CAPÍTULO 10 MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DA DOENÇA

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CAPÍTULO 10
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DA DOENÇA FALCIFORME E
TRATAMENTO ESPECÍFICO
INTRODUÇÃO
A clínica da doença das células falciformes, notadamente da anemia
falciforme, é muito variável pois depende de fatores genéticos, sociais, culturais e
ambientais, principalmente.
Nos últimos anos as expectativas com relação à morbidade e mortalidade
da doença falciforme modificaram-se significativamente, em parte devido à maior
precisão e precocidade no diagnóstico, e também pelo crescente volume de novos
conhecimentos sobre a doença. A outra parte se deve à gradual sensibilidade dos
órgãos de saúde pública em nosso país, motivado especialmente por movimentos
sociais relacionados à população negra e às associações de portadores da falcemia.
Apesar de todo o progresso que ocorreu nos últimos anos, o prognóstico
do paciente com a doença falciforme permanece difícil de ser entendido devido à
grande diversidade de manifestações clínicas, das variáveis que ocorrem entre
diferentes faixas etárias, das condições sócio-econômicas, e do pronto atendimento. No
Brasil, os pacientes com doença falciforme também padecem dessa expressiva
heterogeneidade de patologias provenientes da falcização. Um dos primeiros trabalhos
mais representativos sobre a história natural da anemia falciforme foi realizado em 1981
por Mara Hutz em pesquisa de prontuários de 409 pacientes com anemia falciforme
cadastrados no Instituto de Hematologia Artur Siqueira Cavalcanti (atual HEMORIO) da
cidade do Rio de Janeiro, de onde extraímos as principais manifestações clínicas
expostas na tabela 28. É importante destacar que passados 22 anos muitas das
informações relatadas, incluindo suas prevalências, mudaram. Essas mudanças
ocorreram por duas razões principais: a primeira, pelo mérito de um trabalho de tal
envergadura para aquela época, que mostrou o perfil do doente falcêmico e sensibilizou
a comunidade científica para direcionar suas atenções a um problema de grande
245
importância médica; a segunda, ocorreu pela significativa formação de profissionais das
áreas médica e laboratorial que direcionaram seus estudos e estabeleceram critérios
para o diagnóstico e conduta do paciente falcêmico. Esses fatos realmente causaram
mudanças em todos os aspectos, e essas mudanças certamente foram notáveis. A
seguir, apresentamos detalhadamente as manifestações clínicas mais comuns na
doença falciforme e seus respectivos tratamentos.
246
Tabela 28 – Principais manifestações clínicas por faixa etária obtidas de 409
pacientes (200 homens e 209 mulheres) da região metropolitana do
Rio de Janeiro.
FAIXA ETÁRIA
Manifestações
1–5
6 – 10
11 – 15
16 – 20
> 20
Clinicas
%
%
%
%
%
Palidez
91,8
92,0
92,8
93,2
88,1
Icterícia
46,9
61,4
78,3
88,0
83,2
–
2,3
7,2
12,0
22,5
Hepatomegalia
75,5
59,1
76,8
64,0
64,0
Esplenomegalia
36,7
22,7
7,2
2,7
3,0
Úlceras de perna
2,0
3,4
7,2
20,0
49,0
Artralgias
44,9
51,1
49,3
52,0
63,4
Epistaxes
6,1
14,8
17,4
16,0
14,8
–
–
2,9
3,1
2,1
vascular
1,0
1,1
1,4
–
0,5
toráxica
–
4,7
2,9
5,3
6,6
Turricefalia
2,0
5,7
11,6
5,3
4,9
Gnatopatia
–
2,3
5,8
8,0
2,0
Colelitíase
Priapismo (*)
Acidente
cerebral
Síndrome
aguda
(*) Para o cálculo da freqüência foram utilizadas, naturalmente, apenas os homens.
247
CRISES DOLOROSAS
As crises dolorosas constituem a principal causa de morbidade e
hospitalização na doença falciforme. Podem ocorrer isoladamente ou no curso de
complicações
crônicas
equivocadamente
e,
rotuladas
por
vezes,
como
dor
devido
a
sua
alta
frequência,
crônica.
Caracterizam-se
pela
são
grande
variabilidade na apresentação clínica entre os pacientes e no mesmo indivíduo ao logo
do curso da doença. Em geral são episódios auto-limitados, com ampla variação de
intensidade e duração, que acometem principalmente região lombar, ossos longos e
articulações. No entanto, outros locais como tórax, face, abdome e pelve podem ser
envolvidos. Há que se destacar também a influência negativa das crises de dor no
desempenho escolar e profissional dos doentes, relações sociais e conjugais, além do
custo financeiro envolvendo a assistência médica.
Grande parte da dor gerada nos episódios agudos é nociceptiva
(transmitida por receptores da dor, os nociceptores) e resulta de estímulos somáticos
ou viscerais. A dor somática é mais comum, geralmente intensa, localizada e
lancinante, envolve inicialmente estruturas profundas como periósteo, medula óssea,
articulações, músculos, tendões, ligamentos e artérias. Esta modalidade de dor, que
pode ser focal ou referida, é transmitida por meio de fibras nervosas mielinizadas de
condução rápida, principalmente fibras A δ, as quais tem um limiar mais alto e por isso
precisam de um estímulo forte, geralmente mecânico. A maioria destas fibras termina
na lâmina I do corno dorsal da medula espinhal.
A dor visceral está relacionada ao baço, fígado, pulmões, e outros órgãos;
é geralmente vaga, mal localizada, difusa, continuada, e freqüentemente associada a
náuseas, vômitos e sudorese. Esta modalidade é mediada por fibras não-mielinizadas
de condução lenta, as fibras C, que podem transmitir estímulos mecânicos, térmicos e
químicos, e são ativadas por inflamação, isquemia ou distensão. Estas fibras também
entram na medula espinhal pelo corno dorsal, e terminam na lâmina II.
A crise álgica é definida como grave quando da necessidade de
assistência médica e analgesia parenteral com opióides durando pelo menos quatro
248
horas. A ocorrência de três ou mais destas crises no doente ao longo de um ano denota
doença falciforme de evolução grave.
Platt e cols. realizaram estudo multicêntrico e prospectivo para determinar
a apresentação das crises dolorosas em 3578 pacientes com doença falciforme. Os
indivíduos com anemia falciforme (SS) e Sβ0 –talassemia foram mais freqüentemente
acometidos, apresentando o dobro do número de crises que ocorreram na
hemoglobinopatia SC e Sβ+ - talassemia. A variabilidade na incidência foi grande, e
pôde ser apreciada na anemia falciforme, onde 40% dos pacientes não apresentaram
dor ao passo que 5% evoluíram com 3 a 10 crises ao ano, e responderam por um terço
do todas as crises observadas neste grupo. As crises dolorosas foram mais comuns na
terceira e quarta décadas de vida, e a mortalidade foi maior nos adultos que pertenciam
a esta faixa etária e evoluíram com 3 ou mais crises ao ano. Também foi observado que
a frequência dos episódios variou diretamente com o valor hematócrito, provavelmente
pela sua influência na viscosidade sangüínea, e inversamente com a concentração de
Hb Fetal (Hb F).
Haplótipos diferentes também têm sido implicados no quadro clínico do
doente, por exemplo, pacientes com haplótipo do tipo Senegal parecem ter melhor
evolução em relação àqueles com haplótipo do tipo Bantu.
Além do episódio agudo, adultos com doença falciforme podem evoluir
com dor crônica acompanhando quadro de úlceras de membros inferiores ou necrose
avascular dos ossos (estes assuntos serão discutidos em outros tópicos).
A investigação diagnóstica do doente com dor deve abranger história
clínica com caracterização detalhada da dor (localização, intensidade, frequência,
fatores predisponentes, sintomatologia associada, episódios e tratamentos prévios),
exame físico, avaliação laboratorial e de imagem para definir a causa da dor e excluir
outras possibilidades não relacionadas diretamente com a doença falciforme (DF).
Radiografias dos locais envolvidos e avaliação mais específica com ressonância
magnética podem auxiliar no diagnóstico de infarto medular e necrose avascular.
O mecanismo pelo qual a dor se desenvolve e é percebida ainda não está
completamente elucidado. Na DF a crise álgica é gerada pela oclusão microvascular e
isquemia tecidual. Entre os fatores desencadeantes mais importantes estão a
249
desidratação, hipóxia, infecção e acidose. Outras situações também podem precipitar o
aparecimento das crises, como a mudança brusca de temperatura e o estresse
emocional. Todavia, na maior parte dos casos, os episódios são imprevisíveis e não se
consegue identificar nenhum fator predisponente.
A oclusão microvascular acarreta lesão tecidual e esta, por sua vez,
desencadeia uma resposta inflamatória com conseqüente liberação de citoquinas
(interleucina-1) e outros mediadores inflamatórios. A interleucina-1 é um pirógeno
endógeno com a capacidade da ativar o gene da ciclo-oxigenase para a produção de
prostaglandina E2 e I2, as quais sintetizam terminações nervosas e facilitam a
transmissão do estímulo doloroso ao córtex cerebral através da medula espinhal e do
tálamo. Outros mediadores como bradicinina, histamina, K+ e H+ ativam as fibras
nervosas aferentes nociceptivas provocando a resposta dolorosa. Além disso, os
nociceptores ativados liberam substância P, que também facilita a propagação do
estímulo doloroso e, juntamente com a bradicinina, causa vasodilatação e
extravazamento de líquidos resultando em edema e dor local. Inibidores da dor como
serotonina, encefalina, β-endorfina e dinorfina também interferem na percepção do
estímulo doloroso. Deste modo, a intensidade da dor que o paciente sente é
dependente da extensão da lesão e do equilíbrio entre seus ativadores e inibidores
(figura 101).
250
VASO-OCLUSÃO
Lesão Tecidual
Mediadores Inflamatórios
Bradicinina,
histamina,
K+, H+
Ativação de fibras
nociceptivas
Interleucina-1
Inibidores da dor:
Serotonina,encefalina,
β-endorfina, dinorfina
DOR
Prostaglandina E-2
Aumento da
transmissão do
estímulo doloroso
Substância P
Bradicinina
EDEMA
Figura 101 – Esquema caracterizando os principais fatores que causam as crises
dolorosas.
251
Esta complexidade de fatores envolvendo o desenvolvimento e a
sensação do estímulo doloroso é responsável pela grande variabilidade na
apresentação das crises dolorosas observadas na doença falciforme. Além disso, a
resposta inflamatória deflagrada pela lesão tecidual também leva ao aumento da
atividade do sistema simpático com conseqüente aumento da isquemia tecidual,
criando um ciclo vicioso da dor.
Tratamento
Via de regra, a conduta a ser tomada frente a um paciente com crise
dolorosa representa um problema tanto do ponto de vista do médico quanto do
paciente, e depende da experiência prévia em relação ao uso de analgésicos, enfoque
psicológico, empatia e confiança entre médico, paciente e familiares, estrutura e
disponibilidade dos serviços de atendimento, além de orientações terapêuticas e
preventivas levando em consideração as condições econômicas, sociais e culturais do
paciente.
Freqüentemente o portador de doença falciforme com dor é atendido nos
serviços de emergência, onde a equipe médica e de enfermagem não estão
familiarizados com o tratamento adequado da dor, e deixam de priorizar a queixa do
doente, relevando a real dimensão do quadro doloroso. Este comportamento, por sua
vez, aumenta a angústia do paciente – que conviveu por toda a vida com episódios
dolorosos intensos e imprevisíveis acompanhados pelo medo da morte – , e reduz suas
expectativas em relação ao tratamento, tornando o controle da dor cada vez mais difícil.
A situação é ainda pior nos países pobres e em desenvolvimento, como no continente
africano, onde a falta de recursos e medicações para o tratamento eficaz da dor, infraestrutura deficiente para o atendimento do doente, e profissionais de saúde pouco
qualificados, contribuem para maior morbidade e mortalidade decorrentes desta
complicação.
O tratamento analgésico freqüentemente envolve o uso de medicações
diferentes, mas com ações sinérgicas. Assim é comum a associação de drogas nãoopióides, como os anti-inflamatórios não esteroidais (AINE) que agem localmente
252
bloqueando o processo inflamatório, opióides, os quais tem ação no sistema nervoso
central, e ainda drogas adjuvantes, como anti-histamínicos e benzodiazepínicos (tabela
29).
253
Tabela 29 – Grupos de drogas utilizadas no tratamento da crise dolorosa.
Analgésicos não-opióides
Acetaminofen
AINE
Ibuprofeno
Naproxeno
Analgésicos opióides
Agonistas opióides fracos
Codeína
Oxicodona
Dihidrocodeína e hidrocodona
Agonistas opióides fortes
Morfina
Hidromorfona
Meperidina
Oximorfona
Levorfanol
Fentanil
Metadona
Adjuvantes
Anti-histamínicos
Anti-depressivos
Benzodiazepínicos
Fenotiazinas
Anti-eméticos
Laxativos
254
Crises dolorosas de leve a moderada intensidade são geralmente tratadas
ambulatorialmente com analgésicos não-opióides orais e, quando necessário, em
associação com opióides fracos.
