justamente,
a postura do filósofo juridicamente informado diferenciada da postura
estritamente jurídica. As questões jurídicas, em Bentham, são tratadas
no interior de uma filosofia que começa, na verdade, por uma definição
de humano, pela busca de suas características essenciais.
É nesse sentido que Bentham compartilha a construção da
noção de um indivíduo, por assim dizer, “abstrato”, como centro
73
CHARTIER, Roger. A quimera da origem. Foucault, o iluminismo e a revolução francesa.
In: ______. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni
Ramos. Porto Alegre: UFRGS, 2002. p. 133. Vale acrescentar que a objeção de Chartier
é uma objeção teórico-metodológica que se refere, em verdade, à espessura própria dos
regimes das práticas e o das representações, de modo que a idéia da dedução de práticas
(revolucionárias) a partir dos textos iluministas, bem como da tradução de representações
(iluministas) em práticas (revolucionárias), seria insuficiente para dar conta da complexa
relação entre os regimes das práticas e o das representações.
74 C. f. DARNTON, Robert. O iluminismo como negócio. História da publicação da Enciclopédia (1775-1800). Trad. Laura Teixeira Motta; Maria Lúcia Machado (textos franceses). São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Capítulo 2 |
105
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
de gravidade da ordem jurídica, característica já sublinhada como
essencial pela historiografia jurídica das ideologias e dos movimentos
codificatórios do final do século XIX e início do século XX.75 Toda a
teoria da legislação de Bentham, então, gira em torno da disposição
do prazer e da dor, os motores, segundo ele, de toda ação humana. É
a partir da geometria das paixões humanas que se construiria a arte
de legislar.76 Segundo Bentham, “todo sistema de legislação assentase sobre esse fundamento – o conhecimento das dores e dos prazeres”.77
Bentham considera, porém, as declinações histórico-empíricas deste
“humano”. Quanto à promulgação das leis, por exemplo, ele aventa
a possibilidade de distribuir partes do código geral de leis de acordo
com o papel social de cada tipo de indivíduos: os pais de família, por
exemplo, receberiam um livreto com as normas que deveriam conhecer
e assim sucessivamente. Além disso, o modo como Bentham aborda a
relação das leis em geral e das leis penais em particular permitiu vislumbrar, também, uma duplicação desse humano em dois sujeitos: o
cidadão e o criminoso.78 O primeiro seria aquele capaz de identificar-se
e comungar com a racionalidade do projeto de sociedade inscrito na
legislação. O segundo seria o que forçosamente não se enquadraria
nesse esquema e contra o qual seria necessário, antes de qualquer coisa,
defender-se – e, por isso, para este tipo de indivíduo estava reservada, muito mais, a leitura da execução das penas. Um dispositivo que
apostava basicamente na dimensão sensível do impacto da mensagem
75
C.f. CAPPELLINI, Paolo. Il codice eterno. La forma-codice e i suoi destinatari: morfologie e
metamorfosi di un paradigma della modernità. In: ______. Storia del diritto moderno. Milano:
Giuffrè, 2003; GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Trad. Arno Dal Ri Jr. 2. ed.
rev. e ampl. Boiteux: Florianópolis, 2007; TARELLO, Giovanni. Ideologie settecentesche
della codificazione e struttura dei codici. In: ______. Cultura giuridica e politica del diritto.
Bologna: Il Mulino, 1988.
76 BENTHAM, Jeremy. Principles of legislation. Boston: Wells and Lilly, 1830. p. 258.
77 BENTHAM, Jeremy. Principles of legislation. Boston: Wells and Lilly, 1830. p. 229. No original,
em inglês: “(...) every system of legislation rests upon this foundation – knowledge of pains
and pleasures”.
78 Pietro Costa também tratou dessa duplicação do sujeito em Bentham: “(...) la ridefinizione
del soggetto e dei suoi diritti (...) implica anche una tematizzazione (lucidamente esplicitata
da Bentham) di una sorta di sdoppiamento del soggetto: accanto alla classe dei cittadini
cmpiutamente razionali e autonomi esiste la classe degli individui eteronomi e pericolosi
e ciascuna di queste classi intrattiene un rapporto diverso con il potere pubblico” (In:
COSTA, Pietro. Il principio di legalità: un campo di tensione nella modernità penale.
Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, Milano, vol. 36, tomo I, 2007.
p. 12). E também em COSTA, Pietro. Il progetto giuridico. Ricerche sulla giurisprudenza
del liberalismo classico. Milano: Giuffrè, 1976.
106
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
da execução penal na mente dos indivíduos (a exemplaridade), e não
na capacidade racional de apreender os comandos legislativos, que
deveria ter uma dimensão liberadora para os cidadãos. É possível,
então, agora, especificar melhor os quadros anteriores sobre a relação
entre as leis e os seus destinatários em Bentham:
Soberano - - - Filósofo
Lei
Cidadão
Esquema 3: especificação do tipo de indivíduo concebido como destinatário direto das leis em geral.
E, no caso das leis penais lidas através da execução das penas,
temos:
Soberano - - - Filósofo
Lei penal
Magistrados
Execução penal
Criminososs
Esquema 4: especificação do tipo de indivíduo concebido como destinatário da leitura da execução das penas.
Capítulo 2 |
107
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
É possível dizer que qualquer norma tem a pretensão de comandar. Mas essa afirmação demasiado genérica não é capaz de
satisfazer os historiadores do direito preocupados com a trajetória
dos conceitos. Essa característica das normas em geral, por exemplo,
vinha articulada, até mais ou menos meados do século XVIII, com
práticas que elidiam conscientemente sua eficácia. Mas era justamente
desta cisão entre o que dizia a legislação e o que era aplicado que a
dinâmica de poder dessas instituições tirava sua força, pois dessa seletividade na aplicação da norma, dessa descontinuidade no exercício
do poder, pretendia-se extrair os gestos de submissão à ordem. Para
tanto, o soberano deveria parecer ao mesmo tempo justo e misericordioso. Por essa razão, às vezes, o teatro dos suplícios; outras vezes, a
graça real que suspendia a relação necessária, imediata, entre crime e
punição. Não é à-toa que a graça real também vai se tornar um alvo
privilegiado dos reformadores iluministas, começando na posição
moderada e até favorável à graça de um Montesquieu79, não por
acaso considerado por muitos um autor de transição80, até chegar
em Beccaria81 e em Bentham, que a rechaçam veementemente.
Mais ou menos a partir da segunda metade do século XVIII, esse
sistema entra em crise, com formas e tempos distintos em cada região
da Europa. Propõe-se, ao contrário da descontinuidade dispendiosa
no exercício do poder, a continuidade econômica.
Nesse movimento, o poder legislativo do soberano assume o
primeiro plano, bem como são revistas as próprias noções de lei e
as relações entre ordem jurídica e sociedade. Nessa grande virada,
o direito positivo do soberano transforma-se em sinônimo de direito
tout court, e o papel do direito também se transforma. Se é, digamos,
historicamente banal dizer que toda norma jurídica tem alguma
pretensão de comandar, não é historicamente irrelevante o fato de a
79
MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, Baron de la. O espírito das leis. Trad.
Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 2. ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1979. p. 95.
80 Sobre esse aspecto, o debate entre Giovanni Tarello e Mario Cattaneo: TARELLO, Giovanni. Montesquieu Criminalista. Materiali per una storia della cultura giuridica, raccolti da
Giovanni Tarello, volume V. Bologna: Il Mulino, 1975. p. 201-260; CATTANEO, Mario A.
Il liberalismo penale di Montesquieu. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2000.
81 C.f., especialmente, o capítulo Certezza ed infallibità delle pene, grazie (cap. XX) (BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Milano: Francesco Sanvito, 1858).
108
| Capítulo 2
Ricardo Sontag
efetivação global dos comandos do soberano ter se tornado questão
essencial para que o direito cumprisse a nova função de plasmar as
relações sociais da civilidade que se pretendia erigir. Não se tratava, portanto, somente de garantir que os indivíduos em particular
obedecessem às normas a fim de manter a ordem, mas também de
direcionar a conduta do conjunto dos indivíduos na direção de novas
sociabilidades. O soberano, assim, de uma posição mais passiva vinculada à manutenção dos equilíbrios, de restauração da ordem, deveria
lançar-se, através da sua potestas legislativa, à tarefa de promover as
transformações sociais na direção de uma sociedade burguesa.
Este papel atribuído ao direito, porém, tem traços diferentes
dependendo do plano em que opera. A partir do exposto, podemos
distinguir alguns planos onde operou esse papel de governo do direito: 1. as leis em geral; 2. as leis penais no momento da inscrição
da pena nos textos legislativos; 3. as leis penais no momento da
execução das penas; 4. a execução das penas como prevenção geral
(exemplaridade); 5. a execução das penas como prevenção específica
(correção individual).
A arte de legislar, para Bentham, depende do conhecimento
o mais profundo possível da natureza, das inclinações e da sensibilidade humana, na medida em que bem legislar significa distribuir
adequadamente as penas e recompensas para induzir os indivíduos
a agir no sentido de seus interesses particulares se harmonizarem e
co-produzirem a felicidade geral. Para tanto, o legislador interfere
nas disposições humanas dos indivíduos quando tenham influência
na felicidade alheia82, e ir além desse ponto seria um dispêndio (eis
aqui um dos traços do liberalismo de Bentham) mesmo para um
poder que se pretende arquiteto e garante de toda a ordem social,
ainda que indiretamente.
Essa idéia da arte de legislar parte do princípio segundo o qual
a relação entre a lei e os súditos é comunicativa. Tal concepção terá
um efeito particularmente interessante no campo penal. Apesar de
Bentham ser retomado por autores do século XIX como precursor da
ciência penitenciária, marcada pelo penitenciocentrismo e pelo movi82
C.f. cap. XI (of human dispositions in general) In: BENTHAM, Jeremy. An introduction to
the principles of moral and legislation. Vol. I. London: W. Pickering, 1823.
Capítulo 2 |
109
LEI PENAL E EXEMPLARIDADE ECONÔMICA...
mento na direção de tornar a execução penal um procedimento cada
vez mais velado, como explicou Foucault, sua concepção de prisão
pretende responder à necessidade de as penas em geral inculcarem
na mente dos governados (particularmente na dos considerados
menos racionais) os comandos legislativos.
A exemplaridade econômica que produziria o efeito de prevenção geral da pena legal impede que seja aplicada a distinção entre
sociedades de vigilância (das penas modernas) e sociedades de espetáculo (do teatro dos suplícios das velhas monarquias) de N. H. Julius,
invocada por Foucault, para compreender a teoria jurídico-penal de
Bentham. O panopticon, como dispositivo de poder abstraído da sua
função especificamente penal nos textos de Bentham, bem como,
talvez, o uso dessas teorias benthaminianas por autores posteriores
(como N. H. Julius), podem induzir, de fato, a essa interpretação.
Mas no interior da teoria das penas legais de Bentham o que se vê é
a necessidade de enquadrar tanto o panopticon como os outros tipos
de prisão no esquema da pena-representação. Evidentemente, a
exemplaridade, para Bentham, deveria ser econômica e contínua, e
não descontínua e seletiva como outrora.
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CAPÍTULO 3
A construção do crime contra a autoridade
do Estado no discurso iluminista
C’est par la violence que doit s’établir la liberté et le
moment est venu d’organiser momentanément le despotisme de la liberté pour écraser le despotisme des rois.
Jean-Paul Marat (1793)
Arno Dal Ri Júnior
Doutor em Direito pela Università Luigi Bocconi de Milão, com pós-doutorado
na Université Paris I (Panthéon-Sorbonne). Professor nos cursos de Graduação
e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.
Pesquisador da Fondazione Cassamarca. Coordenador do Grupo de Pesquisa em
História da Cultura Jurídica – Ius Commune (CNPq/UFSC).
INTRODUÇÃO
D
urante mais de dois milênios, o processo que levou à refinação
dos elementos que compunham a noção dos crimes contra a
ordem política desenvolveu-se prevalentemente através de teorias
que se centravam sobre o crimen laesae maiestatis. Juristas, filósofos,
teólogos, políticos, colaboraram ativamente na elaboração de normas
que, punindo todas as dimensões do que viesse a ser imaginado como
atentado ao “corpo do soberano”, tutelassem de modo rigoroso a
ordem política contra seus inimigos. Trata-se de um processo lento
e gradual em que a noção de delito vem construída através de discursos e práticas mergulhados na cultura, ou melhor, no imaginário
das sociedades greco-romana, medieval e do Ancien Régime. Um
processo que não é linear, oferecendo, também, muitos momentos
de contradições ou mesmo contestações.1
Com o surgimento das correntes de pensamento iluministas
na Europa da Idade Moderna se pode observar o início de uma
nova fase nos discursos que analisavam os crimes contra a ordem
política. De modo geral, pensadores como Voltaire, Rousseau e
Montesquieu apresentaram críticas ácidas aos fundamentos do
Antigo Regime, propondo novas perspectivas de organização política e social. Entre os fundamentos da velha ordem monárquicoabsolutista encontrava-se a noção de crime de lesa-majestade, usada
e abusada pelos algozes do rei.
Se, em um primeiro momento, os discursos elaborados sobre
tal crimen pelos filósofos iluministas foram fundamentais na formação do arcabouço teórico que serviu de base para o evento de 1789,
por outro lado as condições políticas dos momentos mais ardentes
da Révolution favoreceram o retorno de elementos de certa noção de
crime político sob novos pressupostos jusfilosóficos.
1
Sobre o tema, ver: DAL RI Jr., Arno. O estado e seus inimigos. A repressão política na história
do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
Sob a égide do jacobinismo jurídico2, nos discursos inflamados
de Robespierre e nas estratégias políticas e jurídicas de seus mais
estreitos colaboradores, a outra face do Iluminismo jurídico dá-se a
ver através de outra concepção de crime político.
1.
Contestações Iluministas: Montesquieu, Beccaria,
Marat
Com o surgimento do Iluminismo, a política penal que tinha
suas origens mais remotas na tutela jurídica do “Corpo do Rei”3
foi violentamente questionada.4 Por um lado, face à contestação de
qualquer noção de divindade sobre a terra, em uma época em que
a maiestas ainda possuía traços ligados ao caráter divino do imperador romano5; por outro, como afirmavam os iluministas, devido à
2
3
4
5
118
A expressão é cunhada por Paolo Grossi, ao se referir à cultura jurídica estatólatra, legolatra e mitificante que se cristaliza em meio à revolução que convulsionou a França do
final do século XVIII. Uma cultura que em muitos casos se mantém viva e intocada ainda
nos nossos dias. Ver, a respeito: GROSSI, Paolo. Le molte vite del giacobinismo giuridico.
Rivista di Scienze Giuridiche, setembro-dezembro (2003), p. 405-422. Sobre os pressupostos
de tal cultura, ver: GROSSI, Paolo. Dalla società di società alla insularità dello stato fra medioevo
ed Età Moderna. Napoli: IUSUB, 2003.
Sobre o significado político da doutrina acerca dos dois corpos do rei na Idade Média e na
primeira Modernidade, ver: KANTOROWICZ, Ernest H. Os dois corpos do rei. Um estudo
sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Em sentido diferente, ver : BOUREAU, Alain. Le simple corps du roi. L’impossible sacralité des souverains
français – XVe-XVIIIe siècle. Paris: Max Chaleil, 2000. Sobre a construção da imagem do
rei na política francesa do século XVII, ver: BURKE, Peter. A fabricação do rei. A construção
da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
Para uma visão global da influência do Iluminismo no direito penal positivo, ver: DE FRANCESCO, Giovannangelo. Illuminismo e codificazione del diritto penale: le vicende francesi
e l’esperienza italiana. Materiali per una storia della cultura giuridica, n. 32 (2002), p. 277 ss.
Entre os mais ferrenhos defensores da divindade do soberano estava Jacques Bossuet,
teólogo católico e conselheiro de Luís XIV. No que se refere ao alcance das suas estratégias
em matéria, afirmamos, em outra ocasião: “Tentando apresentar o poder soberano do
monarca absoluto como legitimado por Deus, a política de Bossuet refletiu-se com vigor
na noção de lesa-majestade. Tratava-se de uma influência amplamente reforçada pelo
fato de o discurso elaborado por Bossuet, e por outros pensadores políticos do período,
apresentar, também, o Rei como personificação do Estado. A célebre frase Le État c’est
moi! expressa com perfeição o contexto político da época, assim como deixa pressupor
qual significado poderia revestir qualquer tipo de atentado contra o corpo do soberano.
Os princípios proclamados por Bossuet com impacto sobre a noção do crime de lesamajestade encontram-se, em boa parte, presentes no terceiro livro da obra La Politique tirée
de l’Écriture sainte, em que o autor analisa os pressupostos da autoridade do soberano.
Logo nas primeiras linhas do referido livro, Bossuet lança a idéia-chave da sua doutrina:
‘Já vimos que todo poder vem de Deus. (…) Os príncipes agem, então, como ministros de
| Capítulo 3
Arno Dal Ri Júnior
flexibilidade inerente da sua definição, a repressão deste crime era
como uma “porta aberta” para todos os tipos de arbitrariedade e
ao processo destes fora do direito comum (sendo este, às vezes, até
mesmo ausente), além da ausência de limite nos canais possíveis.6
Um dos pontos altos da contestação iluminista encontra-se na
obra Ésprit des lois, de Montesquieu.7 Trata-se de uma importante
contribuição para o desmantelamento do discurso que fundamentava
a teoria do delito de lesa-majestade, fortalecendo a concepção de que
se tratava de um crime de matrizes políticas usado como mecanismo
de perpetuação do poder nas mãos dos poderosos. O autor8 exemplifica, comentando as leis chinesas em matéria:
As leis da China decidem que qualquer um que falta o
respeito com o imperador deve ser punido com a morte.
Como elas não definem o que é esta falta de respeito,
tudo pode fornecer um pretexto para retirar a vida à
quem se quer, e exterminar a família que se quer.9
6
7
8
9
Deus e seus administradores sobre a terra. É por meio deles que Ele exerce seu império’”.
In: DAL RI Jr., Arno. Op. cit., p. 115. Sobre Jacques Bossuet e sua doutrina, ver: MINOIS,
Georges. Bossuet. Entre Dieu et le Soleil. Paris: Perrin, 2003; DE BONALD, Louis. Trois
études sur Bossuet, Voltaire et Condorcet. Paris: Clovis, 1998; TRUCHET, Jacques. Politique
de Bossuet. Paris: Armand Colin, 1966.
Sobre o percurso histórico do crime de lesa-majestade nas culturas jurídicas do final da Idade
Média e da primeira Modernidade, ver: SBRICCOLI, Mario. Crimen laesae maiestatis. Il problema
del reato politico alle soglie della scienza penalistica moderna. Milano: Giuffrè, 1974.
Charles de Secondat, barão da Brède e de Montesquieu, nasceu no castelo da Brède em 1689
e morreu em Paris, em 1755. Na sua vida pública desenvolveu as funções de conselheiro
e, posteriormente, de presidente do Parlamento de Bordeaux. Viveu em diversos países
da Europa, principalmente na Inglaterra, onde pôde estudar o sistema político daquele
país. Após longa permanência em Paris, retornou ao seu castelo para se dedicar, em
vinte anos de constante trabalho, a escrever uma das principais obras-primas da ciência
política moderna, a obra L’esprit des lois, publicada em 1748. Sobre Montesquieu e o seu
pensamento político, ver: COTTA, Sergio. Montesquieu. Roma: Laterza, 1995; JUPPE, Alain.
Montesquieu. Le Moderne. Paris: Perin Grasset, 1999; ALTHUSSER, Louis. Montesquieu,
la politique et l’histoire. Paris: PUF, 1959.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, baron de. L’esprit des lois. Volume I. Paris: Gallimard,
1995, p. 334.
“Les lois de la Chine décident que quiconque manque de respect à l’empereur doit être puni de
mort. Comme elles ne définissent pas ce que c’est que ce manquement de respect, tout peut fournir
un prétexte pour ôter la vie à qui l’on veut, et exterminer la famille que l’on veut”. Continua o
autor: “Deux personnes chargées de faire la gazette de la cour, ayant mis dans quelque fait des
circonstances qui ne se trouvèrent pas vraies, on dit que mentir dans une gazette de la cour, c’était
manquer de respect à la cour; et on les fit mourir. Un prince du sang ayant mis quelque note par
mégarde sur un mémorial signé du pinceau rouge par l’empereur, on décida qu’il avait manqué de
respect à l’empereur, ce qui causa contre cette famille une des terribles persécutions dont l’histoire
Capítulo 3 |
119
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
De forma geral, a contribuição oferecida por Montesquieu no
que concerne aos crimes políticos apresenta características do discurso iluminista. Entre estas, a defesa da superioridade da prevenção,
da necessidade de melhor proporcionar as penas e da utilização da
pena de morte somente em hipóteses restritas. Segundo o autor, uma
pena moderada, mas certa, tem efeito maior do que uma punição
excessiva e aleatória. A desigualdade das penas segundo a condição
social dos condenados, a arbitrariedade dos juízes e o confisco de
bens que prejudica a família inocente são algumas das características
indicadas pelos iluministas como típicas do direito penal do Ancien
Régime, sendo todas severamente contestadas pelo nobre francês.10
Os escritos de Montesquieu sempre indicaram muito claramente
o perigo que poderia representar para a segurança jurídica – um dos
mitos da cultura jurídica iluminista11 – a formulação vaga e indeterminada da lei penal. Segundo o autor, o perigo para a liberdade seria
ainda maior se se tratasse de uma norma penal com fortes implicações
políticas, como acontecia no caso do crime de lesa-majestade.12
Também era severamente criticada pelo autor a tendência
bastante comum dos governantes de abusar do conceito de lesamajestade, estendendo-o indevidamente a tipos de crimes e ações
completamente heterogêneos e de pouco relevo.13 E, nesta passa-
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11
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13
120
ait jamais parlé. C’est assez que le crime de lèse-majesté soit vague, pour que le gouvernement dégénère en despotisme”.
CARBASSE, Jean-Marie. Introduction historique au droit pénal. Paris: PUF, 1990, p. 46.
Sobre os mitos criados pelo iluminismo jurídico, ver: GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas
da modernidade. Op. cit., p. 55. Sobre o mito da segurança jurídica no direito penal, ver:
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência
à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
CATTANEO, Mario. Il liberalismo penale di Montesquieu. Napoli: Edizioni Scientifiche,
2000, p. 42. O tema será posteriormente resgatado por Paul Johann Feuerbach, quando
escreve sobre o crime de alta traição: “Montesquieu sagt: nichts sey gefärhrlicher für einen
Staat als wenn die Majestätsverbrechen unbestimmt seyen. Ich glaubes diese Behauptung
bestätigt sich durch Vernunft und Erfahrung”. In: FEUERBACH, Paul Johann Anselm.
Philosophisch-juridische Untersuchung uber das Verbrechen des hochverraths. Erfut: Henningsschen Buchhandlung, 1978, p. 1.
“C’est encore un violent abus de donner le nom de crime de lèse-majesté à une action qui ne
l’est pas. Une loi des empereurs poursuivait comme sacrilèges ceux qui mettaient en question le
jugement du prince, et doutaient du mérite de ceux qu’il avait choisis pour quelque emploi. Ce
furent bien le cabinet et les favoris qui établirent ce crime. Une autre loi avait déclaré que ceux
qui attentent contre les ministres et les officiers du prince sont criminels de lèse-majesté, comme
s’ils attentaient contre le prince même. Nous devons cette loi à deux princes dont la faiblesse est
célèbre dans l’histoire; deux princes qui furent menés par leurs ministres, comme les troupeaux sont
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Arno Dal Ri Júnior
gem, o autor usa como exemplos as políticas penais implementadas na França pelo Cardeal de Richelieu14 e na Inglaterra pelo
rei Henrique VIII15 – ambos regimes despóticos que, como afirma
Montesquieu, tendem a reconhecer como de lesa-majestade todos
os crimes: “Ou melhor, não existiriam nestes, direitos passíveis de
lesão que não fossem os do déspota”.16
Nesta ordem se insere também a crítica do autor à punição do
“pensamento”, ou seja, da intenção17 de cometer um crime de lèsemajesté18, assim como suas considerações sobre o fato de “palavras
indiscretas” configurarem o delito. Como afirma Mario Cattaneo19,
14
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17
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19
conduits par les pasteurs; deux princes, esclaves dans le palais, enfants dans le conseil, étrangers
aux armées; qui ne conservèrent l’empire que parce qu’ils le donnèrent tous les jours. Quelques-uns
de ces favoris conspirèrent contre leurs empereurs. Ils firent plus: ils conspirèrent contre l’empire;
ils y appelèrent les Barbares; et quand on voulut les arrêter, l’État était si faible qu’il fallut violer
leur loi et s’exposer au crime de lèse-majesté pour les punir”. In: MONTESQUIEU, Charles de
Secondat, baron de. Op. cit., p. 335.
“C’est pourtant sur cette loi que se fondait le rapporteur de M. de Cinq-Mars, lorsque, voulant
prouver qu’il était coupable du crime de lèse-majesté pour avoir voulu chasser le cardinal de Richelieu des affaires, il dit: ‘Le crime qui touche la personne des ministres des princes est réputé, par
les constitutions des empereurs, de pareil poids que celui qui touche leur personne. Un ministre
sert bien son prince et son État; on l’ôte à tous les deux; c’est comme si l’on privait le premier
d’un bras et le second d’une partie de sa puissance’. Quand la servitude elle-même viendrait sur la
terre, elle ne parlerait pas autrement. Une autre loi de Valentinien, Théodose et Arcadius déclare
les faux-monnayeurs coupables du crime de lèse-majesté. Mais n’était-ce pas confondre les idées
des choses? Porter sur un autre crime le nom de lèse-majesté, n’est-ce pas diminuer l’horreur du
crime de lèse-majesté?”. In: Idem, ibidem.
“Une loi d’Angleterre, passée sous Henri VIII, déclarait coupables de haute trahison tous ceux qui
prédiraient la mort du roi. Cette loi était bien vague. Le despotisme est si terrible, qu’il se tourne
même contre ceux qui l’exercent. Dans la dernière maladie de ce roi, les médecins n’osèrent jamais
dire qu’il fût en danger; et ils agirent, sans doute, en conséquence”. In: Idem, p. 337.
«On y punit de mort presque tous les crimes, parce que la désobéissance à un si grand empereur
que celui du Japon, est un crime énorme. Il n’est pas question de corriger le coupable, mais de venger le prince. Ces idées sont tirées de la servitude, et viennent surtout de ce que l’empereur étant
propriétaire de tous les biens, presque tous les crimes se font directement contre ses intérêts”. In:
Idem, p. 214. Ver, a respeito: TARELLO, Giovanni. Montesquieu criminalista. Materiali
per una storia della cultura giuridica, n. 5 (1975), p. 214 ss.
É importante salientar que, nas doutrinas penais contemporâneas, os atos preparatórios
do crime (cogitação e preparação) não são considerados puníveis (cogitationis nemo poenam patitur), porém, tratando-se de crimes contra a segurança do Estado, pode-se notar
uma tendência quase que generalizada nos ordenamentos penais do Antigo Regime de
considerá-los puníveis.
“Un Marsyas songea qu’il coupait la gorge à Denys. Celui-ci le fit mourir, disant qu’il n’y aurait
pas songé la nuit s’il n’y eût pensé le jour. C’était une grande tyrannie: car, quand même il y
aurait pensé, il n’avait pas attenté. Les lois ne se chargent de punir que les actions extérieures”.
In: MONTESQUIEU, Charles de Secondat, baron de. Op. cit., p. 338.
CATTANEO, Mario. Op. cit., p 43.
Capítulo 3 |
121
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
neste caso, para Montesquieu, a indeterminação e a insegurança estariam atingindo os seus níveis máximos.20 O nobre francês demonstra
aceitar que fosse legitimada a configuração de tais palavras como
crime somente se unidas a ações delituosas concretas.21
Para o historiador do direito italiano Giovanni Tarello22, a
importância da contribuição de Montesquieu ao direito penal, nestes
curtos parágrafos do Espírito das leis, foi justamente a de ter criticado
de modo firme a previsão do delito no direito então vigente, utilizando uma terminologia precisa que expressava a tendência a limitar
a noção do crime e seus tipos. Examinando a grande obra do nobre
francês como um todo torna-se claro que estas considerações são
sugeridas a Montesquieu pelas suas atitudes anticentralizadoras e
pela preocupação que nutria no que concerne à invasão do monarca
e do poder central na vida da sociedade. Mas também é verdade
que se trata de uma crítica substancial ao direito penal vigente,
expressada através de projetos direcionados a limitar severamente
a esfera do delito político. Em particular, o autor milita por uma
maior liberdade de expressão e também de imprensa em relação
às condições políticas do Antigo Regime.23 É ainda significativo o
combate levado a cabo por Montesquieu contra o poder central, na
tentativa de fazer com que o atentado aos funcionários do soberano
deixasse de ser configurado como lesa-majestade.
20
“Rien ne rend encore le crime de lèse-majesté plus arbitraire que quand des paroles indiscrètes en
deviennent la matière. Les discours sont si sujets à interprétation, il y a tant de différence entre
l’indiscrétion et la malice, et il y en a si peu dans les expressions qu’elles emploient, que la loi ne
peut guère soumettre les paroles à une peine capitale, à moins qu’elle ne déclare expressément celles
qu’elle y soumet. Les paroles ne forment point un corps de délit; elles ne restent que dans l’idée. La
plupart du temps, elles ne signifient point par elles-mêmes, mais par le ton dont on les dit. Souvent,
en redisant les mêmes paroles, on ne rend pas le même sens: ce sens dépend de la liaison qu’elles
ont avec d’autres choses. Quelquefois le silence exprime plus que tous les discours. Il n’y a rien
de si équivoque que tout cela. Comment donc en faire un crime de lèse-majesté? Partout où cette
loi est établie, non seulement la liberté n’est plus, mais son ombre même”. In: MONTESQUIEU,
Charles de Secondat, baron de. Op. cit., p. 338.
21 “Les paroles qui sont jointes à une action, prennent la nature de cette action. Ainsi un homme qui
va dans la place publique exhorter les sujets à la révolte, devient coupable de lèse-majesté, parce
que les paroles sont jointes à l’action, et y participent. Ce ne sont point les paroles que l’on punit;
mais une action commise, dans laquelle on emploie les paroles”. In: Idem, p. 339.
22 TARELLO, Giovanni. Op. cit., p. 257.
23 Idem, p. 258.
122
| Capítulo 3
Arno Dal Ri Júnior
Influenciado pelas obras de Montesquieu e de Helvétius24
– principalmente pelas Lettres persanes, do primeiro, e L’esprit, do
segundo –, o italiano Cesare Beccaria25 tem o mérito de ter traduzido
para a ciência penal os valores e ideais do Iluminismo. Na sua obra,
além dos dois pensadores acima citados, Beccaria também resgatou
diversos conceitos elaborados precedentemente pelo suíço JeanJacques Rousseau26, contrapondo ao princípio do velho direito penal
– “é punido porque constitui delito”27 – o novo princípio: “É punido
para que não se repita”.28 Com base nesses pressupostos, a obra do
marquês italiano tentou desenvolver a total separação entre o delito
24
25
26
27
28
Nascido em Paris, no ano de 1715, no seio de uma rica família francesa, o filósofo Claude
Adrien Helvétius colaborou com a enciclopédia de Diderot e D’Alembert, sendo também
um mecenas. Consagrou sua vida ao estudo da filosofia, a freqüentar os salões e grandes
personagens do século XVIII. Discípulo de John Locke, Helvétius elaborou um sistema
materialista e sensualista que defendia a igualdade natural dos homens, um ateísmo
absoluto e uma moral utilitarista. Considerava o homem como produto de seu ambiente
e da sua educação. Sua principal obra, De l’esprit, foi condenada pelo conselho do rei.
Sua influência sobre o pensamento filosófico da época em que viveu foi considerável.
Morreu em Versailles, em 1771.
Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, nasceu em Milão em 1738 e estudou direito na
Universidade de Pavia. Introduzido nos centros de difusão da nova cultura do século
XVIII, é recordado sobretudo pela obra Dei delitti e delle pene, publicada em 1764, que contribuiu de modo decisivo para a construção dos sistemas judiciários modernos, abolindo
a pena de morte na Toscana e a tortura dos prisioneiros, graças, obviamente, também ao
grão-duque Pedro Leopoldo. Escreveu também a obra Saggio plurilingue, sucessivamente
comentada por Voltaire e Diderot. Morreu em Milão em 1794. Ver: ZORZI, Renzo. Cesare
Beccaria. Il dramma della giustizia. Milano: Mondadori, 1996; ROMAGNOLI, Sergio et
PISAPIA, Gian Domenico. Cesare Beccaria tra Milano e l’Europa. Roma: Laterza, 1990.
Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra, em 1712, de uma família calvinista de pequenos
artesãos. Abandonando a casa paterna, se converteu ao catolicismo. Tem seus primeiros
contatos com os iluministas quando passa a residir em Paris, a partir de 1742. Mantendo
estreita amizade com Diderot, colaborou na elaboração da Encyclopédie, até o momento
em que entrou em polêmica com Voltaire, rompendo com todo o grupo dos iluministas.
Criticou, nas suas obras, a sociedade organizada e seu presumido progresso. Seus principais
escritos neste período foram: Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens, Discurso sobre a economia política (ambos em 1755), A nova Heloísa (1761), O contrato
social (1762) e Emílio (1762). Em 1776, dadas suas posições ideológicas, foi violentamente
atacado pelo arcebispo de Paris e pelo Parlamento. Vendo-se obrigado a fugir para a Suíça
e depois para a Inglaterra, retorna a França para morrer, em Ermenonville, em 1778. Nos
últimos anos da sua vida escreve As confissões e Os devaneios de um caminhante solitário.
As teorias absolutas da pena, baseadas no princípio de retributividade, que têm no imperativo categórico de Immanuel Kant e na “negação da negação”, de Friedrich Hegel, seus
fundamentos filosóficos, de um certo modo deram continuidade à lógica da “punição por
constituir delito”.
O novo princípio pode ser atualmente identificado nas teorias relativas da pena, fundamentadas nos escritos dos filósofos utilitaristas, em particular Jeremy Benthan, e de Anselm
Feuerbach.
Capítulo 3 |
123
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
e as concepções de “pecado” e de “lesa-majestade”, transformando-o
em um “dano” causado à comunidade.
As novas concepções de matriz iluminista introduzidas no
direito penal por Beccaria obtiveram uma repercussão enorme na
Europa do seu tempo, ganhando, inclusive, no filósofo Voltaire um
grande difusor. Nesta perspectiva, em 1766, o filósofo francês elaborou um comentário à obra do nobre italiano, em que afirma:
Beccaria rejeita todas as idéias de expiação, de vingança
divina, para limitar à utilidade social a função das punições. Ele aspira penas moderadas, certas, rápidas, ele prefere a prevenção à repressão. Ele preconiza a igualdade e
a legalidade dos delitos e das penas. Enfim, em matéria de
pena de morte, ele é o primeiro dos abolicionistas, mesmo
prevendo duas exceções ao princípio de abolição.29
No capítulo VIII da sua obra, ao analisar os diversos tipos de
delitos, Beccaria examinou brevemente o crime de lesa-majestade.
Em poucas linhas, o marquês italiano deixou clara sua preocupação
com um delito que naquele momento histórico da ciência penal ainda era considerado o mais importante. Nas suas próprias palavras,
“alguns delitos destroem imediatamente a sociedade, ou quem a
representa (...) são os delitos máximos, porque mais danosos, são os
que chamam-se de lesa-majestade”.30
A crítica movida por Beccaria à noção do crime de lesa-majestade e à sua previsão em um ordenamento penal vai muito além dos
limites conceituais do próprio delito, atingindo de forma contundente
os regimes que o instituíram. Estes, para o marquês italiano, são por
natureza tirânicos e regidos pela ignorância. Isto porque somente
estes regimes conseguem confundir “os vocábulos e as idéias mais
29
“Beccaria repousse toutes les idées d’expiation, de vegeance divine pour limiter à l’utilité sociale
la fonction des châtiments. Il souhaite des peines modérées, certaines, promptes, il préfère la
prévention à la répression. Il preconise l’égalité et la légalité des délits et des peines. Enfin, en
matière de peine de mort, il est peut-être le premier des abolitionnistes, même s’il prévoit deux
exceptions au principe d’abolition”. Citado em MARTINAGE, Renée. Histoire du droit pénal
en Europe. Paris: PUF, 1998, p. 47.
30 “Alcuni delitti distruggono immediatamente la società, o chi la rappresenta (...) sono i massimi
delitti, perché piú dannosi, son quelli che chiamansi di lesa maestà”. In: BECCARIA, Cesare. Dei
delitti e delle pene. Milano: Mondadori, 2003, p. 80.
124
| Capítulo 3
Arno Dal Ri Júnior
claras”, dando esta denominação e, conseqüentemente, a pena máxima a “delitos de diferente natureza”.
Segundo Beccaria, a confusão causada pelas tiranias e pelos
regimes obtusos – tudo através de interpretações equivocadas da
noção deste funesto delito – faz com que sejam aplicadas penas
mais graves a faltas leves e a vida do ser humano possa ser vítima
de uma palavra.31
Porém, de modo paradoxal, em um texto de 1792 intitulado
Voto sulla pena di morte, Beccaria mostra-se favorável a que aos réus
culpados de crimes políticos fosse aplicada a pena de morte. Deste
modo, o marquês italiano, indiretamente, reconhece como válida e
reforça uma nova noção de lesa maiestà. Mesmo não citando expressamente o termo, Beccaria afirmava ser decididamente contrário
(...) a se dar a pena de morte, salvo no caso de uma necessidade positiva, e esta necessidade, em uma sociedade
pacífica e sob a regular administração da justiça, somente
pode ser constatada no caso de um réu, o qual, tramando
a subversão do Estado, mesmo que encarcerado e cuidadosamente vigiado, estivesse, devido as suas relações
externas ou internas, ainda em situação de novamente
turbar a sociedade e colocá-la em perigo.32
As idéias de Beccaria tiveram influência imediata, e em alguns
casos de modo decisivo, sobre a legislação penal de diversos Estados
da época. É o caso, por exemplo, da Toscana, que viu, sob o governo
de Pedro Leopoldo, em 30 de novembro de 1786, a emanação da
31
“La sola tirannia e l’ignoranza, che confondono i vocaboli e le idee piú chiare, possono dar questo nome,
e per conseguenza la massima pena, a’ delitti di differente natura, e rendere cosí gli uomini, come in
mille altre occasioni, vittime di una parola. Ogni delitto, benché privato, offende la società, ma ogni
delitto non ne tenta la immediata distruzione. Le azioni morali, come le fisiche, hanno la loro sfera
limitata di attività e sono diversamente circonscritte, come tutti i movimenti di natura, dal tempo e
dallo spazio; e però la sola cavillosa interpetrazione, che è per l’ordinario la filosofia della schiavitù,
può confondere ciò che dall’eterna verità fu con immutabili rapporti distinto”. In: idem, ibidem.
32 “(...) siamo stati del deciso sentimento non doversi dare la pena di morte se non nel caso di una positiva
necessità, e questa positiva necessità, nel pacifico stato di una società e sotto la regolare amministrazione della giustizia, non abbiamo saputo ravvisarla fuori di quello di un reo, il quale, tramando il
sovvertimento dello Stato, benché carcerato e gelosamente custodito, fosse per i suoi rapporti o esterni o
interni ancora in situazione di novamente turbare la Società e porla in pericolo”. In: Idem, p. 136.
Capítulo 3 |
125
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
Riforma della legislazione criminale toscana33, em que, por influência
da obra de Beccaria, foi banida a figura do crime de lesa-majestade.
Já no seu Proemio, a norma emanada pelo soberano da Toscana afirmava com orgulho a descriminalização das numerosas condutas que
configuravam o delito:
Com a maior satisfação do Nosso paterno coração,
finalmente reconhecemos que a mitigação das penas,
juntamente com a mais exata vigilância para prevenir as
reações, e mediante a célere expedição dos Processos e a
prontidão e segurança da pena dos verdadeiros delinqüentes, ao invés de aumentar o número dos delitos diminuiu
consideravelmente os mais comuns, tornando os atrozes
quase inouvidos; e, então, vimos na determinação de não
adiar mais longamente a reforma da Legislação Criminal,
com a qual é (...) banida da Legislação a multiplicação dos
delitos impropriamente ditos de lesa-majestade inventados em tempos perversos com refinada crueldade; e (...)
determinamo-nos a ordenar com a amplitude da Nossa
Suprema Autoridade o que segue em anexo.34
33
O novo provimento legislativo era o resultado de uma política reformadora no âmbito
da administração civil e criminal do Estado. Sem dúvida, refletia – ou melhor, era um de
seus documentos mais relevantes – os programas e o pensamento do Iluminismo político
e jurídico, inserindo-se ainda na tendência codificatória, típica da segunda metade do
século XVIII, que tocou diversos países (Prússia, Rússia, Áustria, Polônia, Lombardia). A
novidade mais importante e mais célebre que introduzia era a abolição da pena de morte.
Na realidade, esta norma codificava uma práxis já consolidada, já que desde 1775 não era
executada a pena capital em Florença. Pela primeira vez na Europa a pena de morte era
totalmente abolida. A norma introduzia ou confirmava muitos princípios de garantia:
abolia a tortura, respeitava a proporção entre penas e transgressões, abolia o confisco dos
bens do réu e o crime de lesa-majestade, separava as competências policiais das judiciárias,
suprimia a denúncia anônima, limitava o uso da prisão preventiva, instituía a figura do defensor público para imputados pobres, estabelecia o direito a processo célere, que liberasse
rapidamente o imputado inocente. Estas garantias estavam acompanhadas por normas que
deveriam assegurar, também, o rápido ressarcimento das pessoas ofendidas pelo crime, a
certeza da pena, abolindo descontos sob prévio pagamento de soma de dinheiro ao fisco,
e prevendo “os trabalhos públicos” perpétuos para os delitos mais graves.
34 Segue o texto completo do Proemio: “Con la più grande soddisfazione del Nostro paterno cuore
Abbiamo finalmente riconosciuto che la mitigazione delle pene congiunta con la più esatta vigilanza
per prevenire le reazioni, e mediante la celere spedizione dei Processi, e la prontezza, e sicurezza
della pena dei veri Delinquenti, invece di accrescere il numero dei Delitti ha considerabilmente
diminuiti i più comuni, e resi quasi inauditi gli atroci, e quindi Siamo venuti nella determinazione
di non più lungamente differire la riforma della Legislazione Criminale, con la quale abolita per
massima costante la pena di Morte, come non necessaria per il fine propostosi dalla Società nella
punizione dei Rei, eliminato affatto l’uso della Tortura, la Confiscazione dei beni dei Delinquenti,
126
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Arno Dal Ri Júnior
Contudo, segundo Carlo Calisse35, em 1790 foi emanada
nova norma prevendo a condenação à morte de todos aqueles que
fomentassem rebeliões entre o povo. Portanto, pode-se constatar
um evidente retrocesso na ação de Pedro Leopoldo. Representava,
sobretudo, uma medida para prevenir os fatos acontecidos na Revolução Francesa.
Trata-se de um evento significativo, uma verdadeira ruptura
com a tradição do Antigo Regime, que tinha na criminalização política
do atentado contra o soberano um dos seus principais pilares.
Também a Lombardia de José II, em 1757, publicou nova norma
penal influenciada por ventos iluministas. Menos arrojada que a legislação criminal de Pedro Leopoldo, na Toscana, a norma lombarda
não baniu a previsão de crime de lesa-majestade, mas submeteu-o ao
processo penal ordinário, assim como distinguiu as condutas típicas
deste delito de muitas outras que passaram a ser consideradas como
impropriamente criminalizadas.36
Entre os poucos pensadores que contribuíram para a formação
da cultura penal iluminista e chegaram a vivenciar e combater pela
Révolution encontra-se a figura de Jean-Paul Marat.37 Sua contribuição
come tendente per la massima parte al danno delle loro innocenti famiglie che non hanno complicità
nel delitto, e sbandita dalla Legislazione la moltiplicazione dei delitti impropriamente detti di Lesa
Maestà con raffinamento di crudeltà inventati in tempi perversi, e fissando le pene proporzionate
ai Delitti, ma inevitabili nei respettivi casi, ci Siamo determinati a ordinare con la pienezza della
Nostra Suprema Autorità quanto appresso”.
35 Ver, a respeito, CALISSE, Carlo. Storia del diritto penale italiano dal secolo VI al XIX. Firenze: Barbera, 1895, p. 325.
36 CALISSE, Carlo. Op. cit., p. 326.
37 Médico e físico, Jean-Paul Marat nasceu na Suíça, em 1743, e morreu em Paris, em 1793.
Publicou diversos textos polêmicos sobre assuntos de natureza científica, política e social,
ganhando a antipatia de muitos pensadores da época. Suas idéias, materialistas no campo
científico e rousseaunianas no campo político, acabaram por marginalizá-lo dos ambientes
da cultura oficial. A Révolution lhe abriu novas perspectivas. Em setembro de 1789 passou
a publicar o jornal L’Ami du Peuple, que logo se tornou o mais respeitado jornal radical.
Com um fanatismo sanguinário, acusou os políticos moderados de traição, jogando
contra eles a violência do povo, assim como incitou os cidadãos ao massacre em todas as
ocasiões, pedindo a eles “500, 1.000, 10.000, 100.000 cabeças para o triunfo da Revolução”.
Eleito para a Convenção nacional, Marat lutou por medidas ditatoriais para defender os
princípios da revolução. Líder dos jacobinos de Paris, foi o principal alvo dos girondinos.
Foi assassinado alguns dias após 2 de junho de 1793, quando formou-se o potente governo
jacobino. Ver, a respeito: BERNA, Henri. L’apothéose de Marat: du Châtelet au Panthéon.
Paris: Le Manuscrit, 2003; CASTELNAU, Jacques. Marat l’ami du peuple. 1744-1793. Paris:
Hachette, 1947 ; BLANC, Louis. Histoire des montagnards. Doctrines, Principes et But de
Robespierre, Marat, Carrier, Crepeau, Louis. Paris: Phenix, 2004.
Capítulo 3 |
127
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
se deu através da obra Plan de législation criminelle, publicada pela
primeira vez em 1779, em Neuchâtel, na Suíça.
Seria leviano analisar a obra escrita por Marat tão somente
como um tratado de direito penal. Isso porque o Plan de législation
criminelle apresenta-se, sobretudo, como um manifesto político de
caráter revolucionário em que, entre outros aspectos, o autor critica
severamente as conseqüências “injustas” do contrato social. Uma
crítica contundente que legitima os indivíduos “que não obtêm da
sociedade mais do que desvantagens” ao não se submeter às leis.
Como se pode constatar, a análise realizada por Marat no campo criminológico tem como pressuposto as injustiças sociais vividas pelas
classes mais desfavorecidas naquele modelo de sociedade.38 Segundo
o autor, tais injustiças estariam intimamente ligadas às normas que
regiam o direito de propriedade no Ancien Régime, dando lugar a uma
sociedade na qual “uns poucos possuem muito e a maioria nada”.
Marat dedicou um dos capítulos de sua obra ao exame do
que ele afirmava serem “falsos crimes de Estado” (Des faux crimes
d’État). Trata-se, sobretudo, da forma como concebia o crime de lesamajestade e algumas das diversas condutas que nesse crime costumavam ser enquadradas pela cultura penal do Ancien Régime. Entre
tais condutas, Marat apresentava a elaboração de “escritos contra o
príncipe”, as “reclamações contra o príncipe e a resistência às suas
ordens injustas”, os “atentados contra a vida do príncipe”, a “alteração de moedas”, a “fabricação de moedas falsas” e a “deserção”.39
Também o contrabando foi listado por Marat entre as condutas delituosas classificadas como lesa-majestade.
O capítulo inicia com um violentíssimo ataque às estratégias
utilizadas pelo Antigo Regime para construir e manter viva no
38
Para reverter este quadro, em que o crime seria fruto da injustiça social, a proposta de
Marat, no Plan de législation criminelle, defendia a educação dos pobres e a distribuição das
terras eclesiásticas; que as leis deveriam ser justas, claras e precisas; que fossem emanadas
medidas preventivas do delito; que as penas tratassem de corrigir o condenado (porém, se
este fosse considerado incorrigível, o castigo deveria voltar-se em benefício da sociedade);
a negação da pena de morte (nenhum soberano teria o direito de matar um súdito); que a
pena deveria surgir da mesma natureza que o delito. Ver, a respeito: MARAT, Jean-Paul.
Écrits. Paris: Messidor, 1988, p. 86 ss.
39 “Des écrits contre le prince”, “Des réclamations contre le prince, et de la résistance à ses ordres
injustes”, “Des attentats contre la vie du prince”, “De l’altération des espèces monnayées”, “De
la contre-faction des espèces monnayées”, “De la désertion”.
128
| Capítulo 3
Arno Dal Ri Júnior
ordenamento penal a noção de um delito contra a pátria que teria
por única e exclusiva intenção retirar a liberdade de todos os que se
opusessem aos detentores do poder.40 Sem nenhum tipo de pudor,
a análise realizada por Marat tentou desmontar tais estratégias,
apresentando nua a figura de um rei-tirano:
Quando o príncipe se apodera do poder supremo, os
aduladores não poupam os títulos pomposos de rei
dos reis, de imperador augusto, de majestade sagrada;
e eles elevaram a crimes de lesa-majestade, a crimes de
Estado, tudo aquilo que o aborrecia. Um poder excessivo já de início excita a ambição. Usurpou? Torna-se à
carga. Desesperado por sempre encontrar resistência
aos seus desejos, cansado de suas próprias crueldades,
consumido por inquietudes e atormentado pelo medo,
o déspota suspira após o repouso que dele escapa; ele
compreende, enfim, que pode chegar lá somente por
meio da superstição. Uma cega obediência sempre
pressupôs uma ignorância extrema: assim, após ter trabalhado para corromper os corações, ele trabalha para
imbecilizar os espíritos. Para cingir sobre a testa a faixa
do erro, que fez o déspota? Ele pretende tudo saber das
ciências conhecidas, ter sua autoridade somente do céu,
prestar contas de suas ações somente aos deuses; pois
trata como culpável qualquer um que ousasse duvidar
desta grosseira impostura, levar seus olhares sobre os
negócios do governo e controlar sua conduta (…).41
40
“(…) des hommes qui voulaient détruire la liberté redoutaient tout ce qui pouvait la maintenir; mais
pour se défaire de ceux qui avaient le courage de s’opposer à ce noir attentat, il fallait les trouver
coupables, et bientôt ils firent un crime de l’amour de la patrie. La liberté détruite, ils craignirent
tout ce qui pouvait y rappeler les esprits, et ils érigèrent en crimes le refus d’obéir à leurs ordres
injustes, la réclamation des droits de l’homme, les plaintes des malheureux opprimes”. In: MARAT,
Jean-Paul. Plan de législation criminelle. Paris: Rochette, 1790, p. 28.
41 “Lorsque le prince s’est emparé de la puissance suprême, les flatteurs lui prodiguent, les titres pompeux de roi des rois, d’empereur auguste, de majesté sacrée; et ils érigent en crimes de lèse-majesté, en
crimes d’État, tout ce qui lui déplait. Un pouvoir excessif flatte d’abord l’ambition. L’a-t-on usurpé?
il devient à charge. Désespéré de toujours trouver de la résistance à ses désirs, fatigué de ses propres
cruautés, rongé d’inquiétudes, et en proie à la crainte, le despote soupire après le repos qui le fuit; il
comprend enfin qu’il ne peut y parvenir que par la superstition. Toujours une aveugle obéissance
suppose une ignorance extrême: ainsi, après avoir travaillé à avilir les coeurs, il travaille à abrutir les
esprits. Pour ceindre sur les fronts le bandeau de l’erreur, que fit le despote? Il prétendit tout savoir de
science certaine, ne tenir son autorité que du ciel, n’être comptable de ses actions qu’aux dieux; puis il
Capítulo 3 |
129
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
No momento seguinte, dando continuidade a sua análise, Marat
parte para o ataque aberto:
Bastante, e por tempo demais, estes tiranos odiosos
têm desolado a terra: o reino deles vai terminar; a chama da filosofia já dissipou as sombras espessas onde
eles tinham mergulhado os povos. Ousamos, então,
aproximar-nos do recinto sagrado onde se entrincheira
o poder arbitrário; ousamos romper a sombra velada
em que ele cobre seus atentados; ousamos arrancar
dele estas armas temíveis, sempre funestas à inocência
e à virtude. Que a estas palavras de estúpidos escravos
empalidecem de terror; eles não feriram os homens
livres: felizes povos que romperam o duro jugo sob o
qual vocês gemem, é a esta nobre ousadia a que vocês
devem a vossa felicidade.42
Como afirmava o próprio autor ao longo do texto, sua contundente análise tinha por objetivo única e exclusivamente “restabelecer
as verdadeiras noções das coisas”43, rompendo com as “falsas idéias
que os juristas pagos deram dos crimes contra o Estado”44, fazendo
com que fossem abrigadas “sob esta denominação tudo o que se faz
contra o príncipe”.45
Já na primeira categoria dos “falsos crimes contra o Estado”,
ou seja, “os escritos contra o príncipe” (Des écrits contre le prince), são
questionados elementos-chave da noção de lesa-majestade. Segundo o
autor, o povo teria o direito de, através da sua livre opinião, questionar
publicamente o governo de um príncipe. Já o príncipe, por sua vez, não
42
43
44
45
130
traita en coupable quiconque osait révoquer en doute cette grossière imposture, porter ses regards sur
les affaires du gouvernement, et contrôler sa conduite”. In: MARAT, Jean-Paul. Op. cit., p. 29.
“Assez, et trop longtemps, ces tyrans odieux ont désolé la terre: leur règne va finir déjà le flambeau
de la philosophie a dissipé les ténèbres épaisses où ils avaient plongé les peuples. Osons donc approcher de l’enceinte sacrée où se retranche le pouvoir arbitraire; osons déchirer le sombre voile dont
il couvre ses attentats; osons lui arracher ces armes redoutables, toujours funestes à l’innocence
et à la vertu. Qu’à ces mots de stupides esclaves pâlissent d’effroi; ils ne blesseront point l’oreille
des hommes libres: heureux peuples, qui avez rompu le dur joug sous lequel vous gémissiez, c’est
à cette noble hardiesse que vous devez votre bonheur”. In: Idem, ibidem.
“ (…) rétablir les véritables notions des choses”. In: Idem, p. 30.
“(…) fausses idées que des légistes soudoyés ont données des crimes d’État”. In: Idem, ibidem.
“(…) sous cette dénomination tout ce qui se fait contre le prince”. In: Idem, ibidem.
| Capítulo 3
Arno Dal Ri Júnior
poderia de modo algum tentar suprimir tal direito, tentando fazer calar
as vozes que contra ele se levantam.46 Os únicos escritos que poderiam
ser punidos, nesta perspectiva, seriam os anônimos.47
A segunda categoria de “falsos crimes” abrigaria “as reclamações contra o príncipe e a resistência às suas ordens injustas”. Como
os demais iluministas, Marat concebia a autoridade do príncipe como
fruto de uma delegação realizada pelo povo a favor da felicidade do
próprio povo. Desta forma, legitimava as críticas movidas contra as
escolhas políticas do soberano, assim como o direito de resistência
às injustiças que os governantes viessem a realizar:
A autoridade foi confiada aos príncipes somente para a
felicidade dos povos. Se eles reinam, devem fazê-lo com
equidade: é, então, sempre permitido clamar por justiça
contra eles e reclamar quando não se consegue obtê-la (...).
A desobediência a ordens injustas e a resistência à iniciativas ilícitas não devem, então, serem reputadas delitos.48
A terceira categoria é relativa aos “atentados contra a vida do
príncipe”.49 Enquanto ilícito, tais atentados encontram-se no âmago
46
“Gardons-nous d’ériger en lois ces ordonnances faites pour affermir un injuste pouvoir. Pour le
malheur des nations, combien peu de princes sont dignes de commander; et parmi ceux qui commandent, combien redoutent la lumière! Mais contrôler la conduite de ses chefs fut toujours le droit
d’un peuple libre, et nul peuple ne doit être esclave. Ce droit qu’a le corps entier de la nation, chacun
de ses membres l’a pareillement: droit précieux, qui souvent servit à réprimer les abus de l’autorité,
même dans ces pays où l’on n’a point encore osé la circonscrire; car les monarques eux-mêmes sont
soumis à l’empire de l’opinion: or, quel sera l’organe de l’opinion publique, si personne n’ose élever
la voix? Des-lors sans frein, au milieu des méchants qui l’encouragent au crime pour abuser de sa
puissance, le prince sacrifiera tout à ses funestes penchants, il fera tomber sous ses coups les têtes les
plus redoutables à la tyrannie; et n’ayant plus à craindre la voix du peuple, il s’affranchira bientôt de
celle des remords”. In: Idem, p. 31. Ver, também: BLANC, Louis. Op. cit., p. 128.
47 “Reste à réprimer les libelles anonymes: qu’ils soient donc prohibés, et que la peine tombe sur
l’imprimeur et ceux qui le débitent comme sur l’auteur. A l’égard des premiers, qu’elle soit pécuniaire: c’est par la cupidité qu’il faut réprimer la cupidité. A l’égard du dernier, qu’elle soit celle
des diffamateurs”. In: MARAT, Jean-Paul. Op. cit., p. 31.
48 “L’autorité n’a été confiée aux princes que pour le bonheur des peuples. S’ils règnent, ce doit être
avec équité: il est donc toujours permis de réclamer justice contr’eux, et de se plaindre lorsqu’on ne
l’obtient pas (…) La désobéissance à des ordres injustes, et la résistance à des entreprises illicites,
ne doivent donc point être réputées des délits”. In: idem, ibidem.
49 “On les a mis au rang des crimes d’État; mais sans raison. Dans tout gouvernement légitime, le
prince n’est que le premier magistrat de la nation, et sa mort ne change rien à la constitution de
l’État: quand l’ordre de la succession est fixé, et qu’on a pourvu aux interrègnes, elle ne fait que
priver un individu de la jouissance du trône, qu’un autre occupera bientôt. Mais attenter contre le
prince, n’est-ce pas attaquer le souverain lui-même dans la personne de son représentant? Comme
Capítulo 3 |
131
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
da noção do delito de lesa-majestade. No sistema de valores que a
caracteriza, seria a conduta criminosa por excelência, a configuração
do crime na sua perfeição. Ao redor desta orbitariam todas as demais
condutas delituosas:
Para finalmente convencer de que o assassinato do príncipe não é crime de Estado, é suficiente fazer uma comparação entre as punições para estes crimes. Contenta-se
em decapitar um conspirador enquanto que se esfola,
atormenta, despedaça, faz-se virar mártir um celerado
que atentou contra a vida do príncipe. Por que isso? Deste
modo, o príncipe se colocava acima do Estado, acima do
soberano. Após ter usurpado o poder supremo, sentindo
que seus súditos não podem ter nele alguma confiança,
vive no meio deles como se estivesse no meio de seus
inimigos: mas, para tornar sua pessoa sacra e inspirar um
respeito sem limites em tudo o que lhe diz respeito, ele
conhece somente o terror. A morte do príncipe é só um
simples assassinato. Deus gostaria somente que eu tentasse reduzir o horror que este crime deve inspirar: mas
eu gostaria (se possível) de restabelecer as verdadeiras
relações das coisas; e proscrever estes suplícios pavorosos
inventados pelo amor a dominação (...)”.50
A quarta categoria é relativa à “alteração de moedas”. Tratase de conduta bastante comum durante toda a Antigüidade, Idade
ce serait l’attaquer, que d’attenter contre tout autre officier de l’État; car le prince est le ministre
du souverain, et non son représentant. – Mais lorsque le prince est digne de commander, la nation
ne fait-elle pas une perte cruelle? Assurément, comme elle en fait une cruelle aussi dans la mort
d’un habile administrateur qui consacrait ses talents au bien public”. In: idem, ibidem.