Nos episódios graves os pacientes devem ser internados, recebendo
preferencialmente uma abordagem multidisciplinar, e tratados de forma intensiva com
opióides. A escolha do opióide e sua via de administração devem ser individualizadas,
com especial atenção a esquemas bem sucedidos previamente usados pelo paciente.
Entretanto o medo por parte do pronto-socorrista em relação aos efeitos colaterais
como sedação e depressão respiratória, juntamente com a suspeita de dependência
química pela droga, faz com que grande parte dos pacientes receba subdoses desta
medicação em intervalos de tempo inadequados, prejudicando o alívio do quadro
doloroso. Pacientes com doença falciforme são raramente dependentes químicos,
todavia, o uso freqüente de opióides resulta em tolerância medicamentosa com a
necessidade de doses cada vez maiores para se obter mesmo grau de analgesia. O
problema da tolerância pode ser amenizado pela educação do paciente quanto à
utilização domiciliar criteriosa do opióide, e usando-o em doses e intervalos adequados
quando for indicado. Uma seqüência recomendável para o tratamento do paciente com
dor pode ser apreciada na tabela 30.
255
Tabela 30 – Tratamento das crises dolorosas.
Tratar a causa da crise (caso possa ser identificada)
Iniciar analgesia prontamente
Hidratação vigorosa com 3 a 4 litros/dia em pacientes adultos (via oral se
possível, intravenoso se necessário)
Tratar crises dolorosas agudas e graves da seguinte forma:
1) administrar morfina, meperidina ou hidromorfone parenteral, em doses
cheias, com intervalo de 2 a 4 horas. Checar a dor freqüentemente.
2) Não especificar tratamento "se necessário".
3) Considerar a associação de drogas como hidroxizine, difenidramina,
prometazina, ou anti-inflamatório não esteroidal.
4) Considerar a analgesia paciente-controlada, caso sejam necessárias
doses mais freqüentes. Usar escalas de dor (escala análoga, 0
[ausente] até 10 [insuportável] para guiar a eficácia do tratamento e
determinar as doses
Tratar dor crônica ou dor leve à moderada como segue:
1) Usar adesivos de fentanil para dor moderada a grave prolongada.
2) Usar acetaminofen com codeína para dor leve a moderada, sem
necessidade de atendimento médico.
3) Administrar anti-inflamatório não esteroidal para a dor de osteonecrose,
quando não houver contra-indicação de seu uso por insuficiência renal
ou hepática.
256
Preventivamente, bons resultados são obtidos com a utilização de
hidroxiuréia, uma droga capaz de elevar a concentração de HbF no eritrócito, inibindo a
polimerização e conseqüentemente a falcização eritrocitária. Este tratamento é indicado
para os pacientes com anemia falciforme ou Sβ-talassemia com três ou mais crises
dolorosas graves ao ano, e reduz pela metade a incidência destas crises e de
hospitalizações. O principal efeito colateral é mielotoxicidade, o que justifica cautela na
dose prescrita e acompanhamento médico e laboratorial em intervalos de tempo
menores. A eficácia desta droga em pacientes com hemoglobinopatia SC ainda não
está totalmente estabelecida.
O tratamento não farmacológico dos doentes inclui mudanças nos fatores
ocupacionais, sociais e comportamentais que predispõem a ocorrência da crise álgica.
Fisioterapia e terapia ocupacional são métodos capazes de melhorar a performance do
doente e prevenir o desenvolvimento de complicações que causam dor crônica na
doença falciforme. Muitos pacientes também se beneficiam de acompanhamento
psicológico e discussão em grupo.
SÍNDROME TORÁCICA AGUDA
A síndrome torácica aguda (STA) é uma complicação comum, de
apresentação variável entre os pacientes, e constitui atualmente a maior causa de
morte e a segunda maior causa de hospitalização nos indivíduos com doença
falciforme, nos países desenvolvidos. É mais freqüente nas formas graves da doença,
como na anemia falciforme (ocorrendo em cerca de um terço destes doentes) e na Sβ0 talassemia.
A STA é definida pela presença de febre, sintomas respiratórios (tosse,
dor torácica e dispnéia) e infiltrados pulmonares na radiografia de tórax. Esta definição,
apesar de abrangente, é útil para caracterizar uma síndrome grave muitas vezes
negligenciada pelo socorrista, e que demanda cuidados específicos ao paciente com
doença falciforme que se apresenta com sintomas respiratórios ou os desenvolve no
curso de outra complicação, como crise dolorosa, e no pós-operatório.
257
Os estudos de Vichinsky e cols. ofereceram contribuição valiosa para o
entendimento da STA em relação à sua apresentação clinica e evolução, bem como na
elucidação de suas causas.
Nas crianças a incidência da síndrome é maior, principalmente naquelas
entre 2 a 4 anos de idade. Os sintomas mais comuns nesta faixa etária são febre e
tosse, raramente apresentam dor torácica, e os locais mais acometidos são os lobos
superiores pulmonares. A STA na infância tem evolução mais branda, com menos
necessidade transfusional, menor tempo de hospitalização e mortalidade, e está mais
associada à infecção, com bacteremia acompanhando 14% dos episódios nas crianças
com menos de 2 anos de idade, nas quais os germes mais freqüentemente
identificados são Streptococcus pneumoniae e Haemofilus influenzae. Foi também
observada variação sazonal na incidência desta complicação que foi maior nos meses
de inverno, coincidindo com a época de maior ocorrência de infecções nas crianças,
principalmente de vias aéreas superiores.
No adulto, os sintomas mais freqüentes são dispnéia, calafrios e dor
torácica importante, sendo que 18% desta população cursa com hipóxia. O
acometimento pulmonar é geralmente multilobar e cerca de 50% dos episódios são
precedidos ou acompanhados por crises dolorosas, o que reforça a hipótese de um
maior componente vaso-oclusivo com embolia gordurosa no desenvolvimento da
síndrome nestes casos.
A frequência da STA no adulto é menor, no entanto, a
evolução é mais grave e comprovada pela mortalidade que é quatro vezes maior em
relação àquela observada na infância. Manifestações neurológicas ocorrem em 22%
dos doentes e cerca de metade destes evoluem com insuficiência respiratória.
Em 82% dos pacientes que têm STA o episódio é único, e um terço deles
apresentam exame físico e ausculta pulmonar normal à apresentação. As alterações
laboratoriais freqüentemente associadas ao quadro incluem queda do valor basal de
hemoglobina e aumento do número de leucócitos. O tempo médio de internação dos
doentes varia de 7 a 10 dias e cerca de 13% dos internados necessitam de ventilação
mecânica (81% destes se recuperam). Alguns fatores têm sido implicados ao maior
tempo de hospitalização, são eles: idade avançada, crise dolorosa nos membros à
258
apresentação, febre, plaquetopenia, alteração radiológica extensa, terapia transfusional
e insuficiência respiratória.
O desenvolvimento desta complicação no pós-operatório está relacionado
à diminuição da oxigenação e distúrbio de ventilação-perfusão resultantes do
procedimento anestésico, com aumento do risco de infarto pulmonar ou infecção.
As causas da STA, até então pouco esclarecidas, começaram a ser
melhor estudadas nos últimos anos. Provavelmente a etiologia do evento é multifatorial,
envolvendo infarto e infecção pulmonar, atelectasias secundárias a infarto de costelas e
respiração superficial por dor, embolia pulmonar (tromboembolia ou embolia gordurosa)
e trombose microvascular “in situ” devido à aderência dos eritrócitos ao endotélio (figura
102). O emprego do lavado bronco-alveolar para estudo etiológico é de grande valia na
identificação de possíveis germes causadores das infecções que acompanham ou
desencadeiam a STA e na confirmação de embolia gordurosa pelo achado de
macrófagos carregados de gordura no material. Com este método, é possível
especificar a causa em 40% dos casos (30% infecção e 10% embolia gordurosa). Além
do pneumococo e H.Influenzae, outros agentes freqüentemente identificados são
Clamídia pneumoniae e Micoplasma pneumoniae, seguidos por vírus sincicial
respiratório e, em pequena fração dos pacientes, parvovírus B19. Recentemente, altas
concentrações de fosfolipase A2 foram encontradas em indivíduos com STA; esta
enzima degrada a gordura embolizada e libera ácidos graxos livres que causam lesões
no parênquima pulmonar. Este fato sugere que a elevação da fosfolipase A2 está
relacionada à ocorrência de STA decorrente de embolia gordurosa.
259
Figura 102. Infartos ósseos em arcos costais
260
Portanto, a abordagem diagnóstica inicial dos pacientes para STA deve
ser realizada com radiografia de tórax, hemocultura e cultura de secreções respiratórias
(preferencialmente
lavado
bronco-alveolar),
gasometria,
hemograma
completo,
cintilografia pulmonar de ventilação-perfusão (nos pacientes sintomáticos, mas com
radiografia de tórax normal), e exclusão de trombose de membros inferiores.
Com relação à fisiopatologia da STA, é preciso entender o comportamento
do eritrócito falciforme no microambiente pulmonar bem como a influência de fatores
agravantes decorrentes do comprometimento sistêmico pela doença falciforme.
Os eritrócitos que chegam à circulação pulmonar estão desoxigenados e
provavelmente contendo polímeros de HbS. Assim, qualquer doença pulmonar ou
estado hipoventilatório que provoque hipóxia, deflagra a polimerização intracelular e a
falcização eritrocitária, contribuindo para o fenômeno vaso-oclusivo.
Em condições normais, a microvasculatura pulmonar tem a característica
de reagir à situações de hipóxia com vasoconstrição para sustentar a relação
ventilação-perfusão (V/Q) e manter a oxigenação no pulmão. Entretanto, na doença
falciforme, tanto a hipóxia quanto a vasoconstrição favorecem não só a polimerização
da HbS como também diminuem a velocidade de trânsito capilar dos eritrócitos e
aumentam sua adesão ao endotélio. O aumento da adesão endotelial resulta do
aumento na síntese da molécula de adesão VCAM-1 e da diminuição da produção do
seu inibidor, o óxido nítrico (NOx). Participam do mecanismo de adesão os receptores
eritrocitários (CD36 e α4β1 integrina), os receptores endoteliais (CD36, αVβ3 integrina,
glicoproteina Ib-IX-V e VCAM-1) e ligantes presentes no plasma (trombospondina e
fator de von Willebrandt).
Por outro lado, na vigência de anemia, a vasoconstrição pulmonar
secundária à hipóxia não ocorre adequadamente em virtude do acúmulo de óxido
nítrico, apesar de sua baixa produção, resultante da sua diminuta captação pelos
poucos eritrócitos circulantes. Esta condição promove o desequilíbrio da relação V/Q, o
qual é agravado pelas atelectasias decorrentes de infartos costais e vertebrais que
aumentam as áreas de “shunt”, ou seja, regiões perfundidas mas não ventiladas no
pulmão. Com isso, há menos oxigenação, maior dessaturação da hemoglobina e
hipóxia, formando o ciclo vicioso que envolve a STA (figura 103).
261
HIPÓXIA
VASO-OCLUSÃO
NOx
MOLÉCULA
ADESÃO
INFARTO
MO
DESSATURAÇÃO
da Hb
INFARTO
COSTELAS
VCAM-1
GORDURA
FA2
DOR
HIPOVENTILAÇÃO
ATELECTASIA
INFARTO
PULMONAR
SHUNT
INFECÇÃO
NOx-óxido nítrico; FA2-fosfolipase A2, MO: medula óssea
Figura 103 – Fisiopatologia da Síndrome Torácica Aguda.
262
Tratamento
O tratamento da STA é abrangente e enfoca os vários aspectos
envolvidos na patogênese da doença.
Inicialmente, nos pacientes com dor torácica, recomenda-se analgesia
adequada com emprego de opióides, o suficiente para evitar respiração superficial e
conseqüentes atelectasias, porém com cautela pelo risco de depressão respiratória
provocada por estas drogas. O emprego da espirometria, preventivamente, tem se
mostrado muito eficaz na melhora do padrão respiratório dos pacientes, podendo até
mesmo evitar o desenvolvimento da STA. Do mesmo modo, o tratamento intensivo com
broncodilatadores traz bons resultados.
A hidratação deve ser cuidadosa para evitar congestão e edema
pulmonar, e não deve exceder o total de perdas e manutenção dos líquidos corporais.
Oxigenoterapia é útil nos pacientes com hipóxia, e estes devem receber monitorização
freqüente e assistência ventilatória adequada em unidade de terapia intensiva quando
não houver resposta.
Mesmo que infecção não seja documentada na maioria dos casos, a
antibioticoterapia endovenosa é geralmente instituída, principalmente na vigência de
febre, e o esquema proposto deve conter antibiótico da classe dos macrolídeos para
cobertura das infecções causadas por Clamydia e Mycoplasma.
A terapia transfusional tem por objetivo aumentar o valor da hemoglobina
e reduzir a concentração da HbS. Tanto a transfusão simples como a ex-sangüíneo
transfusão, para pacientes com hematócrito superior a 30%, estão indicadas quando há
piora do padrão respiratório e hipóxia (PaO2<70mmHg em ar ambiente ou queda de
10% do valor basal em pacientes com hipoxemia crônica) e são úteis para evitar a
progressão da STA e insuficiência respiratória, principalmente se administradas
precocemente.