50 “Pour achever de se convaincre que le meurtre du prince n’est pas crime d’État, il suffit de comparer
les châtiments de ces crimes. On se contente de décapiter un conspirateur tandis qu’on écorche, qu’on
tenaille, qu’on écartelle, qu’on martyrise un scélérat qui a attenté aux jours du prince. Pour quoi cela?
Si le prince ne se mettait au-dessus de l’État, au dessus du souverain. Après avoir usurpé le pouvoir
suprême sentant que ses sujets ne peuvent prendre en lui aucune confiance, il vit au milieu d’eux comme
au milieu de ses ennemis: or, pour rendre sa personne sacrée, et inspirer un respect sans bornes pour
tout ce qui le regarde, il ne connaît que la terreur. Le meurtre du prince n’est qu’un simple assassinat.
A dieu ne plaise que j’entreprenne d’affaiblir l’horreur que ce crime doit inspirer: mais je voudrais
(s’il se peut) rétablir les vrais rapports des choses; et proscrire ces supplices effroyables inventés par
l’amour de la domination: – affreux épouvantail dont les despotes s’environnent sans cesse. – Direzvous que la simple peine de mort est trop peu reprimante? Ouvrez les annales des peuples, et voyez.
En Angleterre ou le régicide n’est puni que de la hâche, pas un exemple de ce crime. En France, où il
est puni des supplices les plus horribles, que d’attentats contre la vie de nos rois!” In: Idem, p. 32.
132
| Capítulo 3
Arno Dal Ri Júnior
Média e Antigo Regime, consistindo, predominantemente, no ato de
limar as moedas retirando fragmentos dos metais preciosos com que
eram feitas, o que alterava seu peso-padrão e seu valor monetário.
Como se poderá notar, indignado, Marat defendia a subtração dessa
conduta delituosa da esfera da lesa-majestade:
Eh! O que tem então em comum a segurança do Estado
com a moeda falsificada? (...) O que pode ele perder
com a circulação de algumas moedas limadas ou de máqualidade? (...) E o desrespeito à autoridade soberana?
(...) o homem culpável por tal crime jamais sonha, ao
cometê-lo, o que poderia receber por isso. E pois, quando
aconteceria, este desrespeito pareceria menos em relação aos cem outros crimes em que a pena não é capital?
Tomando as coisas sob este ponto de vista, todo crime
não é uma violação da lei, um desrespeito à autoridade
soberana? Deixemos, por delitos desse tipo, de sempre
manchar nossas mãos no sangue (...).51
Para tanto, como estratégia, tentou equiparar tal conduta ao
crime de fraude, afirmando que, devido a sua baixa ofensividade,
deveria ter por pena a prisão perpétua com trabalhos forçados, e não
a condenação à morte52 como até então era previsto.
A quinta categoria de crimes contra o Estado considerados
como falsos pelo autor concerne à “fabricação de moedas falsas”.
Sobre tais delitos, dizia Marat:
51
“Crime partout capital, et partout réputé crime d’État ou de lèse-majesté au second chef. Eh! qu’a
donc de commun la sûreté de l’État avec de la monnaie contrefaite? (…) Que peut-il perdre par la
circulation de quelques pièces rognées ou de bas-aloi? – Du moins est-ce un tort réel fait au public.
Dites plutôt à quelques particuliers qui les reçoivent: mais qui les force de les recevoir? Puisqu’il
est impossible de cacher la fraude, un peu d’attention ne suffit-il pas pour la découvrir? – Et le
mépris de l’autorité souveraine? Erreur encore; jamais homme coupable de ce crime ne songea, en
le commettant, qu’au gain qui pourrait lui en revenir. Et puis, quand cela serait, ce mépris parait-il
moins dans cent autres crimes dont la peine n’est pas capitale? A prendre les choses sous ce point
de vue, tout crime n’est-il pas une violation de la loi, un mépris de l’autorité souveraine? Cessons,
pour de pareils délits, de toujours tremper nos mains dans le sang”. In: idem, ibidem.
52 “Altérer ou contrefaire la monnaie, est un crime sans doute: mais puisque ce crime se réduit à un
léger tort fait à quelques individus, je dirais qu’il soit puni comme fraude, si on pouvait connaître
tous les individus lésés: que le délinquant soit donc condamné pour la vie aux travaux publics”.
In: idem, ibidem.
Capítulo 3 |
133
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
Cunhar clandestinamente moedas também é reputado
crime de lesa-majestade no segundo grau; e com razão,
diz um célebre autor, porque é arrogar-se os direitos do
soberano. Mas os direitos do soberano podem perder
algo devido a estas manobras clandestinas? Fica o delito
de ter fraudado o benefício que o governo faz sobre as
moedas. A este título, o delinqüente deve ser punido; mas
deve sê-lo somente como velhaco. Que ele seja, então,
condenado a uma multa em favor do Estado. Se reincide,
que seja condenado à vida aos trabalhos públicos.53
A sexta categoria de falsos crimes é relativa à “deserção”. Esta
é concebida por Marat como fruto da política abusiva de serviço
militar e de alistamentos forçados freqüentemente praticada pelos
príncipes no Antigo Regime. A presença de um indivíduo nas tropas
somente poderia ser legitimada se fruto de uma opção livre por parte
do próprio soldado. A análise do autor critica ferozmente a política
do príncipe e a ação dos recrutadores:
Como um soldado temeria perder a vida, ele que é
acostumado a expô-la cada dia por tão pouco, ele que
é louvado por desrespeitar a morte? Se parece temer a
infâmia como o maior dos males, considerem-no sob as
bandeiras por medo de uma pena desonrosa. É necessário, todavia, sempre distinguir os casos. Quando as
tropas são compostas somente por mercenários, tratase somente de uma simples vigarice quando o desertor
apodera-se de armas e bagagens: ele será, então, condenado a restituí-las ao seu capitão, e ao pelourinho. Se ele
leva somente sua farda, sendo que não tenha sofrido nem
mau tratamento nem privilégio, receberá três meses de
prisão. Se o alistamento teria sido forçado, nos dois casos
o desertor será absolvido (...) os militares autorizados
53
134
“Battre clandestinement de bonnes espèces, est aussi réputé crime de lèse-majesté au second chef; et
avec raison, dit un auteur célèbre, car c’est s’arroger les droits du souverain. Mais les droits du souverain peuvent-ils perdre quelque chose par ces manoeuvres clandestines? Reste pour tout délit d’avoir
fraudé le bénéfice que le gouvernement fait sur les monnaies. A ce titre, le délinquant doit être puni;
mais il ne doit l’être que comme fripon. Qu’il soit donc condamné à une amende pécuniaire envers
l’État. S’il récidive, qu’il soit condamné pour la vie aux travaux publics”. In: idem, ibidem.
| Capítulo 3
Arno Dal Ri Júnior
pelas suas corporações a recrutar, deverão entregar seus
poderes ao magistrado de polícia, após apresentar, em
vinte e quatro horas, aqueles que foram por eles alistados, e que passarão a ser livres para acompanhar seus
parentes ou seus amigos (...). Todo recrutador pego em
flagrante será condenado a aprisionamento por período
igual ao do serviço militar forçado.54
Como é possível constatar, Marat não defendia nos seus
escritos a despenalização das condutas acima elencadas, baseado
no fato de que as mesmas, segundo seu raciocínio, pertenceriam a
um tipo de delito discutível, como no caso da lesa-majestade. Marat, ao contrário, postulava que tais condutas fossem penalizadas
através do direito penal comum55, recebendo sanções em que não
54
“Il n’est pas simplement injuste, mais absurde, de rendre ce délit capital. Comment un soldat
craindrait-il de perdre la vie, lui qui est accoutumé à l’exposer chaque jour pour si peu de chose,
lui qui fait gloire de mépriser la mort? S’il parait redouter l’infâmie comme le plus grand des
malheurs, retenez-le sous les drapeaux par la crainte d’une peine flétrissante. Il faut néanmoins
toujours distinguer les cas. Lorsque les troupes ne sont composées que de mercenaires, elle n’est
qu’une simple friponnerie, quand le déserteur emporte armes et bagages: il sera donc condamné à
restitution envers son capitaine, et au pilori. S’il n’emporte que son habit, et qu’il n’ait éprouvé
ni mauvais traitement ni passe-droit, il subira trois mois de prison. Que si l’enrôlement avait été
forcé, dans les deux cas le déserteur sera absous (…) Ainsi, les militaires autorisés par leurs corps
à recruter, seront tenus de remettre leur pouvoir au magistrat de la police, puis de lui présenter
dans les vingt-quatre heures les sujets qu’ils auront engagés, et qui seront libres de se faire accompagner par leurs parents ou leurs amis (…) Tout Recruteur pris en contravention, sera condamné
à l’emprisonnement pour un terme égal à celui de l’enrôlement forcé”. In: idem, p. 33.
55 Da mesma forma, Marat defendia a necessidade de implementação de uma política de
prevenção de tais delitos, em contraposição à política penal sanguinária delineada pelas
ordenações do Antigo Regime: “Au lieu de chercher comment il faut punir ces délits, ne vaudroitil pas mieux chercher comment on peut les prévenir? Ériger en crime tout ce qu’on veut empêcher,
punir les coupables, et faire de leur supplice un épouvantail; voilà l’esprit de la politique moderne.
Quoi! toujours des chaînes, des cachots, des roues, des gibets! Mais ce que l’effusion du sang ne
saurait faire, souvent on l’effectue avec quelques sages règlements de police; et dans le cas actuel,
rien de plus aisé que de réussir. Voulez-vous qu’on ne rogne jamais les espèces? ordonnez qu’on les
prenne au poids. Voulez-vous qu’on n’en frappe point de fausses? Ordonnez qu’on les fasse passer
par une filière de calibre. Voulez-vous qu’on ne les contre-fasse jamais? Que le gouvernement se
contente d’un petit bénéfice lorsque les honnêtes gens seront ainsi sur leurs gardes, quel espoir de
tromper restera-t-il aux fripons? – Mais être toujours sur ses gardes, quel embarras! Hé, ne faut-il
pas y être toujours pour son propre intérêt? Mauvais citoyens; quoi, le plaisir de prévenir tant de
maux au prix de quelques petits soins ne pourra donc toucher vos âmes! On ne saurait trop insister
sur la nécessité d’abroger les lois cruelles portées contre ces crimes. De combien d’atrocités ne sontelles pas la cause! Le croira-t-on; il y a en Europe un gouvernement renommé pour la sagesse de
son code criminel, où l’on ne se borne pas à faire périr le faux monnayeur; on y menace du même
sort quiconque aurait en sa possession une pièce de fausse monnaie, s’il ne pouvait prouver d’où
il la tient. Ainsi une distraction, et qui pis est une mauvaise vue peut attirer sur l’homme de bien
une mort ignominieuse, qui ne doit être réservée qu’aux scélérats”. In: idem, ibidem.
Capítulo 3 |
135
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
estivesse embutido o agravante de “atentado contra a autoridade
ou contra a pessoa do soberano”.
Tal estratégia, em que se tenta subtrair da noção do delito de
lesa-majestade as principais condutas que o caracterizaram durante
cerca de dezenove séculos, tem um intuito evidente. Tratava-se de
esvaziar por completo a noção desse delito, na esperança de que o
mesmo viesse a perder sentido, tornando inócuos os fundamentos
da própria velha ordem político-jurídica.
Marat foi o pensador que, entre os iluministas que combateram
a lesa-majestade enquanto crime político por excelência, conseguiu
chegar mais longe. Seus escritos contundentes souberam ousar e
ferir muito mais do que as críticas movidas por Montesquieu e Beccaria. Por isso pode-se afirmar que, poucos anos antes da Révolution,
através dos escritos do iluminista Jean-Paul Marat, aconteceram os
funerais da noção do delito de lesa-majestade segundo sua concepção clássico-medieval, que até então – durante todo o Antigo Regime – encontrava-se ainda bastante viva. Na seqüência, Maximilien
Robespierre, que chegou a travar junto com Marat algumas batalhas
durante a Revolução, deveria sepultá-la definitivamente. Mas o que
Robespierre fez foi justamente o contrário: gerou os pressupostos
para sua transfiguração.
O que estava em jogo, portanto, era a “segurança do Estado” enquanto fundamento de outras estratégias de criminalização política relacionadas à nova forma de pensar a própria ordem político-jurídica.
2.
O Despotismo da Liberdade
A contribuição dada pela Revolução Francesa ao direito penal
é importante, porquanto, no contexto desta obra, assume papel de
protagonista. Os debates sobre a criação de um novo sistema penal
acontecidos no seio da Assembléia Constituinte, prolongando-se até
o fim do regime do Terror, marcaram de forma significativa a cultura penal moderna e contemporânea, bem como, profundamente, a
concepção de crimes contra a segurança do Estado.
De modo geral, inspirados pelos escritos de filósofos e juristas
iluministas/utilitaristas, os governos revolucionários votaram uma
136
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Arno Dal Ri Júnior
série de normas que modificaram radicalmente o processo penal e
a organização judiciária. Também elaboraram o Code Pénal francês,
promulgado em 1791. No todo, a experiência penal da Revolução
Francesa pode ser vista como uma espécie de laboratório onde foram colocadas à prova soluções um tanto quanto viáveis, ao lado de
elementos decisivos resgatados e reorganizados na codificação napoleônica de 1810. Nesta perspectiva, como afirma Renée Martinage:
[Os constituintes] partem de uma concepção de organização dos poderes públicos na qual a nação é
soberana, e onde os indivíduos livres concorrem pelos
próprios sufrágios à formação da vontade nacional.
Isso porque os constituintes entenderam que se deveria imediatamente subtrair, de modo solene, a justiça
penal do absolutismo, consagrando nada menos de 6
artigos, entre os 17 que traz a Declaração Universal
dos Direitos dos Homens e do Cidadão, às liberdades
do indivíduo face à justiça criminal.56
O debate sobre a criminalização de atos considerados de
lesa-majestade tem início em uma das sessões destinadas à reforma do Code Pénal, onde estava em discussão a validade da pena de
morte. Nesta, Robespierre57 fez menção à noção do delito em tela
criticando-a severamente e apontando-a como instrumento típico
da tirania contra o povo.58
56
“(…) découlent d’une conception de l’organisation des pouvoirs public dans laquelle la nation est
souveraine, et où les individus libres concourent par leurs suffrages à la formation de la volonté
nationale. C’est pourquoi les Constituants entendront soustraire immédiatement la justice pénale à
l’absolutisme, de manière solennelle, en consacrant pas moins de 6 articles sur les 17 que comporte
la Déclaration universelle des droits de l’hommes et du citoyen aux libertés de l’individu face à la
justice criminelle”. In: MARTINAGE, Renée. Op. cit., p. 63.
57 Maximilien-Marie Robespierre nasceu em Arras (França), em 1758, e morreu em Paris, em
1794. Advogado e deputado nos Estados Gerais, em 1790 ocupa a chefia do grupo jacobino.
Conhecido como o “Incorruptível”, consegue vir a ser membro da Convenção e do Comitê
de Saúde Pública (1793), transformando-se no árbitro da situação política (principalmente
após instituir o tribunal revolucionário). Tendo imposto o regime do Terror, caiu com a
revolta do dia 9 do mês de termidor. Preso pelas milícias da Convenção, acabou na guilhotina junto com seus fiéis colaboradores.
58 Trata-se do “Discour sur la peine de mort”, proferido pelo líder dos jacobinos: “Sous Tibère,
avoir loué Brutus fut un crime digne de mort; Caligula condamna à mort ceux qui étaient assez
sacrilèges pour se déshabiller devant l’image de l’empereur. Quand la tyrannie eut inventé les crimes
de lèse-majesté, qui étaient ou des actions indifférentes ou des actions héroïques, qui eût osé penser
Capítulo 3 |
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A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
O momento é significativo por abrigar um segundo processo
de ressignificação da noção deste delito, logo após aquele realizado
nos escritos de Montesquieu, Beccaria e Marat. Isso porque, alguns
anos mais tarde, no regime do Terror governado pelo próprio Robespierre, tal processo fez com que os pressupostos teóricos da noção
migrassem para um novo tipo de crime, também de cunho político:
o crime contra a segurança do Estado.59
O mecanismo que ofereceu condições materiais para a migração destes elementos de uma noção de delito para outra foi criado
pela Convenção Nacional em 2 de outubro de 1792. Tratava-se do
“Comitê de Vigilância Geral” (Comité de Sûreté Générale), o novo instrumento instituído com o fim de reprimir os crimes políticos – tais
como o “incivismo” e as “condutas anti-revolucionárias”. Constituído
essencialmente por deputados, este organismo revolucionário foi
encarregado de aplicar as medidas contra os suspeitos de atividades
políticas consideradas contra-revolucionárias.60
Após a eliminação dos girondinos, em junho de 1793, o Comitê ampliou ainda mais seus poderes61, tornando-se o verdadeiro
qu’elles pouvaient mériter une peine plus douce que la mort, à moins de se rendre coupable lui-même
de lèse-majesté? Quand le fanatisme, né de l’union monstrueuse de l’ignorance et du despotisme,
inventa à son tour les crimes de lèse-majesté divine, quand il conçut dans son délire le projet de venger
Dieu lui-même, ne fallut-il pas qu’il lui offrît aussi du sang, et qu’il le mît au moins au niveau des
monstres qui se disaient ses images”. In: ROBESPIERRE, Maximilien-Marie. Oeuvres. Paris: PUF,
1910, p. 83. Os parlamentares decidiram por manter a pena capital, mas a uniformizaram,
prevendo que “todo condenado terá a cabeça cortada” e rejeitando a tortura.
59 Esse foi o principal precedente que conduziu, após as agitações políticas que no período de
1830 sacudiram a Europa, à consolidação da noção de “crime político” enquanto autônoma
em relação às noções de crime de lesa-majestade e de crime contra a segurança do Estado.
Ver, a respeito : CHARLES, Raymond. Histoire du droit pénal. Paris: PUF, 1955, p. 45.
60 Já em 19 de março de 1793, a Convenção emanava um decreto, elaborado por Cambacérès,
em que eram declarados “fora da lei” todos aqueles que tomassem parte dos movimentos contra-revolucionários. Tornando-os “fora da lei”, esta norma possibilitava a prisão
imediata dos acusados, sem necessidade de abertura de processo: “Ceux qui sont ou seront
prévenus d’avoir pris part aux révoltes ou émeutes contre-révolutionnaires, qui ont éclaté ou qui
éclateraient à l’époque du recrutement dans les différents départements de la république, et ceux
qui prendraient ou auraient pris la cocarde blanche ou tout autre signe de rébellion sont hors de
la loi. En conséquence, ils ne peuvent profiter des dispositions des lois concernant la procédure
criminelle et l’institution des jurés”. Nos casos em que fossem presos com armas em punho,
a lei determinava a execução sumária no local após a simples verificação da identidade.
61 A ampliação dos poderes do Comitê era constantemente solicitada pelos membros da
Convenção, nesse momento já completamente envolvidos no discurso paranóico da fase do
Terror. A intervenção do deputado Joseph Delaunay, em 1792, no plenário da Convenção
Nacional, testemunha tal contexto: “Souvent on est réduit à céder par prudence, et à conduire
le désordre pour le prévenir, et dans ces moments de troubles et de terreurs, au milieu des crises,
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Arno Dal Ri Júnior
“Ministério do Terror” e ocupando-se de tudo o que era relativo às
pessoas e às polícias comuns e especiais. Alguns meses após, a Convenção emanou a lei de 14 de frimário do ano II62, em que procede
a uma espécie de reorganização do governo revolucionário. Com
essa lei, permanece como “centro único de impulso do governo”63,
mas oficialmente delega ao Comitê de Vigilância Geral a direção dos
comitês revolucionários e da polícia política.64
Nos casos em que fosse verificada atividade antipatriótica eram
os “rebeldes” levados perante o Tribunal Criminal Extraordinário – o
Tribunal Révolutionnaire – instituído através da lei de 20 de ventôse
do ano I.65 Composto por juízes nomeados diretamente pela Convenção, o que fazia dele um simples apêndice do poder político, o
Tribunal emanou sentenças quase sempre radicais: ou a absolvição
ou a guilhotina. A figura do acusador público, Antoine FouquierTinville, também tinha grande influência sobre o órgão, já que o
mesmo detinha o poder de decidir se os acusados deveriam ou não
ser trazidos à justiça. O objetivo do órgão era, segundo os próprios
revolucionários, lutar contra “toda a ação contra-revolucionária, todo
o atentado contra a liberdade, todos os complôs realistas”.66 Fazendo
62
63
64
65
66
des dangers et des menaces, à la suite d’une révolution qui bouleverse les anciens rapports, on est
obligé d’employer des mesures fortes et extraordinaires qui ne sont pas dans la loi, que la nécessité
des conjonctures commande, et sur lesquelles il faut ensuite par prudence jeter un voile épais (…)
Quant aux personnes arrêtées comme suspectes d’incivisme, et comme prévenues de délits contrerévolutionnaires, nous pensons qu’il serait extrêmement dangereux de les mettre provisoirement en
liberté, sans avoir préalablement scruté leur conduite dans ses rapports avec les conspirateurs du
dedans et du dehors. Les scellés ont été apposés sur leurs papiers. Il est très important d’examiner
leurs correspondances. Nous croyons avec d’autant plus de raison à la possibilité de trouver dans
cet examen des lumières utiles, que les opinions de la plupart des détenus ne sont pas équivoques. Ce
sont des écrivains marqués dans la révolution par un incivisme scandaleux; ce sont des agents de la
liste civile; ce sont des femmes attachées aux émigrés, et chargées de leur correspondance. Il ne faut
pas se le dissimuler, la surveillance la plus active est encore nécessaire. Le comité de sûreté générale
est instruit par une série de faits incontestables que les agitateurs, que la horde royaliste, et tous
les ennemis de la chose publique, dispersés d’abord par la terreur, cherchent aujourd’hui un point
de ralliement, et osent concevoir de criminelles espérances. Il importe de suivre les ramifications de
cette vaste conjuration, et de ne négliger aucun moyen d’en connaître et les plans et les complices”.
Discurso proferido pelo deputado Joseph Delaunay, intitulado “Sur le Renforcement du Rôle
du Comité de Sûreté Générale” (1792).
4 de dezembro de 1793.
“(…) centre unique de l’impulsion du gouvernement”.
FURET, François et RICHET, Denis. La révolution française. Paris: Hachette, 1963, p. 237.
10 de março de 1793. O tribunal revolucionário funcionou até 31 de maio de 1795, quando
foi definitivamente suprimido. Ver, a respeito: idem, p. 232.
“Toute entreprise contre-révolutionnaire, tout attentat contre la liberté, tous complot royaliste”.
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A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
alusão à política a ser desenvolvida pelos membros do Tribunal, o
revolucionário Georges-Jacques Danton67 aconselhava-os que fossem
“terríveis, para impedir o povo de o ser”.68
A instituição do Comitê e do Tribunal, ambos concebidos como
mecanismos de repressão política, representava para os jacobinos a
certeza de poder contar com os instrumentos necessários para a operacionalização do “despotismo da liberdade”, regime que levaria ao
aniquilamento do despotismo da nobreza. Era o que indiretamente
afirmava Jean-Paul Marat em abril de 1793: “É pela violência que
deve se estabelecer a liberdade e chegou o momento de organizar
momentaneamente o despotismo da liberdade para acabar com o
despotismo dos reis”.69
Em 17 de setembro de 1793, a Convenção Nacional votou as
duas normas que fundamentariam a ação repressora do Comitê. Através delas surgia a nova política de vigilância/segurança do Estado – a
transfiguração das políticas penais baseadas no crimen laesae maiestatis
–, levando ao extremo a repressão aos crimes políticos.
67
Georges-Jacques Danton nasceu em 1759 e morreu em Paris, em 1794. Neto de um oficial de
justiça e filho de um advogado, formou-se em direito e cedo iniciou carreira na advocacia.
Grande orador, em junho de 1791 tomou contato com os jacobinos e em setembro de 1792
elegeu-se deputado na Convenção Nacional representando Paris. Em março de 1793 assumiu a presidência do Tribunal Revolucionário e, em abril do mesmo ano, passou a fazer
parte do Comité de Salut Public. Em 12 de outubro, após violentos embates com Robespierre,
renuncia às suas funções públicas e retira-se da vida política. Em 30 de março de 1794 é
preso sob a acusação de ser ennemi de la République. Julgado pelo Tribunal Revolucionário
a partir de um libelo elaborado por Saint-Just, defendeu-se com grande eloqüência, fazendo com que fosse necessário obter às pressas um decreto da Convenção determinando a
conclusão dos debates sem sua presença. Foi condenado à morte e guilhotinado em 5 de
abril de 1794. Suas últimas palavras, ditas ao carrasco, tornaram-se célebres: “N’oublie pas
surtout, n’oublie pas de montrer ma tête au peuple: elle en vaut la peine”.
68 “(…) terribles pour dispenser le peuple de l’être”. Existe certo consenso entre os estudiosos da
Révolution sobre o fato desta frase refletir a preocupação dos jacobinos em consolidar o
Terror como forma de evitar novos massacres por parte das massas. O próprio Robespierre
adotou a idéia de Danton de que o Terror deveria ser algo regularizado e limitado, justo
para evitar que os vários grupos populares, adversários entre si, pegassem novamente nas
armas e promovessem “banhos de sangue”. Neste sentido, quanto mais dura e terrible fosse
a ação do tribunal, mais longe estaria a hipótese de confrontos populares. Ver: BLANC,
Louis. Op. cit., p. 62.
69 “C’est par la violence que doit s’établir la liberté et le moment est venu d’organiser momentanément le despotisme de la liberté pour écraser le despotisme des rois”. In: MARAT, Jean-Paul.
Op. cit., p. 29.
140
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A primeira proposta de norma foi apresentada por Philippe
Merlin de Douai70, com o apoio de Jean de Cambacérès.71 Votada
e aprovada, tornou-se a “Lei dos Suspeitos”, que abriu ao Comité de
Sûreté Générale um imenso campo de ação.72 Em particular, a norma
permitia que os processos judiciários corressem mais rapidamente e
que fossem ampliadas as categorias de crimes considerados contrarevolucionários. Nesta perspectiva, segundo o texto da lei, eram
suspeitos:
1. aqueles que, nas assembléias do povo, bloqueiam a
energia deste através de discursos astuciosos, de crises
turbulentas e de ameaças; 2. aqueles que, mais prudentes, falam misteriosamente dos males da República, dão
palpites sobre a sorte do povo e estão sempre prontos
a espalhar más notícias; 3. aqueles que mudaram de
conduta e de linguagem segundo os eventos; aqueles
que, mudos sobre os crimes dos monarquistas e dos
federalistas, declamam com ênfase contra as faltas leves
dos patriotas e afetam, por parecerem republicanos, uma
austeridade, uma severidade estudadas, e que logo se
descobre se tratar de um moderado ou de um aristocrata; 4. aqueles que se compadecem dos arrematantes
e comerciantes ávidos contra os quais a lei é obrigada a
tomar medidas; 5. aqueles que, tendo sempre palavras
de liberdade, república e pátria sobre os lábios, freqüentam os nobres, os padres contra-revolucionários, os
aristocratas, os frades, os moderados e se interessam por
eles; 6. aqueles que não tiveram nenhuma parte ativa em
tudo o que interessa à Revolução e que, para se desculpar
disso, fazem valer o pagamento dos impostos, os seus
dons patrióticos, o seu serviço na guarda nacional (...);
70
Philippe Antoine Merlin de Douai nasceu em Arleux, em 1754, e morreu em Paris, em 1838.
Político e advogado, destacou-se como especialista em direito feudal. Elegeu-se deputado
nos Estados Gerais em 1789 e na Convenção em 1792, assim como Ministro da Justiça em
1795. Substituiu Barthélemy no Diretório em 1797. Ocupou altos cargos judiciais durante
o Consulado e o Império. Exilou-se entre 1815 e 1830.
71 Jean-Jacques Régis de Cambacérès nasceu em Montpellier, em 1753, e morreu em Paris,
em 1824. Jurista e estadista, foi eleito deputado na Convenção em 1792 e ministro de Justiça após o golpe de estado de Sieyès, em 1799. Como segundo cônsul, contribuiu para a
elaboração do Código Civil napoleônico.
72 FURET, François et RICHET, Denis. Op. cit., p. 230.
Capítulo 3 |
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A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
7. aqueles que receberam com indiferença a constituição
republicana e fizeram falsas reclamações sobre o seu
estabelecimento e sua duração; 8. aqueles que, não tendo
feito nada contra a liberdade, também não fizeram nada
por ela; 9. aqueles que não freqüentaram as suas seções e
que dão por desculpa o fato de não saberem falar e que
os seus afazeres os impedem; 10. aqueles que falam com
má-vontade das autoridades constituídas, dos símbolos
da lei, das sociedades populares e dos defensores da
liberdade; 11. aqueles que assinaram petições contrarevolucionárias ou freqüentaram sociedades e clubes
anti-cívicos; 12. os partidários de Lafayette e os assassinos que foram transportados ao Champ-de-Mars.73
Três dias após, a Convenção aprovou uma segunda norma, desta vez um decreto74, tendo por título “Definição oficial do suspeito”.