Cuidados devem ser tomados em relação a situações que atrasam a
indicação transfusional nesses doentes como confusão mental atribuída ao uso de
narcóticos, edema pulmonar resultante de excesso de hidratação, mudanças freqüentes
263
no antibiótico na falta de resposta clínica, quando na verdade todos estes sinais podem
ser indícios da progressão da STA.
Outras modalidades terapêuticas foram recentemente estudadas e podem
beneficiar estes doentes. Dentre estas, o tratamento com hidroxiuréia mostrou eficácia
em diminuir a frequência dos episódios de STA. O uso de dexametasona (0,3mg/Kg a
cada 12h no total de 4 doses) reduziu o tempo de hospitalização, duração da febre,
necessidade transfusional e dose dos opióides. Estudos experimentais utilizando a
inalação de óxido nítrico no tratamento da STA evidenciaram redução na pressão da
artéria pulmonar, melhora da relação ventilação-perfusão e da oxigenação pulmonar; no
entanto, estudos controlados serão necessários para estabelecer o papel do óxido
nítrico inalatório na STA.
ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
O AVC é uma complicação catastrófica da doença falciforme, e uma das
maiores causas de morte em crianças e adultos. Ohene-Frempong e cols.(1998)
realizaram um estudo prospectivo e multicêntrico com 4.082 pacientes e observaram
que prevalência desta complicação na doença falciforme foi de 3,7%, sendo o maior
índice encontrado nos pacientes com HbSS (4,0%), seguido pela Sβ0-talassemia
(2,4%), Sβ+- talassemia (1,3%) e Hb SC (0,8%). Não houve diferença entre os sexos
masculino e feminino, quanto à prevalência. A incidência documentada foi de 0,46 por
100 pacientes/ano na doença falciforme. Nos pacientes com HbSS a incidência situouse em torno de 0,61 por 100 pacientes/ano, sendo mais freqüente nos indivíduos com 1
a 9 anos de idade (0,84 por 100 pacientes/ano).
Mais da metade dos AVCs são isquêmicos (55%), seguido pelos
hemorrágicos (cerca de 35%) e pelos acidentes isquêmicos transitórios (AIT – 10%). O
AVC isquêmico é mais freqüente em pacientes com menos de 20 anos de idade, e o
hemorrágico – responsável por alta taxa de mortalidade (24% nas 2 primeiras semanas
após o evento) - tem sua maior incidência dos 20 aos 29 anos de idade.
264
Os pacientes com doença falciforme que apresentam um episódio de
AVC, têm um alto índice de recorrência, a qual pode ser diminuída, mas não abolida,
com um programa de transfusão crônica. Cerca de dois terços das crianças com AVC
isquêmico (AVCI), que não são transfundidas, podem apresentar um novo episódio
dentro de três anos.
Os fatores de risco relatados para AVCI são AIT prévio (principalmente),
baixo valor de hemoglobina, episódio recente de STA, alta frequência de STA e pressão
arterial sistólica elevada. O AVC hemorrágico (AVCH) está associado com baixo valor
de hemoglobina e alto número de leucócitos.
O efeito da concomitância da talassemia alfa na incidência do AVC na
doença falciforme é controverso, mas é provável que haja proteção em relação à
ocorrência do AVC, possivelmente devido à melhora do valor da hemoglobina.
Esta complicação na doença falciforme acomete tanto vasos de pequeno
quanto os de grande calibre. Infartos nas zonas marginais das artérias sugerem perda
de vasos distais menores. Artérias maiores como as do polígono de Willis, carótidas
internas e do sistema vértebro-basilar geralmente se apresentam com estenose e
oclusão. Como conseqüência da oclusão dos vasos intracranianos maiores, há
formação de uma massa composta de pequenos vasos sangüíneos friáveis, o chamado
padrão “moya-moya”, freqüentemente observado nos pacientes com doença falciforme.
Microscopicamente, a vasculopatia é caracterizada por hiperplasia da camada íntima
com oclusão da luz do vaso, além de fragmentação e duplicação da camada elástica.
Alguns vasos, principalmente no polígono de Willis, formam aneurismas, que podem se
romper e provocar hemorragia. O AVC hemorrágico também pode ser o resultado da
ruptura dos vasos “moya-moya”. A hemorragia, quando ocorre, é geralmente
subaracnóide, mas hemorragia intra-ventricular e parenquimatosa também são
observadas em alguns casos.
A fisiopatologia do AVC na doença falciforme é pouco conhecida, e a sua
etiologia é provavelmente multifatorial.
Ao contrário de outros leitos vasculares, a oclusão com conseqüente
infarto no AVC parece ocorrer mais freqüentemente nos vasos cerebrais maiores
(principalmente artéria cerebral média e carótida interna) do que na microvasculatura.
265
Em adição à falcização do eritrócito, outros fatores ou mecanismos
patogênicos são provavelmente operantes no subgrupo de pacientes com doença
falciforme que desenvolvem AVC.
É possível a existência de um estado hipercoagulável nos doentes
falciformes.
A
hiperhomocisteinemia
está
associada
ao
o
risco
de
doença
cerebrovascular e outros problemas vasculares na população geral. Houston e cols.
estudaram 100 pacientes com doença falciforme, incluindo 16 com AVC, e observaram
que os níveis de homocisteína estavam correlacionados com a ocorrência de AVC,
onde os pacientes com níveis de homocisteína acima da média tiveram probabilidade
3,5 vezes maior de terem desenvolvido AVC. O mecanismo pelo qual a homocisteína
aumenta o risco de doença vascular é desconhecido, mas têm-se demonstrado que ela
inibe a expressão da trombomodulina, uma glicoproteína anticoagulante que age como
cofator da trombina, ativando a proteína C. Esta redução na atividade da proteína C
poderia predispor estes pacientes à trombose. Além disso, Khanduri e cols.
identificaram baixos valores de proteína C na doença falciforme, e uma diminuição
significante desses valores no grupo de doentes que tiveram AVC. Deste modo, podese sugerir que um screening para trombofilia à época do diagnóstico ajudaria a
identificar crianças com risco de desenvolverem AVC e que estudos devem ser
desenvolvidos no sentido de determinar a importância da terapia com anticoagulantes
em baixa dose na doença falciforme com AVC.
Além da adesão aumentada dos eritrócitos falcizados ao endotélio
vascular, a regulação anormal do tônus vasomotor também contribui para a vasooclusão, incluindo AVC, nos pacientes com doença falciforme. O óxido nítrico (NOx) é
um importante regulador do tônus vascular normal, adesão celular, e trombose. Deste
modo, French II e cols. estudaram a adesão de eritrócitos-SS e do NOx na
microvasculatura cerebral de ratos, observando que os eritrócitos-SS têm maior adesão
à microvasculatura cerebral em relação ao grupo controle, e que a combinação da
inibição da síntese de NOx e infusão de eritrócitos falciformes predispuseram à
interrupção do fluxo sangüíneo cerebral e morte. Além disso, têm-se demonstrado que
os níveis de NOx podem estar diminuídos localmente ou sistemicamente na doença
falciforme, e recentemente, que leucócitos de pacientes com doença falciforme liberam
266
grande quantidade de íon superóxido, um conhecido carreador do NOx. Estes estudos
apontam um potencial terapêutico para o tratamento dos pacientes com doença
falciforme com NOx.
O quadro clínico inicial é semelhante ao da população geral e caracterizase por hemiparesia aguda, afasia ou convulsões nos AVCs isquêmicos, e cefaléia
intensa nos episódios hemorrágicos. Hemiparesia residual crônica, retardo mental e
episódios convulsivos de difícil controle constituem seqüelas habituais.
O diagnóstico diferencial de AVC frente a um paciente com sintomas
neurológicos
inclui
encefalopatia,
hipertensão
intra-craniana,
trauma
craniano,
meningite, distúrbio metabólico, neuropatia periférica, entre outros.
Há vários métodos de imagem disponíveis para o estudo do ACV na
doença falciforme. Técnicas como angiografia e angiorressonância são utilizadas para
detectar doença vascular, sendo este último um procedimento não invasivo com boa
sensibilidade em relação à angiografia standard. Tomografia computadorizada e
ressonância magnética são usadas para identificar infartos e lesões isquêmicas. O
ultrassom Doppler transcraniano é um método que analisa a velocidade do fluxo
sangüíneo cerebral e, recentemente, vem se mostrando de grande valia na
identificação de pacientes com alto risco de desenvolver AVC possibilitando, portanto,
que estes indivíduos recebam tratamento preventivo.
Reserva-se o termo “infarto silencioso” aos casos onde se detecta infarto
do tecido cerebral nos exames de imagem, mas sem evidência de sintomas
neurológicos. Todavia, crianças classificadas como portadoras de “infarto silencioso”
apresentaram
resultados
inferiores
em
estudos
neuropsicométricos
e
déficits
neurocognitivos quando comparadas a crianças com ressonância magnética cerebral
normal. Além disso, esta condição está relacionada a maior risco de ocorrência de AVC
e maior extensão do acometimento neurológico.
Tratamento
O paciente com doença falciforme que evolui com AVC deve ser abordado
em dois momentos diferentes. Inicialmente trata-se o episódio agudo e, a seguir, o
267
doente é direcionado a um tratamento à longo prazo com regime de transfusão crônica,
que embora eficiente, apresenta controvérsias quanto a sua duração.
No episódio agudo, deve-se descartar fenômeno hemorrágico, estabilizar
os sinais vitais do paciente, instituir hidratação com cautela e realizar transfusão
sangüínea. O método transfusional mais aconselhável nesta fase é a ex-sangüíneo
transfusão (manual ou automatizada), pois ela ao mesmo tempo eleva o valor da
hemoglobina total melhorando a oxigenação e perfusão tecidual, evita hiperviscosidade
e reduz a concentração de HbS.
Dada a alta taxa de recorrência após o primeiro episódio de AVC, faz-se
necessário a instituição de uma terapia à longo prazo com finalidade preventiva. A
estratégia mais eficiente no AVC isquêmico em crianças é a terapia transfusional
crônica. O objetivo deste tratamento é manter a HbS abaixo de 30% nos primeiros 3
anos após o episódio isquêmico. Para tanto, é necessário que o paciente receba
transfusões sangüíneas regulares em média 1 vez por mês. Após 3 anos, tolera-se
manter a concentração da HbS abaixo de 50% se o paciente apresenta-se estável do
ponto de vista neurológico. Nas crianças, a terapia transfusional crônica reduz a taxa de
recorrência do AVC para menos de 10%. Em adultos este tratamento ainda não foi
aplicado de forma regular, e sua eficácia permanece incerta nos episódios
hemorrágicos.
A duração da terapia transfusional crônica não está estabelecida.
Tentativas de descontinuar o tratamento apresentaram resultados conflitantes, com
recorrências ocorrendo em pacientes que descontinuaram o tratamento após 10 anos
de transfusões regulares, e outros doentes evoluindo sem novas complicações
neurológicas com interrupção após 6 anos de tratamento transfusional (tabela 31).
268
Tabela 31 – Evolução de pacientes com doença falciforme e antecedente de AVC,
após interrupção do tratamento transfusional.
Número de
Média
Recorrência
Média
Média
pacientes
em anos de
n(%)
em meses de
em anos de
recorrência
acompanhamento
transfusão
10*
09**
9,5anos
50%
7meses
1,5 anos
6,3 anos
0
--
9anos
*Wang e cols; 1991
**Rana e cols; 1997
269
No entanto, a melhor opção continua sendo o regime transfusional crônico
prolongado e por tempo indeterminado, devido à menor probabilidade de recorrência
nesta terapia. Deve-se ressaltar que apesar das vantagens em relação ao
comprometimento neurológico, este programa transfusional à longo prazo é
acompanhado pelos riscos de aloimunização, infecções e sobrecarga de ferro
(hemossiderose), que dependendo da intensidade com que ocorrem, podem inviabilizar
o tratamento transfusional.
A hidroxiuréia pode ser uma alternativa ao regime transfusional para
prevenir a recorrência do AVC. Ware e cols.(1999) observaram recidiva em apenas
19% dos pacientes que interromperam a terapia transfusional e iniciaram tratamento
com hidroxiuréia. Deste modo, a hidroxiuréia parece ser uma opção para os pacientes
que apresentam sérias complicações oriundas do regime transfusional crônico com
necessidade de interrompê-lo. Entretanto, faltam estudos maiores e controlados para
afirmar o real benefício deste tratamento alternativo.
O tratamento do AVC hemorrágico é variável. Pacientes com hemorragia
cerebral por ruptura de aneurisma geralmente realizam craniotomia com clipagem do
aneurisma. A terapia transfusional crônica vem sendo empregada para crianças que
apresentam AVC hemorrágico, mas em adultos esta prática ainda não está
estabelecida.
Acidente vascular cerebral e doença cerebrovascular são indicações para
realização de transplante de medula óssea alogênico, uma modalidade terapêutica
cada vez mais estudada na doença falciforme. De fato, pacientes com AVC que foram
transplantados com sucesso apresentam estabilização do quadro neurológico e a
grande maioria evolui sem eventos cerebrovasculares subseqüentes.