Além de delinear as principais características do novo “vilão”, lançou
as bases de uma política burocrática de controle dos “suspeitos”:
Aqueles que pela própria conduta, relações, propostas
ou escritos se demonstrarem partidários da tirania, do
federalismo, e inimigos da liberdade; – aqueles que
73
“Loi des suspects (17 septembre 1793): Sont réputés suspects: 1. Ceux qui, dans les assemblées
du peuple, arrêtent son énergie par des discours astucieux, des cris turbulents et des menaces;
2. Ceux qui, plus prudents, parlent mystérieusement des malheurs de la République, s’apitoient
sur le sort du peuple et sont toujours prêts à répandre de mauvaises nouvelles avec une douleur
affectée; 3. Ceux qui ont changé de conduite et de langage selon les événements; ceux qui, muets
sur les crimes des royalistes, des fédéralistes, déclament avec emphase contre les fautes légères des
patriotes et affectent, pour paraître républicains, une austérité, une sévérité étudiées, et qui cèdent
aussitôt qu’il s’agit d’un modéré ou d’un aristocrate; 4. Ceux qui plaignent les fermiers et marchands avides contre lesquels la loi est obligée de prendre des mesures; 5. Ceux qui, ayant toujours
les mots de liberté, république et patrie sur les lèvres, fréquentent les ci-devant nobles, les prêtres
contre-révolutionnaires, les aristocrates, les feuillants, les modérés et s’intéressent à leur sort; 6.
Ceux qui n’ont pris aucune part active dans tout ce qui intéresse la Révolution et qui, pour s’en
disculper, font valoir le paiement des contributions, leurs dons patriotiques, leur service dans la
garde nationale, par remplacement ou autrement, etc (...); 7. Ceux qui ont reçu avec indifférence
la constitution républicaine et ont fait part de fausses craintes sur son établissement et sa durée; 8.
Ceux qui, n’ayant rien fait contre la liberté, n’ont aussi rien fait pour elle; 9. Ceux qui ne fréquentent pas leurs sections et qui donnent pour excuse qu’ils ne savent pas parler et que leurs affaires
les en empêchent; 10. Ceux qui parlent avec mépris des autorités constituées, des signes de la loi,
des sociétés populaires et des défenseurs de la liberté; 11. Ceux qui ont signé des pétitions contrerévolutionnaires ou fréquenté des sociétés et clubs anticiviques; 12. Les partisans de Lafayette et
les assassins qui se sont transportés au Champ-de-Mars”.
74 Décret de la Convention du 17 septembre 1793.
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Arno Dal Ri Júnior
não puderem justificar os seus meios de subsistência e
a quitação dos seus deveres cívicos; – aqueles que não
conseguirem obter o certificado de civismo; – os nobres
que não demonstrarem constantemente ter aderido à
Revolução; – os emigrantes, mesmo se retornaram a
França; – os condenados por delito, mesmo que já tenham cumprido a pena.75
A partir deste decreto, os comitês revolucionários – meticulosamente distribuídos por todas as comunes francesas –, passaram a
ter a função de conceder e verificar a validade dos “certificados de
civismo”, assim como atestar, para os citoyens, a quitação dos deveres
cívicos e a posse de meios de subsistência e, para os nobres, a adesão
constante aos ideais da Revolução. Da mesma forma, os comitês
revolucionários se encarregaram de elaborar e enviar aos órgãos do
Terror longas listas com os nomes de todos os “suspeitos”.76
A contribuição oferecida pela “Lei dos Suspeitos” para a cultura
jurídica revolucionária foi a de ter estabelecido que, a partir daquele
momento, fossem cada vez mais limitados os direitos do acusado e a
presunção de inocência, inexistente. Na prática, todo suspeito passava
a ser considerado culpado.77 Isto porque, mesmo que ainda não tivessem cometido uma infração, poderiam vir a cometê-la, devido ao fato
de ser animados por “más intenções em relação à Pátria”. Com razão,
Jean-Marie Carbasse78 afirmou que os “suspeitos” – protagonistas da
funesta lei – passavam a ser considerados “culpados virtuais”, formando uma categoria especial no mundo dos réus, para a qual a aplicação
da presunção de inocência era substituída pela presunção de culpa.
75
“Sont réputés suspects: - Ceux qui par leur conduite, leurs relations, leurs propos ou leurs écrits
se sont montrés partisans de la tyrannie, du fédéralisme, et ennemis de la liberté; - ceux qui ne
pourront justifier de leurs moyens d’existence et de l’acquit de leurs devoirs civiques; - ceux qui
n’auront pu obtenir de certificat de civisme; - les ci-devant nobles qui n’ont pas constamment
manifesté leur attachement à la Révolution; - les émigrés, même s’ils sont rentrés; - les prévenus
de délits, même acquittés”.
76 FURET, François et RICHET, Denis. Op. cit., p. 230.
77 Estima-se que, sob a “Lei dos Suspeitos”, 17 mil pessoas foram executadas tendo em base
um processo legal e outras 25 mil após somente ter sido identificadas. Sobre a justiça no
período revolucionário, ver o site dedicado pelo Ministério da Justiça francês à sua história,
“L’oeuvre révolutionnaire: les fondements de la justice actuelle”: http://www.justice.gouv.fr/
minister/histo5.htm, acessado em 14 de novembro de 2004.
78 CARBASSE, Jean-Marie. Op. cit., p. 382.
Capítulo 3 |
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A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
Mas a grande e solene construção dos mais novos protagonistas da criminalidade política na cultura punitiva francesa ainda
não se tinha concluído. No dia 26 de brumário do ano II79, uma
nova circular dirigida às autoridades policiais e assinada pelo
Procurador-Geral tornava ainda mais obsessiva a estratégia penal
baseada na “Lei dos Suspeitos”:
A comissão engaja cada uma das sociedades, cada um
dos indivíduos que a lerão, a se deixar penetrar pelo
espírito por ela ditado; mas ela os adverte ao mesmo
tempo de que, tendo indicado o objetivo ao qual devem
se encaminhar, não pretende prescrever a eles os limites
onde devem se deter. Tudo é permitido para aqueles
que agem no espírito da revolução: não existe perigo
maior para o republicano do que ficar para trás das leis
da república. Todo aquele que os previne, os antecipa;
todo aquele que aparentemente ultrapassa o objetivo,
freqüentemente ainda não o atingiu (...). É aqui que
devem se desfazer todas as considerações, as ligações
individuais. É aqui que a voz do sangue se cala diante
da voz da pátria. Vós residis em um país que uma rebelião infame maculou. E bem! Cidadãos magistrados
do povo, é necessário que todos os que concorreram de
uma maneira direta ou indireta à rebelião percam as
suas cabeças sobre um cadafalso. É a vez de vocês os
colocarem nas mãos da vingança nacional.80
A partir de então passava a ser dever dos filhos denunciar seus
pais, o do amigo trair seu amigo. Como afirma François Furet81, se no
79
80
15 de novembro de 1793.
“La commission engage chacune des sociétés, chacun des individus qui la liront, à se pénétrer de
l’esprit qui l’a dictée; mais elle les avertit en même temps qu’en leur indiquant le but où ils doivent
tendre, elle n’entend pas leur prescrire les bornes où ils doivent s’arrêter. Tout est permis pour ceux
qui agissent dans le sens de la révolution: il n’y a d’autre danger pour le républicain que de rester
en arrière des lois de la république. Quiconque les prévient les devance; quiconque même autre-passe
en apparence le but, souvent n’y est pas encore arrivé (…) C’est ici que doivent s’évanouir toutes les
considérations, les attachements, individuels. C’est ici que la voix du sang même se tait devant la voix
de la patrie. Vous habitez un pays qu’une rébellion infâme a souillé. Eh bien! citoyens magistrats du
peuple, il faut que tous ceux qui ont concouru d’une manière directe ou indirecte à la rébellion perdent
leur tête sur un échafaud. C’est à vous de les remettre entre les mains de la vengeance nationale”.
81 FURET, François et RICHET, Denis. Op. cit., p. 211.
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Antigo Regime a delação era considerada infame e indigna para um
géntilhomme, no novo regime passou a configurar dever e virtude do
cidadão. Desta forma, as estratégias de “defesa da República” elaboradas pelo regime do Terror passam a usar diretamente a construção
dos valores republicanos no imaginário coletivo, incidindo sobre o(s)
código(s) de ética da sociedade francesa e transformando-o(s) de modo
determinante. Tal estratégia servia não só para encorajar as delações,
mas para criar na sociedade um clima de insegurança generalizada82:
Se sois vós patriotas sabereis distinguir vossos amigos,
prendais todos os outros. Não sereis vós tão imbecis a
ponto de ver como atos de patriotismo algumas ações
exageradas e superficiais, através das quais os traidores
têm freqüentemente tentado abusar de vós. Aqui está
a linguagem que a maioria deles utiliza: ‘Mas o que se
tem a nos reprovar? Nós sempre nos expomos, prestamos serviço militar, pagamos todos os nossos impostos,
colocamos ofertas no altar da pátria. Até mandamos os
nossos filhos à defesa das fronteiras. O que se exige? O
que ainda se quer de nós?’ – Vós respondereis a eles:
‘Pouco nos importa! O patriotismo está no coração’. –
Que nenhuma consideração vos pare! Nem a idade,
nem o sexo, nem a filiação devem vos deter. Agi sem
temor. Respeitai somente os Sans-Culottes. O tempo de
meias-medidas e de hesitações passou. Ajudai-nos a
combater os grandes golpes ou sereis vós os primeiros
a suportá-los. A liberdade ou a morte. Escolhei.83
82
Desde junho de 1793 foi considerável o número de suspeitos detidos. O número das
condenações à morte, em Paris, inicialmente é baixo, mas se acelera progressivamente,
passando a uma centena por mês até março de 1794, 355 em abril, 381 nos 22 primeiros
dias de maio, chegando a 30 por dia em junho do mesmo ano.
83 “Si vous êtes patriotes, vous saurez distinguer vos amis, vous séquestrerez tous les autres. Vous
ne serez pas assez imbéciles pour regarder comme des actes de patriotisme quelques actions forcées
et extérieures, par lesquelles les traîtres ont souvent cherché à vous abuser. Voici le langage que la
plupart d’entre eux vous tiendront: Mais qu’a-t-on à nous reprocher ? Nous nous sommes toujours
bien montrés, nous avons fait notre service de garde nationale, nous avons payé toutes nos contributions, nous avons déposé des offrandes sur l’autel de la patrie. Nous avons même envoyé nos
enfants à la défense des frontières. Qu’exige-t-on? Que veut-on encore de nous? Vous leur répondrez:
Peu nous importe! Le patriotisme est dans le cœur. Qu’aucune considération ne vous arrête! Ni
l’âge, ni le sexe, ni la parenté, ne doivent vous retenir. Agissez sans crainte. Ne respectez que les
Sans-Culottes. Le temps des demi-mesures et des tergiversations est passé. Aidez-nous à frapper
les grands coups ou vous serez les premiers à les supporter. La liberté ou la mort. Choisissez”.
Capítulo 3 |
145
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
Todavia, mesmo após a prisão e eliminação sumária de grande
parte de seus adversários políticos através da aplicação da “Lei dos
Suspeitos”, os jacobinos não se deram por satisfeitos. Para Robespierre, em particular, era necessária a emanação de uma nova norma
que tornasse ainda mais rápida e eficiente a punição dos inimigos
da pátria. Aprovada, agora, sua elaboração no Comité de Salut Public
– mesmo com a oposição ferrenha de alguns membros –, o líder do
regime do Terror encarregou o jurista Georges Couthon de redigir
o projeto.84 Isto porque, segundo o “Incorruptível”, era necessário
um sério e aprofundado conhecimento técnico para elaborar a nova
norma. Tratava-se, de fato, de reformar radicalmente o processo judiciário aplicável aos “suspeitos”, simplificando-o e acelerando-o.
Em 22 de prairial do ano II85 cumpre-se a nova etapa, com a
aprovação da norma que suprimia o direito dos acusados por conspiração de ter um defensor e de ser submetidos a um interrogatório
preliminar, exigindo-se somente a identificação do suspeito para
enviá-lo à guilhotina. Dispondo também sobre a organização e a competência do Tribunal Revolucionário, a nova norma previa, no seu
artigo quarto86, que esse tinha sido “instituído para punir os inimigos
do povo”. O texto do artigo quinto87, por sua vez, apresentava a noção
do que seriam os “inimigos do povo”: “aqueles que procuram sufocar
a liberdade pública, seja pela força, seja pela astúcia”. A condenação
à morte era prevista, segundo o artigo sétimo, como única hipótese
de pena a ser aplicada pelo tribunal.88 O artigo 1389 excluía não só
84
85
86
87
88
89
146
Membro do Comité de Salut Public, Georges Couthon nasceu em 1755. Na juventude teve
paralisia nas pernas, locomovendo-se pelo resto da vida numa cadeira-de-rodas. Jurista de
renome, foi eleito em 1785 presidente do Tribunal de Clermont-Ferrand; em 1791, para a
Assembléia Constituinte; e, em 1792, para a Convenção Nacional. Sendo um dos principais
artífices do regime do Terror e fidelíssimo a Robespierre, foi com ele guilhotinado em 1794.
10 de junho de 1794. Também aqui, alguns estudiosos da Révolution afirmam que foi
o desespero diante da falta de perspectivas claras, da falência das estratégias políticas
implantadas e da corrosão da confiança depositada pela Convenção e pelo povo no seu
governo, que conduziu o grupo jacobino a emanar uma norma do gênero.
“Le Tribunal révolutionnaire est institué pour punir les ennemis du peuple”.
“Les ennemis du peuple sont ceux qui cherchent à anéantir la liberté publique, soit par la force, soit
par la ruse”.
“La peine portée contre tous les délits dont la connaissance appartient au Tribunal révolutionnaire
est la mort”.
“S’il existait des preuves soit matérielles, soit morales, indépendamment de la preuve testimoniale,
il ne sera point entendu de témoins, à moins que cette formalité ne paraisse nécessaire, soit pour
découvrir des complices, soit pour d’autres considérations majeures d’intérêt public”.
| Capítulo 3
Arno Dal Ri Júnior
a necessidade de que fosse realizado um interrogatório preliminar
com o acusado, mas também a ouvida de testemunhas. Estas seriam
suprimidas caso o Tribunal se declarasse suficientemente instruído
pelas provas contidas na acusação: “Se existir provas, quer materiais,
quer morais, independentemente da prova testemunhal, não serão
ouvidas testemunhas, a menos que esta formalidade demonstre-se
necessária, seja para descobrir cúmplices, seja para outras considerações maiores de interesse público”.
Isto fazia com que, teoricamente, o Tribunal Revolucionário se
limitasse a confirmar as decisões emanadas pelas comissões populares criadas alguns meses antes e encarregadas de fazer a “seleção”
dos acusados. Tal processo de seleção por parte das comissões deveria acontecer em no máximo três dias, porém, sendo seu trabalho
bastante lento, o Tribunal passou a ouvir diretamente os suspeitos,
sem que fossem “triados” anteriormente.
Por fim, o artigo 16 da lei de 22 de prairial previa a ausência da
figura do defensor nos processos por crime de conspiração contra a revolução, afirmando: “A lei dá por defensor, aos patriotas caluniados,
jurados patriotas; ela não concede o mesmo aos conspiradores”. 90
Louis-Antoine Léon de Saint-Just91, revolucionário fidelíssimo a Robespierre, conseguiu em uma frase sintetizar a experiência
jacobina acerca da segurança do Estado: “O que constitui a República é a destruição total daquilo que a ela se opôs”.92 Georges
Couthon, o jurista do Terror, de certo modo concluiu tal reflexão
apresentando, em poucas palavras, a política adotada pelo jacobinismo em relação à figura desse “opositor” ao Estado: “O tempo de
90
“La loi donne pour défenseur aux patriotes calomniés des jurés patriotes; elle n’en accorde point
aux conspirateurs”.
91 Louis-Antoine Léon de Saint-Just nasceu em 1767, em uma família de agricultores, no
interior da França. Estando em Paris em 1789, é admitido na Guarda Nacional, onde
rapidamente obteve a patente de tenente-coronel. Em 1792 foi eleito para a Convenção,
onde se aliou a Robespierre, Danton e Marat. Tornou-se um dos principais teóricos do
regime do Terror, fundamentando-se na defesa das aspirações igualitárias da República.
Elaborou um plano de reformas sociais publicado após sua morte, intitulado Fragments
d’institutions républicaines. Foi guilhotinado em 1794, juntamente com Robespierre e
Couthon. Ver, a respeito: KERMINA, Françoise. Saint-Just. La révolution aux mains d’un
jeune homme. Paris: Perrin, 2003.
92 “Ce qui constitue la République c’est la destruction totale de ce qui lui est opposé”.
Capítulo 3 |
147
A CONSTRUÇÃO DO CRIME CONTRA A AUTORIDADE DO ESTADO NO DISCURSO ILUMINISTA
puni-los deve ser somente aquele de reconhecê-los: trata-se menos
de julgá-los e mais de destruí-los”.93
No dia 10 de termidor do ano II94 do calendário revolucionário,
quando Robespierre sobe ao cadafalso – juntamente com Saint-Just,
Couthon e outros vinte revolucionários radicais95 –, o obcecado discurso jacobino faz parte do imaginário coletivo, fazendo com que os
meios utilizados pelo regime do Terror apareçam como legítimos e
necessários para a defesa da Révolution.96
Considerações finais
Após esta apresentação sintética do itinerário percorrido pelos
crimes políticos na experiência penal revolucionária não é difícil
perceber, como o faz Carbasse97, que – mesmo tendo inicialmente se
baseado nos discursos iluministas de Montesquieu, Beccaria e Marat
–, o regime da Révolution, enquanto durou, foi guiado pelo espírito
e pelos métodos de um feroz direito penal político que não tardou a
dominar todo o conjunto da atividade repressiva.
Deve-se a este fenômeno o fato de os tribunais criminais
ordinários, ao julgar “revolucionariamente”, não demonstrarem
nenhum tipo de respeito às regras do direito comum. Ademais, com
a hipertrofia do político – que caracterizou de modo particular a
fase do Terror –, freqüentemente se tornava difícil encontrar a linha
demarcatória entre as ações estritamente de direito penal e aquelas
93
94
95
96
97
148
“Le temps de les punir ne doit être que celui de les reconnaître: il s’agit moins de les juger que de
les anéantir!”.
28 de julho de 1794.
É muito significativa a análise desenvolvida por Furet sobre o que poderiam ter sido o
caráter humanista e as boas intenções dos líderes jacobinos. Na palavras do autor: “Il y a, du
reste, toute une analyse psycologique de la Terreur qui reste à faire. Les membres du grand Comité ne
furent pas ces buveurs de sang que nous content les légendes royalistes. Ils ne furent pas non plus ces
frois sacrificateurs tendus par le danger, que d’autres révolutions nous ont depuis fait connaître. Ces
hommes qui n’hésitent pas à faire faucher les têtes se montrent d’une délicatesse extrême, et parfois
d’une sensiblerie étonnante, quand il s’agit du sort des prisionniers. De ceux-ci, on fixe assez largement le trousseau: six chemises, six paires de bas, sans oublier une paie. Et quand Saint-Just prétend
employer les détenus aux corvées et aux grands travaux, il rencontre l’ ‘indignation silencieuse’, si
l’on en croit Barère, de tous ses collègues du Comité. L’humanisme du siècle ne disparaît pas avec les
tombereaux”. In : FURET, François et RICHET, Denis. Op. cit., p. 232.
Idem, p. 211.
CARBASSE, Jean-Marie. Op. cit., p. 385.
| Capítulo 3
Arno Dal Ri Júnior
concernentes a delitos políticos. Nesta perspectiva, não era difícil
encontrar uma ação que, tendo sido iniciada de modo ordinário,
fosse concluída como política.98
Verifica-se, então, como, neste momento da história do Ocidente, se consolidou o processo de migração de grande parte dos
elementos que compunham o núcleo duro da noção de crimen laesae
maiestatis para os novos “crimes contra a segurança do Estado”.
Robespierre, Danton, Saint-Just, Couthon, através de eloqüentes
discursos e de ardentes escritos sobre a batalha entre a République e os
seus inimigos, foram os principais artífices desta “transfiguração”.
Utilizando a terminologia própria do movimento revolucionário francês, se poderia dizer que, a partir de então, a figura antiquada e
démodé representada pelo crime contra a majestade do soberano abria
espaço para o nascimento de uma nova e potente figura delituosa: o
crime de lèse-république.
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BURKE, Peter. A fabricação do rei. A construção da imagem pública
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98
Idem, ibidem.
Capítulo 3 |
149
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Capítulo 3 |
151
CAPÍTULO 4
O discurso jurídico-penal iluminista no
direito criminal do império brasileiro*
Alexandre Ribas de Paulo
Mestre pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
de Santa Catarina (CPGD/UFSC); área de concentração: Direito, Estado e Sociedade.
Doutorando, pelo CPGD/UFSC; área de concentração: Filosofia. Pesquisador do
Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica – Ius Commune (CNPq/UFSC).
E-mail:[email protected]
*
O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil.
INTRODUÇÃO
D
urante o século XVIII, com a expansão do movimento intelectual
europeu chamado “Iluminismo” por todo o ocidente, foram
sendo produzidas e estabelecidas as principais noções jurídicas a
respeito da administração pública, tornando o que hoje conhecemos
por Estado um verdadeiro ente abstrato, que, contrapondo-se à organização política (teocêntrica) medieval – em que o príncipe era o virtual
soberano proprietário das coisas e dos súditos –, passou a criar um
discurso jurídico prospectivo, considerando toda e qualquer pessoa
humana como sendo portadora de Direitos, que foram declarados de
maneira formal sob a rubrica de universais, a despeito da carência de
instâncias jurídicas formais para a realização de tais Direitos.
No tocante ao Direito Penal, durante o século XVIII, com o
estabelecimento do Iluminismo como marco teórico para muitos
programas políticos e legislações ocidentais, surgiram os primeiros
representantes do denominado Período Humanitário do Direito
Penal, os quais denunciavam os abusos do Direito Penal do Antigo
Regime, e que lançaram os fundamentos para um novo saber jurídico
científico, que deveria estar alicerçado em princípios como o contrato
social, igualdade jurídica, racionalidade, legalidade e humanidade no
Direito Penal, tanto no que concerne à definição dos delitos quanto
nas punições. Todavia, entre o pensamento iluminista e as práticas
jurídicas produzidas pelas autoridades legiferantes – que se declaravam iluminadas pelas “luzes do século” – há diversos pontos que
demonstram que o Iluminismo, mais que um discurso modificador
da cultura jurídico-penal, tornou-se um poderoso instrumento
formador de uma verdadeira mitologia jurídica1, visto que as novas
disposições a respeito do Direito Penal serviram, em grande medida, para estabelecer de maneira contundente o que é denominado
hodiernamente como “monopólio da violência” (ius puniendi) estatal
como sendo uma verdade axiológica – produto da ciência jurídica –,
1
Cf. GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Boiteux, 2004.
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
impedindo que os vários métodos consuetudinários de resolução de
conflitos penais – pluralismo jurídico – fossem considerados como
uma via lídima do estabelecimento da Justiça.
Para verificar o reflexo do saber iluminista na cultura jurídicopenal brasileira no tempo do Império, inicialmente será feita uma
breve abordagem ao contexto histórico europeu do século XVIII;
posteriormente serão considerados alguns pontos do pensamento
iluminista de Cesare Beccaria, de forma a estabelecer determinados
postulados do Iluminismo no que concerne ao Direito Penal e, a
partir daí, visualizar como um discurso filosófico produzido em
um ambiente intelectual europeu pôde ser perfilhado pelo discurso
jurídico-penal brasileiro no período imperial, favorecendo a produção de um tipo específico de cultura jurídico-penal no Brasil do
século XIX, isto é: o culto à legalidade oriunda do Poder soberano
representado pelos interesses políticos da coroa imperial.
1.
Matrizes discursivas do Direito Estatal Moderno
A visão tradicional no plano da administração da justiça no
Ocidente europeu é a de que, desde a Baixa Idade Média (do século
XI ao XV), houve uma progressiva centralização política em torno
dos príncipes, que, com a reativação do Direito romano-justinianeu
com a Escola dos Glosadores (século XI), possibilitou que os monarcas fossem considerados fontes legítimas do Direito2, criando, assim,
um sistema discursivo do Direito que possuía uma lógica interna
racionalizada – científica3 –, chancelada pela cultura refinada dos
2
3
156
No tocante ao reconhecimento do Direito romano como fonte legitimadora do poder secular, vide: GIORDANI, Mário Curtis História do mundo feudal II/1: Civilização. Petrópolis:
Vozes, 1982, p. 253. Apenas para ilustrar o ideário jurídico do Império Romano do Oriente,
interessante observar as palavras do imperador Justiniano no proêmio de suas Institutas: “A
Majestade Imperial deve ser ornada não só com as armas, mas também com as leis, para que
possa reger com justiça nos tempos de paz e nos tempos de guerra, e para que o príncipe
romano fique vitorioso não só nos combates contra os inimigos, mas também no expurgo
das injustiças que se ocultam sob fórmulas legais, e para que seja, ao mesmo tempo, religiosíssimo cultor do direito e vencedor dos inimigos”. In: JUSTINIANUS, Flavius Petrus
Sabbatius. Institutas do imperador Justiniano: manual didático para uso dos estudantes de
direito de Constantinopla, elaborado por ordem do imperador Justiniano, no ano de 533
d. C. Trad. J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 15.
Nesse sentido, vide: GROSSI, Paolo. El orden juridico medieval. Madrid: Marcial Pons, 1996,
p.150-173.
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
chamados intelectuais, que elaboraram idéias a respeito da legitimidade temporal e espiritual do poder real, reforçando a secularização
das instituições sociais e um gradual predomínio da razão jurídica
na administração da justiça real.4 Nas palavras de Raymundo Faoro,
ao comentar a formação política do Estado português:
As colunas fundamentais, sobre as quais se assentaria
o Estado Português, estavam presentes, plenamente
elaboradas, no direito romano. O príncipe, com a qualidade de senhor do Estado, proprietário eminente ou
virtual sobre todas as pessoas e bens, define-se, como
idéia dominante, na monarquia romana. O rei, supremo
comandante militar, cuja autoridade se prolonga na
administração e na justiça, encontra reconhecimento
no período clássico da história imperial. O racionalismo
formal do direito, com os monumentos das codificações,
servirá, de outro lado, para disciplinar a ação política,
encaminhada ao constante rumo da ordem social, sob
o comando e o magistério da Coroa.5
Certamente que essa visão, amplamente acatada pelos juristas,
de um suposto predomínio do Direito régio na administração da
justiça tardo-medieval e Moderna, merece uma visão historiográfica
crítica, especialmente porque os dados históricos utilizados para
informar os mecanismos de centralização do poder real, a partir da
formação dos Estados nacionais, é sedimentada quase que exclusivamente nos documentos oficiais – fontes históricas – produzidos pelos
próprios órgãos estatais de determinada época e, por isso, tem-se a
falsa impressão de que, logo que os reis promoveram determinadas
4
5
Sobre o ambiente laico e científico dos intelectuais tardo-medievais, consultar: LE GOFF,
Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. A respeito da formação do Direito estatal na Baixa Idade Média, vide: CAVANNA, Adriano. Storia del diritto
moderno in europa. Le fonti e il pensiero giuridico. Milano: Giuffrè, 1982, p. 66-77. No tocante à
progressiva interferência do poder público no âmbito do direito penal, a partir do século XIII,
vide: MARCHETTI, Paolo. I limiti della giurisdizione penale: crimini, competenza e territorio
nel pensiero giuridico tardo medievale. In: BELLABARBA, Marco; SCHWERHOFF, Gerd;
ZORZI, Andrea (a cura di). Criminalità e giustizia in Germania e in Italia: pratiche giudiziarie
e linguaggi giuridici tra tardo medievo e età moderna. Bologna: Il Mulino, 2001, p. 85.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed.
rev. São Paulo: Globo, 2001, p. 27.
Capítulo 4 |
157
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
compilações jurídicas (Ordenações), elas foram rapidamente aplicadas à sociedade formada de súditos temerosos e fiéis. Antônio Manuel
Hespanha, ao tratar da administração da justiça em Portugal, no
contexto histórico da Idade Moderna, argumenta que a administração régia não tinha estrutura suficiente para aplicar as normas legais
a todos os conflitos trans-individuais e, diante disso, no chamado
“mundo dos rústicos” predominava o direito consuetudinário, sendo
que não raras vezes os magistrados locais eram analfabetos e, porquanto, não há tantas “fontes históricas” a respeito da administração
cotidiana da justiça no denominado Antigo Regime.6
Assim, parece predominante a idéia de uma História linear e
evolucionista no sentido de que a “Justiça” pertence ao discurso oficial
estatal e, partindo-se do pressuposto de que as doutrinas jurídicas
foram criadas por declarações formais de indivíduos que incorporavam a “soberania” ou estavam a serviço do poder do Estado, não é
equivocada a afirmação de que as “teorias do direito” da modernidade são diferentes das “práticas jurídicas” adotadas pelas pessoas
e que, por isso, pode-se notar que o “Direito” tratado pelos juristas
modernos é, predominantemente, aquele pertinente ao âmbito estatal
e tem como função o estabelecimento da legitimidade do poder e,
subsidiariamente, a resolução de conflitos penais que ocorrem nas
relações intersubjetivas cotidianas na sociedade. Aqui se pode destacar, preliminarmente, um dos principais traços das mitologias jurídicas
ocidentais, pois os discursos jurídicos da modernidade têm como finalidade precípua o estabelecimento e a organização do poder estatal7 e,
6
7
158
HESPANHA, Antônio Manuel. As fronteiras do poder. O mundo dos rústicos. Seqüência.