A conduta no infarto silencioso não está definida, mas várias opções
podem ser consideradas, como transplante de medula óssea não-mieloablativo (minitransplante) com objetivo de obter quimerismo misto e estabilização clínica, terapia
transfusional crônica ou hidroxiuréia. No entanto, a escolha destas opções depende da
realização de estudos controlados envolvendo estes pacientes.
270
Prevenção Primária
A única estratégia para prevenir a ocorrência de um primeiro AVC na
doença falciforme é baseada nos resultados de um estudo randomizado realizado por
Adams e cols.(1998), o estudo STOP (stroke prevention trial in sickle cell anemia). O
método empregado para identificar as crianças com risco de desenvolver AVC foi o
ultrassom Doppler transcraniano, capaz de detectar aumento na velocidade do fluxo
sangüíneo cerebral que ocorre em associação com estenose e lesões obstrutivas dos
vasos e, consequentemente, denotam alto risco de acidente vascular cerebral. Foram
estudadas 130 crianças com anemia falciforme (sem história de AVC) que
apresentavam alterações no estudo de Doppler transcraniano (velocidade >
200cm/seg), submetendo 63 delas a regime transfusional para manter HbS<30%, e 67
à terapia de suporte clínico. Foram observados dez eventos isquêmicos e um
hemorrágico no grupo de suporte clínico, e um evento isquêmico no grupo submetido à
terapia transfusional, com uma diferença de 92% no risco de AVC. Estes dados
mostram que as transfusões diminuem em grande escala o risco de um primeiro AVC
nos pacientes com anemia falciforme que apresentam alterações no estudo do
Ultrassom-Doppler.
O BAÇO NA DOENÇA FALCIFORME
O baço na doença falciforme tem uma variedade de apresentações
dependendo da idade do paciente e do seu grau de doença. O ambiente de hipóxia dos
cordões de Billroth promove desoxigenação e, conseqüentemente, falcização dos
eritrócitos nos pacientes com anemia falciforme (HbSS). As células falciformes são
rígidas, e perdem a plasticidade para penetrar nos sinusóides esplênicos.
No início da infância, a esplenomegalia é proeminente devido à congestão
dos cordões de Billroth pelos eritrócitos falcizados. Embora o baço esteja aumentado,
sua função é geralmente prejudicada, levando ao aparecimento dos corpos de HowellJolly (inclusões de fragmentos nucleares) no sangue periférico. Infartos esplênicos
271
dolorosos ocorrem devido a empactação das células falciformes na microvasculatura.
Crianças na primeira infância podem estar sujeitas a crises de seqüestro em
decorrência do armazenamento (“pooling”) maciço e súbito dos eritrócitos no baço,
resultando em rápido aumento do órgão associado a citopenias e necessidade de
esplenectomia. Crises aplásticas e hemolíticas, geralmente associadas à infecção, são
outras complicações que podem ocorrer.
Cerca de 6% das crianças com anemia falciforme desenvolvem um estado
de hiperesplenismo crônico, onde metade destes são precedidos por um episódio de
seqüestro esplênico agudo que inesperadamente não se resolve. O baço permanece
aumentado (>4cm do rebordo costal esquerdo), com níveis de Hb<6,5g/dl e
plaquetas<200.000/mm³.
Esplenomegalia é rara em adultos com doença falciforme devido à
progressiva atrofia causada por infartos repetidos no baço, levando à fibrose do órgão.
Os nódulos fibróticos são cobertos por ferro a cálcio, formando os corpos de GamnaGandy. Nos estágios avançados, o baço tem seu tamanho reduzido e torna-se fibrótico,
resultando em auto-esplenectomia funcional. Entretanto, em outras situações como na
doença da HbSC e na associação da HbS com talassemia, a esplenomegalia pode
persistir até a idade adulta.
Na doença da HbSC, a dilatação moderada do baço está presente em
cerca de 2/3 das crianças e freqüentemente persiste na vida adulta. No entanto, a
perfusão do baço está intacta e, como resultado, pode ocorrer infarto esplênico
sintomático e seqüestro esplênico agudo em adultos, assim como em crianças. Apesar
da preservação da perfusão esplênica, a função do baço está comprometida, e esta
ocorre de forma mais gradual e numa idade mais avançada do que na anemia
falciforme. Crises de seqüestro esplênico também podem ocorrer nestes pacientes,
onde geralmente são brandas, auto-limitadas a não requerem tratamento com
transfusão sangüínea ou esplenectomia.
272
Seqüestro esplênico
O baço é o primeiro órgão a sofrer com os efeitos da anemia falciforme na
microvasculatura. Durante a infância, o baço encontra-se aumentado de tamanho em
75% dos pacientes, no entanto, a partir dos 6 meses de idade inicia-se o processo de
involução que culmina na perda total da função esplênica (asplenia funcional) em mais
de 90% dos doentes no final da infância, além da progressiva auto-esplenectomia que
ocorre com o desenvolvimento de fibrose local.
Nos pacientes com HbF aumentada, o processo de atrofia esplênica é
mais lento e a função esplênica é preservada por mais tempo. Estes indivíduos são,
portanto, mais susceptíveis a complicações decorrentes da esplenomegalia como crises
de seqüestro, infarto esplênico, hemorragia intra-esplênica, ruptura e abscessos.
O seqüestro esplênico é uma complicação resultante da estase aguda dos
eritrócitos
falciformes
nos
sinusóides
do
baço,
que
aumenta
de
volume.
Conseqüentemente, ocorrem anemia, reticulocitose, plaquetopenia leve e hipovolemia.
Este evento é definido como uma queda súbita de pelo menos 20% do hematócrito
basal, associada ao aumento de 2 cm ou mais do baço à palpação.
A maior incidência ocorre entre 5 meses e 2 anos de idade. Os episódios
estão comumente associados à infecções das vias aéreas superiores, mas a
fisiopatologia não é bem esclarecida.
O quadro clínico é caracterizado por palidez mucocutânea de instalação
súbita, acompanhada de distensão e dor abdominal pela esplenomegalia, podendo
ocorrer polidipsia. A hepatomegalia, por vezes observada, não é tão marcante quanto a
esplenomegalia. A perda de volume sangüíneo no baço logo leva ao choque, com
taquidispnéia intensa, taquicardia e astenia importante.
Os episódios variam de intensidade, com predomínio das apresentações
brandas que geralmente resolvem-se espontaneamente. Entretanto, episódios graves
ocorrem e podem ser fatais se não tratados rapidamente.
Pacientes adultos raramente apresentam seqüestro esplênico, os
indivíduos mais afetados são aqueles com HbSC e Hb SS/α- talassemia. Na
associação com a talassemia alfa, o envolvimento do pacientes com idade mais
273
avançada pode ser explicado pela melhor reologia eritrocitária que acompanha esta
condição, com conseqüente preservação da função esplênica até a idade adulta.
Tratamento
Por se tratar de complicação possivelmente fatal, a crise de seqüestro
esplênico deve receber tratamento em caráter de urgência. A maior parte da
mortalidade nos casos decorre do choque hipovolêmico e não da anemia, portanto a
conduta inicial consiste em reposição da volemia com administração de expansores de
volume.
As transfusões de concentrados de hemácias ajudam a restaurar o
volemia e a pressão arterial, no entanto há que se fazê-la com cautela, pois à medida
que o processo se reverte com o tratamento transfusional, o baço começa a reduzir de
tamanho liberando o volume sangüíneo que estava em seu interior, de modo que o
valor da hemoglobina pós-transfusional é freqüentemente maior do que o esperado pelo
montante transfundido. Deste modo, as transfusões devem ser feitas em pequenas
alíquotas, o suficiente para estabelecer o equilíbrio hemodinâmico e, ao mesmo tempo,
evitar hipervolemia. Quando a hemoglobina encontra-se abaixo de 5g/dl em vigência de
seqüestro esplênico, recomenda-se que seja inicialmente transfundido um volume em
ml/Kg igual ao valor observado da Hb. Por exemplo, se uma criança apresenta
hemoglobina de 3g/dl, o volume transfusional inicial deve ser de 3ml/Kg. As transfusões
subseqüentes devem ser indicadas pelo quadro clínico, e a quantidade estimada com
base no valor da hemoglobina após a primeira transfusão. Pacientes que apresentam
hipervolemia podem ser beneficiados pelo uso de diuréticos.
A conduta à longo prazo para os indivíduos que apresentam episódios
recorrentes de seqüestro esplênico ou hiperesplenismo grave inclui orientação e
treinamento dos pais quanto à palpação do baço da criança, terapia transfusional
crônica ou esplenectomia. Em relação à indicação da esplenectomia, deve-se levar em
consideração a facilidade de acesso ao atendimento médico especializado por parte do
paciente e a preservação da função esplênica. Quando há dificuldade para encontrar
assistência especializada em tempo hábil, deve-se recomendar a esplenectomia após o
274
primeiro episódio grave desta complicação. Nos pacientes onde o baço é funcional e o
acesso ao serviço médico não é problemático, pode-se postergar o procedimento com
terapia transfusional até os 3 anos de idade, com o intuito de protegê-las das crises de
sequestro repetidas e manter a função esplênica no período de alta vulnerabilidade à
infecções graves. Esplenectomia parcial pode ser também uma alternativa nestes
casos.
CRISE APLÁSTICA
A crise aplástica é uma complicação aguda que ocorre principalmente em
crianças com doença falciforme e, fora das zonas endêmicas de malária, é a maior
causa de anemia aguda nesta faixa etária. Esta queda abrupta no valor da hemoglobina
é ocasionada por aplasia ou hipoplasia eritróide transitória em medula outrora hiperregenerativa que, superposta à destruição aumentada e continuada dos eritrócitos na
periferia, provoca anemia grave em poucos dias.
A aplasia transitória está associada a infecções por vírus e bactérias, onde
o agente etiológico mais freqüentemente identificado é o parvovírus B19. O parvovírus
B19 ataca preferencialmente os precursores eritróides da medula ligando-se ao
antígeno P, o qual funciona como receptor deste vírus na superfície dos eritroblastos.
No entanto, nem todos os pacientes infectados por este agente desenvolvem crise
aplástica. Além disso, os indivíduos que já tiveram contato com o vírus provavelmente
desenvolvem imunidade por toda a vida. Deste modo, é importante determinar o estado
sorológico do paciente, pois aqueles sem evidência de infecção ou sem IgG elevada
para o parvovírus B19, devem merecer maior atenção e melhor investigação etiológica
frente aos episódios de reticulocitopenia. O parvovírus B19 pode induzir crise aplástica
e seqüestro esplênico.
A crise aplástica deve ser suspeitada à apresentação de uma criança febril
com piora da anemia, palidez e fraqueza progressiva, sem aumento importante da
icterícia, e valores baixos de hemoglobina e reticulócitos em relação ao estado basal. A
instalação do quadro é geralmente insidiosa, de modo que a queda do valor da
275
hemoglobina, embora significativa, é bem tolerada pelo paciente. Em geral, somente a
eritropoese é afetada, porém leucopenia e plaquetopenia podem ocorrer em alguns
casos. O curso desta complicação é geralmente transitório durando de 1 a 2 semanas.
Outra causa de hipoplasia eritróide transitória é o tratamento com oxigênio
inalatório, onde os doentes podem evoluir também com reticulocitopenia. O quadro se
resolve após a interrupção de tratamento inalatório.
Tratamento
Inicialmente, é necessário conhecer o perfil sorológico do paciente para o
parvovírus B19. Crianças em avaliação por doença febril, sob risco de parvovirose ou
cujo perfil sorológico para o vírus seja desconhecido, devem ser isoladas de gestantes
pelo risco da infecção em relação ao feto. Também deve-se instruir os pais de crianças
com doença falciforme a procurar assistência médica frente a um episódio febril, o que
aumenta as chances do diagnóstico precoce desta complicação.
Pacientes que apresentam queda do valor basal da hemoglobina igual ou
superior a 25%, reticulócitos diminuídos e sintomas decorrentes da anemia, devem
receber transfusões de concentrados de hemácias para encurtar o período de anemia e
os riscos decorrentes desta ao longo da duração da crise aplástica. As transfusões são
preferencialmente realizadas em alíquotas, assim como no seqüestro esplênico, para
evitar hipervolemia e hiperviscosidade sangüínea mediante a recuperação medular
associada à resolução do quadro. Geralmente, os pacientes com aplasia eritróide
transitória começam a apresentar eritroblastos no sangue periférico e aumento de
reticulócitos dentro de 1 semana.
PRIAPISMO
Entre as manifestações decorrentes da vaso-oclusão na doença
falciforme, encontra-se o priapismo, definido como uma ereção dolorosa, involuntária e
276
sustentada do pênis, durando mais de 30 minutos, associada ou não ao estímulo
sexual.
Normalmente a ereção é iniciada em resposta a estímulos psicológicos,
táteis ou nervosos, e resulta do aumento do fluxo sangüíneo para ambos os corpos
cavernosos e corpo esponjoso do pênis, os quais não possuem comunicação vascular
entre si. Este influxo de sangue, mediado em parte pela diminuição da atividade αadrenérgica e conseqüente vasodilatação arterial local, provoca ingurgitamento dos
sinusóides os quais, distendidos, comprimem as veias contra a fáscia que reveste o
órgão e dificultam a drenagem venosa causando tumescência peniana. Este processo é
revertido através do aumento gradual da resposta α-adrenérgica, com vasoconstrição
arteriolar e restabelecimento do retorno venoso.