Florianópolis, ano XXV, n. 51, dez. de 2005, especialmente as páginas 48 a 65. Ainda, sobre
a paulatina ruptura entre o direito dos rústicos e o Direito Régio no decorrer do século
XVIII, na região do Languedoc, sul da França, consultar: CASTAN, Nicole. A arbitragem
de conflitos sob o ‘Ancién Régime’. In: HESPANHA, Antônio Manoel. Justiça e litigiosidade:
história e prospectiva. Porto: Calouste Gulbenkian, 1993, p.469-519.
Paolo Grossi, por exemplo, explica que a cultura jurídica medieval se desenvolveu em
um vazio estatal e que o Estado era o grande ausente nas comunidades medievais, por
isso não é errado afirmar que dimensão jurídica goza de autonomia e que tem condições
de desempenhar um papel central nas sociedades. O autor florentino também admoesta:
“Juntamente ao termo Estado, existe uma outra noção e um outro termo que devem ser
evitados, por motivos idênticos: soberania. Com razão, como é fácil de intuir, em uma
íntima conexão com ‘Estado’. Este se manifesta e se expressa através da soberania, a qual
– por sua vez – manifesta e expressa uma potestade absoluta; e, é justificado, é conveniente
que os Modernos falem da soberania – cientistas políticos e juristas – a partir de Bodin. A
soberania [...] é o cimento que solidifica uma entidade política tipicamente estatal, fortifi-
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
subsidiariamente, prever soluções aos conflitos inter-individuais das
pessoas submetidas a esse poder, que, em se tratando de Direito Penal,
se resume à correta aplicação da lei, que teria o condão de garantir
uma suposta segurança jurídica aos jurisdicionados.8
Ao tentar investigar a formação do “discurso da verdade” no
âmbito do Direito, Michel Foucault destaca que o personagem central
do edifício jurídico, desde o final da Idade Média, era o rei, e os juristas
tinham sido servidores do rei ou seus adversários, mas, de qualquer
maneira, foi sob o poder real que se construíram os edifícios do pensamento e do saber jurídicos. Em tal perspectiva havia duas formas
de se pensar esse Poder: a) ou o rei encarnava de fato a soberania viva
como o seu direito fundamental, formando o Estado absolutista; b)
ou, ao contrário, era necessário limitar o poder do soberano, sendo
que ele deveria se sujeitar à lei para conservar a sua legitimidade.
Em qualquer desses fenômenos, entretanto, a teoria do Direito era
essencialmente centrada no rei, representante vivo da soberania:
A teoria do direito, da Idade Média em diante, tem essencialmente o papel de fixar a legitimidade do poder;
isto é, o problema maior em torno do qual se organiza
toda a teoria do direito é o da soberania.
Afirmar que a soberania é o problema central do direito
nas sociedades ocidentais implica, no fundo, dizer que
o discurso e a técnica do direito tiveram basicamente a
função de dissolver o fato da dominação dentro do poder
para, em segundo lugar, fazer aparecer duas coisas: por
um lado, os direitos legítimos da soberania e, por outro,
a obrigação legal da obediência.9
8
9
cando a sua insularidade”. In: GROSSI, Paolo. Da sociedade de sociedades à insularidade
do estado entre medievo e Idade Moderna. Seqüência. Florianópolis, ano XXVII, n. 55, p.
9-28, dez. de 2007, p. 14.
Sobre a falsidade do discurso sobre a segurança jurídica no âmbito do Direito Penal, consultar: BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Atena, 1959, p. 7-8; ANDRADE,
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Capítulo 4 |
159
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
As teorias jurídicas que surgiram, sobretudo no decorrer do
século XVIII, e que passaram a questionar o poder ilimitado (despótico) do rei – que era, em grande parte, fundamentado em dogmas
religiosos e obras de alguns contratualistas –, afirmando que era a
razão a força propulsora da humanidade, foram chamadas de iluministas e promoveram uma verdadeira revolução no pensamento
político ocidental no crepúsculo da Idade Moderna, incluindo,
evidentemente, as idéias pertinentes ao Direito Penal. Entretanto,
destaca-se que os discursos produzidos tendo como objeto o Direito
Penal discutiram fortemente a questão do Poder e o exercício legítimo da soberania para evitar abusos do poder por parte do soberano,
mas trataram da questão do conflito entre as pessoas e os possíveis
mecanismos eficazes de resolução dos mesmos de forma generalista
e subsidiária ao exercício da soberania. Tais características aparecem
na legislação criminal das primeiras décadas do Império brasileiro,
como será visto mais adiante.
2.
O surgimento do Iluminismo e o contexto político
do século XVIII
Inicialmente é importante destacar que o Iluminismo francês
surgiu em meio a um ambiente intelectual revolucionado com as
descobertas científicas concernentes, especialmente, à física e à
matemática, que comprovaram que o universo está em constante
movimento e que a Terra não ocupa lugar central nesse universo.10
10
160
Uma das características gerais da Idade Moderna européia (tradicionalmente considerada entre 29/05/1453 – com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos – até
14/07/1789, com a queda da Bastilha e o início da Revolução Francesa) é que há uma
decrescente autoridade da Igreja e uma crescente autoridade da ciência. Sem entrar em
detalhes concernentes às revoluções científicas e liberais da Idade Moderna, Bertrand
Russell (História da filosofia ocidental. São Paulo: Companhia Editora Nacional/CODIL,
1968, v.3, p. 06-7) comenta que se pode notar, em tal período histórico, que o Estado foi
substituindo cada vez mais a Igreja como autoridade governamental que manipulava a
cultura, e que o controle exercido pela religião sob os pensadores medievais já não era o
mesmo que o Estado exercia sobre os filósofos. A primeira irrupção da ciência contra a
Igreja foi a publicação da teoria de Copérnico, em 1543, sobre a qual a instituição católica
interferiu imediatamente e, com isso, marcou o divórcio entre o dogma (conhecimento
absoluto e imutável) e a ciência, que se pronuncia somente sobre o que consegue observar, tornando-se, assim, empírica. “Até aqui tenho falado da ciência teórica, que é uma
tentativa para se compreender o mundo. A ciência prática, que é uma tentativa no sentido
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
Ao contrário do racionalismo iluminista, a Igreja Católica – guardiã
do dogma niceno – mantinha seu discurso sobre a imutabilidade das
obras divinas e, portanto, das ordens sociais estabelecidas por vontade de Deus. Alguns pensadores laicos do século XVIII puderam,
então, reparar que as comprovações científicas no campo da mecânica
(movimento) não se aplicavam à estrutura social da época, pois o
Antigo Regime contemplava, no plano político, a existência do Estado
nacional administrado por uma monarquia absolutista (estática) e,
socialmente, havia uma diferenciação baseada no privilégio11, coexistindo uma sociedade estamental e de ordens.12 Nessa perspectiva,
de modificar o mundo, foi importante desde o princípio, aumentando continuamente de
importância, até o ponto de quase expulsar a ciência teórica do pensamento dos homens.
A importância prática da ciência foi primeiro reconhecida em relação à guerra; Galileu
e Leonardo obtiveram emprêgo do govêrno por ter afirmado que podiam melhorar a
artilharia e a arte da fortificação. (...) A vitória da ciência foi devida, principalmente, à sua
utilidade prática, tendo havido uma tentativa no sentido de se divorciar êste aspecto do da
teoria, fazendo-se, dêsse modo, da ciência, cada vez mais, técnica, e cada vez menos uma
doutrina do mundo”. Foi nesse cenário praticamente cientificado pelas teorias racionalistas
de René Descartes (1596-1650) e pelo empirismo de Francis Bacon (1561-1626) que surgiu
o chamado “contratualismo” de Thomas Hobbes (1588-1679) (Leviatã: ou matéria, forma
e poder de um estado eclesiástico e civil. In: Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004,
p. 145), que, explicando as leis da natureza e a sua relação com a liberdade individual,
teceu considerações à teoria dos contratos e validade dos pactos celebrados e, então,
afirma: “Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam
e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a
quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de
ser seu representante), todos sem exceção (...)]. É desta instituição do Estado que derivam
todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido
mediante o consentimento do povo reunido”. Seguiram alguns dos pressupostos do
jusnaturalismo e contratualismo de Hobbes o também inglês John Locke (1632-1704)
e o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) (Do contrato social. In: Os pensadores. São
Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 55), que, por sua vez, afirma: “A mais antiga de todas as
sociedades, e a única natural, é a da família; ainda assim só se prendem os filhos ao pai
enquanto dele necessitam para a própria conservação. (...) Se continuam unidos, já não
é natural, mas voluntariamente, e a própria família só se mantém por convenção. Essa
liberdade comum é uma conseqüência da natureza do homem”. Através das teorias
desses três filósofos pode-se perceber o papel do indivíduo perante o Estado, nascendo,
daí, algumas das concepções doutrinárias mais importantes sobre o individualismo em
uma perspectiva jusnaturalista. Nesse sentido, consultar: WOLKMER, Antônio Carlos.
Ideologia, estado e direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 63-4.
11 Nas palavras de ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no império.
In: ALENCASTRO, Luiz Felipe (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, v.2, p. 16. “Nos confins da língua latina e do direito romano, a
palavra privus (particular) deu origem a duas variantes, privatus (privado) e privus-lex ou
privilegium (lei para um particular, privilégio).
12 FRANCO JÚNIOR, Hilário. As cruzadas. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 13 e 20, explica
que na sociedade de ordens “a condição social de cada indivíduo estava definida por
Deus logo ao nascimento, ficando portanto estabelecida a vitaliciedade e hereditariedade:
Capítulo 4 |
161
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
a estrutura social do Antigo Regime (francês) era representada por
três “Estados”: o 1o era o Clero (alto e baixo); o 2o era a Nobreza (de
sangue e/ou de espada, e a togada – título comprado pelos burgueses); e o 3o era a grande maioria da população, formada por grupos
heterogêneos (desde a grande burguesia até os camponeses). O rei,
enfim, estava acima de todas estas ordens.13
Sem adentrar em questões teóricas a respeito da filosofia iluminista14, vale registrar que durante o século XVIII ocorreu uma
crescente crise no sistema do Antigo Regime, que estava sendo
malsinado de vícios, sobretudo pela composição (estática) das classes sociais existentes à época: os representantes do Primeiro e do
Segundo Estados possuíam os mais amplos privilégios, destacandose a prerrogativa de não pagar impostos e o poder de cobrá-los do
Terceiro Estado. A burguesia francesa, a partir do século XVIII, estava
fortalecida economicamente o bastante para não mais necessitar da
proteção paternalista do rei em seus interesses mercantis e industriais. Assim, os burgueses, inspirados pelas teorias jusnaturalistas
de Jean-Jacques Rousseau e de Charles-Louis de Secondat, o barão de
Montesquieu15, além do deísmo anticlerical de Voltaire16, passaram
13
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16
162
filho de nobre é nobre, filho de camponês é camponês. Como a condição de cada pessoa
tinha sido determinada por uma ordem divina – daí o termo ‘sociedade de ordens’ – naturalmente não havia possibilidade de mudanças; era uma sociedade de rígida estratificação” A diferença para a “sociedade estamental” é que, nesta, o indivíduo pode mudar
de classe social, de tal forma que “enquanto na primeira o indivíduo é de determinada
camada social, condição estabelecida por ordem divina desde o nascimento, na segunda
o indivíduo está num certo grupo social”.
Cf. MERCADANTE, Antônio Alfredo. História é vida: as sociedades modernas e contemporâneas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990, p. 61-2.
Sobre o assunto, vide: FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel.
Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 335-351.
Nas palavras de MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Barão de. Do espírito das
leis. In: Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 42: “A lei, em geral, é a razão humana, na medida em que governa todos os povos da terra, e as leis políticas e civis de cada
nação devem ser apenas os casos particulares em que se aplica essa razão humana”.
François-Marie Arouet (1694-1778) adotou, por volta de 1717, o nome de “Voltaire” (anagrama de Arovet l. i. – le ieune), quando foi recolhido a Bastilha. No Dicionário filosófico (1764)
podem-se notar suas críticas à religião e aos soberanos característicos do Antigo Regime.
Por exemplo, quando Voltaire (Dicionário filosófico. São Paulo: Atena, 1959, p. 170) comenta
sobre a “Graça”, em certo momento escreve: “Meus reverendos padres, sois um gênios
terríveis; pensávamos tolamente que o Ser Eterno não se guia jamais pelas leis particulares
como os vis humanos, mas sim por suas leis gerais, eternas como êle. Nenhum de nós jamais
imaginou que Deus se assemelhasse a um soberano insensato que concede um pecúlio a
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
a contestar a legitimidade do poder político pertinente ao Antigo
Regime e, auxiliados pelos membros do Terceiro Estado17, promoveram as revoluções liberais – destacadamente a Revolução Francesa,
em 1789 – com uma proposta de sociedade livre, igual, democrática,
racional, constitucional, legalista e não-dogmática.
Apesar de iniciado na França, o movimento filosófico do
Iluminismo, que denunciava os abusos do Antigo Regime e previa
modificações nas relações preexistentes entre a vontade, a autoridade
e o uso da razão, espalhou-se rapidamente por toda a Europa – favorecendo, inclusive, o movimento de independências nas Américas18
– como sendo uma revolução intelectual e divulgou as idéias de
homens esclarecidos cuja sabedoria estaria baseada nas descobertas
científicas e na preponderância da razão humana nos mais diversos
campos de estudo. No tocante às influências exercidas no campo do
Direito Penal, além da filosofia jusnaturalista, também foram preconizadas reformas humanistas19, e a primeira obra publicada na Europa
com imediata repercussão em vários países foi Dei delitti e delle pene
(Dos delitos e das penas), editada em 1764 por Cesare Bonesana, o
marquês de Beccaria, inaugurando, assim, o denominado Período
Humanitário do Direito Penal no Ocidente europeu, e também a
chamada Escola Clássica.20 Pode-se notar, assim, que foi no decor-
17
18
19
20
um escravo e recusa alimentação a outro, que ordena ao maneta amassar-lhe a farinha, a
um mudo que lhe leia o jornal, a um perneta que lhe sirva de mensageiro [sic]”.
Sobre o discurso político-revolucionário francês do século XVIII, interessante ver a obra
do deputado francês Emmanuel Joseph Sieyès (1748/1836), em sua obra A constituinte
burguesa: que é o terceiro estado? Rio de Janeiro: Líber Júris, 1986.
Sobre a influência do Iluminismo e da Independência das Treze Colônias no Brasil colonial, verificar: JANCSÓ, István. A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política
no final do século XVIII. In: MELLO E SOUZA, Laura de (org.). História da vida privada no
Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, v.1, p. 388-437. Sobre a crise do sistema colonial no Brasil e a Inconfidência Mineira,
consultar: SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil: colônia, império e república. São
Paulo: Moderna, 1992, p. 102-9. Finalmente, alguns comentários sobre as influências das
idéias iluministas na América Latina, consultar: POMER, Leon. As independências na América
Latina. São Paulo: Brasiliense, 1981.
Sobre isso, consultar: WOLKMER, Antônio Carlos. O direito como expressão da vontade e da razão humanas: Jean-Jacques Rousseau, Emmanuel Kant e Cesare Beccaria. In:
WOLKMER, Antônio Carlos (org.). Fundamentos do humanismo jurídico no ocidente. Barueri:
Manole; Florianópolis: Boiteux, 2005, p. 85-104.
O saber penal na Itália mostrou-se diferenciado pelas questões de método de investigação
científica, tendo três Escolas, entre outras, marcado o universo penal naquele país entre
a segunda metade do século XVIII e a segunda metade do século XIX: a Escola Clássica
(método dedutivo), a Escola Positiva (método indutivo) e a Escola Técnico-Jurídico. A
Capítulo 4 |
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O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
rer do século XVIII que se iniciou um movimento (intelectual) que
pregou a reforma no exercício da soberania e na administração da
justiça penal e, a partir desses novos ideais científicos e filosóficos que
surgiram no Iluminismo, é que foram estabelecidos os paradigmas
legitimadores do Direito Penal brasileiro do século XIX, como será
visto mais adiante.
3.
Período Humanitário do Direito Penal e os postulados de Cesare Beccaria
Para compreender o combate dos intelectuais iluministas ao
Direito Penal do Antigo Regime ressalta-se que os delitos e as penas
neste período pautavam-se em distinções e privilégios entre classes
sociais e, diante dos inevitáveis prejuízos para a grande maioria
das pessoas – inclusive os burgueses –, que não possuía nenhuma
posição vantajosa como os reis, nobres e eclesiásticos, a proporção
entre conduta delitiva e sanção aplicada não era igual para todos,
de tal maneira que não havia previsibilidade sobre a conduta tida
como infração e a punição que iria receber o delinqüente a título de
expiação do delito. Nas palavras de Otto Kirchheimer, ao se referir
ao Direito Penal atacado pelos iluministas,
tornou-se difícil distinguir justiça de um capricho individual, de forma que a administração penal perdeu
prestígio aos olhos da população. Não havia qualquer
critério definido para fixar a duração da pena, pois não
havia uma concepção adequada do relacionamento
primeira tinha como objeto o Direito natural; a segunda, o delito como um fato natural
e social; e a terceira, o Direito positivo. A Escola Clássica foi designada por Enrico Ferri
(provavelmente) em 1880, quando este teceu críticas aos seus representantes por pregarem
a diminuição de penas e possibilitarem um individualismo exacerbado por parte dos que
propunham a defesa dos Direitos Humanos. Como esse autor foi um dos representantes
mais importantes da Escola Positiva (empirista), não é difícil de se notar a incompatibilidade do pensamento científico-positivista com o pensamento lógico-abstrato da filosofia
do iluminismo que marcou a chamada Escola Clássica. Esta Escola, na verdade, serve para
designar alguns autores que desenvolveram teorias sobre o Direito Penal no marco histórico
do Iluminismo, e se mostra essencialmente marcada pelo pensamento filosófico liberal e
humanístico, que questionava os limites do poder de punir do Estado frente à liberdade
individual, exigindo a racionalização do poder contra toda intervenção estatal arbitrária.
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Alexandre Ribas de Paulo
necessário entre punição e crime. As sentenças eram,
algumas vezes, absurdamente pequenas, mas mais frequentemente eram absurdamente longas, no caso de a
duração estar de alguma maneira definida.21
Carlo Calisse, historiador do Direito Penal italiano, ao comentar sobre as características do procedimento penal e a classificação
dos crimes no Antigo Regime, afirma que, quanto ao procedimento,
existiam os crimes eclesiásticos, os seculares e os comuns, sendo que
muitas condutas confundiam as competências, como, por exemplo,
no caso de adultério, que era considerado crime eclesiástico, mas
também comum. De qualquer maneira, a maioria das infrações acabava sendo considerada de interesse público e punida com maior ou
menor rigor. No tocante às penas, havia as ordinárias (decorrentes
da lei) e as extraordinárias (arbitradas pelos magistrados); as infamantes e não-infamantes. Além de outras classificações não menos
importantes, vale destacar que os crimes também eram considerados
leves, graves (atrozes) e gravíssimos (atrocíssimos), e que tinham
maior importância prática, visto que era a qualidade do crime que
determinava a pena a ser aplicada: “Tanto gravior delictum iudicari
debet, quanto gravior poena pro eo imposita reperitur”.22
Mesmo com tais classificações e outras distinções complexas
entre delitos e penas, havia não poucos inconvenientes na administração do Direito Penal do monarca, sendo um deles o dos desacordos
teóricos entre os jurisconsultos para o enquadramento das condutas
em determinadas categorias, pois, conforme a posição social do agente
agressor ou agredido – a conduta praticada, a natureza do crime etc. –,
o julgamento e a aplicação da pena ao condenado tornavam a justiça
21
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan,
2004, p. 109.
22 CALISSE, Carlo. Diritto penale italiano: dal secolo VI al XIX. Firenze: G. Barbèra, 1895, p.
268-9. “In quanto alla procedura, si distinguono, in primo luogo, i reati in ecclesiastici, secolari
e comuni, secondo che il giudice ecclesiastico è competente per essi, o quello secolare, o l’uno e
l’altro insieme” [...] “In quanto alla pena, oltre alla distinzione dei reati in ordinari e straordinari,
secondo che la lor pena è determinata dalla lege, ovvero è rimessa all’árbitrio del giudice; ed oltre
a quella di reati infamanti e senza infamia, secondo che questa ne conseguiva o mancava; si ha
l’altra, che fu tra le distinzioni di maggiore importanza pratica, cioè di reati lievi, gravi od atroci,
gravissimi od atrocissimi. La gravità della pena era il critério per determinare quella del reato:
tanto gravior delictum iudicari debet, quanto gravior poena pro eo imposita reperitur”.
Capítulo 4 |
165
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
criminal obscura e arbitrária. Nessa perspectiva, Carlo Calisse ilustra
o ponto de vista de um famoso jurisconsulto seiscentista, Prospero
Farinacio, que afirmara serem os crimes leves aqueles praticados sem
dolo (não-intencionais ou culposos), enquanto os crimes graves seriam
os premeditados (intencionais ou dolosos). Disto resultava que, mesmo
a mais leve injúria ou pequeno furto praticado com dolo seria considerado crime grave. Ainda, se o dano causado por uma conduta fosse
grandíssimo, também seria gravíssimo o crime; mas isso não era aceito
por todos os jurisconsultos e, ao final das contas, o exame da causa e a
aplicação da pena acabavam restando ao arbítrio do magistrado.23
O marquês de Beccaria, influenciado pelo estudo das obras de
pensadores franceses24, procurou difundir os princípios iluministas
na Itália denunciando e criticando os abusos e as injustiças dos processos criminais em voga, que ainda preservavam as características
do Antigo Regime. Na prática, o tratado Dos delitos e das penas prega
as máximas da filosofia política liberal aplicadas à legislação penal
e, como notam muitos autores contemporâneos, os princípios básicos preconizados por Beccaria não foram totalmente originais, mas
certamente contribuíram para a fixação dos postulados básicos do
Direito Penal Contemporâneo, mormente pela expressão do movimento europeu de reforma do Direito Penal.25
A obra de Beccaria simboliza um saber iluminista-reformista,
com a exigência da fundação de um Direito Penal que prometesse a
23
Ibid., p. 270-1. “Perciò Farinacio tenta altre vie, e incomincia a guardareal reato in sè stesso, per
scoprire la natura. Egli dice che i reati lievi sono quelli commessi senza dolo, cioè per colpa; che
dove il dolo e la premeditazione si mostrano, ivi il reato è grave. Neppur questo è esatto del tutto,
perchè non cesserebbe di essere reato lieve uma piccola ingiuria, um furto assai tenue, quantunque
il doso ci fosse; e perciò Farinacio aggiunge che sono gravi i reati quando tendunt in magnum
damnum vel praeiudicium alterius vel reipublicae: se il danno fosse grandissimo, allora sarebbe
gravissimo il reato. Com ciò si torna all’esame dei fatti e all’arbitrio del giudice [...]”.
24 Carlo Calisse (op. cit., 304-5) destaca parte de uma carta de Beccaria a Morellet, tradutor do
seu livro para o francês: “Io debbo tutto ai libri francesi; essia hanno risvegliato nell’animo mio i
sentimenti di umanità, che erano stati soffocati da otto anni di educazione fanatica.... D’Alembert,
Diderot, Elvezio, Buffon, Hume, nomi insigni, che nessuno ode senza sentirsi commovere, le vostri
immortali opere sono mia lettura continua, ed oggetto delle mie occupazioni nel giorno, delle mie
meditazioni nel silenzio della notte!... Da soli cinque anni data la mia conversione alla filosofia, e
ne vado debitore alla lettura delle lettere persiane. La seconda opera che compì la rivoluzione della
mia mente, è quella di Elvezio. Questo mi spinse con forza irresistibile nel cammino della verità, e
risvegliò pel primo la mia attenzione sull’acciecamento e sui mali dell’umanità. [sic]”.
25 Nesse sentido, consultar: BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Atena,
1959, p. 7-8; ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit., p. 48-52.
166
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segurança jurídica individual através da própria lei, isto é: o princípio
da legalidade no tocante aos delitos e às penas, baseado no princípio
utilitarista de maior felicidade para o maior número de pessoas (contrato social e divisão dos poderes).26 Notadamente, seus pressupostos
filosóficos e ideológicos foram aplaudidos pelo movimento de codificação europeu e, como destaca Vera Regina Pereira de Andrade,
acabaram servindo – as críticas de Beccaria – para a inauguração de
um novo Direito Penal, que não estava pautado em ataques ao Antigo
Regime, mas se caracterizava como produtor de um saber eminentemente construtivo: o Direito Penal positivado, tendo como pano de
fundo o método racionalista e a ideologia liberal.27 Ainda, de maneira
precisa, Paolo Grossi comenta que os escritos do marquês de Beccaria
foram, ao mesmo tempo, contundentes e ingênuos, pois atacaram o
direito comum monopolizado pelos juízes e doutrinadores ao mesmo
tempo em que pregaram um direito “iluministicamente resumido em
um complexo de leis soberanas”.28 Enfim, as verdades axiomáticas
seculares sobre o poder e a “soberania” permaneceram incólumes; foi
notável, entretanto, o questionamento sobre as autoridades que iriam
exercê-los, bem como a reformulação dos mecanismos de definição
dos delitos e de aplicação das penas.
Pode-se verificar na obra Dos delitos e das penas que Beccaria
preconiza a existência de em um Poder soberano (abstrato) regulado
pelas convenções feitas entre homens livres e pelas leis sabiamente
construídas em uma perspectiva racionalista, burguesa e liberal.29
Suas críticas foram construídas contra as paixões, barbáries e irracionalidades dos processos criminais de sua época e, por isso, as
26
27
28
29
Cf. BARATTA, Alessandro. Op. cit., p. 32-3.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit., p. 52-3.
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Op. cit., p. 113.
Nesse sentido, o marquês de Beccaria (op. cit., p. 26-7) afirma: “Abramos a história, veremos
que as leis, que deveriam ser convenções feitas livremente entre homens livres, não foram,
o mais das vêzes, senão o instrumento das paixões da minoria, ou o produto do acaso e
do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana, que tenha
sabido dirigir tôdas as ações da sociedade com êste único fim: todo o bem-estar possível para
a maioria. (...) As verdades filosóficas, por tôda parte divulgadas através da imprensa, revelaram enfim as verdadeiras relações que unem os soberanos aos súditos e os povos entre si.
O comércio animou-se e entre as nações elevou-se uma guerra industrial, a única digna dos
homens sábios e dos povos policiados. Mas se as luzes do nosso século já produziram alguns
resultados, longe estão de ter dissipado todos os preconceitos que tínhamos. Ninguém se
levantou, senão frouxamente contra a barbárie das penas em uso nos nossos tribunais”.
Capítulo 4 |
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O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
denúncias pautavam-se quase que exclusivamente contra os abusos
dos tribunais e a aplicação de penas aflitivas; mas não no que tange
à legitimidade das leis penais declaradas oficialmente por um poder
soberano, pois, segundo sua visão contratualista, as leis foram as
condições de reunião dos indivíduos:
Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar
inimigos por tôda parte, fatigados de uma liberdade que
a incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram
uma parte dela para gozar do resto com mais segurança.
A sôma de tôdas essas porções de liberdade, sacrificadas
assim ao bem geral, formou-se a soberania da nação; e
aquele que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração foi proclamado
o soberano do povo. Não bastava, porém, ter formado
êsse depósito; era preciso protegê-lo contra as usurpações
do homem para o despotismo, que êle procura, sem cessar, não só retirar da massa comum sua porção de liberdade, mas ainda usurpar a dos outros. Eram necessários
meios sensíveis e bastante poderosos para comprimir
êsse espírito despótico, que logo tornou a mergulhar a
sociedade no seu antigo caos. Êsses meios foram as penas
estabelecidas contra os infratores das leis.30
O fundamento da punição, para Beccaria, estava na necessidade
de abalar as paixões dos indivíduos para que fossem adotados princípios estáveis de conduta na sociedade.31 Nessa ótica, o conjunto
das pequenas porções de liberdade cedidas por cada indivíduo –
que seria representado pelo Poder soberano – permitiria o uso de
meios necessários para constranger os homens a ceder parte de sua
liberdade; mas, se o exercício do poder se afastasse dessa finalidade,
então ocorreria o abuso e não a justiça: “É um poder de fato e não
de direito; é uma usurpação e não mais um poder legítimo”.32 De
30
31
BECCARIA, Cesare. Op. cit., p. 32-3.
Ibid., p. 66. “Qual o fim político dos castigos? O terror que imprimem nos corações inclinados ao crime. (...) Um crime já cometido, para o qual já não há remédio, só pode ser punido
pela sociedade política para impedir que outros homens cometam outros semelhantes na
esperança da impunidade”.
32 Ibid., p. 33-4.
168
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Alexandre Ribas de Paulo
qualquer maneira, as penas foram entendidas como necessárias para
a conservação do depósito da salvação pública e, assim, “só as leis
podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não podem residir senão na pessoa do legislador, que representa
toda a sociedade unida por um contrato social”.33 Tal argumentação
filosófica permite a visualização de alguns dos principais alicerces
do Direito Penal Contemporâneo: os princípios da legalidade e da
reserva legal no que tange à definição dos delitos e das penas.