Na doença falciforme o problema está no processo de reversão da ereção
devido à congestão dos corpos penianos pelas células falcizadas, mas o mecanismo
pelo qual isto ocorre não está totalmente esclarecido. Outro fator que pode contribuir
para o desenvolvimento desta complicação é o aumento local da oferta de óxido nítrico
ao endotélio pela HbS, resultando em vasodilatação. Freqüentemente os corpos
cavernosos
são acometidos
no priapismo, entretanto,
alguns
pacientes têm
envolvimento dos corpos cavernosos e corpo esponjoso ao mesmo tempo.
Cerca de 40% dos pacientes com anemia falciforme apresentam pelo
menos um episódio de priapismo. Deve-se ressaltar que esta alta incidência é
observada somente quando se questiona o paciente diretamente sobre o assunto, pois
muitos desconhecem a natureza desta complicação e sua relação com a anemia
falciforme, ou simplesmente se acanham em discutir espontaneamente o problema
durante as consultas de rotina. A maior incidência de priapismo ocorre por volta dos 20
anos de idade, sendo infreqüente na primeira década de vida. Portadores de
S/β-talassemia apresentam baixa incidência de priapismo; os indivíduos com
hemoglobinopatia SC também são raramente acometidos. Laboratorialmente, esta
condição está associada a baixos valores de HbF.
Basicamente, a apresentação do priapismo pode ocorrer de duas formas:
o episódio agudo recorrente e o episódio agudo prolongado. Os episódios agudos
recorrentes são mais freqüentes, auto-limitados, com duração inferior a 3 horas,
277
geralmente noturnos, provavelmente influenciados pela desidratação fisiológica e
acidose metabólica (resultante da hipoventilação) que ocorrem durante o sono. Alguns
fatores como relação sexual e ingestão de bebida alcoólica podem desencadear os
episódios, no entanto, a ereção noturna espontânea parece ser o fator precipitante mais
comum. A recorrência é altamente variável e pode suceder ao longo de anos.
Caracteristicamente, a função sexual geralmente é mantida entre os episódios.
O priapismo prolongado geralmente dura mais de 24 horas; trata-se de
complicação grave com necessidade de internação, e freqüentemente é precedido por
episódios agudos recorrentes, mas em alguns casos podem representar o único
episódio de priapismo do paciente. Os episódios prolongados são acompanhados de
dor intensa e raramente recorrem.
A impotência sexual é a principal seqüela do priapismo e acontece em ¼
dos casos, a grande maioria deles ocorrendo após episódios prolongados. Pacientes
com recorrência freqüente de episódios agudos podem apresentar perda parcial da
função sexual.
Tratamento
Devido à escassez de estudos acerca do tratamento do priapismo na
anemia falciforme, ainda não há consenso sobre a melhor conduta ou seqüência de
medidas a serem tomadas nesta complicação.
Os episódios auto-limitados geralmente são resolvidos com medidas
simples como exercícios, banho frio, masturbação, analgesia ou hidratação. Na maioria
das vezes não há necessidade de tratamento específico e os pacientes não procuram
atendimento médico.
Nas situações mais graves e prolongadas, com necessidade de
internação, surgem as seguintes questões: até que ponto deve-se insistir no tratamento
clínico? Qual o melhor momento para indicar uma conduta cirúrgica? Na verdade não
existe uma resposta ou proposta objetiva para estas questões. Mas baseado na
278
experiência de diversos centros e nos dados disponíveis na literatura, pode-se fazer
algumas observações.
Inicialmente, recomenda-se uma abordagem conservadora com analgesia
adequada, hidratação e transfusões sanguíneas. Transfusões simples de concentrados
de hemácias e eritrocitaférese para reduzir a concentração da HbS sempre fizeram
parte do tratamento no priapismo, porém com eficácia variável. Além disso, a
eritrocitaférese realizada para priapismo agudo vem sendo recentemente associada a
manifestações neurológicas (síndrome ASPEN), o que tem limitado o seu uso.
Quando não há resposta com o tratamento conservador, condutas
invasivas devem ser adotadas. Geralmente esta decisão deve ser tomada até 12 horas
da internação, evitando-se postergá-la por 24 a 48 horas porque isto prejudicaria os
resultados do tratamento cirúrgico. Esta modalidade de tratamento deve ser
precocemente indicada nos pacientes com antecedentes de outros episódios de
priapismo, em vigência de um novo episódio mais grave e prolongado que os
anteriores. O objetivo da conduta cirúrgica é retirar o sangue estagnado nos corpos
cavernosos e prevenir recorrência à curto prazo. Nestes casos preconiza-se aspiração
do corpo cavernoso, juntamente com irrigação ou administração local de drogas
α-adrenérgicas. O sangue retirado pela aspiração é espesso e escurecido, podendo
conter coágulos.
Se ainda não houver melhora do quadro, pode-se realizar cirurgia para
criação de uma fístula caverno-esponjosa. Esta técnica viabiliza um “shunt” entre a
glande e o corpo cavernoso, permitindo a drenagem sangüínea dos corpos cavernosos
para o corpo esponjoso (que não está afetado pelo priapismo). Tal procedimento não é
recomendado nos casos onde o corpo esponjoso também está afetado. As
complicações decorrentes desta cirurgia são freqüentes, com alta probabilidade de
falha terapêutica.
A hidroxiuréia, com eficácia comprovada nas crises dolorosas e STA pelo
aumento da concentração de Hb F, pode reduzir a frequência dos episódios de
priapismo, no entanto faltam estudos randomizados para comprovar seu benefício para
esta complicação.
279
O dietil-estilbestrol é uma droga anti-androgênica que, apesar dos poucos
relatos na literatura, vem se mostrando eficaz no tratamento do priapismo, reduzindo
sua frequência e duração. Recentemente Cançado e cols. descreveram bons
resultados em pacientes com ataques freqüentes e refratários à conduta clínica, que
obtiveram melhora importante quando tratados com dietil-estilbestrol. Preconiza-se a
administração de 5mg ao dia até a melhora do quadro agudo, seguidos de manutenção
com 2,5 mg ao dia, três vezes por semana por 2 a 4 semanas. Resultados colaterais
incluem ginecomastia e disfunção erétil.
Os doentes com impotência decorrente do priapismo podem ser
beneficiados com colocação de próteses penianas e aconselhamento psicológico.
ÚLCERAS DE PERNA
Da mesma forma que a osteonecrose, as úlceras de perna são
complicações comuns, freqüentemente crônicas e incapacitantes, com alta repercussão
na qualidade de vida dos pacientes com doença falciforme. No entanto, pouco se
conhece em relação à sua fisiopatologia e faltam estudos controlados para se
estabelecer o tratamento mais adequado dentre as várias opções existentes até o
momento.
As úlceras de perna ocorrem uni ou bilateralmente, principalmente nos
maléolos laterais e mediais dos tornozelos, mas podem se desenvolver no dorso dos
pés e nas pernas, e existem raros relatos desta complicação nas mãos. Como as
extremidades inferiores do corpo são locais expostos, traumas locais e picadas de
inseto podem precipitar a formação das úlceras (figura 104). O exame físico das
extremidades é essencial para detectar alterações na pele do paciente e úlceras em
fase inicial.
280
Figura 104 – Úlcera de perna.
281
As lesões menores, rasas e superficiais geralmente se resolvem
espontaneamente dentro de meses com repouso e higiene local. Já as lesões maiores
e profundas são extremamente dolorosas, incapacitantes e de longa duração,
necessitando de tratamento mais agressivo. A recorrência é comum, podendo ocorrer
após meses ou anos da cicatrização; nos casos graves pode haver infecção local, o
que dificulta o tratamento e perpetuam a duração da úlcera. As lesões profundas
podem ser complicadas por osteomielite, e a suspeita desta lesão deve merecer
investigação com cintilografia óssea e ressonância magnética.
A prevalência das úlceras de membros inferiores é por volta de 2,5% entre
os doentes, sendo mais comum nos pacientes com HbSS (cerca de 5%), e raras
naqueles com HbSC e Sβ-talassemia. Praticamente não ocorre antes dos 10 anos de
idade. A incidência é maior após os 20 anos, principalmente no sexo masculino, nos
pacientes com anemia falciforme (10 casos por 100 pacientes/ano). Esta afecção incide
mais nos doentes com história prévia de úlcera, em virtude da alta recorrência que
apresentam. Os valores de Hb total e concentração de HbF são inversamente
proporcionais à incidência de úlceras de perna. Além disso, a concomitância de
talassemia alfa, especialmente naqueles com apenas 2 genes alfa, reduz a prevalência
e a incidência desta complicação nos indivíduos com HbSS (Koshy e cols.,1989).
As úlceras de perna, apesar de freqüentes na anemia falciforme, não são
específicas desta doença e já foram observadas em pacientes com talassemia beta e
esferocitose. O desenvolvimento da lesão está provavelmente relacionado à
deformabilidade precária dos eritrócitos falciformes, que prejudicam a circulação nos
capilares dérmicos e promovem necrose tecidual. Os indivíduos com talassemia alfa
concomitante desenvolvem menos esta complicação provavelmente pelo valor da
hemoglobina total estar mais elevada e consequentemente realiza melhor competência
reológica dos seus eritrócitos.
Tratamento
Diversas são as opções terapêuticas para as úlceras de perna (tabela32).
282
Tabela 32 – Tratamento das úlceras de perna na doença falciforme.
1. Recomendações gerais
- Repouso com o membro elevado
- Analgesia (usar opióides se necessário)
2. Tratamento local
-
Debridamento com compressas molhadas (em contato com a úlcera) a
secas (parte externa do curativo)
-
Pomadas
-
Zinco tópico
-
Antibióticos tópicos
-
Bota de Unna
-
Hidroterapia
-
Câmara hiperbárica
3. Tratamento cirúrgico
-
Debridamento cirúrgico
-
Enxerto de pele
4. Tratamento sistêmico
-
Transfusões sanguíneas
-
Antibióticos sistêmicos
-
Sulfato de zinco oral
-
Hidroxiuréia
283
Repouso e boa limpeza local para prevenir processos inflamatórios e
infecciosos são as recomendações mais importantes para o sucesso do tratamento
desta complicação, pois possibilitam a formação de tecido de granulação na superfície
da úlcera favorecendo a sua reepitelização. Este tratamento local, principalmente a
aplicação de compressas várias vezes ao dia, geralmente é suficiente para promover a
cicatrização das úlceras menores (diâmetro inferior a 4 cm) em alguns meses.
Ocasionalmente, há necessidade de realizar debridamento cirúrgico para limpar a base
da úlcera, e facilitar sua resolução com o tratamento tópico. Apesar das culturas do
local serem freqüentemente positivas – germes aeróbios e anaeróbios são identificados
em mais da metade dos casos – isto não demanda necessariamente tratamento com
antibióticos tópicos ou sistêmicos. No entanto, o aspecto da úlcera é fundamental para
o diagnóstico de infecção e para decisão em relação ao tratamento. Assim, na presença
de bordas hiperemiadas e secreção purulenta no local, que retardam a cicatrização,
recomenda-se antibióticos tópicos (geralmente contendo aminoglicosídeos) e, se
necessário, antibioticoterapia sistêmica baseada nos germes identificados pela cultura.
Nas úlceras maiores (diâmetro superior a 8cm), de longa duração e
cicatrização difícil, a terapia sempre oferece desafios e formas mais agressivas de
tratamento devem ser propostas, como transfusões freqüentes, câmara hiperbárica e
enxerto de pele. Apesar do tratamento transfusional, com elevação do valor da
hemoglobina basal e redução da concentração da HbS, realmente auxilia na resolução
do quadro, entretanto o seu uso é limitado pelas complicações conhecidas decorrentes
da sobrecarga transfusional. O repouso prolongado é útil nestes casos porém, na
prática, é freqüentemente inviável por parte do paciente.
A realização do enxerto de pele é uma opção para úlceras grandes e não
cicatrizadas. As condições para execução desta cirurgia são úlcera com base limpa,
bom tecido de granulação e transfusão pré-operatória. No entanto, metade dos
pacientes que realizam o enxerto apresenta recorrência, o que pode ser explicado pelo
maior diâmetro, cronicidade e tempo de duração da úlcera no momento em que a
cirurgia é indicada (tabela 33). Faltam estudos para determinar se o emprego precoce
de tratamentos mais agressivos como este favoreceriam o resultado do tratamento
desta complicação.
284
Tabela 33 – Recorrência em relação às formas de tratamento para úlcera de
perna.
Tipo de tratamento
Recorrência (%)
Tratamento local
25%
Transfusões
37%
sanguíneas
Enxerto de pele
52%
(Koshy e cols.,1989)
285
O tratamento com hidroxiuréia, e conseqüente elevação da hemoglobina
total e Hb F, pode ser útil na prevenção do desenvolvimento ou da recorrência das
úlceras de perna. Entretanto, os dados na literatura são conflitantes e, novamente, há
necessidade de estudos controlados para determinar a sua importância. O uso
prolongado da hidroxiuréia parece induzir a formação de úlceras em pacientes com
doença mieloproliferativa crônica, porém este efeito não foi observado na doença
falciforme.
MANIFESTAÇÕES OSTEOARTICULARES
Nos tecidos onde a circulação sangüínea é lenta, como na medula óssea
e no baço, a desoxigenação e polimerização da HbS ocorrem com maior facilidade,
resultando em falcização e oclusão vascular. Deste modo, depois do baço, o osso é o
principal órgão afetado pela doença falciforme.
Alterações ósseas decorrentes da hiperplasia medular crônica, que por
sua vez resulta da hipersolicitação medular pela hemólise, são comumente encontradas
nos pacientes. Isto ocorre porque os espaços medulares expandidos são preenchidos
pela medula vermelha, que se espalha pelos canais haversianos alargados, invadindo a
cortical e podendo-se estender até o periósteo. O defeito resultante deste fenômeno é o
adelgaçamento da região cortical do osso, alargamento dos espaços medulares e
trabeculação dispersa e irregular. No crânio observa-se proeminência da díploe,
achatamento das lâminas externa e interna, e aumento da espessura dos ossos frontal
e parietal. Além disso, trabeculação vertical ou perpendicular confere um aspecto
radiológico de “terminação em cabelo” (hair-on-end) na díploe expandida. A protusão do
maxilar superior leva a dentição defeituosa, caracterizada pela separação e angulação
dos dentes incisivos, além de problemas para a oclusão da boca (gnatopatia da anemia
falciforme). Os corpos vertebrais geralmente sofrem desmineralização pela hiperplasia
medular, o que provoca achatamento e biconcavidade (vértebra em “H”). Também são
achados freqüentes a osteoporose e a osteoesclerose das falanges terminais, entre
outros.
286
As lesões relacionadas principalmente ao fenômeno vaso-oclusivo, como
a osteonecrose asséptica e a síndrome mão-pé, serão detalhadas a seguir.
Osteonecrose
A osteonecrose (ou necrose isquêmica) é uma complicação comum,
dolorosa e debilitante da doença falciforme. Geralmente é insidiosa e progressiva,
acometendo principalmente quadril (cabeça de fêmur) e ombros (cabeça de úmero),
mas pode afetar qualquer osso do corpo. Três quartos dos pacientes com osteonecrose
do úmero também apresentam lesão no quadril. Por volta dos 35 anos de idade,
metade dos pacientes já apresenta evidências desta complicação. Na infância a doença
falciforme é a principal causa de osteonecrose e, antes dos 15 anos de idade, a
prevalência é de 3% e a incidência de 2 casos por 100 pacientes/ano.
No ombro, os sintomas de limitação do movimento estão ausentes em
80% dos casos no momento do diagnóstico. Por outro lado o envolvimento do quadril,
de apresentação comumente insidiosa, pode ser agudo e simular uma artrite séptica ou
sinovite.
Com frequência, a manifestação desta complicação é bilateral, embora
possa ocorrer em tempos e intensidades diferentes nos dois lados. O grau de
osteonecrose é determinado pela classificação de Ficat, baseada em achados
radiológicos, onde as lesões nos estágios iniciais são detectadas somente por
ressonância magnética (tabela 34).
287
Tabela 34. Classificação de Ficat para osteonecrose da cabeça do fêmur.
Estágio Imagem
0
Ressonância
magnética
(RM)
normal
(pode
haver
necrose
histologicamente)
I
Radiografia e tomografia normais; RM evidencia necrose medular e
óssea
II
Radiografia evidenciando esclerose e lesões líticas
III
Radiografia evidenciando achatamento da cabeça do fêmur e sinal em
“crescente”
IV
Radiografia evidenciando colapso da cabeça do fêmur, redução do
espaço articular, osteoartrite
288
A prevalência, incidência, fatores de risco e evolução da necrose
asséptica da cabeça do fêmur na doença falciforme foram determinadas em estudo
prospectivo realizado por Milner e cols. envolvendo 2.590 pacientes com seguimento
médio de 5,6 anos. A prevalência desta complicação em todo o grupo foi de 10%,
sendo maior nos indivíduos SS e Sβ 0-talassemia, e menor no subgrupo SC e Sβ+talassemia. Entre os pacientes SS, a prevalência foi maior naqueles com talassemia
alfa
concomitante.
A incidência
foi de 9% no grupo, e maior no subgrupo
SS/α-talassemia, principalmente nos homozigotos para talassemia alfa (α-/α-), que
apresentaram incidência de 4,4 casos por 100 pacientes/ano. Metade dos pacientes
com diagnóstico radiológico de osteonecrose estavam assintomáticos, isto é, sem dor
ou limitação de movimento. Os principais fatores de risco para o desenvolvimento desta
complicação foram hematócrito alto, crises vaso-oclusivas freqüentes, VCM baixo, AST
baixa. A correlação observada entre hematócrito e a incidência da osteonecrose
decorre provavelmente do fato dos pacientes com SS/α-talassemia apresentarem
hematócrito mais altos.
A fisiopatologia desta lesão é pouco conhecida. Presume-se que o evento
inicial seja a obstrução dos sinusóides medulares pelas células falcizadas, com
conseqüente necrose da medula óssea e das células que formam o tecido ósseo. Esta
necrose provocaria um processo de reparação óssea que apesar de melhorar a lesão,
principalmente em indivíduos jovens, produziria também um aumento da pressão
intramedular, o que levaria à reabsorção óssea e colapso da estrutura da cabeça do
fêmur.
Tratamento
A artroplastia com colocação de prótese é o principal tratamento para
necrose asséptica da cabeça do fêmur em estágios avançados, mas o prognóstico na
doença falciforme não é tão favorável quanto ao observado nas artroplastias para artrite
de quadril por outras causas. Em geral, a colocação de prótese no ato cirúrgico é
dificultada pela presença de esclerose óssea intensa. Cerca de 80% dos doentes que
operam têm menos de 35 anos e a necessidade de revisão e reoperação da prótese
289
pode ocorrer em 30% dos casos após 4 anos. Após a cirurgia, 2/3 dos pacientes
continuam com dor e ¾ apresentam limitação do movimento. Outras complicações
relacionadas à cirurgia também devem ser destacadas, como infecção, fratura e
síndrome torácica aguda.
Como a osteonecrose é complicação que ocorre precocemente na vida
dos indivíduos com DF, freqüentemente posta-se um dilema terapêutico entre o
tratamento conservador que pouco garante em relação à resolução da dor, mas
preserva em boa parte a mobilidade do membro, e o tratamento cirúrgico, mais eficaz
quanto ao quadro doloroso, porém sujeito a várias complicações e limitação de
movimento do membro afetado.
O tratamento clínico conservador consiste em repouso, redução da
sobrecarga de peso nas articulações de sustentação do corpo, administração de
analgésicos e anti-inflamatórios não-esteroidais, hidroterapia. O tratamento fisioterápico
propicia o fortalecimento da musculatura do quadril e da coxa, reduz o espasmo
muscular local e auxilia na correção da postura.
Nos estágios iniciais, bons resultados foram observados nos pacientes
que foram submetidos à descompressão da cabeça do femoral, um procedimento
cirúrgico que remove uma parte interna do osso e reduz a pressão no local. Os
resultados desta modalidade de tratamento envolvem melhora clínica, com redução da
dor e maior movimentação da articulação afetada, além da melhora radiológica
observada em alguns casos. Apesar dos resultados animadores, há necessidade de um
estudo controlado para determinar a importância deste procedimento no tratamento da
osteonecrose na doença falciforme.
Dactilite
Também
conhecida
como
síndrome mão-pé,
a
dactilite
é
uma
complicação vaso-oclusiva aguda caracterizada por dor e edema no dorso das mãos ou
dos pés (ou ambos simultaneamente), por vezes acompanhados de calor e eritema
local (figura 105).
290
Figura 105 – Dactilite em criança com anemia falciforme.
291
As crianças são mais freqüentemente acometidas, principalmente entre 6
meses e 4 anos de idade. É comum a ocorrência da dactilite como a primeira
manifestação da doença falciforme nas crianças. Em geral são episódios auto-limitados,
durando de 1 a 2 semanas, podendo ser recorrentes, mas raramente deixam seqüelas
articulares permanentes. Febre e leucocitose podem ser observadas na crise aguda e,
nesses casos, deve-se fazer diagnóstico diferencial com osteomielite e artrite juvenil.
Os achados radiológicos iniciais limitam-se à dilatação de partes moles, no
entanto após 2 a 3 semanas podem surgir afinamento cortical, destruição dos
metacarpos, metatarsos e falanges. Nos casos graves e repetitivos, a lesão acarreta
crescimento desproporcional entre os dedos (figura 106).
292
Figura 106 – Crescimento desproporcional entre os dedos da mão de paciente
com anemia falciforme.
293
Uma vez que o quadro é auto-limitado na maioria das vezes, o tratamento
se faz com cuidados locais e sintomáticos (analgésicos e anti-inflamatórios).
DOENÇA RENAL
A hiperosmolalidade, hipoxemia e acidose local que caracterizam o microambiente da medula renal na doença falciforme, promovem a polimerização da HbS e
contribuem para a vaso-oclusão intra-renal, que é o fenômeno responsável pelas
complicações deste órgão.
Proteinúria ocorre em 26% dos pacientes e sua prevalência aumenta com
a idade. É um sinal precoce no processo de lesão glomerular e sua fisiopatologia está
associada à hipertrofia glomerular e esclerose glomerular focal.
Outra manifestação que ocorre precocemente é a alteração do mecanismo
renal para a concentração da urina. A lesão básica da hipostenúria é o fluxo sangüíneo
prejudicado nos vasa recta, por estase ou obstrução permanente, que impede a
manutenção do gradiente de salinidade normal na medula renal.
A hematúria decorrente da doença falciforme resulta de necrose papilar
(observada em 25% dos pacientes) ou da ruptura de vasos neo-formados dilatados.
Geralmente é assintomática e tem evolução benigna, cessando espontaneamente. No
entanto, cerca de 70% dos pacientes apresentam recorrência dos episódios de
hematúria.
A perda da função renal, em boa parte decorrente da hiperfiltração
glomerular prolongada, aumenta consideravelmente a morbidade e a mortalidade dos
pacientes, que sobrevivem em média apenas 4 anos após o diagnóstico da insuficiência
renal. Comumente, uma queda nos valores basais de hemoglobina precede o
diagnóstico desta complicação.
Insuficiência renal aguda é pouco comum, na maioria dos casos está
associada à hipovolemia (sem hipotensão ou sepse) e pode ser agravada pelo uso de
anti-inflamatórios não esteroidais.
294
Por outro lado, em estudo prospectivo conduzido por Powars e cols. a
insuficiência renal crônica (IRC) foi observada em 4% dos pacientes com anemia
falciforme e em 2% dos pacientes com HbSC. A incidência aumenta com a idade e
acima dos 40 anos, 30% dos pacientes apresentam este diagnóstico.
O haplótipo Bantu é o mais freqüente entre os indivíduos que
desenvolvem insuficiência renal, talvez pela baixa concentração de HbF que
apresentam. Já a associação com talassemia alfa previne ou retarda o desenvolvimento
da glomerulopatia falciforme.
A avaliação da creatinina deve ser cuidadosa e levar em consideração a
influência da massa muscular diminuída e a alta taxa de filtração glomerular do paciente
com doença falciforme, além da hiper-secreção tubular de creatinina que ocorre nesta
doença. Portanto, valores de creatinina no limite superior da normalidade podem levar à
suspeita de uma diminuição da função renal.
Tratamento
O uso de inibidores da enzima de conversão da angiotensina-II (ECA) tem
oferecido bons resultados para a redução da proteinúria, além do possível retardo na
progressão da doença renal nos pacientes.
Cuidados como repouso e hidratação são suficientes para a resolução dos
quadros de hematúria na maior parte dos casos. Em raras ocasiões, há necessidade
transfusional pela perda acentuada de sangue. Desmopressina (DDAVP) e ácido
epsilon aminocapróico também podem ser úteis no controle da hematúria.
Com a IRC instalada, os pacientes entram em programa de hemodiálise
crônica e tornam-se candidatos ao transplante renal, entretanto, o tratamento
alternativo e precoce com hidroxiuréia e eritropoetina recombinante pode postergar a
necessidade de tratamento dialítico e transfusões de sangue.
295
MANIFESTAÇÕES HEPATOBILIARES
As doenças do trato biliar e do parênquima hepático constituem as
principais complicações do sistema digestório na doença falciforme. Cerca de 70 a 80%
dos pacientes com doença falciforme apresentam hepatomegalia. Várias são as
possíveis causas de doença hepática nesta condição (tabela 35). Além disso, é comum
a presença de mais de uma etiologia nas complicações hepáticas, o que torna o difícil o
diagnóstico diferencial entre as causas.
296
Tabela 35 – Causas de doença hepática na doença falciforme.