Essa visão legalista a respeito dos delitos e das penas, embora
reverenciada como uma das mais importantes garantias individuais
dos cidadãos perante o Estado, não deixou – e não deixa – de ser um
golpe profundo nas relações intersubjetivas existentes da sociedade,
pois, se uma conduta lesiva somente pode ser entendida como delito
depois de passar por um “batismo legislativo”34 promovido pelo
Poder soberano, toda expectativa de resolução de um conflito entre
pessoas passa a depender das declarações formais do próprio Poder
soberano e de sua disponibilidade estrutural para tutelar as condutas
humanas selecionadas como delitos. Nesse prisma pode-se observar,
com uma melhor nitidez, que o Estado soberano, alhures representado
pelo próprio monarca, jamais poderia – e não pode – cometer um delito contra uma pessoa, mesmo que ocorresse o que Beccaria chamou
de “usurpação”, pois o princípio da legalidade produzido pela Teoria
do Direito garante a própria validade e legitimidade da norma penal,
mesmo que seja em um Estado despótico e iníquo; neste, as normas
penais podem ser “injustas”, mas não “ilegais”. Dessa forma podese perceber que, em se tratando de Direito Penal, a relação jurídica
entre o Estado soberano e o indivíduo é extremamente desvantajosa
para este último, pois somente o Estado pode definir o que é uma
infração penal, selecionar as penas e executar seu próprio discurso
político-penal por intermédio do ius puniendi.
Essa exclusividade estatal de declarar e punir as infrações
penais cometidas pela pessoa humana é evidente na obra de Beccaria, que deixou clara sua idéia de que o delito seria uma relação
entre o soberano e o infrator, sendo que a mediação entre o direito
33
34
Ibid., p. 35.
Feliz observação de Eugenio Raúl Zaffaroni, em sua obra: Em busca das penas perdidas: a
perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 181.
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de punir daquele e a pessoa acusada cabe ao magistrado – agente
estatal –, que deveria apenas aplicar a lei emanada do Poder Legislativo, sem o direito de interpretar as normas, justamente porque o magistrado não seria legislador. Enfim, trata-se da clássica
tripartição dos poderes do Estado:
Com efeito, no caso de um delito, há duas partes: o soberano, que afirma que o contrato social foi violado, e
o acusado, que nega essa violação. É preciso, pois, que
haja entre ambos um terceiro que decida a contestação.
Êsse terceiro é o magistrado, cujas sentenças devem ser
sem apêlo e que deve simplesmente pronunciar se há
um delito ou se não há.35
Para o iluminista italiano, uma questão penal somente poderia
ser resolvida com a inevitável e precisa aplicação da lei, pois, considerando que a “verdadeira medida dos delitos é o dano causado
à sociedade”36, até os delitos de menor importância deveriam ser
punidos. Neste sentido, ele afirmou:
Como os homens não se entregam, a princípio, aos maiores crimes, a maior parte dos que assistem ao suplício de
um celerado, acusado de algum crime monstruoso, não
experimentam nenhum sentimento de terror ao verem
um castigo que jamais imaginam poder merecer. Ao
contrário, a punição pública dos pequenos delitos mais
comuns causar-lhes-á na alma uma impressão salutar
que os afastará de grandes crimes, desviando-os primeiro dos que o são menos.37
Cesare Beccaria não mencionou, em sua obra Dos delitos e das
penas, possíveis métodos comunitários (populares e/ou rústicos) de
resolução de conflitos penais de menor gravidade entre os próprios
envolvidos na infração, como, por exemplo, a transação entre o ofensor e o ofendido. Todavia, ao que tudo indica, isto seria algo contrário
35
36
37
170
BECCARIA, Cesare. Op. cit., p. 37.
Ibid, p. 127.
Ibid., p. 112.
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Alexandre Ribas de Paulo
às suas expectativas, pois a “perspectiva de um castigo moderado,
mas inevitável, causará sempre uma impressão mais forte do que o
vago temor de um suplício terrível (...)”38. Por isso, se o Poder estatal
deixasse de aplicar uma penalidade preconizada por uma lei penal,
isso representaria um estímulo à prática de condutas criminosas,
sobretudo no que concerne ao caráter público do Direito Penal. O
autor italiano ainda criticou as penas pecuniárias pagas aos soberanos
como medidas extintivas da punibilidade, pois os atentados contra a
segurança pública se tornariam objeto de lucro, e fazer dos delitos um
negócio civil e pertinente à matéria do fisco não traria nem proteção e
nem tranqüilidade públicas e também não daria o exemplo inibidor
proporcionado pela aplicação dos castigos inevitáveis.39
Beccaria também não mencionou, em Dos delitos e das penas, a
possibilidade de composição dos danos sofridos pelas vítimas como
uma maneira alternativa de se resolver um conflito penal entre as
pessoas envolvidas no delito. Neste aspecto também se pode notar
que suas idéias tendem a ser contrárias a tal possibilidade, pois
afirmou que todo delito é uma violação ao pacto social e o direito
de punir pertence ao soberano – guardião da ordem pública – e não
ao interesse privado do súdito (ou cidadão). No tocante à renúncia
da pessoa ofendida à aplicação do castigo ao seu agressor, o autor
italiano é categórico ao afirmar que o perdão dessa não deveria interferir na aplicação da lei:
Às vezes, a gente se abstém de punir um delito pouco
importante, quando o ofendido perdoa. É um ato de
benevolência, mas um ato contrário ao bem público.
Um particular pode bem não exigir a reparação do mal
que se lhe fêz; mas o perdão que êle concede não pode
destruir a necessidade do exemplo. O Direito de punir
não pertence a nenhum cidadão em particular; pertence
às leis, que são o órgão da vontade de todos. Um cidadão
ofendido pode renunciar à sua porção dêsse direito, mas
não tem nenhum poder sôbre a dos outros.40
38
39
40
Ibid., p. 113.
Ibid., p. 189.
BECCARIA, Cesare. Op. cit., p. 114.
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171
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
Beccaria também repudiou a idéia da concessão da graça pelo
soberano, pois, apesar de reconhecer que é “a mais bela prerrogativa
do trono”, considera que é, ao mesmo tempo, “uma desaprovação
tácita das leis existentes”.41 Dessa forma, ele firmou a sua opinião de
que todos os delitos devem ser castigados publicamente – nos limites
das leis –, sobretudo os de pequena gravidade, pois “se se deixar
ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo nem
sempre é sua conseqüência necessária, nutre-se nêles a esperança da
impunidade; faz-se com que aceitem os suplícios não como atos de
justiça, mas como atos de violência [sic]”42.
Certamente as idéias iluministas inseridas no campo do Direito Penal trouxeram inúmeras vantagens no que concerne a uma
relativa humanização das penas aplicadas e ao primado da lei como
orientadores da justiça criminal já a partir do século XVIII em muitas
regiões da Europa ocidental. Entretanto, a hegemonia do poder de
punir centralizado nos legisladores e magistrados (órgãos estatais soberanos), a descrição precisa da conduta e a previsão da pena no caso
de violação da própria lei (infração) – um enunciado eminentemente
político –, além de permitir uma centralização absoluta dos poderes
ao Estado – representante ficto de todas as vontades da sociedade –,
tornaram a lei penal o único critério de Justiça criminal, seguindo o
princípio da utilidade social e não visando a tutela dos interesses particulares das pessoas envolvidas no conflito penal, exceto de maneira
secundária. Como comenta Mario Sbriccoli, o Direito e o Processo –
com o advento do Iluminismo – foram redimensionados em uma série
de princípios substitutivos dos valores ético-religiosos que haviam
dominado o Direito Penal por séculos, abrindo o caminho para a
secularização do Direito por meio da laicização, racionalização, utilidade, proporção, ordem, certeza (jurídica), garantia e liberdade do
indivíduo. Mas, junto com essas características, veio a pena pública,
certa, dissuasiva e destinada a emendar o culpado, compreendendo,
assim, “as três principais diretrizes da ideologia do Iluminismo penal
(humanitarismo, utilitarismo, proporcionalismo)”.43
41
42
43
172
Idem.
Ibid., p. 115.
SBRICCOLI, Mario. Giustizia criminale. In: FIORAVANTI, Maurizio (a cura di). Lo stato
moderno in Europa: istituzione e diritto. Roma-Bari: Laterza, 2004, p. 188. “Diritto e processo
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
Antônio Manoel Hespanha, por sua vez, comenta que a construção liberal do Estado foi dominada pelas idéias de unidade da
soberania e do primado da lei, e teve suas primeiras manifestações
nos cultores do ius publicum iluminista, tornando a Justiça, além de
subalterna à atividade do legislador, apenas uma das atividades do
poder do Estado soberano e dirigida a observar as leis: “Se, antes, a
iurisdictio era o pólo para que se orientava todo o governo, agora é este
(com os seus objectivos próprios) que orienta e legitima a justiça”.44
Com a adoção das idéias iluministas no campo do Direito
(Penal) pode-se observar que a Justiça do rei, que durante o Antigo
Regime foi uma instituição destinada à administração do soberano
e à proteção dos interesses da coroa – entre estes a ordem pública
–, com o advento do Estado liberal e a crescente declaração de Direitos, o Poder Judiciário passou a ser, também, o órgão do Estado
responsável pela confirmação dos Direitos declarados (prometidos)
pelo Poder Legislativo. Nessa direção, Paolo Grossi, no intuito de
“desmitificar” o Direito contemporâneo, afirma:
O que o Estado moderno assegura aos cidadãos é somente um complexo de garantias formais: é lei somente
o ato que provém de determinados órgãos (normalmente
o Parlamento) e segundo um procedimento detalhadamente especificado. O problema de seu conteúdo, ou seja,
da justiça da lei, da correspondência ao que a consciência
comum reputa justo, é substancialmente estranho a essa
visão. Obviamente, a justiça permanece como objetivo
do ordenamento jurídico, mas é um objetivo exterior;
os cidadãos podem somente ter a esperança de que os
vengono rigenerati in una griglia di principi emergenti da un’operazione di sostituzione epocale: il
referente etico-religioso, che aveva dominato il penale per secoli, viene ridimensionato per fare luogo
alla prevalenza dei diritto, a laicità e ragione, utilità e proporzione, ordine, certezza e garanzia. (...)
Si avvia di lì il lungo cammino della ‘depeccatizzazione’, o secolarizzazione, del diritto penale sostanziale: l’incriminazione partirá soltanto dalla legge, e le sole figure di reato saranno quelle stabilite
dalla legge. (...) La responsabilità penale sarà personale, e personale sarà la pena, che dovrà essere
pubblica, pronta, certa, proporzionata al delito, ineluttabile se dovuta, afflitiva ma non pervititrice
del reo, dissuasiva per gli altri, di emenda per il colpevole. Essa compendia le ter principali direttrici
dell’ideologia dell’Iluminismo penale (umanitarismo, utilitarismo, proporzionalismo)[...]”.
44 HESPANHA, Antônio Manoel. Justiça e administração entre o antigo regime e a revolução. In: HESPANHA, Antônio Manoel. Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Porto:
Calouste Gulbenkian, 1993, p. 384.
Capítulo 4 |
173
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
produtores de leis – que são, pois, os detentores do poder político – ajustem-se a essa, mas devem de qualquer
modo prestar obediência também à lei injusta.45
Enfim, embora o discurso iluminista sobre os delitos e as penas
tenha sido importante para uma mudança na cultura jurídico-penal
que vigorou durante o Antigo Regime, os discursos sobre os fundamentos do Poder estatal e da soberania lograram êxito em solidificar
uma idéia que vinha sendo lapidada há séculos pelos juristas, isto é:
a fixação da competência exclusiva ao Poder soberano em definir as
condutas humanas que são consideradas lesivas e que são, portanto,
as únicas passíveis de ser tratadas pelo Direito Penal.
4.
O direito penal no Brasil
O Brasil, que desde 1808 havia se tornado um solo seguro para
a família real portuguesa, deveria mudar sua postura de Colônia de
exploração para uma verdadeira Corte nos moldes europeus. Para
tanto foi necessário um ajuste nas normas jurídicas, a fim de tornálas aptas para o ingresso do Brasil em um mundo iluminado pelas
teorias legalistas oriundas da França revolucionária e dos Estados
Unidos da América, independentes desde 1776. Neste capítulo se
verificará como foram implantadas as novas instituições burocráticas no Brasil, reprodutoras do discurso iluminista do século XVIII, e
qual foi a cultura jurídico-penal criada em solo brasileiro no século
XIX, ou seja, um Direito formal nos moldes iluministas, mas produtor uma prática jurídico-penal conservadora dos poderes absolutos
característicos do Antigo Regime europeu ocidental.
4.1. O Direito Penal no Brasil Colônia
Antes da proclamação da Independência, em 1822, o Brasil não
possuía legislação própria positivada e o Direito Penal oficial previsto
para a aplicação de sanções aos delinqüentes no território brasileiro
45
174
GROSSI, Paolo Mitologias jurídicas da modernidade. Op. cit., p. 24.
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
era o Direito português46, em especial as Ordenações Filipinas, que
entraram em vigor na Península Ibérica em 1603.47 Elas continham
as peculiaridades do Direito Penal do Antigo Regime europeu, que
confundiam preceitos morais (vícios) com religião (pecados)48, além
de prever as desigualdades sociais e “desconhecer o princípio da
46
O Direito oficial que deveria ser aplicado no Brasil tinha como fundamento as Ordenações
portuguesas. As primeiras a vigorar foram as “Ordenações Afonsinas” (1446), que tiveram
o mérito de iniciar a fase das codificações modernas na Europa. De fato, foi consumido
mais de meio século para a elaboração da primeira Ordenação em Portugal, sendo as
“Ordenações Afonsinas” resultantes de um vasto trabalho de consolidação de normas
promulgadas desde Afonso II (1211-1223), das resoluções de Afonso IV (1291-1357) e das
concordatas de D. Dinis (1261-1325), D. Pedro (1091) e D. João (1386), com disposições
do direito romano e canônico e da Lei das Sete Partidas, além de usos e costumes já consolidados no Reino. Importante mencionar que as “Ordenações Afonsinas” atenderam
às características políticas da época, uma vez que o direito romano transformou-se em
Direito subsidiário ao Direito nacional português, ou seja, passou a ser aplicado somente
nos casos omissos à legislação dos monarcas. Da mesma forma, o Direito Canônico só seria
invocado nos casos em que se revelassem “pecados”, pois a Igreja e o braço secular estavam em igualdade de jurisdição e se confundiam muitas vezes. Em 1521, as “Ordenações
Afonsinas” foram substituídas pelas “Ordenações Manuelinas”, constituídas pelas leis
extravagantes promulgadas até então e também pelas “Ordenações Afonsinas”. Durante
o reinado de D. Sebastião (1568-1578) surgiu outra reunião de leis suplementares e extravagantes portuguesas, que foi chamada de “Código Sebastiânico” e que passou a vigorar
juntamente com as “Ordenações Manuelinas”. Em 1581 subiu ao trono o rei Felipe II da
Espanha, iniciando o domínio castelhano na administração portuguesa, que durou até a
restauração da independência de Portugal em 1640, por D. João IV. Durante a vigência de
tal domínio entraram em vigor as “Ordenações Filipinas” (1602-1603), que continham a
mesma orientação técnica das Ordenações anteriores, ou seja, sua divisão em cinco livros,
versando sobre as seguintes matérias: Livro I – Direito Administrativo e Organização Judiciária; Livro II – Direitos dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros; Livro
III – Processo Civil; Livro IV – Direito Civil e Direito Comercial; Livro V – Direito Penal
e Processo Penal. Sobre o assunto, consultar: NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de
história do direito. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 116-9; SERRÃO, Joel. Cronologia geral da
história de Portugal. Lisboa: Horizonte, 1980.
47 Cf. CAMARGO, Mônica Ovinski de. O habeas-corpus no Brasil-Império: liberalismo e
escravidão. Seqüência. Florianópolis, ano XXV, n. 49, p. 71-94, dez. de 2004, p. 73.
48 No Livro V das Ordenações Filipinas, o Título I tratava “Dos hereges e Apostatas”. Os dois
primeiros parágrafos prescreviam: “O conhecimento do crime de heresia pertence principalmente
aos Juízes Ecclesiásticos”. “E porque elles não podem fazer as execuções nos condenados no dito
crime, por serem de sangue, quando condenarem alguns hereges, os devem remetter a Nós com as
sentenças que contra elles derem, para os nossos Dezembargadores as verem: aos quaes mandamos,
que as cumpram, punindo os hereges condenados, como por Direito devem” (In: LIVRO V – Das
Ordenações do Reino – Código Filipino. In: PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais
do Brasil: evolução histórica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 97). Também
interessante notar outros títulos do Livro V das Ordenações Filipinas: Título II “Dos que
arrenegão, ou blasfemão de Deos, ou dos Santos”; Título III “Dos Feiticeiros”; Título IV “Dos
que benzem cães, ou bichos sem auctoridade d’El-Rey, ou dos Prelados”; Título V “Dos que fazem
vigílias em Igrejas, ou vódos fóra dellas”; Título XIV “Do infiel, que dorme com alguma Christã,
e do Christão, que dorme com infiel” etc. (Ibid. p. 98-9; 107).
Capítulo 4 |
175
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
personalidade da responsabilidade criminal”49, condicente à individualização da pena, que é uma das principais características do
Direito Penal Contemporâneo. O Direito oficial utilizado no Brasil
Colônia era o imposto pela Metrópole européia50 e, no que diz respeito aos mecanismos populares de resolução de conflitos penais,
deve-se perceber que a grande maioria da população que habitava
o Brasil era de índios, que não utilizavam e tampouco tinham acesso
à jurisdição oficial. Como informa Antônio Carlos Wolkmer:
Vale dizer que o máximo que a justiça estatal admitiu,
desde o período colonial, foi conceber o Direito indígena
como uma experiência costumeira de caráter secundário.
Autores como João Bernardino Gonzaga admitem uma
justiça penal indígena, no tempo do descobrimento,
ainda que seja impossível estabelecer um único direito
criminal, gerado por uma fonte superior em face das
diversidades existentes entre os incontáveis grupos indígenas (inexistência de homogeneidade até mesmo entre
nações nativas maiores, como a dos tupis), tampouco
pode-se reconhecer qualquer influência dessas práticas
penais sobre o Direito dos conquistadores lusitanos.51
49
SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Konfino, 1950. p.
67. O princípio da personalidade no Direito Penal – atualmente previsto no artigo 5o, inciso
XLV da Constituição Federal de 1988 – significa que “nenhuma pena passará da pessoa
do condenado”, contrastando, portanto, com as disposições das Ordenações do Antigo
Regime, que previam recair a infâmia da pena aos descendentes do condenado.
50 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito.
São Paulo: Alfa-Omega, 1994, p. 74-5, ressalta: “Constata-se que em momentos distintos de
sua evolução – Colônia, Império e República – a cultura jurídica nacional foi sempre marcada
pela ampla supremacia do oficialismo estatal sobre as diversas formas de pluralidade de
fontes normativas que já existiam, até mesmo, antes do longo processo de colonização e da
incorporação do Direito da Metrópole. A condição de superioridade de um Direito Estatal que
sempre foi profundamente influenciado pelos princípios e pelas diretrizes do Direito colonizador alienígena – segregador e discricionário com relação à população nativa – revela mais
do que nunca a imposição, as intenções e o comprometimento da estrutura elitista de poder.
Desde o início da colonização, além da marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um Direito nativo e informal, uma ordem normativa gradativamente implementa as
condições e as necessidades essenciais do projeto colonizador dominante. A edificação deste
imaginário jurídico estatal, formalista e dogmático está calcada doutrinariamente, quer no
idealismo jusnaturalista, quer no tecnicismo positivista. Cumpre assinalar, no entanto, que
os traços reais de uma tradição subjacente de pluralismo jurídico podem ser encontrados nas
antigas comunidades socializadas de índios e negros no Brasil colonial”.
51 WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 52-3.
176
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
Isso significa, precisamente, que os métodos de resolução de
conflitos penais entre os índios eram tidos como informais, inferiores
e inoponíveis ao Direito oficial, e por isso marginalizados; representavam, no entanto, a expressão de uma sociedade sem Estado soberano. No que concerne à população dos negros escravizados, esta
fazia parte da propriedade particular dos colonizadores europeus
mantenedores de valores patriarcais52, não possuía personalidade
civil e, portanto, estava sujeita ao poder disciplinar doméstico.53
Enfim, o fato de existir um Direito oficial (europeu) imposto – de
maneira simbólica – à população dominada e marginalizada no Brasil
não significa que não existissem métodos alternativos de resolução
de conflitos intersubjetivos. Nesse sentido, destaca Antônio Carlos
Wolkmer, invocando Jacques Távora Alfonsin: “[...] as práticas jurídicas comunitárias nos antigos ‘quilombos’ de negros e nas ‘reduções’
52
Como explica FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila. O direito e a questão da sexualidade. In:
FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila. O direito e a hipercomplexidade. São Paulo: LTr, 2003, p.
36: “A história do Direito patriarcal é a história da opressão às mulheres”. Entrementes, a
visão do Direito patriarcal é muito mais abrangente: é a história da dominação e opressão
de determinados grupos de pessoas, que marginalizam e controlam outros grupos ideologicamente inferiorizados. Nessa perspectiva pode-se notar que a escravidão dos negros
no Brasil e o impedimento de as mulheres atuarem oficialmente na política brasileira – até
1932 – revelam características do Direito patriarcal instituído na cultura jurídica brasileira. Hodiernamente, o Direito patriarcal se mostra presente no discurso oficial do Estado
através das normas jurídicas, que possuem a pretensão de dirimir relações complexas
existentes na sociedade impondo, cada vez mais, regras que pretendem comandar até as
mais elementares ações diuturnos da pessoa humana. O mesmo autor (p. 41) ressalta: “O
controle das condutas humanas se dá mediante a imposição de um padrão de comportamento. Há uma ciência racional, que tudo quer saber e tudo quer explicar, mediante o
estabelecimento de relações de causalidade. Que tudo quer dominar. (...) Quer-se acabar
com a inflação com a dolarização da economia ou pela substituição da moeda, como se
houvesse a possibilidade de promover o controle da inflação por um simples decreto.
Deseja-se infantilmente controlar a violência da sociedade com a imposição da violência
estatal, do policiamento, de mais medo. (...) Vive-se, desde os primórdios da humanidade,
o direito patriarcal, todo-poderoso, criador da propriedade, do domínio da vida, senhor
da opressão, especialmente dos fracos e marginalizados, a priori seletivamente apontados
como vítimas de perseguição e repressão”.
53 WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. Op. cit., p. 46, comenta: “Se a
contribuição dos indígenas foi relevante para a construção de nossa cultura, o mesmo não
se pode dizer quanto à origem do Direito nacional, pois os nativos não conseguiram impor
seus ‘mores’ e suas leis, participando ‘na humilde condição de objeto do direito real’, ou
seja, objetos de proteção jurídica. Igualmente o negro, ‘para aqui trazido na condição de
escravo, se sua presença é mais visível e assimilável no contexto cultural a que lhes impelia
a imigração forçada a que se viam sujeitos, não lhes permitiu também pudessem competir
com o luso na elaboração do Direito brasileiro’”.
Capítulo 4 |
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O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
indígenas, algumas sob orientação jesuítica, se constituem nas formas
mais remotas de um ‘direito insurgente, eficaz, não-estatal’”.54
O Direito oficial pertinente ao Brasil Colônia visava garantir a
arrecadação tributária55 – pela Metrópole –, a exploração da matériaprima e, no que concerne ao Direito Penal, a previsão de penas cruéis
aos desobedientes, justamente para evitar as ameaças ao Poder do soberano e assegurar súditos dóceis e fiéis56, embora a realidade colonial
revelasse uma incapacidade estrutural de aplicar a legislação real a
todos os casos previstos nas ordenações.57 Algumas dessas características permaneceram durante todo o período colonial e não mudaram
quando por ocasião da Independênciaem 1822 – isto é, manteve-se
um Direito oficial, simbólico, coexistente com as práticas informais de
resolução de conflitos entre parte da população alijada de participação
política, mas submetidas às declarações do Poder soberano.
54
55
56
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico. Op. cit., p. 75.
Cf. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico. Op. cit., p. 76.
O Título VI do Livro V das Ordenações Filipinas trata “Do crime de Lesa Magestade”, que
em seu parágrafo 5 prescrevia o “quinto, se algum fizesse conselho a confederação contra o
Rey e seu Stado, ou tratasse de se levantar contra elle, ou para isso desse ajuda, conselho e
favor”. A estatuição para tal fatispécie era: “E sendo o commettedor convencido por cada
hum delles, será condenado que morra morte natural cruelmente; e todos os seus bens,
que tiver ao tempo da condenação, serão confiscados para a Corôa do Reino, posto que
tenha filhos ou outros alguns descendentes, ou ascendentes, havidos antes, ou depois de
ter commettido, tal maleficio” (LIVRO V – Das Ordenações do Reino – Código Filipino. In:
PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004, p. 100).
57 VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA,
Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América
portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 332-3, ao escrever sobre a História
do Brasil colonial, comenta que: “Um dos primeiros cronistas da colonização brasileira, Pero
de Magalhães Gandavo, escreveu que os índios do litoral brasileiro não tinham as letras ‘F’,
nem ‘L’, nem ‘R’, não possuindo ‘Fé’, nem ‘Lei’, nem ‘Rei’ e vivendo ‘desordenadamente’.
Essa suposição de uma ausência lingüística de ‘ordem’ revela, um tanto avant la lettre, o
ideal de colonização trazido pelas autoridades civis e eclesiásticas portuguesas: superar a
‘desordem’, fazendo obedecer a um Rei, difundindo uma Fé e fixando uma Lei. Um Rei
com interesses temporais (e, portanto, materiais); uma Fé, a da Igreja da Contra-Reforma;
e uma Lei, misto de normas jurídicas fixadas pelo Estado e pela Igreja, e de modelo de
civilização. F, L e R, associados e misturados, pois a Coroa e a Igreja irmanavam-se. Mas F,
L e R enfrentaram muitas resistências na América portuguesa, decerto mais que no Reino,
motivo pelo qual os agentes d’el-rei repetiram constantemente que os povos do Brasil eram
‘bárbaros’, deslocando ou estendendo essa pecha dos indígenas para outros sujeitos históricos e, com isso, legitimando a continuidade da colonização. Línguas, instrução e livros,
nesse quadro, em termos das expectativas metropolitanas, deveriam desenvolver-se sob a
égide de um Rei, uma Fé e uma Lei. Mas, na realidade colonial, sujeitaram-se às concessões
e à ineficácia dos agentes d’el-rei, à confusão do público com o privado, permearam-se pela
sociabilidade comunitária e pela civilidade das aparências vigentes no Antigo Regime.
178
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Alexandre Ribas de Paulo
4.2. A cultura jurídica brasileira e o Código Criminal do
Império
Como visto anteriormente, com a eclosão das idéias iluministas na Europa ocidental iniciaram-se os discursos críticos ao Poder
soberano absoluto e às irracionalidades das leis penais do Antigo
Regime, embora tais discursos fossem apropriados, também, para
uma legitimação exclusiva do Poder soberano como sendo competente
para definição de delitos e estipulação de penas públicas. Ruth Maria
Chittó Gauer, ao escrever sobre a cultura da lei penal no Brasil – em
um contexto histórico anterior ao advento da Independência, em 1822
– comenta que as idéias jusnaturalistas em voga durante o Iluminismo
em Portugal, mormente com a Reforma Pombaliana, influenciaram o
“corpo técnico brasileiro, formado pela Universidade [de Coimbra],
de 1772 a 1820”.58 No tocante à cultura jurídica brasileira estar submetida aos episódios históricos que moldaram a dinâmica legislativa
européia ocidental, Antônio Carlos Wolkmer explica que
Na sua globalidade, a compreensão, quer da cultura
brasileira, quer do próprio Direito, não foi produto da
evolução linear e gradual de uma experiência comunitária como ocorreu com a legislação de outros povos
mais antigos. Na verdade, o processo colonizador, que
representa o projeto da Metrópole, instala e impõe
numa região habitada por populações indígenas toda
uma tradição cultural alienígena e todo um sistema de
legalidade ‘avançada’ sob o ponto de vista do controle
e da efetividade formal. O empreendimento do colonizador lusitano, caracterizando muito mais uma ocupação do que uma conquista, trazia consigo uma cultura
considerada mais evoluída, herdeira de uma tradição
jurídica milenária proveniente do Direito Romano. O
Direito Português, enquanto expressão maior do avanço
legislativo na península ibérica, acabou constituindo-se
na base quase que exclusiva do Direito pátrio.59
58
GAUER, Ruth Maria Chittó. Fundamenta-se um moderno pensamento jurídico brasileiro. In: CANCELLI, Elizabeth (org.). Histórias de violência, crime e lei no Brasil. Brasília:
UNB, 2004, p. 41.