Patologias
Colestase intra ou extra-hepática
Hepatite viral
Hipóxia e infarto
Seqüestro hepático
Sobrecarga de ferro
Cirrose
Hepatite medicamentosa
297
Icterícia é freqüentemente observada nestes doentes e reflete a presença
de hiperbilirrubinemia, principalmente às custas de bilirrubina indireta, decorrente da
anemia hemolítica crônica. A intensidade da icterícia varia muito entre os doentes, e
isto pode ser explicado por diferentes graus de comprometimento hepático,
intensidades diferentes de hemólise e alterações genéticas do metabolismo da
bilirrubina. De fato, a enzima UDP-glicuronil-transferase, responsável pela conjugação
da bilirrubina, está aumentada na doença falciforme e impede que os pacientes
evoluam com bilirrubinemia ainda mais elevada do que o usual. Assim, pacientes com
doença falciforme que possuem alteração desta enzima, como os portadores da
síndrome de Gilbert, terão um aumento isolado e expressivo da bilirrubina indireta, mas
sem alteração da função hepática.
Enzimas e testes de função hepática estão freqüentemente alterados, no
entanto, estas alterações nem sempre traduzem existência de doença hepática. Deste
modo, o aumento da fosfatase alcalina, principalmente em crianças e adolescentes,
pode ocorrer devido ao crescimento ou lesões ósseas, e não por hepatopatia. Já a
redução dos valores da proteína C e S (proteínas anti-coagulantes de produção
hepática) comumente observada nestes pacientes é atribuída mais à disfunção
hepática do que à coagulopatia de consumo. Algumas drogas têm seu metabolismo
alterado pela disfunção hepática, como a morfina que passa a ter seu clearance
aumentado.
A biópsia hepática dos doentes revela achados histopatológicos
compatíveis com a situação que levou à realização deste procedimento. Assim, nos
indivíduos politransfundidos o principal achado é de hemossiderose, aqueles com
hepatite viral apresentam sinais de hepatite crônica e cirrose, e nos que realizam
biópsia por ocasião da colecistectomia observa-se dilatação sinusoidal e fibrose perisinusoidal.
298
SÍNDROME DO QUADRANTE SUPERIOR DIREITO
É uma síndrome caracterizada por febre, icterícia e dor no hipocôndrio
direito. O diagnóstico diferencial deve ser feito entre crise dolorosa, colecistite,
seqüestro hepático agudo e crise hepática. Dentre estes, o acometimento mais
preocupante é a crise hepática.
Dois tipos de crise hepática podem ser caracterizados. O primeiro
corresponde a uma forma de obstrução intra-hepática, a verdadeira “crise hepática”,
cuja duração é auto-limitada durando de 3 a 7 dias. O quadro clínico se manifesta por
dor no quadrante superior direito do abdome e icterícia, entretanto, a bilirrubina total
raramente excede os 15mg/dl, a aspartato transaminase mantém-se geralmente abaixo
de 300UI/l e não há coagulopatia associada. Os episódios são provavelmente causados
por obstrução do fluxo sangüíneo, uma vez que os eritrócitos sofrem desoxigenação e
falcização quando passam dos sinusóides para as vênulas hepáticas. O ingurgitamento
das células de Kupffer (macrófagos) contendo células falciformes pode contribuir para o
fenômeno obstrutivo. Os achados hepáticos histopatológicos desta condição são áreas
de necrose e nódulos regenerativos, que podem corresponder a infartos hepáticos
pregressos seguidos de reparação com fibrose e regeneração.
O outro tipo de crise hepática é mais grave, porém muito raro. É
denominado colestase intra-hepática da doença falciforme, e caracteriza-se por dor no
quadrante superior direito, hepatomegalia e icterícia intensa. Valores de bilirrubina
extremamente altos são observados, podendo atingir 100 a 300mg/dl, e resultam da
combinação entre obstrução biliar completa e hemólise progressiva. Nota-se também
elevação de transaminases, mas em menor escala do que o observado nas hepatites
virais. Além disso, há prolongamento do tempo de protrombina e do tempo de
tromboplastina parcialmente ativado, o que inviabiliza a realização de procedimentos
diagnósticos, como a biópsia hepática. Os pacientes freqüentemente evoluem com
encefalopatia hepática e choque, com óbito na maioria dos casos. Os achados
histopatológicos da autópsia incluem obstrução extensa dos sinusóides hepáticos por
células falciformes e canalículos preenchidos por bile.
299
O tratamento da escolha para esta condição é a ex-sangüíneo transfusão
com reposição de concentrados de hemácias e plasma fresco congelado, com objetivo
de corrigir a coagulopatia e reverter o processo de colestase intra-hepática. Não é
recomendável o tratamento cirúrgico desta complicação, exceto quando há evidência
de obstrução extra-hepática.
Colelitíase
A colelitíase é conseqüência do metabolismo acelerado da bilirrubina
decorrente da hemólise crônica. Pode acometer crianças durante a primeira década de
vida e é observada em 75% dos adultos com doença falciforme. A dor abdominal que
acompanha o quadro clínico de colecistite é difícil de ser diferenciada de uma crise
dolorosa e das várias outras situações explanadas anteriormente que podem ocorrer na
doença falciforme. Dependendo da composição, o cálculo biliar pode ser radiolucente
ou radiopaco, assim o método diagnóstico de escolha é a ultrassonografia. A grande
maioria dos pacientes com litíase biliar é colecistectomizada de forma eletiva ou devido
a um episódio de colecistite aguda calculosa.
Não há consenso quanto ao momento de se indicar o tratamento cirúrgico.
No entanto, dada a ocorrência incomum de colecistite e icterícia obstrutiva nos
indivíduos com doença falciforme e colelitíase, é recomendável não realizar cirurgia nos
pacientes assintomáticos e sem alterações laboratoriais significantes.
Uma vez indicada a conduta cirúrgica, levanta-se a questão de qual a
melhor via a ser utilizada (aberta ou laparoscópica). Aparentemente, a via
laparoscópica oferece menor tempo de hospitalização, embora o número de
complicações seja semelhante aos daqueles que realizaram colecistectomia aberta.
300
MANIFESTAÇÕES OFTALMOLÓGICAS
A doença falciforme pode ocasionar lesões oculares em diferentes graus
de intensidade, geralmente resultantes de fenômenos vaso-oclusivos, podendo por
vezes passar desapercebida ou cursar com complicações visuais, culminando com
cegueira.
A retinopatia falciforme é uma complicação muito comum e, seguramente,
a manifestação mais típica da hemoglobinopatia SC, afetando 1/3 destes indivíduos, ao
passo que é rara a sua observação entre os pacientes com anemia falciforme (em torno
de 3%). Na HbSC o desenvolvimento das alterações oftalmológicas aumenta com o
tempo, e a faixa etária de maior risco estende-se dos 15 aos 30 anos. Esta maior
incidência observada na HbSC é provavelmente um reflexo da benignidade relativa
deste genótipo e pode ser explicada pelo maior valor de hematócrito, maior densidade
celular e viscosidade sangüínea apresentados por estes indivíduos, podendo contribuir
também os baixos valores de HbF nesta condição. Além disso, na anemia falciforme
(HbSS) os vasos periféricos da retina são ocluídos precocemente no curso da doença,
de forma que alterações posteriores dos vasos e lesões proliferativas não ocorrem. Na
HbSC, a circulação sangüínea é mais competente e preserva a vascularização da retina
e, por isso, as lesões proliferativas ocorrem mais tardiamente. Baseando-se neste fato,
é possível que pacientes com HbSS em tratamento com hidroxiuréia, que faz com que
a densidade de seus eritrócitos fique semelhante àquelas da HbSC, passem a
apresentar uma maior incidência de retinopatia.
A retinopatia falciforme pode se apresentar de 2 formas: não-proliferativas
e proliferativas. Na forma não proliferativa os achados mais característicos da patologia
são as hemorragias retinianas tipo "salmon patch" e as hiperpigmentações retinianas
tipo "black sunburst". As hemorragias ocorrem por provável necrose isquêmica da
parede vascular, têm forma arredondada, cor vermelho-vivo e tamanho de 0,25 a 1
diâmetro papilar. Com o passar do tempo, esta cor se altera assumindo um tom
alaranjado, recebendo o nome de "salmon patch". Já as áreas de hiperpigmentação
retiniana causadas por oclusões arteriolares, rearranjo da arquitetura vascular,
hiperplasia, hipertrofia e migração de epitélio pigmentar retiniano, com as margens
301
espiculadas e aspecto semelhante a cicatrizes de coriorretinite são chamadas "black
sunburst" e podem estar associadas a pontos iridescentes. As alterações nãoproliferativas geralmente não afetam a acuidade visual.
A retinopatia proliferativa ocorre em resposta à oclusão dos vasos na
periferia da retina, e o seu desenvolvimento provavelmente segue uma seqüência
proposta na classificação de Goldberg (1971) (tabela 36).
302
Tabela 36 – Estágios da retinopatia falciforme proliferativa.
Estágios
Achados
I
Obstrução arteriolar
II
Anastomoses artério-venosas
III
Proliferação neovascular
IV
Hemorragia vítrea
V
Descolamento de retina
303
Inicialmente, ocorre a oclusão arteriolar na periferia da retina (Estágio I),
com conseqüente dilatação destes vasos que estabelecem comunicações arteriovenosas entre a retina vascularizada e isquêmica (Estágio II). A seguir, formam-se
neovasos a partir da superfície retiniana em direção ao vítreo e, por serem malformados, apresentam a forma de um leque, sendo chamados de “sea-fan” (molusco
marinho com forma semelhante à dos vasos) configurando o Estágio III. Os vasos neoformados são frágeis e permitem o extravazamento de sangue para o vítreo (Estágio
IV), e a resolução e organização da hemorragia vítrea por meio da produção de tecido
fibro-vascular promove tração na retina, provocando o seu descolamento (Estágio V). A
retinopatia não proliferativa, ou de base, corresponde aos estágios I e II, enquanto que
a retinopatia proliferativa corresponde aos estádios III, IV e V. A avaliação da retinopatia
pode ser complicada pela possibilidade de regressão espontânea das lesões
proliferativas, decorrentes de auto-infartos.
Além da retina, alterações também podem ser observadas nos vasos da
conjuntiva. Estas são mais comuns nos pacientes com HbSS e as modificações
freqüentemente encontradas são aquelas que afetam a rede vascular superficial, e
consistem na dilatação de segmentos dos capilares, que aparecem como vasos curtos,
escuros, algumas vezes em forma de vírgula e geralmente sem conexões aparentes
com o restante da rede vascular da conjuntiva. Estes achados são inversamente
proporcionais ao valor de HbF e diretamente proporcionais ao número de células
irreversivelmente falcizadas.
Alguns pacientes podem apresentar dificuldade de adaptação visual no
escuro devido a deficiência de zinco no organismo decorrente da alta excreção urinária
deste elemento. A melhora clínica é obtida com a reposição de zinco.
Tratamento
O tratamento da retinopatia falciforme não está definido.
Recomenda-se
aos
pacientes
com
doença
falciforme
avaliação
oftalmológica anual desde a infância, pois a detecção de retinopatia em estágio precoce
e seu tratamento com fotocoagulação, podem prevenir a progressão da lesão para
304
neovascularização, descolamento de retina e amaurose. No entanto, faltam dados
consistentes que demonstrem o impacto da fotocoagulação profilática na história
natural da retinopatia falciforme.
Nos pacientes que apresentam descolamento de retina ou hemorragia
vítrea recente, a intervenção cirúrgica é geralmente útil na restauração da visão.
Também devem ser encaminhados ao oftalmologista os pacientes com
trauma ocular, pois o aumento da pressão intra-ocular decorrente do trauma pode
provocar perda da visão.
INFECÇÃO
A infecção é a principal causa de morbi-mortalidade durante os primeiros
anos de vida na doença falciforme, e o principal agente infeccioso nesta condição é o
Streptococos pneumomiae (pneumococo). Antes da adoção de medidas preventivas
como triagem neonatal, vacinação contra pneumococo, e instituição precoce de
penicilina oral, as infecções por S. pneumoniae constituíam a principal causa de morte
dos pacientes com menos de 20 anos de idade. Na África, a situação é mais grave
devido à malária, que representa a causa mais freqüente de óbito nos pacientes
daquele continente. Além disso, os indivíduos com doença falciforme apresentam perda
da função do baço precocemente. De fato, o baço tende a aumentar seu volume até os
3 a 4 anos de idade quando passa a sofrer regressão progressiva de tamanho.
Entretanto, a função do baço não se relaciona com o seu tamanho, assim, mesmo que
a criança tenha o baço aumentado, a função deste já está comprometida (asplenia
funcional).
A
perda
da
função
retículo-endotelial
do
baço
leva
à
maior
susceptibilidade à infecções por bactérias encapsuladas, como o pneumococo e o H.
influenzae. Também, evidências de alteração na função dos neutrófilos podem
contribuir para o menor combate à infecção. Assim, a frequência de bacteremia nas
crianças com doença falciforme é até 300 vezes maior em relação ao esperado para a
idade, e as apresentações mais comuns são sepse, pneumonia, meningite e otite, que
305
podem seguir curso grave e com risco de vida em poucos dias. A maior incidência
ocorre antes dos 3 anos de idade, principalmente dos 6 aos 12 meses de idade.
Leucocitose discreta é um achado comum nos indivíduos com doença
falciforme no estado basal, e na vigência de crises dolorosas o número de leucócitos
eleva-se ainda mais. Assim, a leucometria não deve ser avaliada isoladamente quando
há suspeita de infecção.