59 WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. Op. cit., p. 45-6.
Capítulo 4 |
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A reprodução da cultura jurídica européia no Brasil, entretanto,
esbarrava na carência e na deficiência de instituições do Estado responsáveis pela concretização dos Direitos declarados em Portugal,
pois o Brasil Colônia possuía, evidentemente, um contexto geográfico,
demográfico e cultural diferente do europeu, que desde a Idade Média
caracterizou-se por um “retorno” aos ideais da civilização clássica
(greco-romana) em um ambiente urbano e fortemente influenciado pela
classe burguesa. Assim, enquanto na Europa ocidental tentava-se consolidar as estruturas estatais burocratizadas – ainda que funcionassem
de maneira simbólica – em prol da centralização do poder político, no
Brasil somente após a transferência da família real da Metrópole para
o Rio de Janeiro, em 1808, é que ocorreu um “enxerto burocrático” de
milhares de funcionários reais (cerca de 15 mil), além da retenção de
escravos no meio urbano – antes destinados à zona agrícola – para
servir a Corte.60 Raymundo Faoro comenta o desafio das elites burocráticas portuguesas no Brasil em tal contexto histórico:
A corte está diante de sua maior tarefa, dentro da fluida
realidade americana: criar um Estado e suscitar as bases
econômicas da nação. Sob o império e sua estrutura secular, amoldada ao sistema absoluto de governo, lançará
sobre a colônia uma pesada túnica, fio a fio costurada,
capaz de disciplinar a seiva espontânea, mantido o divórcio entre a camada dominante e a nação dominada
tímida, relutantemente submissa.61
Diante de tal projeto de modificação de uma cultura colonial
para uma verdadeira nação modernizada, Mozart Linhares da Silva
comenta que os burocratas brasileiros, além de reconhecer a cultura
européia como mais evoluída, tentaram buscar os elevados graus de
civilização através da
(...) construção de códigos e diplomas legislativos que
se ancorassem na modernidade. Em outras palavras, as
idéias não estão fora do lugar, elas encontram-se no lugar
60
61
180
Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe. Op. cit., p. 12-4.
FAORO, Raimundo. Op. cit., p. 287.
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
da universalidade, buscando promover, pela coerção,
no caso jurídico, a aceleração do processo civilizador.
Reproduz-se, assim, a idéia de devir no campo jurídico.
Claro está que essa mentalidade de caráter homogeneizador se encontra sempre em conflito com a diferença. A
‘realidade histórica’ está sempre em perspectiva em relação à cultura jurídica. Procura-se a mudança do comportamento a partir da feitura de legislações extremamente
modernas. Daí a interpretação das idéias fora do lugar.
Ao mesmo tempo que se procura renegar a tradição, ela
acaba por compor a própria idéia de modernidade.62
A cultura jurídica (oficial) implantada no Brasil foi desenvolvida em ambiente europeu ocidental, inicialmente por imposição do
Reino português e posteriormente pelo reconhecimento dos administradores do Estado brasileiro de que a Europa possuía uma cultura
jurídica mais civilizada e evoluída. Comprovação disso está no fato
de que, mesmo após a proclamação da Independência do Brasil em
relação aos comandos políticos dos portugueses, o Direito Penal
oficial brasileiro ainda foi, durante anos, o Direito Penal português.
Nesse sentido, Galdino Siqueira explica:
Proclamada a independência nacional, o Brasil continuou
a reger-se pelas leis e mais atos da metrópole portuguêsa,
isto mandou observar a Assembléia Constituinte, pela
lei de 20 de outubro de 1823, art. 1, enquanto não se
organizassem novos códigos ou não fôssem revogados
aquêles atos legislativos. Assim, ao que toca ao direito
penal, continuaram a vigorar as Ordenações Filipinas,
cujo livro V se ocupa, especialmente, em seus 143 títulos,
dos crimes, das penas e do processo penal.63
Realmente, a lei de 20 de outubro de 1823, de maneira simples,
contornou o problema de carência de normas jurídicas próprias para o
62
SILVA, Mozart Linhares da. O código criminal de 1830 e as idéias que não estão fora do
lugar. In: CANCELLI, Elizabeth (org.). Histórias de violência, crime e lei no Brasil. Brasília:
UNB, 2004, p. 99.
63 Op. cit., p. 67.
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Brasil independente e de fato foi muito mais útil para a garantia do exercício do poder soberano pelo imperador D. Pedro I do que a previsão de
mecanismos úteis para a administração da Justiça. Tal lei prescrevia:
D. Pedro I, por Graça de Deus e Unanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Perpetuo Defensor do Brazil
a todos os nossos Fieis Súbditos Saúde. A Assembléia Geral
Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil tem Decretado
o seguinte. A Assembléia Geral Constituinte e Legislativa
do império do Brazil Decreta. Art. 1.º As Ordenações, Leis,
Regimentos, Alvarás, Decretos, e Resoluções promulgadas
pelos Reis de Portugal, e pelas quaes o Brazil se governava até
o dia 25 de Abril de 1821, em que Sua Magestade Fidelíssima,
actual Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou desta Corte, e
todas as que foram promulgadas daquella data em diante pelo
Senhor D. Pedro de Alcântara, como Regente do Brazil, em
quanto Reino, e como Imperador Constitucional delle, desde
que se erigiu em Imperio, ficam em inteiro vigor na parte, em
que não tiverem sido revogadas, para por ellas se regularem os
negocios do interior deste Imperio, emquanto se não organizar
um novo Codigo, ou não forem especialmente alteradas.
Art. 2.º Todos os Decretos publicados pelas Côrtes de Portugal, que vão especificados na Tabella junta, ficam igualmente
valiosos, emquanto não forem expressamente revogados.
Paço da Assembléia em 27 de Setembro de 1823.
Mandamos portanto a todas as Autoridades Civis, Militares e
Ecclesiasticas, que cumpram, e façam cumprir o referido Decreto em todas as suas partes, e ao Chanceller-mór do Imperio
que o faça publicar na Chancellaria, a que tocar, remettendo os
exemplares delle a todos os logares a que se costumam remeter,
e ficando o original ahi, até que se estabeleça o Archivo Público,
para onde devem ser remettidos taes diplomas.
Dada no Palacio do rio de Janeiro aos 20 dias do mez de Outubro de 1823, 2o da Independencia e do Império.
Imperador com Guarda.64
64
182
BRASIL. Lei de 20 de outubro de 1823. Declara em vigor a legislação pela qual se regia o
Brazil até 25 de Abril de 1821 e bem assim as leis promulgadas pelo Senhor D. Pedro, como
Regente e Imperador daquella data em diante, e os decretos das Cortes Portuguesas que são
especificados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/
colecoes/Legislacao/Legimp-F_82.pdf.> Acesso em 08 de maio de 2008, p. 07-8.
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
O Direito Penal das Ordenações Filipinas, todavia, já havia sido,
na prática jurisdicional, modificado pelos fundamentos do jusnaturalismo racionalista implantados nos cursos jurídicos portugueses
desde a Reforma Pombaliana, mormente com o advento da Lei da
Boa Razão (1769), que fixou a doutrina sobre a interpretação das leis,
determinou em que casos poderia proferir assento com valor normativo, limitou o abuso e atribuiu valor aos assentos de outros tribunais
superiores”.65 Curioso observar que as leis penais oficialmente declaradas como válidas – as Ordenações – eram, em sua grande maioria,
inaplicáveis e inclusive já haviam sido modificadas através de uma
norma de interpretação: a Lei da Boa Razão. Isso demonstra que o
próprio Estado soberano reconheceu o papel simbólico de suas normas
penais e, mesmo assim, manteve o Direito (Penal) tradicionalmente
declarado – Ordenações Filipinas – como fonte legitimadora de suas
próprias instituições; na prática, todavia, as normas procedimentais
flexibilizaram a aplicação das penas nos casos concretos. Nessa perspectiva, quando o Brasil se tornou independente de Portugal, eram as
jurisprudências dos tribunais que orientavam a aplicação do Direito
Penal oficial, e não as disposições das Ordenações Filipinas.66
65
GAUER, Ruth Maria Chittó. Op. cit., p. 53. A mesma autora (Ibid., p. 54) comenta:
“O Direito Pátrio e a História do Direito português foram orientados no sentido de
preparar os estudantes para compreender as leis e executá-las”. Dessa forma pode-se
vislumbrar um fenômeno importante, pois, ao mesmo tempo em que a “razão” passou
a orientar a aplicação do Direito oficial, com o desenvolvimento dos códigos modernos,
a “razão” passou a ser somente o que estava prescrito em lei; e, como o Estado passou a
ser essa “razão” declarada oficialmente em uma norma jurídica, os técnicos do Direito
já estavam previamente orientados pelas faculdades de Direito de Portugal a observar
estritamente o prescrito em lei, pois esta já seria a própria “razão”. Ainda, Mozart Linhares da Silva (op. cit., p. 88-9) explica: “Consubstanciada pelo pensamento de Verney,
surge, em 1769, a Lei da Boa razão, que não apenas moderniza a prática jurídica, como
também introduz o pensamento iluminista racionalista na política portuguesa, reflexo
do que estava acontecendo na Europa como um todo. A Lei da Boa Razão reformula
os princípios basilares de toda a jurisprudência, reafirma o Direito Natural e o das
gentes, reserva um lugar subsidiário ao Direito romano por meio do usus modernus e
sobrevaloriza o Direito pátrio. Em linhas gerais, a lei procura sobrevalorizar o Direito
pátrio e o das nações cristãs mais elevadas; a fonte maior do Direito situa-se agora na
razão e no Direito Natural, contornando, assim, as fontes subsidiárias polifônicas do
Direito comum e dos comentadores do Direito Romano. O Direito Consuetudinário,
ou o costume, passa a ser delimitado pela lei, tendo validade se obedecer aos seguintes
critérios: 1) ser conforme a Boa Razão, entendida como as verdades imutáveis do Direito
Natural; 2) não ser contrário às leis pátrias; 3) o costume ter mais de cem anos. A Lei da
Boa Razão ainda limita o Direito Canônico aos tribunais eclesiásticos, deixando, assim,
de ser fonte subsidiária do Direito Civil e proíbe o recurso a opinio communis”.
66 Nesse sentido, consultar: SIQUEIRA, Galdino. Op. cit., p. 68.
Capítulo 4 |
183
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
A influência iluminista e o movimento codificador europeu
podem ser percebidos no Direito Penal oficial brasileiro a partir da
primeira Constituição do Brasil, outorgada por D. Pedro I em 25 de
março de 1824, a qual, em seu artigo 179, no XVIII, instituía: “Organizar-se-ha quanto antes um Código Civil, e Criminal, fundado nas bases
solidas da Justiça e Equidade”.67 Incorporadas pelo Império brasileiro,
essas orientações constitucionais espelhavam as transformações que
ocorriam no sistema penal europeu (ocidental), porquanto, com a
perspectiva de estruturação do Estado brasileiro nos moldes europeus
e norte-americanos, os crimes já não podiam ser considerados uma
falta moral ou religiosa, mas deveriam ser, precisamente, a violação
à lei do Estado (infração penal), que necessitava de tecnologias de
disciplina mais eficazes contra os que desafiavam as ordens legais e
não se submetiam à administração do Estado. Como explica Michel
Foucault, ao mencionar as teorias de Beccaria, Bentham e Brissot:
“Para que haja infração é preciso haver um poder político, uma lei e
que essa lei tenha sido efetivamente formulada. Antes da lei existir,
não pode haver infração”.68
O princípio da legalidade – embora limitador do poder do soberano –, não significa apenas a importância que o Estado demonstra
em resolver os conflitos intersubjetivos oriundos da sociedade, mas
também um expediente discursivo capaz de legitimar o próprio
Estado como legislador e único repressor de condutas tidas como
criminosas, além de monopolizar e legalizar os métodos punitivos – mesmo os aflitivos, como a prisão, açoites, degredo, pena de
morte etc. – por intermédio de seu próprio discurso. Como o Brasil
imperial possuía um soberano, D. Pedro I, e ele tinha necessidade
67
BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível em
<http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/LegimpG_5.pdf> Acesso em 08 de maio de 2008. Cumpre destacar a crítica de Walter Vieira do
Nascimento (op. cit., p. 137) que, ao comentar tal dispositivo constitucional, explica: “É de
ver que o dispositivo em tela já denunciava ser tecnicamente falho, ao determinar, em estranha simbiose, um Código Civil e Criminal. Não poderia, pois, ir adiante, como realmente
não o foi, tão disparatado erro de técnica legislativa. No que se refere especificamente a
um Código Civil, o previsto naquela Constituição só se cumpriu em 1916. Quanto a um
Código Criminal, iniciada sua elaboração em 1827, foi a mesma concluída e transformada
em lei em 1830, passando o novo estatuto a vigorar no mesmo ano. Mas não foi corrigido
o erro original de se denominar, como assinala Agenor Ribeiro, ‘criminal um código que
não trata dos crimes senão das penas, e que não cuidou dos aspectos processuais’”.
68 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2005, p. 80.
184
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
de manter um poder político legítimo para proteger os interesses da
Coroa e da Corte, tornou-se oportuna a elaboração de um Código
Criminal mais eficiente contra seus opositores.69 Nesse sentido,
Mônica Ovinski de Camargo comenta:
Os políticos brasileiros do pós-independência tiveram
como preocupação primeira a elaboração de toda legislação criminal em solo pátrio. Isto se deu por dois
motivos: primeiro porque as Ordenações Filipinas,
além de completamente obsoletas e incompatíveis com
o espírito político da época, tinham sido revogadas em
parte pela vigência da Constituição elaborada em 1824.
Isto provocou uma convulsão no sistema penal, que se
mostrou mais caótico do que já era. Urgia expedir uma
nova codificação material e processual, que viesse a colocar ordem no sistema jurídico vigente, exterminando
com os anacronismos na área penal. O segundo motivo
estava na necessidade premente de instrumentalizar o
aparato punitivo do Estado, de modo a servir as elites
dominantes, tutelando bens jurídicos essenciais para a
manutenção e proteção de seus direitos.70
Foram apresentados dois projetos de Código Criminal ao Parlamento do Império do Brasil: um de autoria do deputado Bernardo
Pereira de Vasconcelos e outro do deputado Clemente Pereira.71 O
imaginário da elite brasileira sobre as luzes do século pode ser observado nas palavras do Visconde de Congonhas, que assim se manifestou
quando o texto do projeto de Código Criminal do deputado Vasconcelos foi aprovado pelo Senado, no dia 28 de novembro de 1830:
69
No Código Criminal, no Título IV (Dos crimes contra a segurança interna do imperio, e publica
tranquilidade) da Parte II (Dos crimes públicos), estavam tipificados os seguintes delitos:
Conspiração (artigos 107 a 109); Rebelião (artigo 110); Sedição (artigos 111 e 112); Insurreição
(artigos 113 a 115); Resistencia (artigos 116 a 119); Tirada ou fugida de presos do poder da Justiça
e arrombamento de cadêas (artigos 121 a 127) e Desobediência ás Autoridades (artigo 128). In:
PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004, p. 248-50.
70 Op. cit., p. 86.
71 Sobre o assunto, consultar: PIERANGELI, José Henrique. Op. cit., p. 65-8.
Capítulo 4 |
185
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
Não posso deixar de me conformar com o parecer da
comissão de que se aprove o novo Código tal como
se acha organizado. O Brasil, havendo-se constituído
independente, havendo-se estabelecido Império, e proclamado o seu Governo Constitucional, reclama a reforma da sua Legislação Criminal; pois que a existente no
Livro 5.º das Ordenações é bárbara, e está em manifesta
contradição com as luzes do século em que vivemos. As
idéias lustradas de hoje não consentem penas atrozes e
cruéis tormentos para extorquir confissões; multas pecuniárias para locupletar o Fisco; provas semi-plenas, e
indícios reputados plenos como perfeitas provas para a
imposição de penas nos chamados privilegiados; já não
permitem o uso dos asilos, e o privilégio dos foros para
isentar os malvados da justa pena e proteger a impunidade. Semelhantes erros, semelhantes vícios próprios do
tempo, em que trabalham os antigos legisladores, já não
podem ter lugar hoje; as Leis devem ser acomodadas aos
costumes e ao gênio daqueles para quem se fazem; e é
por isso que a nossa Constituição mui expressamente nos
determina, no art. 151, que organizemos novos Códigos,
tanto Civil como Criminal. Este que ora se apresenta está
conforme às luzes do século; está em perfeita harmonia
com a Constituição. Louvores sejam dados ao seu autor,
e aos dignos colaboradores que o coadjuvaram.72
Mozart Linhares da Silva comenta que o “Código de 1830, fruto
do movimento codificador e de inspiração jusnaturalista moderna,
procurou evidenciar as garantias individuais, seguindo, para tanto,
as proposições da Constituição de 1824, no seu artigo 179, assim
como racionalizou a relação entre crimes e as penas”.73 Evidência
disso foi a influência da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão da Revolução Francesa de 1789, que em seu artigo 8o estabelecia o princípio da legalidade, tendo sido tal princípio sacralizado
na Constituição Imperial de 1824, especificamente no artigo 179, no
72
In: RODRIGUES, José Honório; RODRIGUES, Leda Boechat (org.). O parlamento e a evolução nacional. Vol. 2. A construção legislativa. 1826-1840. Tomo II – Seleção de Textos
Parlamentares. Brasília: Senado Federal, 1972, p. 341-2.
73 Op. cit., p. 95.
186
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Alexandre Ribas de Paulo
I, que instituía: “Nenhum Cidadão póde ser obrigado a fazer, ou deixar de
fazer alguma cousa, senão em virtude da Lei”.74
A fórmula clássica do princípio da legalidade (e da reserva
legal) no âmbito penal – nullum crimem, nulla poena sine lege – foi preconizada nos artigos 1o; 2o, § 1o; e 33 do Código Criminal de 1830:
Art. 1.º - Não haverá crime, ou delicto (palavras synonimas
neste Código) sem uma lei anterior, que o qualifique.
Art. 2.º - Julgar-se-ha crime ou delicto:
1.º - Toda acção ou omissão voluntaria contraria às leis
penaes.
(...)
Art. 33. Nenhum crime será punido com penas, que não
estejam estabelecidas nas Leis, nem mais nem menos daquellas, que estiverem decretadas para punir o crime no gráo
maximo, médio, ou minimo, salvo o caso em que aos Juizes
se permitir arbítrio.75
Institucionalizou-se, assim, a idéia iluminista de que apenas o
Estado é que pode definir o que é crime e que não há crime sem lei
anterior que o defina, embora existisse a ressalva de que determinadas penas ficavam ao arbítrio do juiz. Ainda, diante da disposição
do artigo 179, inciso II, da Constituição do Império – “Nenhuma Lei
será estabelecida sem utilidade publica”76 – ficou formalmente declarado que toda lei penal é fundamentada na utilidade e no interesse
públicos e que somente o Estado poderia definir a infração penal e
aplicar a punição correspondente ao infrator. Fixou-se, então, o que
é designado de ius puniendi, ou seja, o Direito (subjetivo) de punir
do Estado, entendido como o “monopólio da coação física”, e que
todo o crime, já que advindo das leis do Estado, é uma questão indiscutivelmente de ordem pública, pertinente a toda a sociedade e
74
BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível
em <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/
Legimp-G_7.pdf> Acesso em 08 de maio de 2008.
75 CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO DO BRASIL. In: Op. cit., p. 237 e 241.
76 BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível
em <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/
Legimp-G_7.pdf> Acesso em 13 de janeiro de 2006, p. 32
Capítulo 4 |
187
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
não apenas ao ofendido e/ou a seus representantes.77 Esse mito, que
reduz a autonomia das pessoas em resolver um conflito enquanto
potencializa o poder estatal em definir as infrações penais, enfim,
declarou que a Lei do Estado brasileiro estava fundamentada no
interesse público e visava estabelecer um governo centralizado e
estruturado no monismo jurídico.78
Como a elite burocrática de juristas brasileiros, desde antes
da Independência, foi composta ideologicamente com a tarefa
específica de atender ao Direito oficial do Estado – isto é, de cumprir respeitosamente as normas jurídicas declaradas formalmente
pelo Estado soberano, representante legal do interesse público –,
restou que os bacharéis em Direito, oriundos das camadas sociais
mais elevadas e doutrinados pelas academias oficiais do próprio
Império para conhecer e aplicar o Direito positivado, naturalmente
marginalizavam os métodos de resolução de conflitos comunitários
de grande parte da população brasileira do século XIX, uma vez
que, sendo a Lei do Estado a representante declarada do “interesse
público”, as práticas consuetudinárias de resolução de conflitos
intersubjetivos acabavam por esbarrar, especialmente, no princípio
da legalidade, que é um dos pilares da doutrina jurídica contemporânea.79 Ressalte-se ainda que os índios eram vistos como “hor77
O artigo 67 do Código Criminal assim prescrevia: “O perdão do offendido antes ou depois da
sentença, não eximirá das penas em que tiverem ou possão ter incorrido os réos de crimes públicos
ou dos particulares em que tiver lugar a accusação por parte da justiça” (op. cit., p. 243).
78 Como ensina Antônio Carlos Wolkmer (Pluralismo jurídico. Op. cit., p. 40-1): “(...) a íntima
conexão entre a suprema racionalização do poder soberano e a positividade formal do Direito conduz à coesa e predominante doutrina do monismo. Tal concepção atribui ao Estado
Moderno, o monopólio exclusivo da produção das normas jurídicas, ou seja, o Estado como
único agente legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas de relações
sociais que se vão impondo. Essa asserção indica que, na dinâmica histórica, o ‘princípio
da estatalidade do Direito desenvolveu-se concomitantemente com a doutrina política da
soberania, elevada esta à condição de característica essencial do Estado. Com efeito, o Estado
moderno define-se em função de sua competência de produzir o Direito e a ele submeter-se,
ao mesmo tempo em que submete as ordens normativas setoriais da vida social’”.
79 No tocante à produção legislativa brasileira, Antônio Carlos Wolkmer (História do direito
no Brasil. Op. cit., p. 07) comenta que a cultura jurídica no Brasil, desde a independência,
reproduzia uma “tradição legal profundamente comprometida com a formação social elitista, agrário-mercantil, antidemocrática e formalista”. Tais características, além de manter
o modelo legislativo europeu, não refletiam o Direito praticado nos redutos indígenas e nos
quilombos – ambientes marginalizados –, mas demonstram que a transposição do Direito
europeu ocidental para o sistema colonial brasileiro, mais do que obstruir a incorporação
de práticas nativas consuetudinárias (comunitárias), acabou resultando “na imposição de
188
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
das de selvagens” e os negros eram escravos – isto é, eram “raças
vencidas”80 e que, portanto, pouco contribuíram para a formação
de uma cultura jurídica propriamente brasileira.
Nota-se, nessa perspectiva, que o Brasil Império reproduziu
em seu ordenamento jurídico a cultura penal européia ocidental e
estabeleceu os princípios liberais de proteção ao indivíduo (cidadão),
limitando e racionalizando a aplicação do Direito Penal. Isto não
ocorreu, no entanto, apenas para evitar a arbitrariedade e os abusos
dos agentes do Estado contra a pessoa humana – discurso iluminista
europeu –, mas também porque havia interesse em manter o controle
do Estado na administração do Brasil através das idéias civilizadas
e mais sofisticadas em voga na Europa.
Com a ordem constitucional nos moldes iluministas, a elite
brasileira – dirigente do Estado no século XIX – preservou seu individualismo político e privilégios concedidos pela Coroa portuguesa,
mantendo a velha estrutura oligárquica conservadora e patriarcal
responsável pela exploração econômica agroexportadora e dependente da economia internacional, isto através de uma Constituição
considerada formalmente liberal, mas que concedia todos os poderes
administrativos para o Imperador por intermédio do Poder Moderador. O Título 5o da Constituição de 1824, denominado Do Imperador,
em seu Capítulo I – Do Poder Moderador, assim instituía:
um certo tipo de cultura jurídica que reproduziria a estranha e contraditória convivência
de procedimentos burocrático-patrimonialistas com a retórica do formalismo liberal e
individualista”. O mesmo autor (Ibid., p. 79-80), ao explicar as contradições entre o ideal
do liberalismo europeu e a organização o Estado brasileiro no século XIX, afirma que o
“liberalismo brasileiro deve ser visto igualmente por seu profundo traço ‘juridicista’”.
Isso porque o formalismo legalista implantado pelo Império brasileiro moldou o perfil da
nossa cultura jurídica, representada pela Dogmática Jurídica preconizada e reproduzida
pelos aplicadores do Direito oficial, especialmente com a criação de cursos jurídicos em
território brasileiro em 1827 – São Paulo e Recife –, que serviram para a constituição de
uma camada burocrático-administrativa que deveria assumir a gerência do Brasil, isto é,
atender aos interesses do Estado – representado pelo autoritarismo despótico de D. Pedro
I – e não às necessidades da população brasileira em prol da composição de seus conflitos
por intermédio de uma instância oficial, ou, ao menos, pelo reconhecimento dos métodos
informais de resolução de conflitos penais através do consenso entre as pessoas.
80 Nesse sentido, verificar a designação atribuída aos índios por Clóvis Beviláqua, em artigo
de 1896 intitulado: “Instituições e costumes jurídicos dos indigenas brazileiros ao tempo
da conquista”. In: SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de (org.). Textos clássicos sobre
o direito e os povos indígenas. Curitiba: Juruá, 1992, p. 77-92.
Capítulo 4 |
189
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação
Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe
Supremo da Nação, seu Primeiro Representante, para que
incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia,
equilibrio, e hamonia dos mais Poderes Politicos.
Art. 99. A pessoa do Imperador é inviolável, e sagrada: Elle
não está sujeito a responsabilidade alguma.
Art. 100. Os seus Títulos são ‘Imperador Constitucional, e
Defensor Perpetuo do Brazil’ e tem o Tratamento de Magestade Imperial.
Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador
(...)
VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154;
VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas aos Réos
condemnados por Sentença;
IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado.81
O Código Criminal82, por sua vez, dava o alicerce penal para
o Poder Moderador, visto que o Título II da Parte II (Dos Crimes
Públicos) instituía:
Art. 95. Oppôr-se alguem directamente e por factos ao livre
exercicio dos Poderes Moderador, Executivo e Judiciário, no
que é de suas attribuições constitucionaes.
Penas – de prisão com trabalho por quatro a dezeseis annos.83
81
BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível
em <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/
Legimp-G_5.pdf> Acesso em 08 de maio de 2008.
82 A estrutura do Código Criminal do Império do Brasil se apresentava da seguinte forma:
Parte I (Dos Crimes e das Penas), sendo o Título I “Dos Crimes” e o Título II “Das Penas”; Parte
II (Dos Crimes Publicos), sendo o Título I “Dos crimes contra a existencia politica do Imperio”,
Título II “Dos crimes contra o livre exercicio dos poderes politicos”, Título III “Dos crimes contra o
livre gozo e exercicio dos direitos politicos dos cidadãos”, Título IV “Dos crimes contra a segurança
interna do Imperio e publica tranquillidade”, Título V “Dos crimes contra a boa ordem e administração publica”, Título VI “Dos crimes contra o thesouro publico e propriedade publica”; Parte III
(Dos crimes particulares), sendo o Título I “Dos crimes contra a liberdade individual”, Título II
“Dos crimes contra a segurança individual”, Título III “Dos crimes contra a propriedade”, Título
IV “Dos crimes contra a pessoa, e contra a propriedade”; e a Parte IV (Dos crimes policiaes).
83 Op. cit., p. 247.
190
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
Ainda, o Capítulo III do Código Criminal (Dos crimes contra
o chefe de Governo), do Título I (Dos crimes contra a existência política
do Império) da Parte II (Dos Crimes Públicos), previa crimes contra a
pessoa do Imperador:
Art. 87. Tentar directamente e por factos desthronizar o
Imperador, prival-o em todo ou em parte da sua autoridade
constitucional, ou alterar a ordem legitima da successão.
Penas – de prisão com trabalho por cinco a quinze annos.
Se o crime se consummar:
Penas – de prisão perpetua com trabalho no gráo maximo;
prisão com trabalho por vinte annos no médio, e por dez annos
no minimo.84
Diante disso, verifica-se que as normas positivadas na Constituição Imperial e no Código Criminal certamente deveriam atender às
classes dominantes, que mostravam – discursivamente – uma índole
humanista, individualista e racional no moldes europeus, mas ao mesmo tempo lograram êxito em manter seus privilégios patrimoniais em
um regime de produção escravocrata85, alijando as massas populares
da participação nas decisões políticas no Brasil Império e destinandolhes as penas públicas oriundas do Direito Penal “racionalmente elaborado”. Eis um traço marcante do ilusionismo jurídico brasileiro.
4.3. O Período Regencial e o Código de Processo Criminal
do Império
O contexto político brasileiro durante a década de 1820 foi marcado pela relativa incapacidade do imperador D. Pedro I em administrar
o Brasil unido em um governo centralizado. Além disso, os desentendimentos entre as facções políticas brasileiras e portuguesas em luta pelo
poder eclodiram em inúmeras revoltas locais, superadas com muita
violência contra os opositores do Imperador e, principalmente, contra
84
85
Ibid., p. 246.
O artigo 60 do Código Criminal instituía: “Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena que não seja a
capital ou de galés, será condemnado na de açoutes, e, depois de os soffrer, será entregue a seu senhor,
que se obrigará a trazêl-o com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar. O número de açoutes
será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta (Ibid., p. 243).
Capítulo 4 |
191
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
a população brasileira. Em 1831, D. Pedro I abdicou ao trono, que só
foi preenchido praticamente uma década depois, em 1840.86
Durante esse interregno eclodiram inúmeras revoltas armadas
no Brasil – Cabanagem (Grão-Pará), Balaiada (Maranhão e Piauí),
Sabinada (Bahia) e Guerra dos Farrapos (Rio Grande do Sul e Santa
Catarina) –, todas reprimidas com violência pelas forças governamentais e acordos de privilégios para as oligarquias regionais. No jogo
político entraram em cena “três facções partidárias que disputavam
entre si a supremacia do poder: o Partido Restaurador, o Liberal Moderado e o Liberal Exaltado”.87 O primeiro – também denominado de
Caramuru – era representado pelos remanescentes do Partido Português; o segundo, pela aristocracia rural; e o terceiro, principalmente
por representantes liberais das camadas urbanas do Império. Entre
1831 e 1835 foram os liberais moderados que assumiram o poder no
Brasil, compondo a chamada Regência Trina Permanente.88 Iniciaram-se, assim, as reformas na legislação brasileira e uma delas foi a
promulgação, em novembro de 1832, do “Código de Processo Criminal
de primeira instância com disposição provisória acerca da administração da
justiça civil”89, que concedia certa autonomia judiciária às regiões.90
Como explica Antônio Carlos Wolkmer:
A reforma liberal do sistema judicial no período posterior à Independência se completa com o Código de
Processo Criminal. Elaborado por uma comissão con-
86
87
88
89
90
192
As turbulências políticas na época eram tantas que o Imperador colocou-se à frente de
todas as disputas oriundas da Assembléia Legislativa e outorgou a Constituição de 1824
– apoiado diretamente pelo Partido Português, que tinha interesse na recolonização brasileira – para manter um governo absolutista através do Poder Moderador. Em abril de
1831, D. Pedro I abdicou ao trono brasileiro em favor de seu filho D. Pedro de Alcântara,
que contava cinco anos de idade, iniciando-se, assim, o chamado “Período Regencial”, que
durou até 1840. Nesse sentido, consultar: SILVA, Francisco de Assis. Op. cit., p. 124-146.
Ibid., p. 142.
Cf. Ibid., p. 143.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido
Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 106.
Como assevera FAORO, Raymundo (op. cit., p. 351): “Duas medidas consagraram a autonomia local, medidas arrancadas à reação e partejadas com dor: o Código de Processo Penal
(29 de novembro de 1832) e o Ato Adicional (12 de agosto de 1834). O Código de Processo
Penal, a mais avançada obra liberal e a mais duramente criticada nos dez anos seguintes,
deu fisionomia nova aos municípios, habilitando-os a exercer, por si mesmos, atribuições
judiciárias e policiais, num renascimento do sistema morto desde o fim do século XVII”.
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
junta da Câmara e do Senado, apareceu, logo no ano
seguinte, o código de Processo Criminal que, aprovado
em 1832, veio atestar nossa autonomia no âmbito do
controle, ao mesmo tempo que reforçava as instituições
liberais existentes, como o juiz de paz. Esses juízes
de paz eleitos, que tinham atribuições policiais e criminais, possuíam igualmente ‘poderes para atuar na
formação da culpa dos acusados, antes do julgamento,
e também de julgar certas infrações menores, dando
termos de bem viver aos vadios, mendigos, bêbados
por vício, meretrizes escandalosas e baderneiros. Além
desses crimes, as demais infrações deveriam ser julgadas pelos juízes criminais. As infrações da alçada dos
juízes de paz eram chamadas de crimes de polícia.’ O
Código combinava práticas processualísticas derivadas do sistema inglês e do francês, o que representava,
uma vez mais, a vitória do espírito liberal e a supressão
do ritual inquisitório filipino.91
Pelo Código de Processo Criminal de 1832, os Juízes de Paz,
eleitos localmente92, passaram a ter jurisdição penal sobre delitos de
menor gravidade, absorvendo, portanto, todas as questões oriundas
em sua área de competência para aplicação de determinadas sanções
91
92
WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. Op. cit., p. 87.
O Artigo 162 da Constituição Imperial instituía: “Art. 162. Para este fim haverá Juizes de
Paz, os quaes serão electivos pelo mesmo tempo, e maneira, por que se elegem os Vereadores das
Câmaras. Suas attribuições, e Disctrictos serão regulados por Lei”. In: BRASIL. Constituição
Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível em <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-G_7.pdf> Acesso
em 08 de maio de 2008. Os Artigos 9o, 10 e 11 do Código de Processo Criminal também
dispunham sobre o Juiz de Paz no Império: “Art. 9.º A nomeação, ou eleição dos Juizes de
Paz se fará na forma das Leis em vigor, com a differença porém de conter quatro nomes a lista do
Eleitor de cada Districto”. “Art. 10. Os quatro Cidadãos mais votados serão os Juizes, cada um
dos quaes servirá um anno, precedendo sempre aos outros aquelle, que tiver maior numero de
votos. Quando um dos Juizes estiver servindo, os outros tres serão seus Supplentes, guardada,
quando tenha lugar, a mesma ordem entre os que não tiverem ainda exercido esta substituição”.
“Art. 11. O Juiz de Paz reeleito não será obrigado a servir, verificando-se a sua reeleição dentro
dos tres annos, que immediatamente se seguirem áquelle, em que tiver servido effectivamente”.
In: BRASIL. Lei de 29 de novembro de 1832. Promulga o Código de Processo Criminal de
Primeira Instancia com disposição provisória acerca da administração da Justiça Civil.
Disponível em <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/
Legislacao/legimp-15/Legimp-15_18.pdf> Acesso em 08 de maio de 2008.
Capítulo 4 |
193
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
previstas no Código Criminal93 e em outras normas penais esparsas.
Instituía o artigo 12 do Código de Processo Criminal:
Art. 12. Aos Juízes de Paz compete:
§ 1.º Tomar conhecimento das pessoas, que de novo vierem
habitar no seu Districto, sendo conhecidas, ou suspeitas; e
conceder passaporte às pessoas que lh’o requererem.
§ 2.º Obrigar a assignar termo de bem viver aos vadios, mendigos, bebados de habito, prostitutas, que pertubam o socego
publico, aos turbulentos, que por palavras, ou acções offendem os
bons costumes, a tranqüilidade publica, e a paz das familias.
§ 3.º Obrigar a assinar termo de segurança aos legalmente
suspeitos da pretensão de commeter algum crime, podendo
cominar neste caso, assim como nos comprehendidos no paragrapho antecedente, multa até trinta dias, e tres mezes de
Casa de Correção, ou Officinas publicas.
§ 4.º Proceder a Auto de Corpo de delicto, e formar a culpa
aos delinquentes.
§ 5.º Prender os culpados, ou o sejam no seu, ou qualquer
outro Juizo.
§ 6.º Conceder fiança na forma da Lei, aos declarados culpados
no Juízo de Paz.
§ 7.º Julgar: 1.º as contravenções às Posturas das Câmaras
Municipaes; 2.º os crimes, a que não esteja imposta pena maior,
que multa até cem mil réis, prisão, degredo, ou desterro até
seis mezes, com multa correspondente à metade deste tempo,
ou sem ella, e tres mezes de Casa de Correção, ou Officinas
publicas onde houver.
§ 8.º Dividir o seu Districto em Quarteirões, contendo cada
um pelo menos vinte e cinco casas habitadas.94
Tal reforma dita liberal, no entanto, ao descentralizar o Poder
Judiciário, permitiu a estruturação de uma cultura de submissão e
93
Nesse caso, a Parte IV do Código Criminal definia os “Crimes Policiaes”, ficando a maioria deles
sob a jurisdição do Juiz de Paz, como, por exemplo: Offensa da religião, da moral e bons costumes
(artigos 276 a 281); Sociedades Secretas (artigos 282 a 284); Ajuntamente illícitos (artigos 285 a
294); Vadios e Mendigos (artigos 295 e 296); Uso de armas defesas (artigos 297 a 299); Uso de nomes
suppostos e títulos indevidos (artigos 301 e 302) e Uso indevido da imprensa (artigos 303 a 307).
94 Op. cit.
194
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
reverência às autoridades policiais e judiciais de cada local, visto que
os representantes oficiais do ius puniendi do Estado – submetidos às
elites locais – se estabeleceram para vigiar as condutas da população,
evitar conflitos e punir os indivíduos recalcitrantes às autoridades e
contrários à ordem pública.95 Sobre essa estrutura judiciária liberal e
descentralizada, Raymundo Faoro pondera que
Sobre os municípios impotentes e nulificados caiu o
Código de Processo Penal, reativando o juiz de paz
com poderes de amplitude maior do que os traçados na
Constituição, que o reconheceu como agente conciliador
dos litígios, pré-instância judicial, autoridade eletiva
destinada a aplainar divergências e evitar conflitos (arts.
161 e 162). O círculo judiciário de primeira instância
dividiu-se, com o estatuto de 1832, em três circunscrições: o distrito, o termo e a comarca. O distrito foi
entregue ao juiz de paz, com tantos inspetores quanto
fossem os quarteirões; no termo haveria um conselho de
jurados, um juiz municipal, um escrivão das execuções
e os oficiais de justiça necessários; na comarca – a mais
ampla expressão territorial – havia o juiz de direito, em
número que se estenderia até três, nas cidades populosas, um deles com o cargo de chefe de polícia. O Juiz
de paz era filho direto da eleição popular, nomeados os
inspetores de quarteirão pelas câmaras municipais, sob
proposta daquele. Os juízes municipais e os promotores públicos – que serviam nos termos – provinham da
nomeação dos presidentes de província, sob proposta
encaminhada em lista tríplice, para um mandato de três
anos. Os juízes de direito, escolhidos dentre bacharéis
de direito, saíam das mãos do imperador, por obra e
graça de sua vontade.96
95
Interessante observar a noção de ordem pública e das atribuições do Juiz de Paz no artigo
276 do Código Criminal: “Art. 276. Celebrar em casa, ou edifício, que tenha alguma forma exterior
de templo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra religião que não seja a do Estado:
Penas – de serem dispersos pelo Juiz de Paz os que estiverem reunidos para o culto; da demolição
da forma exterior; e da multa de dous a doze réis, que pagará cada um” (op. cit., p. 266).
96 Op. cit., p. 352-3.
Capítulo 4 |
195
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
Registre-se que a competência atribuída aos Juízes de Paz não
significava que a resolução dos conflitos intersubjetivos ocorria através de métodos informais, mas, ao contrário, ampliava a submissão
da população às autoridades legalmente constituídas, inclusive nos
mais remotos rincões do Brasil. A jurisdição dos magistrados do
Estado, já que eleitos ou nomeados, ficava naturalmente à mercê
das oligarquias regionais, que tinham interesse nos conflitos intersubjetivos da população, alimentando, dessa forma, o denominado
“clientelismo”97, fenômeno peculiar da cultura jurídica brasileira, representado pelo brocardo da lógica popular que afirma: aos inimigos
os rigores da lei, aos amigos os beneplácitos da lei. Nessa perspectiva
percebe-se que a administração da justiça criminal do Brasil – no
Período Regencial –, no momento em que parecia se fragmentar, na
verdade se fortaleceu através de novas tecnologias de vigilância98 e
controle mais eficazes contra os setores sediciosos99 e insatisfeitos da
97
Francisco de Assis Silva (op. cit., p. 210) explica que desde a criação da Guarda Nacional
pelo regente Feijó, o “coronel” – geralmente um grande proprietário de terras – ocupava
o posto mais avançado da Guarda. “Com o passar do tempo os sertanejos passaram a chamar coronel todos os que possuíam a chefia do poder político local. A República herdou
essa generalização. Assim, como havia a hierarquia coronel-cabo eleitoral-eleitor [sic],
havia, também, uma hierarquização entre os coronéis: do pequeno coronel, que dominava
um pequeno número de eleitores, ao grande coronel, o mandão maior, acima dos demais.
Dessa forma a posição hierárquica de um coronel dependia de sua ‘clientela’ e do número
de votos por ele controlado (voto de cabresto), e variava de região para região. Para a sua
‘clientela’, isto é, para a massa de agregados que dispunha de seus favores em troca da
absoluta fidelidade, o coronel cedia-lhes terras para o cultivo, ajudava-os nas doenças,
protegia-os dos problemas policiais etc. Para os amigos e membros da família, o coronel
distribuía cargos na administração pública, arranjava empréstimos, livrava-os da ação da
justiça e da ação tributária etc.”
98 Nesse sentido, claras as disposições do Código de Processo Criminal sobre os Inspectores
de Quarteirões: “Art. 16. Em cada Quarteirão haverá um Inspector, nomeado também pela Câmara
Municipal sobre proposta do Juiz de Paz d’entre as pessoas bem conceituadas do Quarteirão, e que
sejam maiores de vinte e um annos”. “Art. 17. Elles serão dispensados de todo o serviço militar da
1.ª linha, e das Guardas Nacionaes; e só servirão um anno, podendo escuzar-se no caso de serem
immediatamente reeleitos”. “Art. 18. Competem aos Inspectores as seguintes attrribuições: 1.º Vigiar
sobre a prevenção dos crimes, admoestando aos comprehendidos no art. 12, § 2.º para que se corrijam;
e, quando o não façam, dar dissi parte circumstanciada aos Juizes de Paz respectivos. 2.º Fazer prender
os criminosos em flagrante delicto, os pronunciados não afiançados, ou os condemnados à prisão. 3.º
Observar, e guardar as ordens, e instrucções, que lhes forem dadas pelos Juízes de Paz para o bom
desempenho destas suas obrigações”. “Art. 19. Ficam supprimidos os Delegados.” In: Op. cit.
99 O artigo 111 do Código Criminal definia o crime de Sedição: “Art. 111. Julgar-se-ha commettido este crime, ajuntando-se mais de vinte pessoas, armadas todas ou parte dellas, para o fim
de obstar á posse do empregado publico, nomeado competentemente, e munido de titulo legitimo;
ou para privar do exercicio do seu emprego; ou para obstar a execução e cumprimento de qualquer
acto, ou ordem legal de legitima autoridade. Penas – aos cabeças, de prisão com trabalho por tres a
doze annos” (op. cit., p. 249).
196
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Alexandre Ribas de Paulo
população, que restaram inexoravelmente submetidos ao domínio
das elites tradicionais de cada região do vasto território brasileiro.
Agora esse controle pelas autoridades era permitido pelas normas
do Código Criminal e Código de Processo Criminal, sendo que as
autoridades do Estado soberano estariam legitimadas por intermédio das eleições – voto censitário100 – regionais, que, por isso, eram
consideradas formalmente democráticas e inspiradas pelas luzes do
século. Enfim, Raymundo Faoro assevera:
A polícia dos sertões e do interior tornou-se atribuição
judiciária e eletiva a autoridade. O júri, manifestação
imediata da população dos termos, enfraqueceu, de outro
lado, a supremacia judicial. A maré democrática, depois
de submergir a regência, chegava a seu alvo: o autogoverno das forças territoriais, que faziam as eleições, recebendo a parte do leão na partilha, o senhorio da impunidade
na sua violência e no seu mandonismo. O centro do
sistema estava no juiz de paz, armado com a truculência
de seus servidores, os inspetores de quarteirão, de triste
100
A Constituição do Império prescrevia os critérios a ser adotados nas eleições no Brasil:
“Art. 90. As nomeações dos Deputados, e Senadores para a Assembléia Geral, e dos Membros dos
Conselhos Geraes das Províncias, serão feitas por Eleições indirectas, elegendo a massa dos Cidadãos
activos em Assembléas Parochiaes os Eleitores de Provincia, e estes os Representantes da Nação, e
Provincia”. “Artigo 91. Têm voto nestas Eleições primarias I. Os Cidadãos Brazileiros, que estão no
gozo de seus direitos politicos. II. Os Estrangeiros naturalizados”. “Art. 92. São excluidos de votar
nas Assembléas Parochiaes. I. Os menores de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem
os casados, e Officiaes militares, que forem maiores de vinte e um annos, os Bachares Formados, e
Clerigos de Ordens Sacras. II. Os filhos familias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo
se servirem Officios públicos. III. Os criados de servir, em cuja clase não entram os Guarda-livros,
e primeiros caixeiros das casas de commercio, os Criados da Casa Imperial, que não forem de galão
branco, e os administradores das fazendas ruraes, e fabricas. IV. Os Religiosos, e quaesquer, que
vivam em Communidade claustral. V. Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis
por bem de raiz, industria, commercio, ou Empregos”. “Art. 93. Os que não podem votar nas
Assembléias Primarias de Parochia, não podem ser Membros, nem votar na nomeação de alguma
Autoridade electiva Nacional, ou local”. “Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa
Parochial. Exceptuam-se I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bem
de raiz, industria, commercio, ou emprego. II. Os Libertos. III. Os criminosos pronunciados em
querela, ou devassa”. “Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, são habeis para serem nomeados
Deputados. Exceptuam-se I. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na forma
dos Arts. 92 e 94. II. Os Estrangeiros naturalizados. III. Os que não professarem a Religião do
Estado”. “Art. 96. Os Cidadãos Brazileiros em qualquer parte, que existam, são elegiveis em cada
Districto Eleitoral para Deputados, ou Senadores, ainda quando ahi não sejam nascidos, residentes,
ou domiciliados”. “Art. 97. Uma Lei regulamentar marcará o modo pratico das eleições, e o número
dos Deputados relativamente á população do Imperio”. In: Op. cit.
Capítulo 4 |
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O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
memória nos anais do crime e da opressão: ‘era talvez a
3.a autoridade depois da regência e dos ministros’.101
Nesse contexto histórico da década de 1830 – em que ocorriam
revoltas armadas em várias regiões do Brasil e o Rio de Janeiro estava mergulhado em disputas políticas pouco escrupulosas entre as
facções remanescentes do Partido Brasileiro e o Partido Português
–, a prática de resolução de conflitos intersubjetivos acabava ficando
nas mãos das autoridades previstas na Constituição e no Código de
Processo Criminal, as quais podiam julgar conforme a conveniência
de seus interesses políticos, nos limites da lei. O Poder Privado das
autoridades regionais, tradicionalmente patriarcais, manifestava-se
diretamente no Poder Público, visto que o Ordenamento Jurídico
mantinha o sistema de nomeações para os mais importantes cargos
judiciais102 e, no tocante aos cargos eletivos, o voto censitário era
suficiente para manter a maioria da população marginalizada – mas
dominada – pela organização estatal.103 Buscava-se, assim, moldar
101
102
Op. cit., p. 353.
Além dos Juízes de Paz e dos Inspetores de Quarteirão, as autoridades encarregadas pela
administração da Justiça Criminal eram, todas elas, eleitas ou nomeadas. Pelo Código de
Processo Criminal, os Escrivães de Paz deveriam ser nomeados pelas Câmaras Municipais,
por proposta dos Juízes de Paz (artigo 14); os Juízes Municipais seriam nomeados, de
três em três anos, pelas Câmaras Municipais (artigo 33); os Promotores Públicos seriam
nomeados pelo Governo da Corte e pelo Presidente da Província (artigo 36); os Oficiais
de Justiça dos Termos deveriam ser nomeados pelos Juízes Municipais (artigo 41). Ainda,
os Juizes de Direito: “Art. 44. Os Juizes de Direito serão nomeados pelo Imperador d’entre os
Bachareis formados em Direito, maiores de vinte e dous annos, bem conceituados, e que tenham,
pelo menos, um anno de pratica no foro, podendo ser provada por Certidão dos Presidentes das
Relações, ou Juizes de Direito, perante quem tenham servido; tendo preferência os que tiverem
servido de Juizes Municipaes, e Promotores”. In: BRASIL. Lei de 29 de novembro de 1832. Op.
cit. Disponível em <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/
Legislacao/legimp-15/Legimp-15_19.pdf> Acesso em 07 de maio de 2008.
103 FAORO, Raymundo (op. cit., p. 371), sintetiza: “Toda nossa política, assim monárquica
como republicana, mostrou-se geralmente ou duvidosa da capacidade do povo, ou suspeitosa do caráter de suas manifestações, de tal maneira que, entre nós, o povo foi sempre
mais um símbolo constitucional do que fonte de autoridade em cujo contato dirigentes,
representantes e líderes partidários fossem retemperar o ânimo e o desejo de servir. ‘A
política brasileira tem a perturbá-la, intimamente, secretamente, desde os dias longínquos
da Independência, o sentimento de que o povo é uma espécie de vulcão adormecido.
Todo perigo está em despertá-lo. Nossa política nunca aprendeu a pensar normalmente
no povo, a aceitar a expressão da vontade popular como base da vida representativa’.
Os próprios liberais, inconformistas em suas origens, submergem no jogo institucional,
guardando do passado apenas reminiscências vagas, o apagado fermento e a nostalgia
difusa, confundindo os velhos ideais com os irresponsáveis ardores da juventude”.
198
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
a população brasileira para manter cada indivíduo na condição
de súdito disciplinado e submisso às ordens do Estado através do
império da lei, simbolizado pelo ius puniendi estatal e a obediência
à legalidade soberanamente chancelada pelas luzes do século. Na
prática, para se implantar uma cultura de respeito à lei, os métodos
comunitários de resolução de conflitos tinham que ser reprimidos
– e substituídos pela jurisdição do Estado –, pois eram logicamente
contrários ao princípio da legalidade, além de representar um desprestígio para as autoridades legais soberanamente encarregadas de
reprimir as infrações penais.
A partir do ano de 1836 se acirraram as disputas pelo poder
entre representantes do Partido Progressista – antigo Partido Brasileiro (Liberal) – e o Partido Regressista – antigo Partido Português
(Restaurador) –, porquanto as reformas liberais ocorridas no Período Regencial descentralizaram o Poder no Brasil, desagradando os
regressistas, que propunham manter a ordem pública e a segurança
do Estado fundados no império da lei. Assim surgiram os partidários da ascensão de D. Pedro de Alcântara ao trono – como forma
de recuperar a estabilidade no País –, que fundaram o denominado
Clube da Maioridade. Estes, aliados ao grupo palaciano, promoveram
um aviltamento à Constituição e ao Ato Adicional de 1834 com a
chamada Lei de Interpretação do Ato Adicional, de 12 de maio de 1840,
e lograram êxito na chamada Conspiração da Maioridade ou Golpe da
Maioridade, levando um garoto de 14 anos ao trono. Diante de tal ato,
D. Pedro II iniciou, em 1840, o Segundo Reinado, que ficou marcado
como um duro golpe aos ímpetos liberais no Brasil do século XIX.104
Ressalte-se que todas essas manobras políticas foram possíveis graças
ao poder de alguns indivíduos em modificar o discurso jurídico oficial
representado pelas normas; tais atos, portanto, foram considerados
legais e válidos para o exercício do Poder soberano na época, embora
contrários aos princípios constitucionais de 1824.
A história do Direito brasileiro assinala a alteração do Código
de Processo Criminal pela Lei no 261, de 03 de dezembro de 1841,
como uma regressão em relação aos anseios políticos dos liberais do
século XIX. Como ressalta Francisco de Assis Silva: “A reforma do
104
Cf. FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 379-80; SILVA, Francisco de Assis, p. 141-8.
Capítulo 4 |
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O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
Código de Processo Criminal centralizava a ação policial e judicial
que era, até então, de competência das províncias e dos municípios.
A reforma punha fim à autonomia e à influência dos chefes locais,
ou seja, o governo desmantelava a estrutura partidária municipal e
provincial”.105 Antônio Carlos Wolkmer argumenta que o reforço
do aparato burocrático por intermédio de uma “centralização rígida,
poderosa e policialesca” permitiu que a “dominação patrimonialista” fosse preservada durante o Império106, pois, com a alteração do
Código de Processo Criminal, toda a estrutura regional organizada
a partir de 1832 foi modificada e os antigos agentes estatais remanescentes foram atrelados ao governo centralizado de D. Pedro II.107
Ainda, como pondera Raymundo Faoro:
O juiz de paz despede-se da majestade rural, jugulado
pela autoridade policial, que assume funções policiais e
judiciárias. Os juízes municipais e os promotores perdem
o vínculo com as câmaras. O júri desce de sua dignidade
de justiça popular. O legendário inspetor de quarteirão
é entregue ao agente da Coroa, nomeado pelo delegado
de polícia. Da reforma não escapa sequer o humilde
carcereiro, perdido na insignificância de suas funções.
As autoridades locais não desaparecem, senão que se
atrelam ao poder central, isto é, ao partido que ocupa o
105
106
107
200
SILVA, Francisco de Assis. Op. cit. p. 149.
WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. Op. cit., p. 88.
A lei no 261, de 3 de dezembro de 1841, modificou a nomeação das autoridades competentes
para as causas criminais, centralizando o poder ao Imperador: “Art. 1.º Haverá no Municipio
da Côrte, e em cada Provincia hum Chefe de Policia, com Delegados e Subdelegados necessarios, os
quaes, sobre proposta, serão nomeados pelo Imperador, ou pelos Presidentes. Todas as Autoridades
Policiaes são subordinadas ao Chefe da Policia”. “Art. 2.º Os Chefes de Policia serão escolhidos
d’entre os Desembargadores, e Juizes de Direito: os Delegados e Subdelegados d’entre quaesquer
Juizes e Cidadãos: todos serão amoviveis, e obrigados a acceitar”. (...) “Art. 4.º Aos Chefes de Policia
em toda a Provincia e na Côrte, e aos seus Delegados nos respectivos Districtos, compete: § 1.º As
attribuições conferidas aos Juizes de Paz pelo Artigo 12, §§ 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 7.º do Código de
Processo Criminal. § 2.º Conceder fiança, na fórma das Leis, aos réos que pronunciarem ou prenderem. § 3.º As attribuições que ácerca das Sociedades secretas e ajuntamentos illicitos concedem
aos Juizes de Paz as Leis em vigor. § 4.º Vigiar e providenciar, na forma das Leis, sobre tudo que
pertence á prevenção dos delictos e manutenção da segurança e tranquilidade publica. (...) § 10.º
Velar em que os seus Delegados, e Subdelegados, ou Subalternos cumprão os seus Regimentos, e
desempenhem os seus deveres, no que toca á Policia, e formar-lhes culpa, quando o mereção. (...)”.
In: BRASIL. Lei n.º 261 – de 3 de Dezembro de 1841. Reformando o Código de Processo
Criminal. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/
colecoes/Legislacao/legimp-27/Legimp-27_10.pdf> Acesso em 08 de maio de 2008.
| Capítulo 4
Alexandre Ribas de Paulo
ministério. Os capangas dos senhores territoriais passam
a ser capangas do império, conduzidos pelos presidentes de províncias e seus agentes. Sobre os sertões e os
campos desce a espada imperial, estruturada, na cúpula, num mecanismo estável de governo, mecanismo
superior às mudanças de gabinete. Toda a autoridade
se burocratiza – do inspetor de quarteirão ao ministro –,
articulada hierarquicamente de cima para baixo.108
A centralização política promovida pelo imperador D. Pedro
II deu-se, inegavelmente, por intermédio de normas jurídicas, mas
com a manipulação simples das normas legais em prol dos interesses
da elite imperial, além de eleições violentas e fraudulentas, como
ficaram conhecidas, por exemplo, as eleições do cacete, em 1840.109
No que concerne à cultura jurídica brasileira do século XIX, foi representada discursivamente pela ideologia iluminista-individualista
preconizadora da igualdade formal entre os indivíduos, na qual o
Estado soberano – laico e racional – seria a única fonte legítima do
Direito, mormente porque responsável pela ordem pública. Na realidade, todavia, o Poder Judiciário não deixou de ser uma instância
política do Poder soberano do Imperador.110
Enfim, através da redução do povo soberano a uma ficção111,
108
109
110
Op. cit., p. 383-4.
Cf. SILVA, Francisco de Assis. Op. cit. p. 148-9.
Nesse sentido, Antônio Carlos Wolkmer (História do direito no Brasil. Op. cit., p. 93) ressalta:
“Na prática, o poder judicial estava identificado com o poder político, embora, institucionalmente, suas funções fossem distintas. O governo central utilizava-se dos mecanismos
de nomeação e remoção de juízes para administrar seus interesses, fazendo com que a
justiça fosse partidária, e o cargo, utilizado para futuros processos eleitorais (fraudes e
desvios) ou mesmo para recompensar amigos e políticos aliados. Assim, o juiz deixava
de apreciar conflitos de sua competência (impessoalidade, neutralidade) para entrar
numa prática ‘antijudiciária’, em que só contava o atendimento ao partido aliado e aos
chefes no interior. Daí a duplicidade da conduta do juiz, ora submetido às exigências da
legalidade partidária (aliado ou adversário das facções locais), ora impelido aos deveres
funcionais do cargo como aplicador da lei”.
111 Raymundo Faoro (op. cit., p. 370-1), ao comentar “o principal mecanismo político do
Segundo Reinado, o parlamentarismo”, argumenta: “O parlamento será o ‘polichinelo
eleitoral dançando segundo a fantasia de ministérios nomeados pelo imperador’, reduzindo
o povo a uma ficção, mínima e sem densidade, que vota em eleições fantasmas. Excluídos
os escravos, os analfabetos, os menores de 25 anos, os filhos-famílias, os religiosos, e os
indivíduos desprovidos de renda anual de 100 $ por bem de raiz, indústria, comércio ou
Capítulo 4 |
201
O DISCURSO JURÍDICO-PENAL ILUMINISTA NO DIREITO CRIMINAL DO IMPÉRIO BRASILEIRO
as mitologias do Direito Contemporâneo mostram-se eficazes e o
Direito Penal e Processual Penal, mais do que prevenir crimes e
buscar dirimir os conflitos entre os envolvidos na contenda, tornouse um mecanismo indispensável para a desqualificação jurídica de
indivíduos sediciosos e contrários à ordem pública – esta representada discursivamente pelos ideais de civilização e modernidade
oriundos do Iluminismo europeu ocidental, mas realizada com o
exercício do usufruto do Poder soberano pelas autoridades que se
intitulam representantes do povo.
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emprego, poucos são os chamados ao voto e poucos os elegíveis. Numa população de 10
milhões de habitantes, em 1872, cálculo otimista avalia entre 300.000 a 400.000 as pessoas
aptas aos comícios eleitorais, certo que, em 1886, a eleição para a terceira legislatura da
eleição direta acusou a presença de apenas 117.671 eleitores numa população próxima aos
14 milhões de habitantes. Somente entre um por cento e três por cento do povo participa
da formação da dita vontade nacional, índice não alterado substancialmente na República,
no seus primeiros quarenta anos. (...) As organizações partidárias se concentram nos instrumentos de aliciar, manipular e coagir o eleitorado e não de traduzir-lhes os interesses,
os sentimentos e as inquietações”.
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