A susceptibilidade à infecção pelo pneumococo decorre da deficiência de
opsonização
desta
bactéria
por
falta
de
anticorpos
específicos
contra
ela,
provavelmente relacionada à baixa produção de anticorpos pelo baço do doente. E
mesmo com os avanços recentes na profilaxia, a infecção pelo pneumococo continua
sendo uma causa importante de bacteremia, com mortalidade em torno de 15%. O
pneumococo é identificado com maior frequência em crianças com sintomas
respiratórios e febre, do que em adultos. Os sintomas predominantes nas crianças são
coriza, tosse, febre isolada ou irritabilidade, que podem progredir para septicemia e
choque.
Outra causa de morbi-mortalidade significativa são as infecções pelo H.
influenzae, responsável por boa parte dos episódios de sepse e meningite na doença
falciforme. Todavia, assim como as infecções pneumocócicas, as infecções por H.
influenzae também se tornaram menos freqüentes após a implementação da vacina
específica para este agente no calendário vacinal.
No paciente adulto, observa-se maior frequência das infecções por
germes gram-negativos como a Escherichia coli, Klebsiella e Salmonella. A aquisição
de anticorpos naturais, infecções subclínicas e, recentemente, a vacinação de rotina
contra pneumococo e H. influenzae são os fatores responsáveis pela mudança do perfil
microbiológico dos quadros infecciosos no adulto com doença falciforme.
A osteomielite também é uma infecção comum nos primeiros anos de
vida, porém rara na idade adulta. Pacientes com doença falciforme apresentam risco
100 vezes maior de desenvolver osteomielite quando comparados à população geral. O
diagnóstico desta infecção é difícil porque sua apresentação clínica e radiológica é
indistinguível das lesões ocasionadas por infartos, de forma que a confirmação
diagnóstica deve ser obtida por hemoculturas e culturas da secreção local (drenada ou
306
puncionada). O acometimento pode ser localizado ou multifocal, e comumente envolve
ossos longos, porém outros locais também são afetados como pelve e esterno. No
início, não há sinais radiológicos claros, mas com a evolução do quadro, nota-se
elevação do periósteo e absorção da diáfise. A infecção ocorre por via hematogênica ou
a partir de úlceras maleolares infectadas. Apesar do agente etiológico da osteomielite
variar de região para região, de uma forma geral, mais da metade dos episódios são
causados por Salmonella, seguido por Staphylococcus aureus e, em determinadas
situações, por Klebsiella.
Tratamento
O alto risco de infecção e mortalidade pelo S. pneumoniae em crianças
com doença falciforme levou à adoção de medidas extremamente importantes. Tais
medidas, como o screening neonatal, tratamento profilático com penicilina oral e
vacinação contra pneumococo, quando instituídas precocemente, acarretaram em
redução significativa da frequência de bacteremia.
O principal objetivo do screening neonatal é a identificação de recém
nascidos com doença falciforme e orientação subsequente dos pais quanto ao risco de
infecção, para que estas crianças possam ser beneficiadas pela introdução precoce do
tratamento com penicilina oral. Nos Estados Unidos, a implementação do screening
neonatal possibilitou a redução da mortalidade nos recém nascidos com doença
falciforme. A adoção desta medida seria também extremamente útil em regiões menos
desenvolvidas como, por exemplo, na África onde a malária é a principal causa de óbito
nas crianças com doença falciforme, e o tratamento profilático desta infecção poderia
reduzir significativamente a mortalidade nesta faixa etária. Entretanto, o surgimento de
cepas de Plasmodium falciparum resistentes à cloroquina dificulta ainda mais esta
estratégia.
Qualquer criança febril com doença falciforme deve ser tratada como se
estivesse com infecção por pneumococo até que se prove o contrário. A presença da
febre, portanto, deve ser encarada como situação de risco, e constitui indicação para a
admissão hospitalar e início imediato da antibioticoterapia. A avaliação inicial deve
307
incluir exame físico completo, hemograma com reticulócitos (para excluir aplasia
eritróide), e hemocultura. Punção lombar para avaliação do líquor é recomendada aos
pacientes com suspeita clínica de meningite e naqueles com menos de 1 ano de idade.
Aquelas com menos de 3 anos de idade devem realizar radiografia de tórax, pois nesta
faixa etária os sinais clínicos de síndrome torácica aguda não são tão evidentes, e a
presença desta afecção demanda conduta especializada.
Até pouco tempo atrás, pacientes com menos de 6 anos que
apresentavam-se doentes ou com febre, eram internados e recebiam antibioticoterapia
intravenosa até que suas culturas ficassem negativas. Recentemente, considera-se o
tratamento ambulatorial ou em hospital-dia para os pacientes com febre e não
toxemiados, após avaliação e observação cuidadosa por algumas horas. O antibiótico
recomendável nestes casos é a cefalosporina de terceira geração (ceftriaxone), dada a
sua alta eficácia contra pneumococo. Se o paciente evolui estável e com melhora do
estado geral, a antibioticoterapia pode ser trocada para via oral após alguns dias de
ceftriaxone intravenoso. Caso os resultados de cultura apontem positividade para
determinado germe, os doentes deverão ser reavaliados quanto a necessidade de
introdução de antibióticos específicos.
COMPLICAÇÕES CARDIOVASCULARES
Assim como qualquer indivíduo com anemia crônica, os pacientes com
doença falciforme freqüentemente apresentam sintomas cardiorespiratórios como
palpitações, dispnéia e fadiga, os quais exacerbam-se durante o esforço físico. Além
disso, a intensidade da anemia tem relação com a capacidade de esforço físico que
encontra-se reduzida na metade dos adultos e em dois terços das crianças. Ao exame
físico, a ausculta cardíaca raramente está normal, e os principais sinais encontrados
são sopro cardíaco, geralmente pansistólico e mais audível em ápice, e cardiomegalia,
detectada ao exame clínico ou com auxílio de uma radiografia de tórax e
ecocardiograma.
Sopros
diastólicos
são incomuns
e
de
significância clínica
indeterminada, já a presença de hipertensão pulmonar pode gerar hiperfonese de 2a
308
bulha. Apesar da presença de cardiomegalia e sopro cardíaco levantarem a suspeita de
insuficiência cardíaca congestiva, a contratilidade cardíaca é freqüentemente
preservada,
o que torna esta complicação incomum na doença falciforme,
principalmente entre as crianças. A insuficiência cardíaca, quando presente, está
geralmente relacionada a eventos secundários como sobrecarga de volume e
hipertensão, que pode ser agravada pelo surgimento de lesão renal com o avançar da
idade, levando à hipertrofia ventricular e insuficiência cardíaca. Hemossiderose é a
principal causa de insuficiência cardíaca na talassemia maior, porém não é tão
relevante na anemia falciforme a ponto de causar cardiopatia, exceto em indivíduos
politransfundidos.
Dois são os principais fatores responsáveis pelas manifestações
cardiovasculares: o fenômeno vaso-oclusivo e a diminuição da afinidade entre o
eritrócito e o oxigênio na doença falciforme. Tanto o débito quanto o índice cardíaco
encontram-se aumentados ao repouso nos doentes, e aumentam de intensidade
durante o exercício. Este estado hiperdinâmico varia diretamente com o grau de anemia
e decorre da redução da capacidade de carreamento do oxigênio na circulação
sangüínea.
Os achados eletrocardiográficos não são específicos, mas podem mostrar
sinais de hipertrofia ventricular. A avaliação ecocardiográfica na anemia falciforme
evidencia aumento das dimensões dos ventrículos direito e esquerdo, aumento do átrio
esquerdo, aumento da espessura do septo interventricular e contratilidade normal.
Estes achados, exceto aquele envolvendo o ventrículo direito, são inversamente
proporcionais ao valor da hemoglobina e indicam dilatação cardíaca. Nos indivíduos
portadores de talassemia alfa de dois genes afetados (-- / αα) concomitante à anemia
falciforme, a dilatação ventricular esquerda é menos pronunciada, mas a espessura do
septo interventricular é maior; estas alterações decorrem provavelmente do maior valor
de hemoglobina associado a esta condição.
Apesar da ocorrência comum de dor torácica e do fato da maior extração
de oxigênio do organismo ocorrer no tecido cardíaco, o infarto do miocárdio não é
freqüente na doença falciforme. Embora paradoxal, esta baixa incidência de vasooclusão coronariana pode ser explicada pela rapidez do fluxo sangüíneo no miocárdio,
309
principalmente no estado hiperdinâmico, que não oferece tempo para que a falcização
aconteça, a despeito da alta concentração de deoxiHbS nas células. Além disso, os
doentes também apresentam menos arteriosclerose coronariana do que indivíduos
normais. No entanto, embora incomum, o infarto do miocárdio deve ser suspeitado
frente ao paciente com dor torácica, devido à alta correlação entre este sintoma e a
ocorrência de infarto confirmado pelo exame de autópsia.
A oclusão de pequenos vasos e capilares em determinados locais do
coração pode provocar lesão do sistema de condução de impulsos e de
quimiorreceptores cardíacos, resultando em disfunção do sistema nervoso autônomo do
coração, o que poderia explicar, em parte, as mortes súbitas observadas na doença
falciforme.
Pacientes com anemia falciforme apresentam diminuição da saturação
arterial do oxigênio. Esta anormalidade decorre não só da baixa afinidade do eritrócito
SS pelo oxigênio, como também do “shunt” arterio-venoso no pulmão, possivelmente
resultante de múltiplos infartos pulmonares. Ao repouso, a pressão de oxigênio (PO2)
varia de 70 a 90 mmHg, e a saturação do oxigênio situa-se entre 80 a 90%. A
hipoxemia arterial aumenta o débito cardíaco nestes doentes. E em alguns pacientes, o
sono induz maior decréscimo na saturação arterial de oxigênio, podendo desencadear
episódios vaso-oclusivos.
Ainda que o débito cardíaco encontra-se aumentado na doença falciforme,
a resistência vascular pulmonar está diminuída e a pressão na artéria pulmonar
permanece normal. Entretanto, a avaliação cuidadosa da função do ventrículo direito
mostra redução da fração de ejeção. Pacientes que apresentam repetidos infartos
pulmonares podem evoluir com aumento da resistência vascular pulmonar e
desenvolver hipertensão pulmonar, que eventualmente resulta em cor pulmonale. Esta
complicação raramente ocorre antes da quarta década de vida.
Em geral, pacientes com doença falciforme apresentam pressão arterial
mais baixa do que indivíduos normais. Provavelmente, este fato é uma conseqüência
da secreção aumentada de sódio e maior excreção de água que ocorre na doença
falciforme, o que impede a expansão do volume plasmático necessária para manter o
estado hipertensivo. No entanto, os níveis pressóricos na doença falciforme são
310
elevados quando comparados a indivíduos com talassemia beta que apresentam
mesmo valor de hemoglobina. Isto denota a existência de uma hipertensão “relativa” na
doença falciforme. A identificação dos doentes com níveis pressóricos limítrofes ou
hipertensão “relativa” é de fundamental importância dada a sua associação com risco
aumentado de acidente vascular cerebral e sobrevida reduzida. Este risco torna-se
ainda maior com o desenvolvimento de nefropatia falciforme, complicação cada vez
mais freqüente com o aumento da sobrevida dos pacientes, e hábito alimentar
inadequado com dietas hipercalóricas e ricas em sal.
Tratamento
Pacientes que desenvolvem insuficiência cardíaca congestiva devem
receber tratamento convencional. Nos doentes gravemente afetados ou com angina
pectoris, é recomendável manter o valor da hemoglobina mais alto que o habitual
através de transfusões sanguíneas, que devem ser realizadas cautelosamente para
evitar sobrecarga de volume e congestão pulmonar.
Ainda não há consenso quanto ao melhor momento para se indicar o
tratamento anti-hipertensivo nem quanto à medicação mais eficaz para este fim na
doença falciforme. Todavia, pelo risco de acidente vascular cerebral com pressão
arterial abaixo do limite superior da normalidade estabelecido para a população geral
(em torno de 140/90 mmHg), recomenda-se o tratamento anti-hipertensivo na doença
falciforme quando houver incremento de 20 mmHg na pressão sistólica ou 10 mmHg na
diastólica, em relação aos valores basais. Na presença lesão de órgão-alvo como
cardiopatia, nefropatia ou doença vascular periférica, pode-se iniciar o tratamento com
pressão arterial superior a 130/85 mmHg. Tratamento com PA em torno de 120/75
mmHg é indicado na vigência de proteinúria superior a 1g / dia.
Os anti-hipertensivos de maior utilidade na doença falciforme são os
inibidores da enzima de conversão da angiotensina (inibidores da ECA), pelo seu efeito
reno-protetor, e os antagonistas do cálcio, que tem maior eficácia na população negra.
No entanto, os bloqueadores do canal de cálcio devem ser usados cautelosamente em
diabéticos não-insulino dependentes e nos doentes com insuficiência cardíaca, pelo
311
risco de mortalidade cardiovascular. Os diuréticos, embora não estejam contraindicados na doença falciforme, teoricamente causam hemoconcentração e, assim,
poderiam predispor à vaso-oclusão.
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